"O leitor do romance efetivamente
não precisa saber que a história de Oates é baseada em fatos reais —
ficcionalizados para serem iluminados, porque o real sem um pouco
de luz extra, das cores da ficção, digamos assim, perde a graça — para
entender que se trata de uma história poderosa."
Por Euler de França Belém
"A Filha do Coveiro" (Alfaguara,
599 páginas, tradução afiada de Vera Ribeiro), obra-prima de Joyce Carol
Oates, é um romance que exibe a beleza (Rebecca Schwart, a música de
Beethoven) cercada por imensa dor (nazismo alemão, intolerância
americana, violência familiar). Uma tragédia grega, contada por
uma Dostoiévski que veste saia, com uma espécie de redenção, mas não religiosa,
e sim terrivelmente humana.
Numa entrevista ao "El País",
concedida a Andrea Aguilar, em outubro de 2008, Oates explica como
construiu o romance. Em maio de 1986, seu pai, septuagenário, conta-lhe,
casualmente, um segredo de família guardado a sete-chaves: a história
de seu avô Morgenstern que, depois de atirar na mulher, matou-se com um
tiro. Blanche Morgenstern, a filha do casal, estava no mesmo recinto.
O bisavô de Oates era coveiro. No livro, a única pista dada pela escritora
está na dedicatória: "Para minha avó, Blanche Morgenstern, a 'filha
do coveiro'".
Posta a informação, o leitor pode
pensar que se trata de uma biografia e não de um romance, o que não é,
porém, certo. "A Filha do Coveiro" é uma bela obra de ficção,
mas, como é baseada em fatos reais, explicados e adensados pelos amplos
recursos da ficção, que cria vida onde os documentos e a memória falham,
a própria Oates explicou-se na entrevista ao "El País".
"A ficção e a autobiografia — que amiúde é uma memória semificcionalizada
— são meios para explorar o passado. É preciso imaginar, mas não inventar;
se há invenções, ficção pura, isso deve brotar do real, do que verdadeiramente
ocorreu", disse Oates. "Enfrentei a história assombrosa da
vida de minha avó, mas não podia apropriar-me dela diretamente porque
não sabia realmente nada de primeira mão. Só podia chegar a ela de forma
elíptica e por intermédio da arte. Ainda assim penso que a voz que imaginei
para minha avó reflita de forma exata a simpatia, o pathos e a notável
resistência de sua vida desconhecida", acrescenta a prosadora.
"Um dos dados que Oates desconhecia sobre Blanche era sua ascendência
judia", revela Andrea Aguilar.
O leitor do romance efetivamente
não precisa saber que a história de Oates é baseada em fatos reais —
ficcionalizados para serem iluminados, porque o real sem um pouco
de luz extra, das cores da ficção, digamos assim, perde a graça — para
entender que se trata de uma história poderosa.
Fugindo dos amplos tentáculos do
nazismo de Hitler, o casal Jacob e Anna Schwart chegam aos Estados Unidos,
com três filhos, Herschel, o mais velho, August (Gus) e a caçula Rebecca,
que, nascida no navio, é cidadã americana. Rebecca é Blanche Morgenstern,
a avó de Oates.
Na Alemanha, Jacob era professor de
matemática e lia filósofos, como Hegel e Schopenhauer, e Anna tocava
piano e amava a música de Beethoven. Um casal judeu de classe média.
Nos Estados Unidos, desenraizado, Jacob consegue apenas o emprego
de coveiro, em Milburn.
Não era uma vida fácil, e alemães naquele
tempo, mesmo não nazistas e mesmo judeus, eram execrados pelos norte-americanos,
especialmente os jovens. Para proteger a família, Jacob tentou isolá-la
do mundo. Proibiu a mulher de falar alemão e obrigou os filhos a não terem
amigos. Era como se tivesse inventado seu próprio gueto. Moravam numa
casinha suja e velha no interior do cemitério. Não raro a casa e túmulos
eram pichados com a suástica nazista. Jacob ficava horrorizado e
tentava apagar a presença ostensiva da intolerância americana.
Um dia, Jacob compra um rádio, mas
não permite que ninguém da família o ligue. Só o coveiro pode ouvir
as notícias, que o irritam quando tratam das vitórias de Hitler. Quando
Jacob sai, Anna às vezes chama Rebecca para ouvir música erudita —
o que, mais tarde, vai marcar a formação do filho de Rebecca.
Quando Herschel e Gus saem de casa,
fugindo da tirania do pai, tirania com a qual acreditava que protegia
sua família, Jacob, talvez por julgar que perdeu o controle da família
e por não ter cumprido a promessa de uma vida melhor para todos, mata
a entorpecida Anna e se mata. Rebecca fica viva, aparentemente
porque, sendo americana, nada se poderia fazer contra ela, na visão
do pai, uma vítima tardia do nazismo e de seus próprios medos.
Com a morte do pai, Rebecca renasce,
por assim dizer. Mas, antes de se tornar adulta, mora na casa de uma religiosa,
a professora aposentada Rose Lutter. Rebecca sai de casa, ainda menor,
por não suportar a carolice da tutora.
Junta-se a amigas e começa a trabalhar
num hotel, como camareira. Aí, de certo modo, descobre o mundo. Um
hóspede tenta estuprá-la e outro hóspede, Niles Tignor, a protege.
Tignor, homem forte e imponente,
conquista o coração de Rebecca, uma garota durona de 17 anos. Casam-se.
Tignor, conquistador inveterado, diz que é representante de uma cervejaria
e, no início, carrega Rebecca por várias cidades americanas. Depois,
instala-a, grávida, numa casa velha de fazenda. Para ter o filho, Niley,
Rebecca precisa da ajuda de vizinhos para levá-la ao hospital. Tignor
estava no mundo e, como não lhe dava mais dinheiro, Rebecca teve de
trabalhar na fábrica Tubos de Fibra Niágara. Um trabalho duro, mas
necessário.
Com o tempo, Tignor perde o viço e o
emprego, envolvendo-se com criminosos. Torna-se ciumento e violento.
Espanca brutalmente Rebecca e o pequeno Tiley. Para sobreviver e,
sobretudo, salvar o filho, a corajosa Rebecca espera Tignor dormir
e foge.
Para escapar de Tignor, e talvez de
sua própria história familiar macabra, Rebecca mora em várias cidades
dos Estados Unidos. Numa das cidades, consegue mudar seu nome e o de
Niley. Ela passa a se chamar Hazel Jones e Niley se torna Zacharias
August Jones. Os dois reinventaram-se, para sobreviver e seguir novo
caminho.
Numa das cidades para onde se mudam,
Rebecca-Hazel conhece o pianista de jazz e jornalista Chet Gallagher,
filho de uma espécie de Roberto Marinho dos Estados Unidos.
Chet descobre que Zack é apaixonado
por piano e financia seus estudos. Sob orientação de um professor judeu,
Zack desenvolve seu talento. Hazel casa-se com Chet, mesmo sem amá-lo.
Bonita e sensual, Hazel é uma presença iluminadora — há um quê de
fantasmal ou mágico nesta personagem sólida como uma rocha.
O virtuose Zack encanta a todos no
mundo do piano. Hazel fica feliz com o sucesso do garoto, como se
fosse um presente tardio à sua mãe que, no pardieiro do cemitério, levou-a
escutar a música "Appassionata" de Beethoven tocada por
Arthur Schnabel. Num raro momento de intimidade, a lacônica Anna
diz para a garota Rebecca: "Quando eu era menina, na minha velha
terra [Munique, na Alemanha], tocava essa ´Appassionata'. Não como o
Schnabel, não tocava, mas tentava". Sem o saber, ao tocar "Appassionata",
Zack arrancou Anna do túmulo e restaurou o tempo perdido. Um pedaço
de Rebecca, que havia sido amputado na infância, pode ser instalado
em seu corpo.
Quase no final, há dois momentos dilacerantes.
Gus vê Rebecca, mas esta finge que não o conhece, porque já era a rica
e protegida Hazel Jones e não queria que o passado voltasse a assombrá-la
— mais do que sua memória implacável a atormentava. Depois, descobre
que Freyda, a prima que julgava morta pelo nazismo, é uma cientista
famosa, autora de uma autobiografia na qual conta a história de sua
família num campo de concentração e extermínio. Freyda esnoba a prima
e, quando decide encontrá-la, é muito tarde. Rebecca-Hazel, com câncer,
não tem mais condições de se comunicar.
Freyda escreve numa carta aquilo
que talvez resuma o romance: "Os fatos só são 'verdadeiros' depois
de explicados". Fiz uma síntese pálida do romance, mas nada disse
sobre a forma poderosa e sutil de Oates narrar sua bela e dolorosa
história. A linguagem do romance é, de certo modo, sua mais poderosa
"personagem".