Sobre a importância de considerar a
filosofia enquanto phármakon - em três sentidos: enquanto remédio, veneno e
cosmético.
Para quem já leu o Fedro, parece-me, a
leitura apresenta um significado mais amplo. Entretanto, é indicada
para todos os níveis de conhecimento formal da matéria - além de servir como base para o debate do sentido/ensino da Filosofia. De toda forma, vale a
leitura.
A Filosofia e seu
ensino como phármakon
Walter Omar Kohan
RESUMO
O presente texto busca problematizar o
valor e o sentido de ensinar filosofia a partir de sua caracterização comophármakon a
partir das figuras de Sócrates e Platão. Numa primeira parte, destaca a forma
em que Sócrates apresenta a Filosofia, as suas condições e a ele próprio como
filósofo no Fedro e em passagens de outrosdiálogos de
Platão; num segundo momento, detalha a condenação de Platão à escrita no Fedro,
levando em consideração aportes críticos de J. Derrida e G. Deleuze para
estabelecer o que está em jogo nessa condenação; numa terceira seção, apresenta
os efeitos pedagógicos e políticos dessa condenação e como ela coloca Platão
numa posição surpreendentemente oposta em relação ao seu próprio mestre,
Sócrates. Finalmente, são extraídas algumas conclusões dessa disputa e do valor
que ela pode ter para o que hoje pensamos sobre o ensino de Filosofia no
Brasil.
Palavras-chave: ensino de Filosofia;
Sócrates; J. Derrida; pharmakon.
Este texto é um ensaio sobre o sentido
político de ensinar Filosofia no Brasil dos dias de hoje. Fá-lo em diálogo com
duas figuras antigas, mas também contemporâneas da Filosofia, Sócrates e
Platão, essa dupla enigmática que constitui decisivamente a tradição posterior.
Estabelece para isso o seguinte percurso: numa primeira parte, destaca a forma
em que é apresentada a Filosofia, e suas condições, a partir de algumas
passagens de diálogosde Platão. Ênfase particular dessa primeira
seção recebe um dos autorretratos que Platão escreve no nome da personagem
Sócrates no Fedro. Dessa forma, o leitor pode encontrar sentidos
para uma vida filosófica como a de Sócrates, na qual viver e ensinar não se
dissociam facilmente, e ser filósofo ou professor de Filosofia também são
formas inseparáveis de uma mesma vida. Numa segunda seção, a condenação de
Platão à escrita no Fedro é apresentada com certo detalhe,
acompanhada da leitura crítica de J. Derrida e G. Deleuze sobre a importância
dessa condenação; numa terceira seção, os efeitos pedagógicos e políticos da
disputa mostram Platão numa posição surpreendentemente oposta em relação ao seu
próprio mestre, Sócrates, no que diz respeito ao papel do filósofo/professor de
Filosofia na educação dos jovens. Finalmente, são apresentados os
desdobramentos dessa disputa para pensar o sentido atual do ensino de Filosofia
no Brasil.
A apresentação do
filósofo e da Filosofia
A vida de Sócrates, e sua morte, estão
marcadas por uma relação muito próxima com o phármakon, traduzido
como remédio, veneno, droga, medicina. No Fédon, depois de
conversar com seus amigos, Sócrates bebe ophármakon que, cumprindo
a condenação, leva seu corpo à morte, mas - ele quer convencer seus amigos -
também sua alma a uma nova vida. Não há razões para se entristecer, insiste: a
morte é a forma de uma nova vida, mais livre, pura, profunda. No Fedro,
o phármakon é um discurso em papiros que leva Sócrates até os
confins da pólis para ouvir, do Fedro, o discurso que Lísias
proferiu sobre o amor. Ali afirma que o phármakon é uma das
únicas coisas que faz perder a Sócrates o controle de si mesmo, tanto que
seguiria Fedro a qualquer lugar com o objetivo de ouvir o que tem para lhe
dizer.
Uma maior proximidade da vida de
Sócrates com o phármakon é manifesta em outros diálogos. Em
uma passagem do Mênon, Mênon acusa Sócrates de tê-lo enfeitiçado e
drogado (geoteúeis me kaì pharmátteis, 80a). Sócrates o reconhece sem
problemas, apenas coloca uma condição: que se leve todos os outros ao phármakon da aporía,porque
ele está mais em aporía do que ninguém. No Cármides,
Sócrates é apresentado por Crítias como conhecedor da droga (ho tò phármakon
epistámenos, 155c) que poderá curar a dor de cabeça de Cármides
("cuidar da alma com algumas poções", epoidaîs tisin,
157a).
De uma forma próxima a como ele é
retratado por outros e por si mesmo, Sócrates retrata Eros no Banquete(203ss.): daímon,
ser intermédio que passa a vida inteira filosofando (philosophôn dià pantòs
toû bíou, 203d), nem mortal (ser humano), nem imortal (deus), feiticeiro
terrível, bruxo e sofista (deinòs góes kaì pharmakeús kaì sophistés, 203d-e).
Parece sem dúvidas um autorretrato: em muitas passagens dos diálogos, Sócrates
recebe essas características, inclusive de Agatão no próprio Banquete (194a).
No Teeteto, Sócrates diz
ter a mesma arte da sua mãe, a parteira Fenareta, e também afirma que as
parteiras, por meio de drogas (pharmakía, 149c) e poções, são capazes de
provocar ou aliviar dores de parto, parir ou abortar partos difíceis. As
parteiras são mulheres que pariram - não poderiam ajudar a realizar algo que
nunca experimentaram - mas já não podem mais parir, tornaram-se estéreis. O
mesmo vale, diz Sócrates, para a sua arte de dar à luz: ele mesmo já é estéril,
com a diferença de que faz os homens e não as mulheres dar à luz, examinando as
almas, mas não os corpos que engendram conhecimentos (150b). O mais importante
da arte de Sócrates é sua capacidade, potência, para ser, de qualquer forma,
uma pedra de toque (basanízein dynatòn eînai pantì trópoi, 150c). Embora
a forma com que Platão descreve esse trabalho sobre o pensamento do jovem seja
muito próxima à do Fedro (Sócrates ponderaria se o jovem dá à
luz uma imagem - ou simulacro - e uma mentira ou algo fecundo e verdadeiro, eídolon
kaì pseudos... gónimon te kaì alethés, 150c), ele o faz inspirado pela
familiaridade com o phármakon, vinda de sua mãe. Essa
familiaridade, herdada de sua mãe parteira, é a condição que permite a Sócrates
desenvolver essa capacidade.
Como Derrida o assinalara, não há
unicidade no phármakon (DERRIDA, 1991, p. 41 ss.). Ao
contrário, ele é contraditório; seu sentido é impossível de ser fixado num dos
contrários sem a presença do outro. Enquanto substância, é a antissubstância: o
veneno é sempre remédio; a droga, sempre medicina; a vida, sempre morte...
Platão o confirma apresentando, no mesmo Fedro, o remédio (a
dialética) como veneno (escrita, graphé). De modo que a proximidade
de Sócrates com o phármakon está também afetada por esse
caráter contraditório dophármakon, que lhe outorga tanto a possibilidade
quanto a impossibilidade de ser o que é. Essa proximidade parece também
contagiar o próprio Sócrates, impossível de ser fixo numa identidade sem
contradições. Contudo, o phármakon exige um andar mais atento.
Vamos mais devagar.
Abrimos o Fedro desde
o início. O que encontramos? Sócrates e, com ele, um enigma infinito, o da
Filosofia, ou melhor, o de qualquer professor de Filosofia, de todo educador
filosofante: o que fazer em nome de uma vida filosófica? Como, por que e com
quais sentidos convidar outros a essa vida? Com que direito? Com quais
sentidos? O enigma se mostra também sob a forma de uma ausência: encontramos
Sócrates e não encontramos Platão. Platão escreve, mas não se escreve. A
ausência não é ocasional: como sabemos, Platão só se menciona umas poucas
vezes, na Apologia, para contar-se como um dos que contribuiria a
pagar uma eventual multa a favor de Sócrates, e no Fédon, para
dizer que estava doente e, portanto, ausente, na despedida do mestre. Fora
delas, sequer aparece mencionado nos diálogos que ele próprio
escreveu. Essa ausência marcou decisivamente a Filosofia. O mestre, o primeiro
a inscrever a Filosofia como exercício da palavra com outros na pólis,
não escreve. Um discípulo o escreve se escondendo, por escrito, na máscara do mestre.
Essa ausência mostra também o
insuportável não-lugar de todo aprendiz de Filosofia. Como se aprende a pensar?
Qual relação estabelecer com o mestre? O que aprender dele? O mestre infinito
fala sem escrever e o discípulo desobediente escreve essa ausência. O mestre
não escreve e é escrito por um discípulo que condena a escrita e, por escrito,
escreve sua Filosofia a partir da Filosofia do mestre. Repetição e diferença
indecifráveis. Assim é a Filosofia, uma dupla insuportável, como J. Derrida
sugere (DERRIDA, 1980, p. 56).
Abrimos o Fedro então
e, já no início, encontramos esse enigma da Filosofia, um pensamento a ser
elaborado e reelaborado até o infinito, um diálogo inverossímil, um mistério
perene, o do próprio pensamento em diálogo consigo mesmo, impossível de
elucidar, mas também de iludir. Encontramos uma virtualidade que exige ser
sempre desdobrada, atualizada, estendida nas mais diversas dimensões,
inesgotável, irresolúvel, louca.
Lendo o Fedro nos
dispomos a iniciar mais uma dobra desse movimento, da infinita abertura do
pensamento inaugurado por Sócrates e Platão, essa dupla inseparável. Repetimos
o gesto de tantos. Não sabemos a intensidade de nossa marca antes de
escrevê-la. No momento atual desse movimento, o phármakon da
escrita está dentro da própria Filosofia.
Mais uma vez, é preciso atenuar a
velocidade. Voltamos a olhar para o início do Fedro. O que
encontramos? Sócrates encontra Fedro, que está vindo da casa de Lísias, o mais
hábil em escrever discursos entre os atenienses. Ele leva consigo um phármakon, discursos
en papiro sob o manto e, com ele, como um ímã, arrasta Sócrates até os confins
da pólis. Fedro e Sócrates andam, caminham, estão em pé, em
movimento. Já o afirmamos: a Filosofia é uma conversa infinita. Buscam,
conversando, um lugar mais propício para sentir o discurso de Lísias. Sócrates
está perdido. Descoberto o phármakon, faria qualquer coisa para
ouvi-lo. O que encontramos no início, então, é o desejo do filósofo de escutar
de alguém o que um terceiro, afamado conhecedor, manifesta saber sobre certo
saber.
Lísias tem discursado diante de Fedro e
outros em relação ao amor (erotikòs) de uma forma que o próprio Fedro
não sabe muito bem como explicar. O tema não é pouco significativo: acerca das
coisas do amor, é a única das quais Sócrates reconhece saber nos diálogos ("nada
diferente afirmo saber que as coisas do amor" (oudén phemi állo
epístàsthai è tà erotiká, Banquete, 177d). Também diz de quem aprendeu
o que sabe do amor nesse mesmodiálogo: de uma mulher, sacerdotisa,
estrangeira, Diotima de Mantinéia (Banquete, 201d). O filósofo só
sabe o que sabe de uma dupla forma de exterioridade, e sabe um saber de
relação, de afeto, de paixão.
De modo que o mais valioso dos
escritores proferiu um discurso sobre o único saber que o filósofo admite
saber, o saber que lhe é mais próprio, um saber que o leva à loucura. É aí a
força do phármakon. Frente a ele, Sócrates se perde a si mesmo: não
pode não querer ouvi-lo. Está tão fora de si que seria capaz de fazer qualquer
coisa se Fedro não aceitasse contar-lhe o que ouviu de Lísias. Assim, começa
então o filósofo: buscando, com outros, um lugar para ouvir o que outros dizem
saber sobre o saber que lhe é mais próprio, sobre esse saber sem o qual ninguém
que vive segundo a Filosofia poderia viver: o amor, um saber de relação, de
sensação, de paixão, de encontro com outros corpos e outras almas. Assim,
começa então a busca de um filósofo: com um desejo, um saber e um caminho a ser
percorrido com outro sobre o que lhe é mais vital e, ao mesmo tempo, coloca sua
vida em questão.
O filósofo não conversa com qualquer
um. O interlocutor não é um desconhecido. Ao contrário, Sócrates manifesta
conhecer Fedro de uma forma tão íntima que não conhecê-lo significaria também
esquecer-se de si mesmo (Fedro, 228a). Não é um detalhe para quem,
como Sócrates, se mostra sempre obsessivamente preocupado em conhecer-se a si
mesmo. A relação entre conhecimento e esquecimento de si também aparece
fortemente num momento crucial, no início da Apologia de Sócrates (17a),
quando, estando sua vida em jogo e depois de ter ouvido a apresentação das
acusações contra ele, Sócrates manifesta que eles foram tão convincentes que,
mesmo afastados da verdade, quase conseguiram que ele se esquecera de si mesmo.
O "quase" marca o risco de uma morte talvez mais vital para o
filósofo que aquela que está sendo processada. Nos dois casos, o risco de se
esquecer de si próprio aparece perante o poder da palavra proferida pelo outro
da Filosofia, o retórico. Contudo, no início do Fedro, se conhecer
a si próprio supõe conhecer o outro amigo da Filosofia com quem se conversa,
ambos os conhecimentos são a condição para ouvir o discurso perigoso do outro
da Filosofia. Não é apenas Sócrates quem conhece Fedro. Também Fedro conhece
Sócrates, tanto que ele vai dizer palavras muito semelhantes (236c) a Sócrates
logo depois de ler o discurso de Lísias, quando aquele ameaça não querer dizer
o que pensa a respeito. A Filosofia é uma conversa entre amigos.
Ainda estamos no início do Fedro e
não estão dadas todas as condições para começar a filosofar. Não são poucas. É
preciso considerar muitas outras coisas: a temperatura externa e a do corpo, o
ar que se respira, a tranquilidade do ambiente para não serem interrompidos, um
som de ambiente agradável, música para os ouvidos. E, sobretudo, é necessário
tempo. Há que se dispor de tempo para filosofar. Tempo livre, daquele que não
pode ser medido pelos cronômetros ou pelos relógios, tempo de inícios sem fim,
sem pressas, sem condições mais do que as emanadas da própria conversa. Tempo
para conversar sobre o que não é urgente e produtivo, tempo compartilhado,
comum, tempo de amizade, tempo de verdade. Fedro e Sócrates dispõem desse tempo
e encontram também um lugar apropriado para conversar.
Uma vez estabelecidas essas condições,
o filosofar começa quando Sócrates afirma um saber paradoxal sobre si.
Manifesta-se incapaz de se conhecer a si próprio apenas algumas linhas depois
de ter afirmado que não conhecer a Fedro significaria se esquecer de si
próprio. Porém, como é possível que se esqueça do que não se conhece? Só
resulta possível para alguém tão próximo do phármakon como
Sócrates. Ele parece enfrentar exigências opostas: por um lado, se reconhecesse
se conhecer a si mesmo, então já não poderia dedicar sua vida a se investigar a
si próprio, como afirma no Fedro e em tantos outros lugares,
pois para que iria investigar o que já conhece? Por outro, se não se
conhecesse, também não poderia se dedicar a essa vida, pois é esse conhecimento
que justifica e outorga sentido a uma vida de busca de si. De modo que Sócrates
parece embaraçado: conhecer-se e desconhecer-se são ambos impossíveis e
necessários. Como o phármakon, como a Filosofia na pólis,
como a única vida que faz sentido de ser vivida por Sócrates, a que o leva à
morte... Talvez por isso Fedro descreve Sócrates como o mais extraordinário,
sem lugar e estranho (atopótatós, 230c) de todos os atenienses, alguém
que, embora nunca extrapole os limites da cidade, parece mais um estrangeiro
sendo guiado (xenagouménoi, 230c) do que alguém natural de Atenas.
Sócrates complementa esta apresentação: reivindica-se como alguém amante de
aprender, mais interessado em aprender dos homens da cidade do que das árvores
e dos campos.
A condenação à
escrita
A seguir, Fedro lê apaixonadamente o
discurso de Lísias. Sócrates se volta contra ele em diversos sentidos: na
forma; afirma que ele é repetitivo, dizendo as mesmas coisas de uma e outra
maneira, como uma criança (235a); no conteúdo, Sócrates cita poetas (Safo e
Anacreonte) como possíveis fontes de inspiração para falar melhor sobre o mesmo
assunto. Contudo, antes de criticar o discurso de Lísias, volta a falar sobre
si: amante como é das palavras (philológoi, 236e), fala primeiro
com a cabeça coberta para evitar a vergonha no olhar de Fedro. A imagem é muito
forte: falar sem olhar para o amigo um discurso que não resiste às exigências de
um cara a cara. Em qualquer caso, Sócrates muda a perspectiva de análise
porque, para saber o que Lísias afirma saber, qual seja, se é preciso amar mais
a quem não corresponde do que a quem ama, trata-se de deliberar primeiro sobre
a essência do amor, sobre o que é o amor.
Segue-se um relato do qual depois o
próprio Sócrates se desculpa e emenda a cara descoberta com outro muito mais
poético que acaba com um exultante elogio a Éros. Assim, a Filosofia se mostra
como um saber de e sobre o amor. Em seguida, Lísias é criticado, mas a questão
não é apenas Lísias, senão todos os autores de discursos escritos, os
logógrafos. Sócrates o diz claramente: não é vergonhoso escrever, mas sim
escrever mal e sem beleza (258d). É preciso então examinar o que significa escrever
bem. Antes, Sócrates contará o mito das cigarras, discutirá a relação entre
retórica e verdade e analisará em detalhe o discurso de Lísias, através de
outros relatos. Também falará outra vez de si: apresenta-se como amante das
divisões e das reuniões, que lhe permitem falar e pensar. Chama-se
indiretamente de "dialético, capaz de olhar para o uno e o múltiplo"
(266b).
No final do diálogo, quando já se
considerou o suficiente sobre a arte e a falta arte nos discursos, Sócrates
propõe a Fedro considerar se é conveniente ou não conveniente escrever (274b).
Narra então um relato que diz ter ouvido dos antigos e deixa a eles saber sobre
sua verdade. O relato conta que uma divindade egípcia, Theuth, inventor de
coisas tais como os números, a aritmética, a geometria e a astronomia, o jogo
do gamão e os dados, apresentou ao Rei Thamuz os caracteres da escrita (grámmata,
274d) como um aprendizado que tornaria os egípcios mais sábios e com mais
memória e, por isso, deveria ser repassado a todos eles. Ele afirma ter
descoberto uma droga (phármakon, 274e) para a memória e o saber.
Contudo, o rei questiona a descoberta
da divindade. Ele afirma que a escrita teria o efeito contrário, provocando o
esquecimento nas almas dos que a aprendem, pois, por confiarem em caracteres
externos, descuidariam da sua memória. Segundo Thamuz, Theuth teria descoberto
uma droga (phármakon, 275a) para a rememoração (hipomnéseos) e
não para a memória (mnéme). A escrita oferece aparência de saber e não
verdadeiro saber.
Eis a tremenda invenção platônica, seu
mito primordial, a divisão do ser em ser em si e ser derivado, em modelo e
simulacro, original e cópia. Uma série de duplicações acompanha o movimento
inicial no saber, na moral, na política... Em todas elas, a inferioridade do
segundo termo diante do primeiro é categórica, fundadora, radical. As
consequências são impressionantes: há que conhecer, proteger, admirar as
primeiras tanto quanto desapreciar, controlar e combater as segundas.
Contudo, o filósofo, querendo ou não,
deixa uma deixa para a escrita, por escrito. Com efeito, Platão apresenta uma
brecha ainda quando sinaliza sua aparente negatividade da escrita. Por um lado,
faz notar várias fraquezas, além da já apontada. Dentre elas, sua dependência:
quando é ofendida, a escrita precisa da ajuda de seu pai, pois ela é incapaz de
defender-se a si mesma por si mesma (275e). Além disso, ela se oferece
indiscriminadamente aos seus leitores sem diferenciar entre os que são capazes
de entendê-la e os que não. Finalmente, a escrita parece viva, mas quando é
interrogada permanece em silêncio (275d), dizendo sempre uma e a mesma coisa.
Assim, curiosamente, o questionado phármakon não
é pura imperfeição. Platão afirma que ele é sempre um e o mesmo, uma das notas
mais destacadas das realidades supremas, em si e por si mesmas, marca de
superioridade e perfeição, pois elas não mudam; a diferença das coisas que se
geram e se corrompem. Deixa entrever, dessa forma, sua natureza ambivalente,
incontrolável, o caráter titânico e provavelmente infrutuoso da luta por
extirpá-lo do ser.
Mais ainda, o problema é de família e a
dialética não terá um trabalho fácil com sua meia irmã ilegítima (276a).
Efetivamente, a escrita não é apenas exterioridade. Pelo menos como metáfora,
sua irmã legítima recebe dela seu nome, ela é também chamada de escrita.
Vingança da escrita, contragolpe do phármakon. Platão parece
ter caído em sua própria loucura: a dialética é chamada de escrita da alma: o
modelo, original, toma seu nome emprestado da cópia, do simulacro (eídolon,
276a)! Não é isso, pelo menos não só: a cópia está encarnada no original, em
seu nome. Como assinala Deleuze, a duplicação está seguida de um julgamento
moral: as imagens dividem-se em bem fundadas e bastardas; os pretendentes, em
legítimos e ilegítimos (DELEUZE, 2000, p. 262-264). Há que se diferenciar
moralmente o mundo surgido da diferença. Com esse gesto, a batalha parece ganha
antes de começar pelo inferior, pois desse modo confirma-se a antecedência da
diferença em relação à unidade. O ser é diferença, mal que pesa a Platão.
Platão sonharia, afirma Derrida, com
uma memória sem suporte, sem signo, sem suplemento (DERRIDA, 1991, p. 56),
absolutamente dona de suas recordações e da sua atividade de recordar. Na
perspectiva platônica, a escrita, o suplemento, o apoio à memória, introduz uma
fissura no ser; a de um ser híbrido, uma cópia, que não pode ser pensado
segundo a lógica binária do ser ou não-ser, pois ela é e não é ao mesmo tempo.
A escrita introduz uma rachadura na inteligibilidade do que é, um desdobramento
desnecessário e perigoso da voz, um sintoma externo e debilitado da vitalidade
da alma, uma droga (phármakon) sedutora que debilita a fortaleza e a
integridade da memória e os significados que nela habitam. O lógos,
como ser vivo, sofre a invasão externa de um parasita, de um meio-irmão órfão,
de uma sobra, de um acréscimo que não faz outra coisa senão corroê-lo. É
preciso expulsar este suplemento indesejável, devolvê-lo ao seu lugar, extirpar
o parasita, o filho ilegítimo, para limpar a família. A dialética é o caminho
platônico da cura. Discurso vivo e animado que se escreve na alma de quem
aprende, é capaz de defender-se a si mesma e sabe falar ou calar quando
necessário. Frente à dialética, a escrita é tal como uma criança órfã: sofre os
efeitos do abandono quando seu pai-escritor não está próximo.
Por que Platão critica tão ferozmente a
escrita por escrito? Derrida tem sua hipótese: a escrita deve servir
para expurgar-se a si mesma; o lógos deve ser curado do
parasita da escrita... por escrito. Esta é a ousadia e o risco de Platão,
ousadia filosófica, pedagógica e epistemológica, pois não há ciência, epistéme,
do phármakon, sua essência é não ter uma essência estável, mas é
"o movimento, o lugar e o jogo (a produção) da diferença" (DERRIDA,
1991, p. 74). O phármakon é, por um lado, uma reserva
inescrutável - "fundo sem fundo" - da diferença que
"produz" todas as diferenças, o diferir da diferença.
Assim, Platão bebe do seu próprio
veneno: as oposições do platonismo são derivadas de uma escrita - phármakonanterior,
primeira ("arquiescrita"). A escrita é o "jogo do outro no
ser" (DERRIDA, 1991, p. 118). Platão escreve porque o ser não pode ser
uno, porque o ser não é presença plena e absoluta. Escreve porque o ser só pode
ser se desdobrando, se repetindo no que não é, no simulacro, inscrevendo-se na
estrutura da repetição suplementar de uma unidade impossível. Só há ser - e
verdade - porque há diferença e repetição.
A escrita e o
aprender (pela Filosofia)
A condenação platônica é uma condenação
a algumas formas de exercer a escrita. Eis um dos problemas principais de
Platão: existem rivais que se apresentam como mestres, educando os jovens numa
certa virtude cidadã. Pressupõem que aprender a virtude é possível e a ensinam.
Usam a escrita para seus próprios fins: a colocam num dispositivo de
transmissão, que expressa formas do bem comum muito distantes das que Platão
quer para a pólis.
Os efeitos da escrita praticada pelos
rivais políticos parecem terríveis ao educador Platão: ela debilitaria a
memória que é nada menos do que a fonte do aprender. Assim a apresenta no Mênon,
onde conta uma história segundo a qual aprender é lembrar. Lembremos antes a
primeira pergunta, essencial, do diálogo: é possível ensinar a areté (virtude;
excelência)? Muitos afirmam que sim e se apresentam como capazes de fazê-lo.
Contudo, Platão coloca Sócrates para pôr em questão essa pretensão. Como
sempre, Sócrates coloca condições para responder essa pergunta: há que se saber
o que é a areté. Mênon, experto em discursos sobre a areté,pensa
que o sabe, mas depois de algumas perguntas de Sócrates não sabe mais o que
dizer. Mênon está como quem sofre uma descarga elétrica e fica impossibilitado
de qualquer movimento. Considera acertado que Sócrates não tenha viajado fora
de Atenas, porque, sendo estrangeiro, o teriam julgado como feiticeiro.
Sócrates aceita a posição de Mênon com
uma condição: "Pois não é por estar eu mesmo no bom caminho (euporôn)
que deixo os outros sem saída (aporêin), senão por estar eu mesmo mais
que ninguém sem saída (aporôn), assim também deixo os outros sem saída (aporêin)"
(Mênon, 80c-d). As duas sentenças estão unidas por uma partícula
adversativa (senão). Em ambas as frases, repete-se a parte final:
produzir a aporia nos outros; o que muda é a causa colocada para esse efeito. A
contraposição é entre duas eventuais posições de Sócrates, dadas
respectivamente pelos prefixos eu (bem, bom) e a (ausência,
carência, negatividade) perante a mesma forma póros, que
indica movimento, caminho, deslocamento. Sócrates afirma que aturde os outros
só porque ele está mais aturdido que ninguém, porque seu saber nada vale, assim
como nada valem os saberes dos outros.
É possível ensinar a virtude ou a
excelência? O educador Sócrates responderia de forma paradoxal: sim e não,
porque ensinar a virtude ou excelência é ensinar que não se sabe o que ela é;
não há virtude ou excelência a ensinar, a não ser uma relação inquieta em
relação ao saber, uma perturbação com o que se sabe, uma mania erótica por
buscar saber sem nunca de fato saber nada a não ser esse não saber. Só a partir
de estar problematizado um educador pode ajudar os outros a se problematizarem.
Só um virtuoso pode provocar a virtude. Virtuoso é aquele que não sabe e não se
ilude quanto ao seu não saber, alguém que não sabe o bom caminho, mas que está
sempre à busca do bom caminho, sem jamais possuí-lo. Assim, na perspectiva
socrática, só é possível aprender a virtude pelo filosofar. Só alguém muito
aturdido pelo perguntar filosofante, que coloque em questão por que vivemos a
vida que vivemos, pode provocar, nos outros, esse aturdimento. Por isso
Sócrates nada escreveu, porque não tinha para ensinar nada fixo que pudesse ser
escrito. Como escrever uma paixão, uma relação ao saber, um estar sempre
incerto em relação ao caminho a andar, uma forma de se examinar a si mesmo como
modo de viver a própria vida?
Porém, pôr em questão o que se pensa
pode imobilizar o pensamento. Isso acontece com o paradoxo do aprender
compartilhado por Sócrates e seus rivais. Aprender parece impossível, pois não
se poderia aprender se já se sabe, mas também se não se sabe. Ninguém
aprenderia o que já sabe, pois se já o sabe, não há nada a aprender; mas também
não poderia aprender o que não sabe, pois como reconhecê-lo se não o sabe?
Mênon quer saber como sair da aporia. Sócrates o ajuda, mas não o
ajuda como um leitor da Apologia esperaria, com seu saber de
não saber. Nesse caso, Platão coloca na boca de Sócrates uma teoria tomada de
Píndaro e de outros religiosos, segundo a qual a alma é imortal, e investigar e
aprender são totalmente uma reminiscência (Mênon, 81d). Outra vez o mistério
de Sócrates e Platão, a dupla impossível.
Mênon pede a Sócrates que lhe ensine
como é essa teoria. Platão se diverte e faz Sócrates responder como o Sócrates
da Apologia não responderia: "Agora, tu me perguntas se
eu te posso ensinar, a mim que afirmo que o ensino não é senão
reminiscência" (82a). Sócrates pede a Mênon que traga um servente (um
escravo não adquirido, mas criado na própria casa desde o seu nascimento) que
fale grego para mostrar como de fato ele nada ensina. No transcorrer da conversa,
o escravo passa de estar certo de um falso saber a uma perplexidade que o leva
a querer aprender aquilo que reconheceu como problema; como resultado, aprende
um conteúdo novo, matemático, um saber diferente que, na hipótese de Sócrates,
ele já sabia, mas não recordava. A conclusão de Sócrates é: "Assim, pois,
sem que ninguém lhe tenha ensinado, mas porque lhe perguntaram o que ele sabe,
ele mesmo, por si mesmo, recobrou o saber" (Mênon, 85d).
Poderíamos questionar várias coisas: se
a conclusão é legítima ou não; se de fato ninguém lhe ensinou e se o servidor
aprende o que ele sabe ou o que Sócrates sabe; que outras coisas ele aprende
com Sócrates, além do saber matemático. Porém, o que nos interessa aqui é
mostrar que Platão faz Sócrates resolver a aporia do lado do saber com ajuda da
memória: só se pode aprender o que já se sabe porque esse saber está esquecido.
Só se pode ensinar o saber que o outro já sabe fazendo-o lembrar do que já
sabe. Eis a saída platônica do paradoxo: aprender é reencontrar-se por intermédio
de um mestre com um saber que, esquecido, já se possuía. Assim, no estado
deteriorado das coisas da pólis, para Platão, aprender se torna não
apenas possível, mas necessário, imprescindível para encontrar o saber perdido
que ajuda o que é a se tornar o que deve ser.
No exercício com Mênon,
Sócrates não escreve, mas desenha uma figura no chão, da qual pede ao servidor
uma proporção. É interessante que ele, que não escreve, precise de uma imagem
sensível inscrita na terra para ajudar o outro a lembrar de seu saber. Talvez
esteja sinalizando um limite, uma condição, um risco. Em qualquer caso, se é
verdade que a escrita debilita a memória, então o aprender está em risco, pois
sem memória não há aprendizagem. Sem aprendizagem não há possibilidade de sair
do que se é e encontrar o que se deve ser, o que verdadeiramente se é, de
transformar o modo em que se vive para viver uma vida justa, bela, boa. A
escrita compromete a memória e com ela a aprendizagem necessária para as
aspirações platônicas de formar a infância para uma pólis mais
justa, bela e verdadeira.
A desqualificação da escrita no Fedro ganha
novas dimensões. O embate é vital. A crítica à escrita pressupõe um campo de
batalha pedagógico e político na formação dos atenienses. Curiosamente, o
adversário de Platão é também seu mestre que, vimos, ocupa uma posição que
contém não só a diferença, mas também a tensão, o paradoxo, a contradição.
Assim, Platão embate contra não apenas os que afirmam saber o que é virtude e
como ensiná-la, mas contra o próprio mestre, que afirma não saber o que é a
virtude e não poder ensiná-la.
Derrida sugere algo interessante: é
verdade que Platão, condenando a escrita, estaria condenando os que acusaram
Sócrates por escrito. Porém, estaria também condenando a própria posição de
Sócrates (DERRIDA, 1991, p. 95 ss.), seu modo de exercer uma vida filosófica em
relação com a vida política, uma relação passiva e estéril na pólis,
como a que ele mesmo relata na citada passagem do Teeteto e
que, veremos, outros personagens também criticam nos diálogos, como
Calicles no Górgias (484c) e Adimanto na República (VI
487c-d). A condenação à escrita teria o duplo sentido de condenar não só os
acusadores, mas também seu mestre como filósofo educador, alguém que educa em
nome da Filosofia, sem ensinar aprendizagens de consequências políticas
desaprovadas pelo discípulo que o escreveu.
Afinal, é uma disputa sobre o valor
político de aprender pela Filosofia, de uma vida filosófica. Há duas Filosofias
enfrentadas: uma coloca em questão os saberes; outra é um saber afirmativo
imprescindível para uma vida bela, justa e verdadeira. A Filosofia como
questionamento da política instituída frente à Filosofia como afirmação do
saber normativo para a pólis. A posição estrangeira e atópica do
filósofo seria impotente, na visão platônica, para encontrar a positividade
política que transforme o estado de coisas. Platão parece não estar disposto a
aceitar essa posição e por isso a escrita (?!) dos diálogos, a
fundação da Academia, as viagens à Sicília.
Os sentidos políticos
do ensino de Filosofia
Contudo, a batalha está perdida antes
de ser começada. A Filosofia, como phármakon, resiste a toda
captura. A pretensão política de afirmar um pensamento unitário fracassa. A
diferença não é apenas primeira no ser, mas também na política e no próprio
pensamento. Existe um Sócrates escondido em cada educador platônico. Como um
estrangeiro, sorri perante as pretensões formativas da instituição pedagógica
da Filosofia. Oferece ophármakon da pergunta, do phílos,
da diferença. Não sabe o que significam aprender, ensinar, escrever. Não
ensina, mas provoca aprenderes. Não escreve, mas gera escritas. Não sabe outra
coisa a não ser o valor do não saber, da diferença, para uma vida que mereça a
pena de ser vivida.
No Górgias, a crítica à
posição socrática do filósofo/professor de Filosofia está associada a uma
desvalorização da infância. Cálicles pede a Sócrates que não seja infantil e se
afaste da Filosofia para se dedicar a coisas mais importantes (Górgias, 484c).
Ele diz que a Filosofia corrompe os homens quando permanecem nela mais tempo
que o devido, porque torna as pessoas inexperientes (apeíron) para a
vida pública da pólis: os que filosofam em excesso desconhecem as
leis, não sabem tratar os outros cidadãos, não são esclarecidos nem bem
considerados ou experientes (émpeiron). Eles são ridículos nos assuntos públicos
e privados (Górgias, 484c-d), nos quais se comportam como crianças.
É isto que sucede a Sócrates. O filósofo é tão ridículo e infantil nos assuntos
públicos como os políticos nas conversas filosóficas. Cálicles avança na
comparação:
É belo o estudo da Filosofia até onde for auxiliar da educação, não
sendo essa atividade desdouro para os jovens. Mas, perseverar nesse estudo até
idade avançada, é coisa supinamente ridícula, Sócrates, reagindo eu à vista de
quem assim procede como diante de quem se põe a balbuciar e brincar como
criança. Quando vejo uma criança na idade de falar dessa maneira, balbuciando e
brincando, alegro-me e acho encantador o espetáculo, digno de uma criatura
livre e muito de acordo com aquela fase da existência; porém, se ouço uma criaturinha
articular com correção as palavras, doem-me os ouvidos e acho por demais
forçada essa maneira de falar, que se me afigura linguajar de escravos.
(485a-b, trad. Carlos Alberto Nunes. In: PLATÃO, 2003, p. 184).
É belo dedicar-se à Filosofia na medida
em que serve para a educação (paideías), afirma Cálicles. Não há
valoração de ambas: elas podem estar juntas porque ambas são, por natureza, sem
importância ou, na melhor das hipóteses, uma propedêutica para o que realmente
importa: a vida política dos adultos. Note-se como, na visão de Cálicles, a
educação diz respeito a um mundo anterior à entrada na política. Não há
política na educação; por isso a Filosofia pode estar nela junto à infância.
Na República, Adimanto
argumenta numa linha bastante próxima: os que não abandonam a Filosofia depois
de abraçá-la como parte de sua educação enquanto crianças (néoi)
tornam-se, quando adultos, pessoas estranhas (allokótuous) ou perversas
(A República, VI 487c-d). A Filosofia pode ser praticada enquanto
se é novo, mas a política é o mundo dos velhos e ali ela é completamente
estrangeira. Não há política na infância ou na Filosofia. Quando na mesma República a
Filosofia é colocada em idade bem avançada no currículo formativo dos
aspirantes a governar a pólis, é um conhecimento
teórico, muito diferente da praticada por Sócrates.
O filósofo, infante, é também
estrangeiro. Já o vimos no Fedro. Mostrar-se como estrangeiro é o
jogo de Sócrates, afirma Derrida (1997, p. 19) e o ilustra com uma passagem da Apologia
de Sócrates. É o começo. Sócrates no tribunal se declara completamente
estrangeiro ao léxico do lugar (atechnôs oûn xénos écho tês
entháde léxeos, 17e). E, como tal, afirma que vai falar como costuma fazê-lo
na ágora, junto aos vendedores, com as mesmas palavras (dià tôn autôn lógon,
17c) com que os seus juízes ali já lhe ouviram. Solicita, então, que lhe
permitam falar com a voz (phoné) e da maneira como foi criado, como se
ele realmente fosse um estrangeiro. Sócrates fala como sempre, como um
filósofo, com a voz e o tom de um menino. A voz do filósofo é uma voz infantil,
estrangeira. De um estrangeiro, menino e filósofo, os juízes democráticos de
Atenas não escutarão nada mais do que a verdade. Não há língua comum entre
Sócrates e os juízes. A pólis é insensível à língua infantil e
estrangeira do filósofo.
A lição poderia ser aprendida pelos que
trabalhamos hoje no campo do ensino de Filosofia. Para que fazê-lo? Para que
levar a Filosofia às instituições educacionais? O discurso dominante da
contribuição da Filosofia à formação cidadã tem os riscos do platonismo, de
falar pelo outro, de já saber o justo, o belo, o bom por vir. Ao contrário, a
figura paradoxal de Sócrates afirma a força política da alteridade, da
diferença. Justamente, a força política de sua Filosofia (em Sócrates não há
como separar o filósofo do professor de Filosofia) está no seu caráter
infantil: ela não sabe, não ensina, não forma. Estrangeira e estranha aos modos
de afirmar a palavra na comunidade, ela mostra o valor de buscar saber sobre si
antes que sobre as outras coisas, de problematizar e desaprender o que se sabe
e afirmar o valor do não saber, de tentar responder, com todas as forças,
aquelas perguntas que não podem ser respondidas. Essa Filosofia não é um saber,
mas uma relação ao saber. Ela é inútil para construir um projeto
político-pedagógico. Ela ajuda a questionar os projetos político-pedagógicos
existentes. Eis sua força filosófica, pedagógica e política. Por isso, na visão
de Platão, não é apenas inútil: é também perigosa. Por isso deve ser expurgada
da pólis, porque não pode dar lugar a nenhum currículo, a
nenhum edifício pedagógico que possa fazer da pólis um lugar
mais belo, bom e justo. Mas a diferença resiste na escrita condenada e o
Sócrates dos diálogos deixa ver outros mundos na Filosofia, na
educação e na política. Quem sabe o presente texto tenha ajudado o leitor a
problematizar o sentido de seu fazer. Terá assim recriado a vida e o enigma
infinito da Filosofia: para que ensiná-la? Para que Filosofia? Para quê?
REFERÊNCIAS
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simulacre. In: ______. Logic du sens. Paris: Les Éditions de
Minuit, 1995. Trad. Port.:Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto
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255-403. Trad. port.: A Farmácia de Platão. Trad. Rogério Costa. São
Paulo: Iluminuras, 1991.
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Flammarion, 1980.
______. De l'hospitalité. Anne
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KOHAN, Walter Omar. Sócrates
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LIDDELL, Henry; SCOTT, Robert. A Greek English Lexicon.
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PLATÃO. Diálogos. Trad.
Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 2003.