O primeiro canto

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quinta-feira, 31 de outubro de 2024

As redes sociais e o show da intimidade


“Tanto a ternura mais desarmada quanto os mais sangrentos 
poderes têm necessidades de confissão.” 
Michel Foucault



Quando Glauber Rocha, figura polêmica do Cinema Novo, apresentou a ideia de que para fazer filmes bastava criatividade e uma câmera na mão, não imaginou que isso poderia ser uma espécie de princípio comum do comportamento social de massa, baseado nas  redes sociais [1]. Sim, vivemos na era das interações online, onde, parafraseando o vanguardista, basta um smartphone na mão e alguma coisa na cabeça. O processo criativo, neste sentido, é revertido para a busca de likes, seguidores, “amigos”, apoiadores – no geral, alguém que concorde e curta as postagens. O importante mesmo, parece, é manter o contato - mesmo que seja com pessoas desconhecidas. Sendo assim, as redes sociais passaram a ser o “lugar” de “convivência”, de informação, de divulgação do que se pensa, sente, da publicização das intimidades, das manifestações políticas; um modo de ser [2]. Ou seja, um tipo de alargamento da convivência social e que, para tanto, é indiferente o lugar e a hora – pode ser de madrugada, na solidão de um quarto fechado.
A conexão é a regra - e quanto mais, melhor (?!). Essa conexão duradoura e pluralizada confere uma naturalização desse modo de convivência - um espaço de permanentes revelações, consideradas, muitas das vezes, triviais. Em decorrência dessa naturalização, aquilo que antes seria protegido, por fazer parte da intimidade, agora é exposto sem maiores considerações. Segundo Paula Sibilia, no livro O show do Eu: a intimidade como espetáculo [3]:

Em tempos mais respeitosos das fronteiras, o espaço público era tudo aquilo que ficava do lado de fora quando a porta de casa se fechava – e que, sem dúvida, merecia ficar lá fora. Já o espaço privado era aquele universo infindável que remanescia do lado de dentro, onde era permitido ser "vivo e patético" à vontade, pois somente entre essas acolhedoras paredes era possível deixar fluir livremente os próprios medos, as angústias, os desejos e outras emoções e patetismos considerados estritamente íntimos – e, portanto, realmente secretos ou inconfessáveis. (p.96)

Neste sentido, na atualidade, não é mais nítida a fronteira entre vida pública e privada. As redes sociais atuam como uma espécie de portfólio da vida privada - que passa a ser pública, fazendo com que a intimidade perca o seu valor devido a essa espetacularização. Por conseguinte, tornam-se um show das intimidades. E aquilo que deveria ser tratado com formalidade e de modo discreto, vira performance para quem tiver acesso.
Esse espetáculo passa por várias esferas e variados atores sociais, dos mais invisíveis aos mais destacadamente notórios. Ademais, o caráter autobiográfico e ficcional das redes sociais, que permite a construção idealizada da exposição aos olhares alheios, possibilita cada vez mais o aumento e fidelização dos usuários. [4]
Entender essas questões é imprescindível para a compreensão das relações sociais na atualidade. Destacadamente na era dos prints, em que se cria uma imagem mostrando o que se vê na tela naquele momento, é forçoso a atenção ao que é pronunciado e, sobretudo, para quem.
Numa lógica de narcisismo sempre latente, é importante considerarmos o modo de nos relacionarmos, a apresentação de quem somos e do que nos move a agir como agimos no espaço público/privado. Além disso, é preciso desnaturalizar os comportamentos que, permeados pelo suposto distanciamento físico, pressupõe uma interação (seja com um único indivíduo, seja com centenas de pessoas), nem sempre saudável e propulsora de bom convívio. Por fim, não à toa, cada vez mais há quem faça do acesso a determinadas redes, uma espécie de "quintal de casa". Divulga-se o que bem se entende. Aceita-se muito ou quase tudo, como se o mundo online não tivesse repercussão no mais corriqueiro dos nossos dias e, ilusório que seja, carregasse em si alguma proteção às consequências das nossas ações. Neste sentido, continua válida a reflexão de Guy Debord: “No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso.”
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[1] Para que fique claro, é preciso compreender uma definição muitíssimo básica das ditas redes sociais. De modo geral, significa uma relação de interação virtual, via troca de mensagens, conteúdos e outros, por pessoas ou grupos de pessoas. Sendo que há pessoas que fazem contas para animais interagirem também. Enfim... sabemos que a vida é complexa! 
[2] Algo que parece não causar nenhum estranhamento é a divulgação de detalhes da vida doméstica. Podemos saber como é a decoração da sala, do quarto, da cozinha, até do banheiro, sem precisar sequer conhecer o morador da casa. Também podemos facilmente saber por onde as pessoas andam, com quem estão. O que comem... E na era do "antes e depois", podemos comparar decoração, aparência pessoal e quase tudo. Ah... e ainda  temos o famoso 'TBT', uma forma de manter o passado presente, algo que faz o maior sucesso nas redes. Ao que parece, não há limites para o que pode ser postado (confessado) - e tudo isso de forma voluntária e comprometida com a divulgação de momentos tidos como importantes para o mundo, ou uma parte das pessoas do mundo. Afinal, são momentos únicos de uma vida única, especialmente singular. 
[3] Cf. SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016.  
[4] Não é pequeno o número de pessoas que se deixam levar pelo canto das sereias. A apresentação editada e planejada de como se mostrar aos outros, é uma manipulação amplamente sistêmica e, comumente, aceita de maneira não crítica.