(Do Livro: Os Sentidos da Paixão. Ed. Cia de
Letras, 1987, págs. 359-373)
Luzilá Gonçalves Ferreira
Lou Salomé: uma prática de paixão; alguém que
viveu a paixão com paixão, e talvez por isso mesmo provocou, até uma idade
avançada, o nascimento da paixão nos seres que encontrou em seu caminho: Rilke,
Nietzsche, Paul Rée, Tausk e, ao que parece, até mesmo Wagner sucumbiram ao seu
encanto e à alegria de viver que transpirava em cada um de seus gestos - e o
próprio Freud não parece ter sido indiferente à graça da discípula que ele
qualificou de "raio de sol'.
A paixão de Lou pela vida transparecia em seu
próprio físico. Freud lhe escreveu um dia: "você tem um olhar como se
fosse Natal". E a escritora Helena Klinkberg (citado por Peters): "O
sol se levantava quando Lou entrava numa sala". Era um ser luminoso,
transparente e lúcido, daquela lucidez talvez de que fala João Cabral de Melo
Neto a respeito de Monsieur Teste: "uma lucidez que tudo via, como se à
luz ou de dia". Um ser humano para quem a felicidade é condição natural e
destino do homem: "dentro da felicidade eu estou em casa". E ainda:
"A única perfeição é a alegria".
Essa paixão pela vida, ela a transmitia aos
outros, fazendo com que as pessoas ao seu contato desenvolvessem e dessem o
melhor delas próprias. O que fez alguém escrever: "Quando Lou se interessa
apaixonadamente por um homem, nove meses depois este homem dá à luz um livro.
Um interesse pelo outro que o leva a crescer e produzir - mesmo quando esse
crescimento e essa produção implicam o sofrimento.
Pois Lou Andreas-Salomé conseguiu realizar, em
seus 76 anos de vida, o que nós todos gostaríamos e deveríamos fazer sempre - e
não o fazemos por descaso, indolência, medo: tornar a vida o exercício
apaixonada de uma busca. Sua exploração em todos os possíveis. Isto que requer
a fruição intensa e incessante de coisas e pessoas que nos cercam, de modo que
o mundo exterior em nós penetre e a nós se incorpore. Pois a vida, como o dizia
Rainer Maria Rilke a propósito de Rodin, "está nas pequenas coisas como
nas grandes: no que é apenas visível e no que é imenso".
Antes mesmo do seu encontro com Rilke, Louise von
Salomé já intuía essa verdade: desde muito cedo encontramos nela um grande
apetite de aprender e de amar - e o objeto de sua atenção podia ser a
psicanálise, a curtição de uma paisagem, de uma flor, de um esquilo na floresta
ou de um corpo amado.
(.....) Lou escreveu vários ensaios sobre o
Erotismo. O primeiro deles data de sua ligação com Rilke. Intitulado reflexões
sobre o problema do amor, traz as evidentes marcas da embriaguez física e
espiritual que sua autora estava vivendo. Aqui ela assinala, em páginas de um
admirável lirismo, a capacidade que tem a paixão amorosa de nos abrir o caminho
ao sentimento da totalidade da vida e sua faculdade de nos colocar em estado
criativo. O ato amoroso "nos enche a alma inteira (...) de ilusões e de idealizações
espirituais, forçando-nos o mesmo tempo a nos chocar brutalmente, sem
possibilidade de se esquivar, ao dispensador de uma tal desordem; ao
corpo". E Lou escreve:
"Pois, sobretudo,
resulta no indivíduo uma espécie de interação ébria e exuberante das mais altas
energias criadoras do seu corpo e a exaltação mais alta da alma. Enquanto nossa
consciência se interessa vagamente, habitualmente, por nossa vida psíquica,
como por um mundo que conhecemos mal e que controlamos ainda pior, que ao que
parece forma um com ela, mas com o qual normalmente ela se entende mal - eis
que se produz subitamente entre eles uma tal comunhão de enervação que todos os
seus desejos, todas as suas aspirações se inflamam ao mesmo tempo."
Por essa exaltação da alma através dos sentidos,
por essa impressão que o ato amoroso nos dá de haver ido muito longe, e tocado
o indizível, é que ele pode influenciar e favorecer a criação, a "pátria
do dizível", como escreveu Rilke. E Lou: "O Mundo da criação e do
amor significa: volta ao país natal, entrada no paraíso; o a impossibilidade de
criar, ou do amor morto, é, ao contrário, um exílio onde os deuses nos
abandonam".
A atividade criadora se apaixona por tudo aquilo
que é vida em nós, que é indício do que em nós lateja de mais secreto, e que atinge
as raízes do ser. O espírito descobre forças que não possuía ou das quais não
se apercebia. Pode voltar àquele estado de inocência primeira que possuiu na
infância, redescobre a "novidade" das coisas, com o frescor de uma
sensação primitiva: o olhar da criança sobre o mundo que descobre maravilhada;
o olhar de Adão diante de Eva recém-saída de si.
Confrontado com os seus longes, o amado vê a si
mesmo, e ao mundo exterior, como algo recém-criado. Por isso, às vezes a gente
sai do amor como quem saiu de uma catedral, redescobrindo o mundo aqui fora com
os olhos renovados. O ato amoroso, vivido em plenitude, obriga os amantes a
concentrar em si mesmos tudo aquilo de que são capazes, passível de germinar
com a força das plantas na primavera.
"Nesta igualdade
original do corpo e do espírito e nesta consciência ingênua de um e de outro -
uma criança que acredita em tudo que vê, para quem tudo se renovou, que, cheio
de uma fé e de uma confiança sem limites, gostaria de gritar sua alegria ao
esplendor inverossímil do mundo, e não saberia saudar de melhor modo a razão
senão fazendo cabriolas diante dela... como se balbuciasse em sonho, ele tem
algo a dizer sobre estes esplendores ocultos que lhe fizera, ai de nós,
esquecer tantas coisas úteis e necessárias."
O ato amoroso transforma o parceiro num
"conto estranho e maravilhoso". A Paixão amorosa é uma porta,
diferente de todas as outras portas, "em sua arquitetura ornada de
elementos ricos de sentido, em virtude de um simbolismo singular". É o
caminho por excelência que nos leva a nós mesmos. Por ela "nós não somos
um mundo de realidade, somos apenas o espaço e o metteur en scène de um mundo onírico, todo-poderoso,
irresistível".
Assim, o amor durará enquanto os amantes forem
capazes de oferecer ao outro essa entrega, que dá acesso de modo vital à
capacidade de se concentrar neles mesmos, de ser um mundo para si por causa do
outro.
A esta altura, a gente poderia se perguntar - não
seria esta uma visão demasiado idealizada do amor? Mas Lou não se deixa embalar
incondicionalmente pelo êxtase da paixão: esta grande amorosa foi também,
segundo a expressão de Freud, uma "compreendedora".
Neste mesmo ensaio, ela nos lembra que no êxtase
amoroso, por mais que desejemos nossa fusão com o amado, sempre somos, em
última análise, remetidos a nós mesmos. A reconciliação que se fará aqui será
sobretudo entre o sujeito e ele próprio, através do outro, mais do que entre o
sujeito e o objeto amado.
Num ensaio sobre o erotismo, datado de 1910, e
num ensaio posterior, quando Lou já se engajara definitivamente à psicanálise,
intitulado Anal e Sexual,
ela nos lembra que na união física "a gente não possui um ao outro por
meio do corpo, mas apesar do corpo, que, como todo mundo sabe, não se
identifica jamais (...) completamente com o todo da pessoa, mas aparece sempre
como uma parte dela e resiste à dominação mais viva".
(....) A fusão inteira do nosso ser com o outro,
por mais querido que seja, não seria desejável. É preciso que sejamos cada vez
mais nós mesmos, para poder ser um mundo para o outro. A relação erótica,
remetendo-nos a nós próprios, é uma ocasião de constante renovação: cada vez
ela inaugura em nós um ser novo; como um ato de linguagem, cada vez que eu falo
a um Tu, é um Eu diferente que fala a um novo Tu: quando digo Eu, já não sou
aquela que falava há pouco. A relação erótica é, assim, nela mesma, criação. E
o amor um elemento de produção: somos a cada instante outros, encontramos no
outro cada vez um elemento novo, diferente, desconhecido, misterioso até - o
que dá à relação erótica sua riqueza:
"só aquele que
permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do
amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como
tal. Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se
polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões
mútuas... e, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais
é funesto de se enxertar um sobre o outro, em nome do amor, de se transformar
um em parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em
um solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro."
É preciso que a gente seja sempre, um para o
outro, duas deliciosas surpresas fecundas. Aquele mundo da fábula de La Fontaine
"Os dois pombos", que aconselha aos amantes: "Amantes,
felizes amantes, vocês querem viajar? Que seja pelas margens próximas/Sejam um
para o outro um mundo sempre belo, sempre diverso, sempre novo./ Sejam um todo
um para o outro, contem por nada o resto".
E Lou analisa esta necessidade de renovação e da
existência do mistério na relação amorosa:
"Pois, nos seio
mesmo da paixão, nunca se deve tratar de "conhecer perfeitamente o
outro": por mais que progridam neste conhecimento, a paixão restabelece constantemente
entre os dois este contato fecundo que não pode se comparar a nenhuma relação
de simpatia e os coloca de novo em sua relação original: a violência do espanto
que cada um deles produz sobre o outro e que põe limites a toda tentativa de
apreender objetivamente este parceiro. É terrível de dizer, mas , no fundo, o
amante não está querendo saber "quem é" em realidade seu parceiro.
Estouvado em seu egoísmo, ele se contenta de saber que o outro lhe faz um bem
incompreensível... os amantes permanecem um para o outro, em última análise, um
mistério."
Assim, o amor não seria um encontro, mas uma
busca. Não quer dizer que chegamos, mas que estamos próximos.
Rilke perguntava-se na Primeira elegia de Duíno:
"Não é tempo daqueles que amam libertar-se do objeto amado e superá-los,
frementes? Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo mais do que ela
mesma". E nas cartas a um jovem poeta, em maio de 1904:
"Assim, para quem
ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento, cada vez
mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama
entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. (...) O amor é uma ocasião
sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo por si mesmo, tornar-se um
mundo para si, por causa de um outro ser: é uma grande e ilimitada exigência
que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe."
Se o amor é uma busca, se o estudo é uma busca, a
arte uma busca, a vida inteira é também busca. E o amor e a paixão são a mola
dessa busca.
É preciso buscar com amor, com paixão. Amar a
vida, amá-la mesmo e sobretudo quando ela chega ao fim, e o espírito e o corpo
vêem limitados seu campo de ação. Nos Cadernos
íntimos dos últimos anos,
Lou Andreas-Salomé dá um balanço de sua vida. Em fevereiro de 1934, isto é,
três anos antes de morrer, ela escreve:
"Distingue-se entre
os humanos aqueles que se sentem divididos em um passado e um futuro e aqueles
que vivem o presente com cada vez mais densidade, sempre mais plenitude. Os
orientais acham natural insistir menos sobre a morte do que se passa do que
sobre a perfeição do que se acaba, como aprofundamento da realidade. Nós, ao
contrário, começamos a ver aquilo que nos chega, apenas sob o aspecto sempre
mais sinistro da morte - como tudo o que se observa de um olhar exterior, logo
mortífero."
E um pouco mais adiante:
"Sempre não tive a
idéia fixa de que a velhice me traria muito? Em meus jovens anos escrevi em
algum lugar: primeiro nós vivemos nossa juventude, em seguida nossa juventude
vive em nós. Não sei bem, ainda hoje, o que eu queria dizer com isso outrora.
Mas eu tinha realmente medo de não atingir a idade de viver esta experiência;
eu o sabia profundamente, uma longa vida, com todas as suas dores, vale ser
vivida,. Claro, o valor da vida pode nos ficar escondido pelos desgastes
sofridos pela nossa carne, nosso espírito (...) do mesmo modo que a juventude
mais empreendedora pode se ver entravada em sua felicidade e em seu sucesso,
por um fatal concurso de circunstâncias; mas, por além das perdas, a velhice
adquire muito mais que a famosa aptidão à serenidade e à lucidez: ela permite
que se chegue a uma plenitude mais acabada."
A velhice pode ser, assim, uma volta àquela
espécie de paz inicial e retorno do indivíduo a um estado de não-divisão, de
fusão primitiva do eu para consigo mesmo, o corpo parece se acalmar
relativizando-se; ...
Num ensaio de 1901, escrito aos 40 anos e
intitulado A velhice e a eternidade, Lou afirmava: "O velho está liberto
de todos os seus limites pessoais e escrúpulos mesquinhos. Retirado lentamente
da vizinhança imediata dos outros seres vivos, ele se vê, progressivamente,
reintroduzido no grande encadeamento universal".
É preciso amar a vida em todas as suas fases e
amar até mesmo a morte. Aqui Eros e Thanatos se dão as mãos - são forças
complementares e não contrárias. A morte é a redenção da vida individual,
escreve Lou num artigo sobre o misticismo russo. Nossa morte não nos separa dos
seres que amamos; ela nos entrega de modo mais completo a eles:
No dia em que eu estiver
no meu leito de morte
Faísca que se apagou -,
Acaricia ainda uma vez
meus cabelos
Com tua mão bem-amada
Antes que devolvam à
terra
O que deve voltar à
terra,
Pousa sobre minha boca
que amaste
Ainda um beijo.
Mas não esqueças: no
esquife estrangeiro
Eu só repouso em
aparência
Porque em ti minha vida
se refugiou
E agora sou toda tua
[Hino à morte]
A morte desfaz, assim, a distância entre os
amantes, que agora vivem um no outro, sem que o individualismo os separe. A
morte não é uma partida, umas uma volta: um retorno do indivíduo àquela união
primitiva com as cosias. Por isso não a devemos temer.
A grande biografia de Lou Salomé ainda não foi
escrita. Mas, pelo que dela nos resta, fica uma lição final de amor pela vida,
de paixão pela vida, de totalização da vida. Por isso Lou desejou ser cremada e
que suas cinzas fossem jogadas no jardim de sua casa, em Gottingen: para que seu corpo pudesse se
incorporar à terra e ser transformado em planta e flor.