O primeiro canto

O primeiro canto

domingo, 14 de fevereiro de 2021

“Observava diariamente a vida evoluir para a morte...”

 

 

Enterre seus mortos é um livro incômodo. Entretanto, diga-se de passagem, necessário. Faz-nos refletir sobre como tratamos os nossos mortos. Não falo dos mortos queridos, os que nos são caros. Refiro-me aos "esquecidos", os que não têm alguém que reclame seus corpos - neste sentido, a reflexão abarca a dimensão do papel do Estado, a falta de recursos humanos e materiais para lidar com essa questão. Ou, como diz um personagem, o Sargento Américo: “Estamos falidos. Não damos conta nem dos mortos”.

O protagonista, Edgar Wilson, presente em outros livros da escritora, é um homem simples, cercado pela morte (ele se sente à vontade em meio ao pútrido), introspectivo, do tipo de pessoa que escuta mais e fala menos. De certo modo, alguém que poderíamos comparar aos abutres - pois, assim como essas aves, ele sobrevive graças aos que morrem. Contudo, sobre os mortos, pessoas ou animais, Edgar Wilson considera a importância de enterrá-los. Para ele, “não existe sentimento de desprezo maior do que abandonar um morto, deixá-lo ao relento, às aves carniceiras, à vista alheia”. Inclusive, talvez esse seja o seu maior medo. Ainda sobre os abutres, ave representada na capa do livro, chama a atenção uma observação que concordo muitíssimo: “É bonito o voo dos abutres”. De fato, é muito bonito - embora sejam, reconhecidamente, aves que indicam a morte, admirá-las é prazeroso, acalma. Neste sentido, “a morte e o sagrado estão sempre juntos”.

Outro ponto de destaque é o modo como é tratada a questão religiosa. O sarcasmo faz muita diferença - ainda que seja apavorante. É perspicaz o olhar que nos é apresentado sobre este assunto. Numa situação de esquecimento do Estado, de pobreza e alienação, muitas vezes o que sobra é a “dependência da força divina”. Uma teologia antiga, baseada na culpa, no medo e na ganância. Alguns diriam: “tão medieval”. Mas, como diria o velho barbudo, a história se repete... Primeiro como tragédia, depois como farsa.

Por fim, um livro que precisa ser lido com atenção. Do contrário, corre-se o risco de sentir apenas repulsa, certo embrulho no estômago, e isso pode comprometer a possibilidade de uma boa reflexão e de percebermos que a literatura é, também, uma forma de entendermos o mundo e, a partir desse entendimento, tentarmos modificá-lo.