![]() |
Thomas Mann, autor de “Dr.
Fausto”, romance que espelha uma visão amadurecida de todo o processo em que as
liberdades foram destroçadas pelas forças nazifascistas | Foto: Carl van
Vechten
|
Carlos Russo Jr.
Especial para o Jornal Opção
Especial para o Jornal Opção
Em 1933, os nazistas chegam ao poder na
Alemanha por meio do voto democrático. Imediatamente devotam-se à destruição
da democracia e à implantação do regime totalitário mais odioso da História da
humanidade. O mesmo já ocorrera na Itália alguns anos antes, com o
ex-socialista e fascista Benito Mussolini.
Logo após o incêndio do Parlamento
Alemão pelas claques de “choque” de Hitler, Mann, o maior dos escritores
alemães do século 20, decidiu exilar-se de seu País.
Compreendendo os perigos que a ordem
nazifascista representava para a Alemanha, assim como para o restante do mundo,
o engajamento do autor de “A Montanha Mágica” na luta democrática não tardaria.
Em 1937, Thomas Mann publicou uma crônica sob o título: “Advertência à Europa!”
A Advertência era dirigida muito
particularmente aos intelectuais, aos escritores, aos artistas, cientistas e a
outros depositários do patrimônio cultural da humanidade. Firmemente Mann
assinala a responsabilidade dos intelectuais que se omitem e se alheiam do
combate aos inimigos da inteligência e da cultura, a pretexto de resguardarem a
“integridade” e a “pureza” do espírito de qualquer contaminação de “caráter
político”. Isto insistia Mann, resultava efetivamente em servir de um modo ou
de outro ao “partido do interesse”, ou seja, os interesses de uma ordem
política decadente, reacionária e por isso mesmo temerosa da cultura e do
espírito. “Em nosso tempo, a torre de marfim é apenas uma tolice, e é quase
impossível alguém furtar-se a compreendê-lo.”
“A democracia se realiza efetivamente em
cada um de nós, visto que a política se tornou um negócio de todas as gentes.
Ninguém pode afastar-se dela; a pressão imediata que ela exerce sobre cada um é
demasiado forte. O fato é que aquele que nos declara “eu não me importo com a política”,
parece-nos um homem superado, caduco. Tal ponto de vista revela não somente
egoísmo e irrealidade, mas ainda embuste e estupidez. Mais que ignorância do
espírito, o que há nisso é indiferença moral.”
A ordem política e social faz parte da
totalidade, um aspecto da problemática humana, não se podendo menosprezá-la sem
com isso se pecar contra a própria humanidade. Portanto como poderia o poeta ou
o intelectual esquivar-se, omitir-se, quando sabemos que a sua natureza e o seu
destino o colocaram na posição mais exposta da “polis”? “O poeta que se omite
em face do problema humano, porque esse aparece sob a forma política, não é
somente um traidor da causa do espírito em proveito do partido do interesse,
mas é também um homem perdido, que perderá a força criadora, o talento e nada
fará que apresente condições de durabilidade.”
O espiritual, para Mann, considerado sob
o ângulo político e social, é a aspiração dos povos a uma vida em melhores
condições, mais justas e mais felizes, adequadas à dignidade humana.
Expressando a essência do pensamento democrático ele diz “o bom e o nobre é o
que qualificamos de humano”. Aquilo por cuja causa os homens tem lutado e têm
tomado Bastilhas de assalto, os acólitos do autoritarismo proclamam
jubilosamente “aquilo não deve existir, que seja revogado, revogue-se até mesmo
a ‘Nona Sinfonia’, de Beethoven!”
Uma das mais importantes obras primas do
grande mestre foi, sem dúvida, o romance “Dr. Fausto”. Escrito em 1956 espelha
uma visão amadurecida de todo o processo em que as liberdades foram destroçadas
pelas forças nazifascistas. As peripécias do grande livro se desenvolvem num
período histórico de aproximadamente 25 anos, entre 1920 e 1945, quando ocorre
o esmagamento da Alemanha nazista.
O personagem-narrador nos diz: “Certa
gente não deveria falar em liberdade, razão e humanidade, melhor que se
abstivesse disso por motivos de decência. O dogmatismo também é uma forma
intelectual do farisaísmo. Onde quer que haja Teologia, o Diabo também deve
entrar no quadro, preservando sua autenticidade complementar à de Deus. O
Inferno é tão simbólico quanto o Céu”.
Para Mann, “o adepto das luzes, o termo
e o conceito ‘povo’ sempre conserva qualquer traço de arcaico, inspirador de
apreensões e ele sabe que basta apostrofar a multidão de povo para induzi-la à
maldade reacionária”. “Falo do povo, porém daqueles impulsos populares de
natureza arcaica, que existem em todos nós, e para dizê-lo bem claramente,
assim como penso, não considero a religião o meio mais adequado para
reprimi-los com segurança. Isso se consegue, a meu ver, unicamente por meio da
literatura, da ciência humanística, do ideal do homem livre e belo.”
Pessoas como o escritor alemão têm,
afinal de contas, suas dúvidas a respeito do acerto dos “pensamentos do
rebanho”, como ele mesmo os denomina. Sabe, entretanto, perfeitamente
diferenciar o povo trabalhador da escória social, que com aquele não se
confunde. “A supremacia das classes ditas inferiores se afigura a mim, como
cidadão alemão, um estado ideal, quando a comparo com o domínio da escória. Ao
contrário que eu saiba jamais o bolchevismo destruiu obras de arte. A revolução
russa emocionou-me profundamente e a superioridade histórica de seus princípios
em confronto com os das potências que dobravam nossa nuca aos seus pés, era
evidente. Verdade é que certas camadas da democracia burguesa parecem merecer o
que acabo de denominar de domínio da escória a fim de conservarem por mais
tempo seus privilégios.”
No nazismo a violência opunha-se à
verdade! Pregava-se um abismo entre a verdade e a força, a verdade e a vida, a
verdade e a coletividade. Um grito de horror surge em “Dr. Fausto” sob a forma
de uma composição musical do maestro dodecafônico Leverkun: “Nesse momento só
uma única música pode servir-nos, somente ela corresponderá a nossas almas: a
lamentação do filho do Inferno, a lamentação humana e divina, que, partindo do
indivíduo, mas ampliando-se cada vez mais, e, em certo sentido, apoderando-se
do Cosmo, há de ser a mais horrenda que jamais tenha sido entoada na Terra. Uma
lamentação, um ‘De produndis’!”
O mundo criado pelo nazifascismo era ao mesmo tempo antigo e novo, “revolucionário” e retrógrado. Nele os valores ligados à ideia do indivíduo, verdade, liberdade, direito, razão, ficariam inteiramente debilitados e rejeitados, assumindo um significado totalmente diferente do que tiveram nos séculos precedentes. “Desarraigados da pálida teoria, seriam relativizados, abastecidos de sangue e em seguida submetidos a uma instância muito superior, à da força, da autoridade, da ditadura da fé, de uma forma que igualaria uma regressão muito inovadora da Humanidade em direção a estados e condições teocráticos- medievais.”
O mundo criado pelo nazifascismo era ao mesmo tempo antigo e novo, “revolucionário” e retrógrado. Nele os valores ligados à ideia do indivíduo, verdade, liberdade, direito, razão, ficariam inteiramente debilitados e rejeitados, assumindo um significado totalmente diferente do que tiveram nos séculos precedentes. “Desarraigados da pálida teoria, seriam relativizados, abastecidos de sangue e em seguida submetidos a uma instância muito superior, à da força, da autoridade, da ditadura da fé, de uma forma que igualaria uma regressão muito inovadora da Humanidade em direção a estados e condições teocráticos- medievais.”
A imparcialidade da pesquisa, o
pensamento livre, longe de representarem o progresso, o antigo e o novo, o passado
e o futuro tornar-se-iam a mesma coisa. Isso ocorreria ao mesmo tempo em que se
concedia ao pensamento a licença de legitimar a força, “assim como uns
seiscentos anos antes, a razão tivera liberdade para discutir a fé e demonstrar
o dogma”, numa referência à Reforma Luterana.
O pedagogo, por exemplo, sabia que, sob
o nazifascismo já existia a tendência para distanciar-se do sistema de aprender
letras e soletrar. Em vez disso preferia-se o método de ensinar palavras
inteiras e de ligar a escrita à visão concreta das coisas. Isso representava,
em certo sentido, a abolição da escrita abstrata, universal, não associada a
nenhuma língua e, de alguma forma, a volta à ideografia dos povos primitivos. A
disposição era de sacrificar sem mais as assim chamadas conquistas culturais em
pró de uma simplificação reputada indispensável, assim como os tempos o
exigiam, e que eventualmente pudesse ser qualificada de volta intencional à
barbárie.
O narrador de “Dr. Fausto”, Serenus,
prevê no início da ação dos nazistas no poder que “chegaria o dia em que se
legitimasse, por razão de higiene nacional e racial, a não conservação dos
elementos mórbidos, a eliminação em grande escala dos ineptos para a vida e dos
débeis mentais”. “Enfatizava-se a intenção da rejeição de qualquer efeminação
humana, produto da era burguesa, um esforço intensivo por tornar a humanidade
capaz de enfrentar tempos sombrios, desdenhosa de sentimentos humanitários,
mais próximos daquela fase obscura que precede a origem da Idade Média.”
Mann, pela boca de Serenus expressará
seu ódio ao nazismo nas últimas páginas do portentoso livro: “Malditos,
malditos os corruptores, que mandaram à escola do Diabo uma parcela do gênero
humano, originalmente honrada, bem-intencionada, apenas excessivamente dócil e
demasiado propensa a organizar sua vida à base de teorias! Mas um patriotismo
que ousasse afirmar que o Estado sanguinário, cuja agonia atualmente
presenciamos, que para citar uma expressão de Lutero, ‘pendurou em seu pescoço’
o peso de crimes incomensuráveis, e que, com seus apelos berrados, com suas
proclamações aniquiladoras dos direitos do Homem, provocou nas multidões
arroubos de imensa felicidade, esse Estado sob cujas bandeiras vistosas
marchava nossa juventude, de olhos chispantes, altiva, radiante, firme na fé,
um patriotismo, repito, que ousasse afirmar que esse regime tinha sido algo
totalmente alheio à natureza de nosso povo, imposto a ela, desprovido de raízes
em seu íntimo, ia se afigurar-me mais magnânimo que consciencioso. Não foi esse
despotismo, em suas palavras e em seus atos, apenas a realização distorcida,
oclocrática, aviltada de mentalidades e filosofias cujo caráter autêntico
cumpre reconhecer e que o cristão, o humanista constatam, não sem certo susto,
nos traços dos grandes homens, nas encarnações mais imponentes da humanidade?”
O professor Serenus, que se abstivera de
combater o nazismo quando ele surgira, ao final do romance “Dr. Fausto”
realizará um “mea culpa” de sua omissão, retroagindo à advertência de 1937:
“Será que voltarei a inculcar nos cérebros dos alunos a ideia de uma cultura na
qual a reverência às divindades das profundezas se une ao culto ético de
olímpica razão e lucidez, formando uma só piedade? Mas ai de mim, receio que
nessa década selvagem se haja criado uma geração que entenda a minha linguagem
tão pouco como eu a sua; a mocidade de meu país se me tornou por demais
estranha para que eu possa novamente ser seu mestre. A própria Alemanha, esse
país desventurado, tornou-se-me estranha, justamente em virtude do fato de eu ter-me
abstido de seus crimes, e, seguro do fim pavoroso, haver-me abrigado na
solidão”.