O 8 de março é um dia deveras marcante.
Segundo o grandioso Pessoa, foi nesse dia, no ano de 1914, que foram criados os seus heterônimos. Pois bem, segue, sobre esse
assunto, um breve artigo do luso Rui Tavares. Vale a leitura!
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A estátua de Fernando Pessoa no Chiado em Lisboa. MIGUEL MANSO |
A Paixão de Fernando Pessoa
Rui Tavares
Harold Bloom, um estudioso da
literatura, escreveu uma vez um livro chamado A Ansiedade da Influência,
no qual lidava com a tensão entre o grande escritor e o escritor ainda maior.
Para pôr as coisas em termos simples, o
grande escritor que admira o escritor ainda maior passa pela tal “ansiedade da
influência”, a admiração torna-se inveja, a inveja emulação, a emulação
frustração, a frustração afastamento, e o afastamento (nos melhores dos casos)
superação. Os maiores dos grandes escritores pairam como uma sombra sobre todos
os outros: todo o escritor de língua inglesa vive na ansiedade da influência de
Shakespeare (ou na sua rejeição), como o russo sob (ou contra) Tolstoi, etc.
Faz por estes dias cem anos, Fernando Pessoa encontrava a sua forma de escapar à ansiedade da influência, e de sair dela por cima. Também ele tinha Camões, e Vieira. E como escritor de língua inglesa, Shakespeare. Mas para poder ser maior, inventou um outro seu mestre, Alberto Caeiro, e declarou-o o seu ideal a atingir. Assim se libertou e superou em simultâneo. Poderíamos dizer que o mestre de Fernando Pessoa vivia dentro de si, mas isso é enganador. Pondo Alberto Caeiro no centro do seu sistema, Fernando Pessoa poderia deslocar a sua “ansiedade de influência” para fora de si. Camões ou Vieira (ou Shakespeare) estavam marcados na sua pele e de todos os outros escritores. Alberto Caeiro era um sol inventado, exterior a qualquer realidade, e à volta dele poderiam encontrar a sua órbita todos os outros planetas inventados de Fernando Pessoa: Ricardo Reis, Álvaro de Campos, e o próprio Fernando Pessoa. Foi como um momento-Galileu em literatura.
Faz por estes dias cem anos, Fernando Pessoa encontrava a sua forma de escapar à ansiedade da influência, e de sair dela por cima. Também ele tinha Camões, e Vieira. E como escritor de língua inglesa, Shakespeare. Mas para poder ser maior, inventou um outro seu mestre, Alberto Caeiro, e declarou-o o seu ideal a atingir. Assim se libertou e superou em simultâneo. Poderíamos dizer que o mestre de Fernando Pessoa vivia dentro de si, mas isso é enganador. Pondo Alberto Caeiro no centro do seu sistema, Fernando Pessoa poderia deslocar a sua “ansiedade de influência” para fora de si. Camões ou Vieira (ou Shakespeare) estavam marcados na sua pele e de todos os outros escritores. Alberto Caeiro era um sol inventado, exterior a qualquer realidade, e à volta dele poderiam encontrar a sua órbita todos os outros planetas inventados de Fernando Pessoa: Ricardo Reis, Álvaro de Campos, e o próprio Fernando Pessoa. Foi como um momento-Galileu em literatura.
Depois, Fernando Pessoa fez o que fazem
os grandes escritores: narrou a história. Mentiu um bocado e disse que tudo
tinha acontecido no mesmo dia, 8 de março, um “dia triunfal”, disse ele, em que
tinha inventado juntos os seus heterónimos mais importantes, com biografia e
tudo, e escrito grande parte d’O Guardador de Rebanhos, e os poemas da Chuva
Oblíqua, e as odes “futuristas” de Álvaro de Campos, e as odes propriamente
ditas de Ricardo Reis.
Segundo os especialistas, parece que
isto não foi bem assim, e que o dia triunfal de Pessoa durou vários dias. Até
dia 13 ainda não tinha acabado o transe, e por isso ainda nos podemos declarar
dentro do centenário. Nessa Europa ainda estranhamente calma, a poucas semanas
de se desequilibrar na Grande Guerra (que lhe daria “O menino de sua mãe”),
Fernando Pessoa passou a sua ansiedade da influência a todos os escritores de
língua portuguesa que lhe sucederam.
Poderíamos chamar a isto, usando uma
linguagem semirreligiosa, “o mistério de Fernando Pessoa”. Mas não há mistério
nenhum, ele bem explicou o que sucedeu, e se mentiu um bocadinho foi só para
fazer a coisa ainda mais simples e menos misteriosa.
Talvez seja melhor chamar-lhe “a paixão
de Fernando Pessoa”, no velho sentido greco-cristão: alguém que se fez
desaparecer por nós, ou alguém que reapareceu (em glória?) através do seu
desaparecimento.
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