O primeiro canto

O primeiro canto

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Thomas Mann e um grito de alerta antifascista

Thomas Mann, autor de “Dr. Fausto”, romance que espelha uma visão amadurecida de todo o processo em que as liberdades foram destroçadas pelas forças nazifascistas | Foto: Carl van Vechten

Carlos Russo Jr.
Especial para o Jornal Opção


Em 1933, os nazistas chegam ao poder na Ale­manha por meio do voto democrático. Imediata­mente devotam-se à destruição da democracia e à implantação do regime totalitário mais odioso da História da humanidade. O mesmo já ocorrera na Itália alguns anos antes, com o ex-socialista e fascista Benito Mussolini.
Logo após o incêndio do Par­lamento Alemão pelas claques de “cho­que” de Hitler, Mann, o maior dos escritores alemães do século 20, decidiu exilar-se de seu País.
Compreendendo os perigos que a ordem nazifascista representava para a Alemanha, assim como para o restante do mun­do, o engajamento do autor de “A Montanha Mágica” na luta democrática não tardaria. Em 1937, Thomas Mann publicou uma crônica sob o título: “Advertência à Europa!”
A Advertência era dirigida muito particularmente aos intelectuais, aos escritores, aos artistas, cientistas e a outros depositários do patrimônio cultural da humanidade. Firmemente Mann assinala a responsabilidade dos intelectuais que se omitem e se alheiam do combate aos inimigos da inteligência e da cultura, a pretexto de resguardarem a “integridade” e a “pureza” do espírito de qualquer contaminação de “caráter político”. Isto insistia Mann, resultava efetivamente em servir de um modo ou de outro ao “partido do interesse”, ou seja, os interesses de uma ordem política decadente, reacionária e por isso mesmo temerosa da cultura e do espírito. “Em nosso tempo, a torre de marfim é apenas uma tolice, e é quase impossível alguém furtar-se a compreendê-lo.”
“A democracia se realiza efetivamente em cada um de nós, visto que a política se tornou um negócio de todas as gentes. Ninguém pode afastar-se dela; a pressão imediata que ela exerce sobre cada um é demasiado forte. O fato é que aquele que nos declara “eu não me importo com a política”, parece-nos um homem superado, caduco. Tal ponto de vista revela não somente egoísmo e irrealidade, mas ainda embuste e estupidez. Mais que ignorância do espírito, o que há nisso é indiferença moral.”
A ordem política e social faz parte da totalidade, um aspecto da problemática humana, não se podendo menosprezá-la sem com isso se pecar contra a própria humanidade. Portanto como poderia o poeta ou o intelectual esquivar-se, omitir-se, quando sabemos que a sua natureza e o seu destino o colocaram na posição mais exposta da “polis”? “O poeta que se omite em face do problema humano, porque esse aparece sob a forma política, não é somente um traidor da causa do espírito em proveito do partido do interesse, mas é também um homem perdido, que perderá a força criadora, o talento e nada fará que apresente condições de durabilidade.”
O espiritual, para Mann, considerado sob o ângulo político e social, é a aspiração dos povos a uma vida em melhores condições, mais justas e mais felizes, adequadas à dignidade humana. Expressando a essência do pensamento democrático ele diz “o bom e o nobre é o que qualificamos de humano”. Aquilo por cuja causa os homens tem lutado e têm tomado Bastilhas de assalto, os acólitos do autoritarismo proclamam jubilosamente “aquilo não deve existir, que seja revogado, revogue-se até mesmo a ‘Nona Sinfonia’, de Beethoven!”
Uma das mais importantes obras primas do grande mestre foi, sem dúvida, o romance “Dr. Fausto”. Escrito em 1956 espelha uma visão amadurecida de todo o processo em que as liberdades foram destroçadas pelas forças nazifascistas. As peripécias do grande livro se desenvolvem num período histórico de aproximadamente 25 anos, entre 1920 e 1945, quando ocorre o esmagamento da Alemanha nazista.
O personagem-narrador nos diz: “Certa gente não deveria falar em liberdade, razão e humanidade, melhor que se abstivesse disso por motivos de decência. O dogmatismo também é uma forma intelectual do farisaísmo. Onde quer que haja Teologia, o Diabo também deve entrar no quadro, preservando sua autenticidade complementar à de Deus. O Inferno é tão simbólico quanto o Céu”.
Para Mann, “o adepto das luzes, o termo e o conceito ‘povo’ sempre conserva qualquer traço de arcaico, inspirador de apreensões e ele sabe que basta apostrofar a multidão de povo para induzi-la à maldade reacionária”. “Falo do povo, porém daqueles impulsos populares de natureza arcaica, que existem em todos nós, e para dizê-lo bem claramente, assim como penso, não considero a religião o meio mais adequado para reprimi-los com segurança. Isso se consegue, a meu ver, unicamente por meio da literatura, da ciência humanística, do ideal do homem livre e belo.”
Pessoas como o escritor alemão têm, afinal de contas, suas dúvidas a respeito do acerto dos “pensamentos do rebanho”, como ele mesmo os denomina. Sabe, entretanto, perfeitamente diferenciar o povo trabalhador da escória social, que com aquele não se confunde. “A supremacia das classes ditas inferiores se afigura a mim, como cidadão alemão, um estado ideal, quando a comparo com o domínio da escória. Ao contrário que eu saiba jamais o bolchevismo destruiu obras de arte. A revolução russa emocionou-me profundamente e a superioridade histórica de seus princípios em confronto com os das potências que dobravam nossa nuca aos seus pés, era evidente. Verdade é que certas camadas da democracia burguesa parecem merecer o que acabo de denominar de domínio da escória a fim de conservarem por mais tempo seus privilégios.”
No nazismo a violência opunha-se à verdade! Pregava-se um abismo entre a verdade e a força, a verdade e a vida, a verdade e a coletividade. Um grito de horror surge em “Dr. Fausto” sob a forma de uma composição musical do maestro dodecafônico Leverkun: “Nesse momento só uma única música pode servir-nos, somente ela corresponderá a nossas almas: a lamentação do filho do Inferno, a lamentação humana e divina, que, partindo do indivíduo, mas ampliando-se cada vez mais, e, em certo sentido, apoderando-se do Cosmo, há de ser a mais horrenda que jamais tenha sido entoada na Terra. Uma lamentação, um ‘De produndis’!”
O mundo criado pelo nazifascismo era ao mesmo tempo antigo e novo, “revolucionário” e retrógrado. Nele os valores ligados à ideia do indivíduo, verdade, liberdade, direito, razão, ficariam inteiramente debilitados e rejeitados, assumindo um significado totalmente diferente do que tiveram nos séculos precedentes. “Desarraigados da pálida teoria, seriam relativizados, abastecidos de sangue e em seguida submetidos a uma instância muito superior, à da força, da autoridade, da ditadura da fé, de uma forma que igualaria uma regressão muito inovadora da Humanidade em direção a estados e condições teocráticos- medievais.”
A imparcialidade da pesquisa, o pensamento livre, longe de representarem o progresso, o antigo e o novo, o passado e o futuro tornar-se-iam a mesma coisa. Isso ocorreria ao mesmo tempo em que se concedia ao pensamento a licença de legitimar a força, “assim como uns seiscentos anos antes, a razão tivera liberdade para discutir a fé e demonstrar o dogma”, numa referência à Reforma Luterana.
O pedagogo, por exemplo, sabia que, sob o nazifascismo já existia a tendência para distanciar-se do sistema de aprender letras e soletrar. Em vez disso preferia-se o método de ensinar palavras inteiras e de ligar a escrita à visão concreta das coisas. Isso representava, em certo sentido, a abolição da escrita abstrata, universal, não associada a nenhuma língua e, de alguma forma, a volta à ideografia dos povos primitivos. A disposição era de sacrificar sem mais as assim chamadas conquistas culturais em pró de uma simplificação reputada indispensável, assim como os tempos o exigiam, e que eventualmente pudesse ser qualificada de volta intencional à barbárie.
O narrador de “Dr. Fausto”, Serenus, prevê no início da ação dos nazistas no poder que “chegaria o dia em que se legitimasse, por razão de higiene nacional e racial, a não conservação dos elementos mórbidos, a eliminação em grande escala dos ineptos para a vida e dos débeis mentais”. “Enfatizava-se a intenção da rejeição de qualquer efeminação humana, produto da era burguesa, um esforço intensivo por tornar a humanidade capaz de enfrentar tempos sombrios, desdenhosa de sentimentos humanitários, mais próximos daquela fase obscura que precede a origem da Idade Média.”
Mann, pela boca de Serenus expressará seu ódio ao nazismo nas últimas páginas do portentoso livro: “Malditos, malditos os corruptores, que mandaram à escola do Diabo uma parcela do gênero humano, originalmente honrada, bem-intencionada, apenas excessivamente dócil e demasiado propensa a organizar sua vida à base de teorias! Mas um patriotismo que ousasse afirmar que o Estado sanguinário, cuja agonia atualmente presenciamos, que para citar uma expressão de Lutero, ‘pendurou em seu pescoço’ o peso de crimes incomensuráveis, e que, com seus apelos berrados, com suas proclamações aniquiladoras dos direitos do Homem, provocou nas multidões arroubos de imensa felicidade, esse Estado sob cujas bandeiras vistosas marchava nossa juventude, de olhos chispantes, altiva, radiante, firme na fé, um patriotismo, repito, que ousasse afirmar que esse regime tinha sido algo totalmente alheio à natureza de nosso povo, imposto a ela, desprovido de raízes em seu íntimo, ia se afigurar-me mais magnânimo que consciencioso. Não foi esse despotismo, em suas palavras e em seus atos, apenas a realização distorcida, oclocrática, aviltada de mentalidades e filosofias cujo caráter autêntico cumpre reconhecer e que o cristão, o humanista constatam, não sem certo susto, nos traços dos grandes homens, nas encarnações mais imponentes da humanidade?”
O professor Serenus, que se abstivera de combater o nazismo quando ele surgira, ao final do romance “Dr. Fausto” realizará um “mea culpa” de sua omissão, retroagindo à advertência de 1937: “Será que voltarei a inculcar nos cérebros dos alunos a ideia de uma cultura na qual a reverência às divindades das profundezas se une ao culto ético de olímpica razão e lucidez, formando uma só piedade? Mas ai de mim, receio que nessa década selvagem se haja criado uma geração que entenda a minha linguagem tão pouco como eu a sua; a mocidade de meu país se me tornou por demais estranha para que eu possa novamente ser seu mestre. A própria Alemanha, esse país desventurado, tornou-se-me estranha, justamente em virtude do fato de eu ter-me abstido de seus crimes, e, seguro do fim pavoroso, haver-me abrigado na solidão”.



Sobre Jane Austen

Uma escritora perspicaz, ímpar na arte de escrever romances "açucarados" (e não vejam nesse comentário qualquer coisa que se aproxime de pejorativo!), conhecida por escrever "Razão e Sentimento" (é assim o título da edição que tenho), "Orgulho e Preconceito", "Emma", entre outros. Os dois últimos, muito bem adaptados para o cinema. Abaixo, segue um texto a respeito do talento dessa inglesa que escreve bem. Vale a pena ler. 



Por NELSON SHUCHMACHER ENDEBO


Jane Austen é possivelmente a mais amada das escritoras inglesas. Inúmeras são as adaptações de seus romances para o teatro, televisão e cinema; ainda mais numerosas são as edições de suas obras, revisitadas e entusiasticamente glosadas geração após geração. Assim como William Shakespeare, uma de suas leituras preferidas, a autora de Orgulho e preconceito, Razão e sensibilidade, Emma e Persuasão é uma verdadeira indústria em 2014. Podemos descrever algumas de suas qualidades para compreender a persistência do fenômeno Austen: a mão leve para escrever personagens amplamente realizáveis na mente do leitor; a delicadeza com que apresenta os dilemas emergentes na tensão entre as normas sociais e a ética do indivíduo; a maestria no emprego da ironia, que faz rir e faz pensar; a técnica “teatral”, que concentra e agiliza os fios das narrativas nos diálogos — tamanha é a realização da arte de Austen que nem mesmo suas preocupações perenes, como a busca de uma conduta harmônica mediante a autodisciplina e o autoconhecimento e, como julgaríamos hoje, a supervalorização do papel moral e social do casamento, foram suficientes para diminuir o fascínio do público contemporâneo, certamente menos disposto aos ditames e receituários do agir decoroso.
Isso porque, em Austen, o que não passaria de moralismo em autores ineptos resulta de sustentada meditação sobre o tema da boa natureza diante da grande vertigem do tempo, e aí está uma razão para a dificuldade em estimá-la: se raramente lida com acontecimentos históricos, é por deliberadamente alhear-se deles, e não por desinteresse; se propõe valores dir-se-ia cristãos, não propõe necessariamente o cristianismo; se compreende que o novo século abre uma maior independência às mulheres, dando-lhes voz para protestarem o casamento arranjado segundo os interesses de classe, também não ignora que esse alvedrio possa dissimular como aparênciavalores que considera genuinamente bons; se defende sem alarde a liberdade da mulher de casarpor amor, contestando um certo patriarcalismo instituído, não despreza que a mulher também possa enganar-se na estimativa de seus próprios sentimentos. É preciso relativizar a modernidade de Austen.
Na juventude, firmaram-lhe o gosto literário autores imersos no que poderíamos vagamente chamar de mundo da experiência, como Henry Fielding, o já citado Shakespeare e o singular Samuel Johnson, o qual diagnosticara, em 1750, uma literatura contemporânea formada pelos acidentes e eventualidades da vida moderna, registrados em periódicos e folhetins. Não é por acaso que Fanny Price, a heroína de Mansfield Park, sobre o qual terei mais a dizer em seguida, descobre uma das principais guinadas do enredo em uma notícia de jornal. A influência de Fielding, grande escritor cômico que compreendera que é na experiência, e não no receituário, que aprendemos o bem, se faz sentir sobretudo no volume Juvenília, reunindo textos de uma Jane Austen mal saída da adolescência (1787-1793), que a Penguin corajosamente lança no Brasil, em edição e tradução em tudo recomendáveis. Nas primeiras tentativas de ficção, compreensivelmente incoerentes, Austen mostra não apenas um talento cômico, como também um domínio superficial das convenções burlescas, que certamente aprendera com Fielding. Sobravam-lhe as intervenções do narrador no relato, as observações e as críticas; faltavam-lhe entretanto as intuições psicológicas que conferem ao burlesco o seu potencial ético, ao levar certos tipos humanos ao paroxismo justamente para desarmá-los e expô-los como fraude ou engodo. Essas intuições, é provável, Austen aprenderia a desenvolver com as filigranas técnicas dos romances epistolares de Samuel Richardson, como o popularíssimo Pamela, um verdadeiro best-seller europeu, adorado por figuras como Diderot, e o sofisticado Clarissa, que representa com enorme habilidade, em uma multiplicidade de vozes e registros, os jogos emocionais e conflitos de interesse na Inglaterra do século 18, na trágica história de uma moça que rejeita o noivado com um tipo detestável.
Sentimental
Nesses escritos de juventude percebe-se ainda uma franca predileção pelo sentimental, como era o caso da obra de Richardson e de outras figuras menores, mas populares à época, como Henry Mackenzie. Eventualmente Austen aprenderá a zombar do culto ao bom gosto, tão em voga no século 18, que tinha a função de educar a sensibilidade. A sua obra madura, parcialmente publicada na última década de sua breve vida — Austen morreria aos 42 anos —, substitui o sentimentalismo reativo típico de uma era emancipada, sob certos aspectos, pela valorização da razão, mas incapaz de realisticamente lidar com as mudanças em curso, por um estilo sóbrio, comedido, psicologicamente elegante e sagaz, que acusa também a leitura ponderada de um poeta austero como George Crabbe: econômico nas descrições de paisagens, ambiências e vestimentas; magnânimo, mas concentrado, na caracterização de estados emocionais; sutil ao resumir as impressões sobre as personagens, sem entretanto “entregar” o uso da ironia nos diálogos, dos quais Austen é um dos grandes mestres na língua.
Na grande tradição britânica, poucos autores conseguem representar uma consciência tão convincentemente quanto Jane Austen: suas personagens estão o tempo inteiro cientes de que são vistas e ouvidas pelos outros. Por isso, o cálculo se apresenta como antecipação natural, e tem lá seus efeitos cômicos. A desmesura parece não somente uma aviltação, uma falta de bons modos e sensibilidade, mas, acima de tudo, denota uma ausência de autoconsciência, falta grave. É, enfim, um estilo clássico, que toma os conselhos morais sobre continência e aplica-os à forma do texto. É curioso notar que um dos autores que Austen mais gostava fosse logo Laurence Sterne, autor deTristram Shandy, um romance deveras cultuado quando redescoberto pelo modernismo mas que, no que diz respeito às experimentações formais, não parece tê-la influenciado significativamente. O teor de sua prosa é reflexivo, não digressivo; os trechos narrados são distribuídos em proporção junto aos diálogos, ainda que Austen faça, como na terceira parte deMansfield Park, uma eventual concessão ao gênero epistolar, que interpola a condução da narrativa.
Charlotte Brontë, a autora romântica de Jane Eyre, e que divide com Austen esse intrigante volume de Juvenília, acusava-a incapaz de escrever diálogos em que os participantes não falassem como ladies e gentlemen. Muito já foi dito pela crítica a esse respeito, e há alguma verdade nessa contenção: Austen não escreve sobre tudo e todos. No fundo, ela escreve sobre o mundo queconhece, algo inteiramente condizente com o senso de proporção e sensatez que propõe em seus romances. Mas o que diria Brontë sobre o grosseirão Tenente Price, o pai biológico da protagonista de Mansfield Park, perfeitamente caracterizado em sua ignóbil incivilidade? E sobre o mordomo em Mansfield Park, que inesperadamente confirma-nos, em apenas uma breve intervenção, que a tia Norris é de fato tão desagradável quanto a imaginamos?
Senso da confusão
Brontë, espírito menos recolhido que Austen, congenitamente não se adequaria às restrições auto-impostas por esta, nas quais sua arte novelística se circunscreve tanto geográfica quanto demográfica e historicamente. Austen, contemporânea de Edmund Burke, William Blake, William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge, adentraria a vida adulta nos anos seguintes à Revolução Francesa, que tanto marcará as reflexões daqueles autores, mas ela não trata do evento diretamente. Tal atitude ela manterá mesmo quando, posteriormente, o temor de que Napoleão invadisse a Inglaterra torna-se um tópico caloroso de debate. Austen trata esses assuntos de maneira oblíqua. Não vejo aí demérito. Ora, se um dos impactos óbvios da Revolução fora a intensificação das inquietações e discussões sobre bem-estar social, privilégios e o papel do clero, podemos localizar, na pedagogia instalada no centro de seus romances, reações e respostas àquelas ansiedades. Em Mansfield Park, alguns dos melhores diálogos se dão entre o ponderado e calmo Edmund Bertram, prestes a ser recebido na ordem eclesiástica, e a moderníssima e assanhada Mary Crawford, de Londres, que desdenha, duvidosa, dos méritos de uma carreira no clero, cuja função social ela já não reconhece. Fica claro que, para Austen, a vida no clero é, de certo modo, um modelo para a vida em geral; não um modelo institucional, mas existencial, pois demanda de nós um esforço irrevogável para cultivar o bem, o senso de comprometimento, de sacrifício e de recompensa. Na casa em Mansfield, o patriarca Sir Thomas, autoritário e interesseiro, embora não desprovido de notáveis qualidades, aos poucos aprende a temperança: o bom governo já começa em casa, mas sofre a influência de seus membros; não é, portanto, unilateral, embora a hierarquia seja indispensável. Ao mesmo tempo, Edmund reconhece que o próprio clero comporta membros que parecem ter há muito abandonado tal missão, enquanto Crawford é forçada a admitir que sua experiência com clérigos advém mais do disse-me-disse do que da prática imediata. Há em Austen um senso da confusão; daí sua constância.
Fica claro aí que, se Austen apresenta os diálogos de maneira fluida e realisticamente convincente, ela também busca no leitor uma resposta ética enviesada, mas de maneira plurivalente. Seu virtuosismo com o diálogo é utilizado não para forçar ou incitar o leitor, mas para provocá-lo. Desde o início estamos dispostos a simpatizar com o arrazoado Edmund, que, entretanto, é apaixonado pela materialista e — do ponto de vista da caracterização — irresistível Mary Crawford. Esperamos logo que Mary mude de conduta, algo que Austen resolveria não por meio de um argumento pontuado, mas de um evento vivido; ou que Edmund perceba a sua tolice. Essa tensão permanece em aberto porque Edmund, afinal, é o amor secreto de sua prima, a heroína Fanny, que em tudo difere de Mary Crawford. A trama do livro é um affaire de família: o orgulhoso e impulsivo galanteador Henry Crawford, irmão de Mary, resolve se apaixonar por Fanny. Outra tensão se abrirá: embora prontamente rejeitado por Fanny, será que Henry se tornará uma pessoa melhor, merecendo assim o coração da protagonista? Um mérito do livro é dar espaço o suficiente para o leitor querer que os irmãos Crawford se tornem mais discernentes e menos egoístas, não por fazê-lo adotar piamente os valores representados por Fanny e Edmund, e sim porque estabelece com êxito uma relação de empatia entre os irmãos e o leitor. Se o leitor mais puritano compreensivelmente “torcerá” para Fanny e Edmund constituírem um casal ao final da história, os demais leitores, sobretudo os contemporâneos, desejarão acompanhar a transformação dos irmãos humanos, demasiadamente humanos, tendo razão Lionel Trilling, ao sugerir que nenhum leitor moderno admiraria Fanny Price, a despeito de suas qualidades eminentemente admiráveis: há um aspecto de constância que a experiência moderna, sob certo aspecto profundamente hostil ao idealismo, não consegue tanger. A metamorfose, cremos, afirma o tempo e, portanto, a vida; ao contrário da estagnação do eterno, essa dita nêmese do vivo. Fanny parece-nos desumanamente piedosa e caridosa. Mary Crawford tem mais em comum com as outras heroínas de Austen do que Fanny Price, que é a verdadeira protagonista de Mansfield Park.
Aqui podemos vislumbrar o veio utópico da visão de Jane Austen. De todas as suas obras acabadas,Mansfield Park talvez seja a menos popular. Nos últimos 50 anos, entretanto, esse romance de 1814 mereceu a atenção considerada de grandes críticos literários, como Q. D. Leavis e o próprio Trilling; desde a década de 90, de forças dos estudos culturais, como Edward Said e Geoffrey Hartman. Hoje o estudam com renovado interesse os scholars do pós-colonialismo e da narratologia. O livro é eminentemente legível e entretém tanto quanto os demais trabalhos de Austen, mas oferece alguns desafios técnicos ao intérprete da autora. Uma delas é a cena do teatro improvisado pelos moradores de Mansfield, que se desdobra no primeiro interstício do livro e que lembra, na maneira como revela as predisposições e inclinações das personagens, da famosa cena da ópera em Guerra e paz, de Tolstói. Com perícia Austen lida com os conflitos locais gerados pela montagem da peça “vulgar” Juras de amor, adaptação inglesa de uma obra de August von Kotzebue, o dramaturgo alemão favorito de Nietzsche, e cujo enredo prenuncia a própria ação do romance. Sir Thomas está em Antígua, cuidando dos negócios; Edmund, sabendo que o pai desaprovaria com veemência a representação de tanto despautério no próprio lar, luta para impedi-la. Fanny não tem objeções à peça em si, mas teme falhar no palco por “não saber representar”. Para os demais, trata-se apenas de um divertimento inconsequente.
Pedagogia cristalizada
As ressalvas contra a representação têm uma dupla face, e aqueles que pensarem em Platão não estarão delirando: em Edmund e Sir Thomas, há uma relação perigosa entre o conteúdo moral da representação e aquele que representa; em Fanny, a falta de talento para representar surge como grande qualidade normativa. Ela é sincera demais para representar, e é justamente por sê-lo que, em meio aos fingimentos, dissimulações e mentiras da trama, ela termina feliz e honrada pela família, pela sociedade e também pela autora. Por isso, o que era uma dialética da experiência nas obras anteriores de Austen, uma dança de pontos de vista, de oscilações entre resignação e fortidão, humilhação e coragem, aqui se assemelha mais a uma pedagogia cristalizada pelo método previamente empregado. Mansfield, idílica e isolada de Londres, por fim dá a impressão de uma sociedade ideal, onde reina a paz exterior e interior por meio da disciplina, da constância e do autoconhecimento. Em Mansfield, Fanny é uma boa sobrinha, mas em Portsmouth não é uma filha especialmente carinhosa e diligente; e é uma amiga sincera até sentir-se ameaçada. Não é tola, apesar da simplicidade, nem demasiado humilde, pois excessivamente consciente das próprias virtudes. Em última análise, um racionalismo contemplativo e psicologicamente arguto disputa com uma utopia conservadora a primazia na visão de Austen.
Mansfield Park é um trabalho clássico que merece ser lido e discutido. No caso de Charlotte Brontë, a publicação de sua Juvenília pede uma leitura à luz de suas obras da maturidade, sobretudo do soberbo Jane Eyre, que não encontra ocasião aqui. Mas cabe um comentário pertinente. Brontë, outro clássico inglês que goza de grande popularidade ainda hoje, compartilha com Austen a busca pela boa conduta, pela retidão em um mundo declaradamente estranho, mas o faz sem reprimir as lições do coração; seu idealismo é, portanto, de outra estirpe. Brontë já tinha o espírito do romantismo, ao contrário de Austen, que somente o adumbraria: a leitura de Byron e de clássicos orientais como As mil e uma noites, traduzidos e avidamente apreciados em inglês já no século 18, inspiraram-lhe o espírito aventureiro. Frances Beer, em sua excelente introdução àJuvenília, observa perspicazmente que a criatividade da jovem Brontë se manifestara na imaginação expansiva, mas profundamente solitária, ansiosa por encontrar mundos distantes, enquanto a de Austen se concentrara na ridicularização de tipos hipócritas, entediantes e desagradáveis. Mas seus gênios foram dificilmente compatíveis. A justeza dos arranjos humanos requer um compromisso que Brontë, à parte do pessimismo social e escapismo que nunca deixou de externar, só aceita com uma resignação filtrada por uma imaginação feroz, que distorce a proporção do real com uma abundância de sentimento. Para ela, o amor em Austen era um amor desapaixonado, estereotípico dos ingleses. Buscara representar o amor “com coração”. Por isso não pudera aceitar que Austen fosse chamada, como fora, de uma escritora realista, pois faltava nela justamente o coração, essa realidade inalienável. Em cada uma há, à sua maneira, na feliz formulação de Beer, a busca por uma “transgressão que não transgride”. São escritoras eminentemente inglesas nesse sentido.
A Juvenília deverá encontrar um público menor do que Mansfield Park e demais obras das duas autoras. Mas é uma publicação corajosa, que possibilita ao leitor zeloso uma visão privilegiada do desenvolvimento criativo de duas das maiores romancistas do século 19. A editora merece todos os lauréis por ter apostado nesse título, editado com rigor e critério. Cursos universitários de Letras e estudantes da língua inglesa terão incentivo para encomendar e estudar a edição de luxo da Landmark, em capa dura e bilíngue, oferecendo o texto em páginas espelhadas. Naturalmente, dada a extensão do romance, que soma quase 600 páginas na edição da Penguin, a versão bilíngue usa uma fonte consideravelmente menor, com espaçamento mínimo entre as linhas, e um formato de livro maior, o que dificulta o manuseio e a leitura, embora esse não seja um pormenor incontornável. Quanto à tradução nessa edição, embora ela de fato siga o texto original corretamente, peca ocasionalmente por fazê-lo de maneira rigorosamente fiel: a sintaxe às vezes parece artificial e, sobretudo nos diálogos, prejudica a fluidez do texto. Ademais, a revisão técnica poderia ter impedido certos erros de digitação, facilmente justificáveis e, portanto, perdoáveis no processo de tradução, mas incompreensíveis em uma edição de luxo. Nesse sentido, a edição da Penguin é preferível, apresentando uma tradução fluente e idiomática, e um texto limpo com notas elucidativas e bom aparato crítico. A publicação bilíngue é parte de uma louvável iniciativa da Landmark de disponibilizar clássicos da literatura nesse formato, um projeto de grande valor educacional, e torcemos para que seja executado com o esmero que demanda e que o leitor, carente de publicações acessíveis desse tipo, merece.



Jane Austen nasceu em 1775, em Steventon. É uma das escritoras inglesas mais conceituadas da história. Autora de Razão e sensibilidade (1811), Orgulho e preconceito (1813) e Emma (1816), entre outros. Modesta em relação ao seu talento, só teve a identidade como autora revelada postumamente. Morreu em 1817, em Winchester. Charlotte Brontë nasceu em 1816. Passou a maior parte da vida em Haworth, nos pântanos de Yorkshire. É autora de quatro romances: Jane Eyre (1847), Shirley (1849), Villette (1853) e The professor (o primeiro deles, publicado postumamente em 1857). Emma, um fragmento, foi publicado em 1860. Morreu em 1855.

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