Amos Oz’s The
black box: an epistolary novel
Berta Waldman*
RESUMO
O romance epistolar é
um gênero muito divulgado no século XVIII. Ele conflui para o registro
dramático na medida em que não dispõe de um narrador que coordena o andamento
da narrativa, bem como a apresentação das personagens e sua atuação. Além de
ser epistolar, A caixa preta, de Amós Oz, é também um romance político, fator
que não pode ser obliterado em sua leitura. O romance trata dos conflitos entre
os partidos de esquerda e de direita em Israel e seus desdobramentos em um
plano passional de interação entre os personagens. A proposta polifônica do
romance corresponde estruturalmente a um modo de vida comunitário horizontal, a
cargo do personagem Boaz, longe dos antagonismos políticos, ideológicos e
religiosos, em que todos têm voz.
Palavras-chave: Literatura israelense contemporânea, Romance epistolar, Romance
político, Paixão e dinheiro.
ABSTRACT
The epistolary novel
is a genre that was very much in favor in the 18th century. It merges with the
dramatic form in that it does not have a narrator who coordinates the
development of the story, or the characters’ presentation and behavior. Besides
being an epistolary novel, Amos Oz’s The black box is also a political text, a
factor that cannot be obliterated when we read it. The novel deals with the
conflicts between the left and right wing parties in Israel, and their
unfolding on a passionate plane of interaction among the characters. There is a
structural correspondence between the novel’s polyphony and the character Boaz’
proposal of a horizontal and communitarian way of life, in which all have a
say, away from the political, ideological, and religious antagonisms.
Keywords: Israeli contemporary literature, Epistolary novel, Political novel,
Passion and money.
O autor da literatura
israelense contemporânea mais traduzido para o português é Amós Oz2.
E também o mais apreciado pelos leitores. Suas passagens por São Paulo apenas
confirmam a simpatia e o carisma que cercam o escritor e sua obra, traduzida
para cerca de trinta idiomas.
Professor de literatura
na Universidade Ben-Gurion, Amós Oz vive em Arad, no deserto do Neguev, em
Israel. Contrapondo-se às ideias feitas que perpetuam a discriminação, a
intolerância, a opressão, o autor não escreve “em linha reta”; para ele todas
as coisas são plurais e multívocas. Sua obra autobiográfica De amor e
trevas(2005) é um exemplo disso. Multifacetada e móvel, um caleidoscópio de
lembranças recuperadas e imaginadas, misto de referencialidade e subjetividade,
a obra retrata não um sujeito, mas vários, ou um autor multiforme que se move
sem cessar entre a “verdade” e a ficção, entre o passado e o presente, entre
aquele que conta e o que é contado, substituindo o ponto final pelo texto
necessariamente incompleto e aberto.
A questão política
está sempre presente nas obras de Amós Oz. A propósito de sua inclusão na
literatura, Stendhal dizia que “política em uma obra literária é como um tiro
de pistola em meio a um concerto; o efeito é estridente e vulgar, e, ainda
assim, algo de que não é possível desviar a atenção” (citado por Howe, p. 17).
A posição de Stendhal é clara e não abre brechas. Mas podemos refletir: uma vez
disparada a pistola, o que acontece com o concerto? Imagino que a interrupção
pode tanto ser bem recebida como provocar ressentimento. No primeiro caso,
suponho que o ruído da pistola pode vir a se tornar parte da execução e, nesse
sentido, teremos um concerto bem-sucedido. Caso contrário, o tiro esfacela a
unidade mais ampla e determina o fracasso da obra.
Stendhal estava bem
sintonizado com o problema. Sabe-se que o discurso político é feito de tensões
internas, produto da absorção de um fluxo ideológico mesclado com matéria de
experiência. O romance tenta enformar essa experiência que é imediata e íntima,
enquanto a política é, por natureza, geral e abrangente.
Dizer que a ideologia
é uma carga ou um empecilho não nos diz que o empecilho pode ser valioso ao
forçar o romancista a uma concentração de todos aqueles recursos necessários
para superá-lo. A noção de que ideias abstratas contaminam uma obra de arte é
certa se a ideologia se agrupa em massa, pondo em perigo a vivacidade do texto.
As ideias da vida real que estimularam o escritor devem permanecer invioláveis,
mas, uma vez postas em ação dentro do texto literário, não podem mais se manter
como meras massas de abstração. Essas ideias devem vir dissolvidas em
movimento, fundindo-se com as emoções de suas personagens.
Este é o grande
desafio: fazer que ideias ou ideologias ganhem vida, dotando-as da capacidade
de instigar personagens a gestos de paixão, e, mais ainda, criar a ilusão de
que têm uma espécie de movimento independente, de forma que elas próprias –
aqueles pesos abstratos de ideia ou ideologia – pareçam transformar-se em
personagens ativas no texto político.
Esse vem sendo o
propósito de Amós Oz, ficcionista e militante político da esquerda israelense,
ligado ao movimento pacifista Shalom Achshav (Paz Agora), que a partir da
década de 1970 assume uma atitude crítica apontando na imprensa escrita e
televisiva sua posição a propósito dos rumos políticos do país. O homem
político transparece na ficção de forma harmoniosa e engenhosa, conforme
veremos mais especificamente, em A caixa preta (1993).
Nascido em Jerusalém
em 1939, Amós Oz passou grande parte de sua vida no kibutz Hulda,
mudando-se a certa altura para a cidade de Arad, no Neguev, onde vive até hoje.
Viajou a diferentes países como convidado tanto para apresentar conferências
sobre seus livros traduzidos para muitos idiomas, entre eles o português, como
para ministrar cursos, pois é professor de literatura.
No início, o kibutz forma
um importante eixo aglutinador de sua obra que, embora se distancie do
realismo, toma sua matéria da realidade kibutziana. Oz usa essa comunidade como
cenário de luta entre forças ocultas que não são estritamente sociais nem
psicológicas, mas que lhe serve para expressar dilemas existenciais através de
esquemas simbólicos.
Em A caixa
preta, o autor conduz com perfeito domínio o destino das personagens e as
motivações políticas da sociedade israelense, construindo as duas partes
sincronicamente, como dobradiças em que o duplo movimento agiliza a função.
O romance é composto
de correspondências: 51 cartas e 56 telegramas que as personagens trocam entre
si. Trata-se, pois, de um romance epistolar, gênero que desfrutou de enorme
prestígio no século XVIII. Werther, de Goethe; Ligações
perigosas, de Laclos, são exemplos de romances epistolares. Nesse tipo de
romance, como em uma peça de teatro, o narrador se oculta em benefício de suas
personagens, que ganham o primeiro plano. A drástica redução da mediação
narrativa dá ao romance epistolar uma temporalidade essencialmente dramática.
Contrariamente à literatura memorialista, por exemplo, que costuma jogar com a
distância entre o presente do narrador e o passado remoto da história, o
romance epistolar tende a identificar os dois planos. Os missivistas ficam
mergulhados na opacidade do presente e desconhecem qualquer futuro, pois contam
a história ao mesmo tempo em que vivem os acontecimentos. Nas Reflexões
sobre as cartas persas, Montesquieu (1991) atribui o sucesso do romance
epistolar ao fato de ele suprimir as distâncias e mergulhar o leitor nas
paixões das personagens, fazendo-o experimentar diante desse tipo de romance
uma tensão semelhante à do espectador de teatro.
É também como o
espectador de teatro que o leitor tem de montar, a partir das cartas, a fábula
do romance, seu enredo, e também compor o perfil das personagens, que não são
apresentadas, nem contadas por um narrador, mas desdobram-se diante dos olhos
do leitor, com suas incertezas, oscilações e contradições.
A caixa preta pode ser lida também como uma montagem de fragmentos. A montagem
provoca o efeito de “choque”, pois quando o espectador percebe uma imagem, ela
logo é interrompida, sem poder ser fixada. Na linguagem escrita esse “choque”
se dá com a ruptura de uma continuidade, o que tira o leitor de sua inércia e o
obriga a pensar, a se fazer perguntas, a sair de sua passividade e a assumir
uma recepção mais ativa e crítica.
Mas por que teria
Amós Oz escolhido esse formato para este romance? A resposta que privilegia um
nível interpretativo é a que indica que o autor quis dar voz a diferentes
segmentos da sociedade israelense (romance polifônico), porque ao mesmo tempo
em que as personagens se constroem na e através da escrita, elas compõem algum
segmento social e político da vida social e política do país.
Em linhas gerais, o
romance apresenta um embate ideológico, quando mostra a desestruturação de uma
família ashkenazita3 bem
estabelecida, que acaba acolhendo um membro da comunidade judaica oriental, o
que acelera o sepultamento de uma era cujo tempo de glória e de superioridade
acabaram.
Michael Sommo, além
de oriental, é de convicção religiosa e ideias de direita com relação ao
“Grande Israel”, e vem, no romance, substituir e desbancar a figura
todo-poderosa de outro protagonista, o intelectual bem-sucedido Alexander
Guideon, que, além de tudo, é simpatizante da esquerda política israelense.
Este serviu no exército e tornou-se um pensador de esquerda destacado, alcançou
um reconhecimento internacional, porém deslocou-se para o exterior, abandonando
Israel nas mãos da direita, representada no texto por Michael Sommo.
A trama do romance se
passa em 1976, antes, portanto, da virada política de 1977, quando a direita
ganhou o poder, tomando-o do partido trabalhista que era apoiado pela elite
ashkenazita.
O romance, assim,
anuncia um desfecho que acontecerá nas décadas de 1980 e 1990, quando o período
heroico dos sabras de origem europeia começou a se esgotar, e os pioneiros que
sonharam em criar uma sociedade laica e pluralista tiveram de enfrentar a
frustração.
A caixa preta de um
avião permite desvendar o motivo de um acidente. Mas o romance é uma cartola de
mágico que dá a ver, na superfície, uma rede de relações conflitivas que atam
uma família integrada por Alexander Guideon, um importante intelectual, Ilana,
sua ex-mulher, Boaz, o filho de ambos, criado durante sete anos como bastardo,
e o novo marido de Ilana, Michael Sommo. Sob essa trama corre outra
subterrânea, representando os conflitos que ressoam em nível sociopolítico.
As relações entre
Sommo e Alex são representativas das relações étnicas entre ashkenazitas e
sefarditas4,
esquerda e direita em Israel. A esquerda mostra-se em baixa, e em seu lugar
surge uma força nova, a força do judaísmo mediterrâneo, que acredita no Grande
Israel e que está se preparando para substituir o Israel anterior.
A partir da primeira
carta de Ilana a seu ex-marido Alex, entra em cena um jogo de paixões que
cresce com o desenrolar do texto (marido e mulher, embora separados, são
extremamente apaixonados um pelo outro) entremeado com relações de poder, que
vêm marcadas pela circulação do dinheiro. Paixão e dinheiro, entretanto, não
caminham no mesmo fluxo. O dinheiro flui de Alex para Sommo, para Boaz e para o
advogado Zakheim, podendo tanto corromper como construir. Já as paixões
exacerbadas que desencadearam a quebra dos laços familiares terão o fôlego
necessário para reconstruí-los, embora deslocados para outro lugar e em outra
condição, isto é, os protagonistas da paixão terão de se submeter aos dados da
realidade (doença e morte) e aceitar sua mudança de posição.
De qualquer forma, a
linguagem circula e carreia o dinheiro e a paixão.
Assim, lentamente,
Sommo, o humilde professor de francês, começa a transformar-se ao perceber a
possibilidade de começar a receber uma ajuda financeira do ex-marido de sua
esposa. O dinheiro o corrompe, pois ele abandona sua carreira de professor e
usa o dinheiro de Alex para reformar sua casa, sua vida. Ingressa em um movimento
de direita nacionalista militante e passa a dedicar-se à compra de terras nos
territórios ocupados, planejando levar a família para viver no bairro judaico
na cidade velha de Jerusalém. Fundamentalista, acredita em um futuro novo
inspirado no passado. Sua fala é formal e permeada de citações bíblicas que vão
se tornando cada vez mais frequentes à medida que o romance evolui e sua adesão
ao nacionalismo se acentua. Seu empenho é o de impor a posição que defende aos
que o rodeiam. Assim, Boaz teria de se educar em Kiriat Arba, e Ilana teria de
reeducar-se dentro da tradição religiosa. Ambos, porém, escaparão da órbita de
sua influência.
A transformação de
Sommo se faz, segundo lhe parece, em nome do Sionismo. Comprar terras, casas em
Hebron, reconstruir as antigas sinagogas, em uma cidade que já fora a sede do
reinado do rei Davi, são parâmetros ideológicos que têm na mira a reconstrução
de um mapa antigo da terra de Sion. E impor a Halachá, a lei religiosa judaica,
a todos os cidadãos de Israel, sem se importar com a concepção ideológica e
religiosa de cada um, é a forma que ele privilegia para redimir o presente
israelense e plantar a salvação futura, preparando a vinda do Messias.
Sommo expressa a
frustração que sente por não fazer parte da sociedade constitutiva da
empreitada sionista, ele, um novo imigrante, um imigrante oriental, de estatura
menor que os judeus europeus, dá vazão à sua frustração na atividade política,
opondo-se fortemente aos árabes. Assimetrias intraétnicas e interétnicas se
cruzam, e cabe ao mais fraco a obrigação de respeitar a força e o poder de quem
os têm em mãos.
Alex é seu antípoda
tanto no aspecto físico como na origem, no trabalho, na ideologia. Filho de um
pioneiro imigrante da Europa Oriental convulsionada pelo antissemitismo, seu
pai, movido pelo sonho sionista secular, vai para a Palestina e rompe os laços
com a tradição e com o judaísmo normativo para ajudar a construir uma nação
moderna. Esse pai projeta para seu filho nascido na Palestina um futuro
heroico, ele seria o sabra alto, destemido e forte, orgulhoso de seu país, o
oposto do judeu diaspórico oprimido e sacrificado. Criado para sentir ódio,
para defender-se, Alex tornou-se um comandante perdido e solitário e é no
exército que conhece a que será sua mulher, Ilana. Um casamento complicado
feito de jogos eróticos perigosos, o adultério da mulher separa o casal
litigiosamente, deixando mãe e filho sem dinheiro, enquanto o pai amealhava uma
fortuna. É essa fortuna que ele irá transferir durante o romance, no momento em
que sua carreira de escritor e intelectual está no topo mas sua saúde se vê
prejudicada por um câncer irreversível.
É curioso observar
que o tema da pesquisa de Alex é o fundamentalismo religioso, visto como uma
bomba que implodirá a sociedade israelense e as nações que o albergam, conforme
se pode ler em uma crítica a seu livro estampada na imprensa mundial: “a obra
despeja uma pesada sombra sobre a psicopatologia de várias fés e ideologias
desde a Idade Média até nossos dias” (p. 75). Ou: “seu livro expõe a fé como
fonte de imoralidade” (p. 76).
À beira do desespero,
Ilana casa-se com Sommo, que lhe oferece uma nova oportunidade de reconstrução
da vida familiar. Casar-se com Ilana, ashkenazita alta e bonita, representou
uma vitória para Sommo. Ele a salva da autodestruição quando Alex a abandona, e
enquanto isso sua autoimagem cresce.
No início, a mulher o
admira, mas em seguida fica perplexa com a velocidade com a qual Sommo se deixa
corromper pelo dinheiro de Alex, ainda que o dinheiro seja utilizado para o que
ele chama de “o bem da nação”.
No final Ilana o
abandona para ir cuidar de Alex, prestes a morrer. Mas este ato é interpretado
por Sommo como um castigo, pelo fato de ele ter quebrado uma norma social ao
ter casado com alguém acima de sua condição e de fora de sua comunidade étnica.
Ironicamente, o
herdeiro material de Alex será Sommo, o fanático destruidor de um presente tido
como corrompido, cujo objetivo é o de criar uma sociedade inspirada no passado
bíblico glorioso, segundo a ideologia que o aproxima do movimento
nacionalista Gush Emunim e do partido ultranacionalista Kach.
No final do romance, Sommo compõe a imagem estereotipada do judeu oriental. E
Alex, por sua vez, no final de sua vida sabe que o dinheiro herdado de seu pai,
que pertencera à geração dos pioneiros, destina-se à compra de terras nos
territórios além da linha verde, mas, mesmo assim, nomeia Sommo seu herdeiro.
Há uma passividade e uma inoperância que talvez o autor coloque nos movimentos
pacifistas e nos movimentos de esquerda que silenciaram diante do avanço
nacionalista. Assim, Sommo se transforma em uma nova figura que não hesita em
tomar o dinheiro do “opressor” ashkenazita e, graças a ele, se torna um homem
moderno, com poder de decisão no novo cenário político israelense.
Já Boaz, o filho de
Alex, não tem preparo para nem vontade de continuar a empreitada sionista,
embora a certa altura do romance se diga sionista. Sonhador e idealista, sua
participação no romance instaura uma quebra entre a ideologia sionista e uma
prática amorosa de se enraizar no território que fora desbravado pelos
pioneiros, como é o caso de seu avô, sem nenhuma nostalgia do passado grandioso
do Israel bíblico. Seu tempo é o presente e seu propósito, o de redimir a
terra, com o trabalho de suas próprias mãos. Que cada um faça algo de
construtivo, este é o seu lema. Sua posição ante os árabes é a de que têm o
direito de viver em sua terra, caso contrário os judeus acabarão com os árabes
e estes com os judeus, sobrando apenas escombros da Bíblia e do Alcorão,
chacais e ruínas de um passado glorioso.
Não é por acaso que
ele estabelece em Zichron Yacov, cidade fundada no início da colonização
judaica da Palestina na era moderna, longe do fanatismo de Jerusalém e do
consumismo cosmopolita de Tel Aviv, uma comunidade ligada à terra e inspirada
em um estilo de vida primitivo, contrastando com o luxo e a modernidade
perseguida por Sommo e ao alcance natural de seu pai, Alex. Em carta de Ilana a
Boaz, ela reconhece e verbaliza: “Você é melhor que todos nós”, reconhecimento
que é partilhado pelo pai: “Essa árvore está crescendo longe das maçãs podres”.
Também para Boaz
reflui o dinheiro de Alex, mas não o corrompe, porque não é usado como valor de
troca nem como mediação de poder. O jovem trata os que o cercam como iguais,
sua comunidade apresenta uma organização horizontal, ninguém exerce autoridade
sobre o outro. Cada um tem autonomia para fazer o que quer, na hora que quer,
ligando-se todos pelo empenho comum de uma construção coletiva.
É essa organização,
em que há lugar para todos, até mesmo para Sommo, a matriz que ditará a forma
deste romance de Amós Oz. Essa é a microcomunidade imaginada como modelo ideal
da nação: concede voz a todos, a todas as representações de forças políticas de
Israel, mesmo àquelas com as quais o autor não concorda. É sobre esse modelo
que se estrutura o romance polifônico de Amós Oz. A partir dessa construção,
ele mostra a singularidade de uma comunidade que, com todos os defeitos,
conseguiu moldar uma sociedade singular. Talvez Sommo e Boaz tenham de disputar
algum dia a liderança do país, mas o romance, com certeza, torce pelo segundo.
Em um romance
epistolar, a caracterização das personagens se faz pela linguagem, por aquilo
que elas dizem e como dizem. O tom protocolar e feito de citações religiosas de
Sommo; a linguagem pausada e pontuada de erros de quem não frequenta nem
frequentou a escola de Boaz; a escrita limpa, franca e um pouco kitsch de
Ilana; o texto cortante, inteligente e irônico de Alex; os relatórios
“objetivos” e pragmáticos dos advogados; a linguagem sucinta e decidida dos
telegramas – cada um dos discursos figura um ethos, aponta para uma
direção e compõe uma “cara”. A diversidade de vozes justapostas remete à
multiplicidade de caracteres. E como a história vai-se tecendo à medida em que
cada carta é escrita, com a autoridade que lhe atribui o missivista, ela pode
ser e é contraditada pelo destinatário, que desconstrói a história anterior
para reconstruí-la de seu ponto de vista em novo patamar. Isso significa que os
sentidos hesitam em um romance epistolar, porque, como desfazer as
contradições?
A história passional
vivida por Ilana e Alex é duplamente construída. Os motivos que levaram ao
casamento, ao adultério da mulher, ao desencontro do casal, vão se montando e
desmontando, qual areia movediça, pelo homem e pela mulher, deixando o leitor
perplexo diante da impossibilidade de refazer a história em um percurso linear.
A única certeza que fica é a de que se trata de uma história de amor e paixão
nada banal, vivida por duas personagens complexas e que, apesar dos
impedimentos da vida, não se separam de fato, embora a estrutura familiar se
desfaça.
Se é a pele que
sanciona a integridade dos corpos, limitando-os como invólucros, ela explicita
uma dinâmica entre superfície e profundidade ao aceitar e acompanhar, ao mesmo
tempo, relevos e depressões. Assim também o corpo da linguagem, no caso desse
romance, delimitado pelos múltiplos estilos, múltiplos emissores, deixa-se
atravessar pela paixão, que traz a reboque a ideologia.
Essa construção não
se deixa capturar em partes excludentes, isto é, a ideologia sem a paixão, a
paixão sem a ideologia, o que é um trunfo em termos de seu resultado final.
Buscando a estrutura multivocal, em que as vozes contracenam sem se submeter ao
comando de um único desígnio, o homem político, que é a contraface do escritor,
também busca um olhar equânime em relação ao conflito israelense-palestino.
Israelenses e
palestinos vão chegar a um acordo tristemente pragmático: haverá um Estado da
Palestina ao lado do de Israel; sem lua de mel nem história de amor, mas
viveremos como vizinhos civilizados. Não sei quando isso virá, mas posso
prometer, em nome de israelenses e palestinos, que se a Europa demorou mais de
mil anos para acabar com as guerras e criar a Comunidade Europeia, nós o
faremos mais depressa e derramaremos menos sangue. Tenham um pouco de paciência
e não tenham uma atitude de condenação, indignação, ou paternalismo... Não nos
digam que somos terríveis. Tentem ajudar. Deem às duas partes toda a empatia
que puderem. Isso é o que faço em meu livro, não julgo quem era bom e quem era
mau entre meu pai e minha mãe. Escrevo sobre os dois, com toda a empatia de que
sou capaz5.
Referências
Howe, I.
(1998). A política e o romance. São Paulo: Perspectiva.
Montesquieu, C.
(1991). Cartas persas (R. J. Ribeiro, trad.). São Paulo: Pauliceia.
Oz, A. (1993). A
caixa preta. São Paulo: Companhia das Letras.
Oz, A. (2005). De
amor e trevas. São Paulo: Companhia das Letras.
Waldman, B. (2004). Linhas
de força: escritos sobre literatura hebraica. São Paulo: Humanitas.
* Professora aposentada de Teoria Literária na Universidade Estadual
de Campinas; professora titular de Literatura Hebraica na Universidade de São
Paulo.
1 Este trabalho retoma elementos de outro ensaio, “Literatura e política: alguns aspectos da obra de Amós Oz”, mas dá-lhe outra direção (Waldman, 2004).
2 As obras de Amós Oz traduzidas para o português são: Conhecer uma mulher (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras, 1992; A caixa preta (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras, 1993; Fima (trad. George Schlesinger). São Paulo: Companhia das Letras, 1996; Não diga noite (trad. George Schlesinger). São Paulo: Companhia das Letras, 1997; Pantera no porão (trad. Milton Lando e Isa Mara Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 1999; O mesmo mar (trad. Milton Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 2001; Meu Michel (trad. Rifka Berezin et al.). São Paulo: Summus, 1982 | (trad. Milton Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 2002; De amor e trevas (trad. Milton Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
3 Judeus ashkenazitas são aqueles provenientes da Europa Oriental e falantes do iídiche. Eles tiveram um papel preponderante na fundação e construção do Estado de Israel.
4 Judeus sefarditas são aqueles que foram expulsos da Península Ibérica e dispersaram-se por outras diásporas. São falantes do ladino. A diferenciação entre sefarditas e ashkenazitas ficou mais evidente a partir do século XVI. Basicamente, a diferença era de rito e tradição sinagogal, sendo que a dos sefarditas ligava-se ao judaísmo da Babilônia e a dos ashkenazitas, ao da Palestina. Refletia-se também na pronúncia do hebraico, nos hábitos sociais, no vestuário etc. O grande centro cultural da vida sefardita até a era moderna foi Salônica, arrasada pelos nazistas em 1943. Ultimamente manifesta-se certa tendência a se considerar como sefarditas todos os judeus orientais (muitos dos quais adotaram o ritual sefardita), ou mesmo todos os não ashkenazitas.
5 Entrevista a Entre Livros, a propósito de De amor e trevas, em janeiro de 2007.
1 Este trabalho retoma elementos de outro ensaio, “Literatura e política: alguns aspectos da obra de Amós Oz”, mas dá-lhe outra direção (Waldman, 2004).
2 As obras de Amós Oz traduzidas para o português são: Conhecer uma mulher (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras, 1992; A caixa preta (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras, 1993; Fima (trad. George Schlesinger). São Paulo: Companhia das Letras, 1996; Não diga noite (trad. George Schlesinger). São Paulo: Companhia das Letras, 1997; Pantera no porão (trad. Milton Lando e Isa Mara Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 1999; O mesmo mar (trad. Milton Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 2001; Meu Michel (trad. Rifka Berezin et al.). São Paulo: Summus, 1982 | (trad. Milton Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 2002; De amor e trevas (trad. Milton Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
3 Judeus ashkenazitas são aqueles provenientes da Europa Oriental e falantes do iídiche. Eles tiveram um papel preponderante na fundação e construção do Estado de Israel.
4 Judeus sefarditas são aqueles que foram expulsos da Península Ibérica e dispersaram-se por outras diásporas. São falantes do ladino. A diferenciação entre sefarditas e ashkenazitas ficou mais evidente a partir do século XVI. Basicamente, a diferença era de rito e tradição sinagogal, sendo que a dos sefarditas ligava-se ao judaísmo da Babilônia e a dos ashkenazitas, ao da Palestina. Refletia-se também na pronúncia do hebraico, nos hábitos sociais, no vestuário etc. O grande centro cultural da vida sefardita até a era moderna foi Salônica, arrasada pelos nazistas em 1943. Ultimamente manifesta-se certa tendência a se considerar como sefarditas todos os judeus orientais (muitos dos quais adotaram o ritual sefardita), ou mesmo todos os não ashkenazitas.
5 Entrevista a Entre Livros, a propósito de De amor e trevas, em janeiro de 2007.