O primeiro canto

O primeiro canto

domingo, 29 de março de 2015

História do Olho e Minha Mãe - Georges Bataille


“Renuncio a ver-te por muito tempo, meses, anos talvez. Parece-me que, por esse preço, e separada de ti pela imensa viagem empreendida, que nesta carta te posso dizer o que, se te falasse de viva voz, seria intolerável. Sou toda eu aquilo que tu viste. Quando te falei, preferia morrer do que deixar de ser a teus olhos, perante ti, aquilo que gosto de ser. Gosto dos prazeres que viste. Amo-os a tal ponto que tu deixarias de contar para mim se eu não soubesse que tu os amas tão desesperadamente como eu. Mas é bem pouco dizer como os amo. Sufocaria se me faltasse, mesmo por um instante, a clareza da verdade que me habita. O prazer é toda a minha vida. Nunca escolhi, e sei que nada sou sem o prazer em mim, e que tudo aquilo de que a minha vida é uma espera, não existiria sem o prazer. Seria o universo sem luz, o caule sem flor, o ser sem vida. O que digo é pretensioso, mas é sobretudo insignificante ao pé da perturbação que me invade, que me cega, ao ponto de, perdida nela, já não ver nem saber nada. Ao escrever-te apercebo-me da impotência das palavras, mas sei que a longo prazo, apesar da sua impotência, elas te atingirão. Quanto te atingirem, adivinharás aquilo que não pára de me extasiar, de me extasiar de olhos revirados. O que os insensatos dizem acerca de Deus não é nada comparado com o grito que uma tão louca verdade me faz lançar.
Agora, tudo o que no mundo está ligado nos separa. Não poderíamos doravante encontrar-mos sem desordem e, na desordem, não devemos encontrar-nos mais. O que te liga a mim, o que me liga a ti, é a partir de agora intolerável, e encontrarmo-nos separados pela profundidade daquilo que nos une. Que poderia eu fazer? Chocar-te, destruir-te. Não me resigno, porém, a calar-me. Destroçar-te-ei, mas vou falar. Porque te arranquei do meu coração e se a luz algum dia me atingiu, foi por te ter contado o delírio em que te concebi."

Georges Bataille in: História do Olho e Minha Mãe.

A Carta de Lorde Chandos


A Carta de Lorde Chandos é um pequeno grande texto, em que Hugo von Hofmannsthal descreve uma súbita crise de linguagem experimentada por Lorde Chandos, um jovem poeta que, face a todo um novo mundo que se abre diante dos seus olhos, repleto de sensações e fenómenos que o invadem e fazem fervilhar todo o seu ser, dá-se conta da impotência das palavras, que outrora manejava com desenvolta mestria, para abarcar essa harmonia transcendente entre o seu interior e o mundo inteiro. Esta Carta é também um paradoxo: um escritor, para quem as palavras já não possuem significado nem utilidade, consegue escrever um texto de uma eloquência simplesmente prodigiosa.



"Senti neste momento, com uma certeza que não deixou de ser dolorosa, que nem no próximo ano, nem no seguinte, nem em mais ano nenhum da minha vida, escreverei um livro, quer latino, quer inglês: e isto por razão estranha e penosa que a infinita superioridade do seu espírito saberá, com um olhar não obscurecido, situar no lugar que lhe pertence no reino dos fenómenos corporais e espirituais, aberto harmoniosamente perante si: quero dizer que a língua em que me seria, talvez, dado não apenas escrever, mas pensar, não é nem o latim, nem o italiano, nem o espanhol, mas uma língua de que não conheço uma só palavra, uma língua com que as coisas mudas me falam e na qual deverei talvez um dia, do fundo da campa, justificar-me perante um juiz desconhecido."

Hugo von Hofmannsthal, "Carta de Lord Chandos", tradução de Carlos Leite, Hiena editora, Lisboa, 1990.