O primeiro canto

domingo, 1 de novembro de 2015
quarta-feira, 1 de julho de 2015
O ‘modernismo reacionário’ brasileiro, a moderna tradição neoconservadora? (Ou Michael Löwy x João P. Coutinho)
Por Betto della
Santa
“O Brasil não é um país para
principiantes.” Antônio Carlos de Almeida
Jobim ou, tão-simplesmente, Tom Jobim (Rio de Janeiro, 25/Jan./1927 — Nova Iorque, 8/Dez./1994),
dispensa a maiores apresentações. O enunciado formal –que ora lhe é tributado–
atesta que o compositor e musicista não só foi responsável por momentos
significativos da cultura brasileira, no âmbito da canção popular, como também
se esmerou em reelaborar uma espécie de sentimento íntimo de país, no plano das ideias. “O Brasil é ‘de cabeça para
baixo’ e, se você disser que é ‘de cabeça para baixo’, Eles o põem [BdS: a você, interlocutor!] ‘de cabeça para baixo’, para
você ver que, na verdade, está ‘de cabeça para cima’.” A vertigem sugerida pela figura de linguagem poderia muito bem
ser lida numa chave mais literal do que literária. O pau-de-arara, método de tortura muito utilizado no Brasil –desde a ditadura
civil-militar até os dias de hoje–, consiste numa barra de ferro a ser
atravessada –entre os punhos amarrados e a dobra dos joelhos–, suspendendo-se o
corpo do torturado, dependurado a cerca de 30 centímetros do chão. E de pernas para o ar! Com esta dialética rarefeita –entre a sofisticação, da intenção, e a truculência, do gesto–
apanhamos à quintessência de forma e conteúdo para a discussão que nos ocupa
aqui e agora: a hora e o lugar de Esquerda x Direita no Brasil pós-PT/PSDB.
Qual a razão –e o significado– para tal distinção política?
Antes de
responder, contudo, há-de perdoar o leitor de brandos costumes a preâmbulo tão
disruptivamente calcado no lado obscuro da convivialidade
brasileira. Mas quem avisa amigo é: não é sobre sutilezas metafísicas que tratará esse texto. O contexto é brutal. De chofre, cabe desde já lembrar ao leitor do Blog CONVERGÊNCIA
que o tema –de Direita e Esquerda– já foi objeto de reflexão mais de uma vez
por parte de seus colaboradores regulares: “Esquerda e Direita, Velha e Nova”,
por Alvaro Bianchi, “A Esquerda e as Eleições” de Daniela Mussi, e “Quem é a
Esquerda que a Direita Gosta?” de Valerio Arcary, são bons exemplos disso. O
algo recente “O Nome da Esquerda (Que Ousa Dizer seu Nome)” dialoga com a
constelação de uma tradição mais subterrânea –a partir do quê Antonio Gramsci
chama “filologia vivente”–, ousando
inovar na perspectiva de uma esquerda herética, para muito além daquilo a que tanto a socialdemocracia quanto o
stalinismo dão nome. A abordagem que nos serve de ponto de partida enseja,
contudo, uma visada muito mais tradicional. A distinção, Esquerda & Direita, nasceu há já dois séculos e meio, com a Revolução Francesa –o
marco fundante da história moderna–, e faz referência aos “lugares” — ocupados
relativamente à figura do rei na assembleia constituinte. À esquerda postava-se
o desafio à ordem estabelecida e à direita a conservação de tal mesma ordem.
As coisas se
complicam –como numa espécie de “torcicolo ideológico”–, não obstante, quando o
assunto envolve Esquerda e Direita –Velha ou Nova, de Liberais e Conservadores– in terra brasilis. Os programas de esquerda (de trabalhadores não-proprietários) e de direita (deproprietários não-trabalhadores) apresentar-se-ão de modo já problemático quando
se aclimatam à hora e lugar de um país como o Brasil, pertencente, este, à
semiperiferia do sistema-mundo do capital. “Num país de passado colonial como o
nosso, a vida ideológica sempre girou em torno da elaboração mental (e jurídico-política)
da imagem que melhor revelasse (ou mascarasse) a fisionomia do país” (Arantes,
1992, p.127). A constituição dum Estado-nação brasileiro nunca ‘acertou as
contas’ com o seu passado (não ultra-passado), isto é, coordenadas e mapeamento
do caráter colonial-escravista, dependente, de sua formação social. A forma típica do trabalho livre assalariado, i.e., nunca foi pressuposto fundamental de suas relações sociais mais
fundamentais. Talvez seja esse o maior problema com expressões como “onda
conservadora” ou “nova direita” na tentativa de captar em essência o caráter –e
limites– de fenômenos recentes da vida nacional. Ora, tanto o epíteto “onda”
quanto o adjetivo “nova”, pressupõe a uma acepção mais presentista daquilo que tentam nomear difusamente, qual seja, a vaga do
neoconservadorismo “à brasileira”. Não é de hoje o caráter conservador,
intolerante e autoritário do clima ideológico brasileiro.
Por ocasião
da republicação do já clássico opúsculo Revolta e Melancolia: romantismo na contracorrente da modernidade (SP, Boitempo, 2015)
o sociólogo, vienense-brasileiro, Michael Löwy –radicado na França, desde os
anos 70, do século passado–, deu uma entrevista à Folha de S. Paulo. Em
entrevista à jornalista Eleonora de Lucena, Löwy sugeriu que “há um modernismo
reacionário, que sempre é favorável ao sistema capitalista, por mais que
critique esse ou aquele aspecto da vida política, como a corrupção e a
má-administração.” (FSP, 09/Jun./2015). Na feliz expressão do cientista social,
o elemento mais preocupante dessa extrema-direita brasileira –sem paralelo com
aquela que há na Europa– seria o apelo aos militares. “O saudosismo da ditadura
é um dos aspecto mais sinistros da recente agitação de rua, conservadora, no Brasil”, diz o autor. As semelhanças com o movimento das
direitas europeias adviria, segundo o mesmo, da ideologia repressiva, o culto à
violência policial –vide a bancada Boi-Bala-Bíblia no parlamento nacional– e
uma intolerância sectária para com as minorias sexuais. A pequena nota
jornalística não passou desapercebida a um colunista político de parda
eminência, ao menos no Brasil: João P. Coutinho. Numa aparvalhada resposta,
como veremos a seguir, João P. Coutinho –o cientista político luso– intenta
objetar os argumentos, a tese de Löwy. Para o politólogo português, não há
horror algum.
Esquerda, volver
Na outra
margem do Spectrum, Löwy relacionou a crise do PT com o absenteísmo de horizonte
radical. Afirmou que ao se desmarcar do contato com suas bases sociais populares,
aderiu ao dogma da austeridade e de uma vez por todas deu sumiço, no programa,
ao socialismo. Parte da esquerda da esquerda –Löwy acaba de lançar livro sobre Marxismo & Anarquismo, na França, e outro a respeito da teoria-programa da Revolução Permanente, no Brasil–, ele defende que os partidos da esquerda radical
–como PSOL, PSTU e PCB– não lograram conquistar uma capacidade de mobilização
equivalente ao PT, ainda e quando possam vir a fazê-lo, no futuro. “Quem vai decidir se haverá saída para a esquerda serão os
movimentos sociais: os sem-terra, os sem-teto, os sindicalistas, os
ecologistas, os indígenas, mulheres e afrobrasileiros”, opina o autor. Ao
pincelar esse quadro geral, Löwy aponta simultaneamente pelo menos três vieses
ineludíveis da questão: i) não é possível compreender a gênese da “nova direita”, conservadora, sem explicar o devir da “velha esquerda”, liberal, ii) além de “por onde começar” a
interpretação da situação, Löwy indica “o que fazer”, para sua transformação,
e, iii) indica o antídoto para o clima político. Para João P. Coutinho o que há
de fato e de direito é uma direita “cansada dos abusos políticos e das
corrupções econômicas” e que “procura resgatar para o Brasil os valores
‘liberais’ clássicos”.
“Esta
direita (a qual ele, com apreciável rigor, às vezes chama de ‘extrema-direita’)
tem nostalgia pela ditadura militar, revela intolerância com minorias sexuais,
atinge o orgasmo com a violência policial e –atenção pelotão de fuzilamento! –
é sempre favorável ao sistema capitalista” ironiza o glosador ibérico.
Arrogando para si a autoridade de quem recém-lançou livro titulado As Ideias Conservadoras
Explicadas a Revolucionários e Reacionários –pelo selo editorial do Grupo Folha– Coutinho desdenha da
caracterização do quê seria um avanço conservador no país como uma espécie de
garatuja autoritária e imobilista, “de bengala e cartola”, e sequer se dá ao
trabalho de examinar o que há na formulação político-intelectual proposta, por
Michael Löwy, de distinto, por exemplo, ao quê Guilherme Boulos –na mesma FSP–
chamou onda conservadora. Após se escusar por não ser especialista em Brasil, Coutinho
reitera que os valores e as crenças perquiridas por essa direita tupiniquim não
seriam distintos dos do liberalismo mundial, como o constitucionalismo, o
antiautoritarismo e a tolerância — que seriam “moeda-corrente na cidade, no
país e continente aonde, ironia das ironias, o ilustre sociólogo marxista
escolheu para morar.”. Afirmar Paris –a capital global da reação
política, desde a derrota histórica do Maio 68–
como sede mundial da direita ilustrada, e dizer ‘escolha residencial’, do
autoexílio político, não é à-tôa.
O artigo de
opinião, de Coutinho, é banal, e prenhe de contradições em termos. Do livro que
escreveu posso dizer o bordão, mui caro ao quiçá mais respeitado conservador
brasileiro, “Não li… e não gostei!”. A dica de Antonio Gramsci –para a batalha
de ideias e programas– foi sempre enfrentar adversários os mais consistentes e
teses as mais sofisticadas. O aconselhamento apela ao bom senso do
homem-coletivo comunista. Se no combate político-militar romper linhas
adversárias –atacando, aí, “o elo mais débil”– faz muito sentido, na luta
ideológico-conceitual desguarnecer às linhas com menor resistência política (e
sua retaguarda filosófica) não surtiria efeito algum para o contexto total. Daí
que um bom conselho é fazer justamente todo o contrário. Afinal, por que perder
tempo com um arrivista desconhecido, mais preocupado com seus quinze minutos de
atenção midiática? Apesar da má-qualidade de seu material, o textículo em tela
serve de pré-texto para passar em revista o estado da arte geral –universo
editorial– sobre o fenômeno direitista no
país e –de quebra– revelar a verdadeira
contribuição teórica de Löwy a esse debate. O público
embate de ideias possui leis próprias. E a metáfora militar tem limites
autoevidentes. Não é a continuação da guerra por outros meios. Só a práxis
teórica adequada, pesquisa acurada + diligente debate intelectual e político,
pode auxiliar à perspectiva total da emancipação humana.
“A Revolta a
Favor da Ordem” por Felipe Demier, “De Onde Vem o Conservadorismo?” de Mauro
Iasi, “A Direita Ganha às Ruas”, por Demian Melo, “A Marola Conservadora” por
Ruy Braga –e mesmo a breve nota, “Há uma onda conservadora no Brasil?”, de
Valerio Arcary– são as manifestações fenomênicas –dum ponto de vista mais
crítico– que tiveram lugar após Outubro de 2014, por um lado, e foram
posteriores à coluna de opinião de Guilherme Boulos, na FSP, de título “Onda
Conservadora” (FSP, 09/Out./2014). O objeto das análises de conjuntura expõem
sobretudo a avaliação pós-eleitoral, em especial a composição política do
Parlamento e, ainda, mobilizações de direita galvanizadas por palavras-de-ordem
que variaram do que seria o liberalismo clássico até, enfim, o reacionarismo
político. De lá pra cá muita água girou o moinho. A redução da maioridade
penal, o banimento dos estudos de gênero dos Planos Nacionais de Educação, e a
ofensiva contra a filosofia de Antonio Gramsci (ou a pedagogia de Paulo
Freire!) são subprodutos, recentes, de uma era de obscurantismo intelectual na
Câmara dos Deputados. Para se ter uma vaga ideia, o projeto de lei que leva o
criacionismo ao currículo oficial do ensino secundário fora desarquivado. Qual
seja, não chega com que haja os salários indignos, a falta da infraestrutura
mais mínima + fome (porque a merenda foi pilhada pelo secretário de educação).
Não basta Massacre de Curitiba. Ou até saque à previdência. É preciso fazê-lo
em nome de deus.
Freud explica; Marx complica?
Toda uma
rica corrente do pensamento crítico, de recíproca fertilização entre
Psicanálise e Dialética, debruçou-se sobre o mal-estar social civilizacional
brasileiro. São nomes tais como Maria Rita Khel, Paulo Arantes, Vladimir
Safatle e, sobretudo, Christian Dunker. O último lançou o livro que movimentou
um debate –quiçá o mais profícuo– a respeito
das condensações psicossociais realmente existentes no último quadrante
histórico do edifício social brasileiro: Mal-estar, Sofrimento e Sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros (SP, Boitempo, 2015). A
observação social da realidade brasileira ‘psicanaliticamente orientada’ perfaz
toda uma ampla tradição pública da zona de engajamento intelectual e retoma uma
vertente de articulação entre filosofia, psicologia e pensamento
político-social com vigorosa presença na cena nacional. Neste sentido, o
impacto da obra ora em presença não se trata deum raio em céu de brigadeiro… As forma de ser dos modos de agir, sentir, pensar e viver a vida
são aqui arquitetadas a partir de uma chave de leitura que toma de empréstimo,
da metáfora do edifício, às figuras do condomínio e do síndico, para ressignificar –simbolicamente– a relações de poder e
estruturas de dominação. A “autonomia relativa” já conquistada pela psicanálise
nacional –para além do campo da saúde psíquica– na formação mesma, da vida
estatal, permite-se-lhe perscrutar
violência e segregação.
As formas de
objetivação e de subjetivação dessas relações de poder bem como as suas estruturas
de dominação são, daí, interpretadas a partir de suas várias configurações
específicas. O (des)governo heteronômico dessa razão sistêmica é tutelar: uma sociabilidade administrada. Neste condomínio, que nunca foi moderno, há as classificações de compêndios psiquiátricos e a (in)devida
farmalização, isto é, via de despolitização do sofrimento, medicalização do
mal-estar e condominialização do sintomal. Contra uma tal recolonização
extrapolítica da existência social, apresenta-se a mediação categorial do sofrimento enquanto uma transubstanciação do espírito de uma época sem
espírito, entendido a partir de suas formas expressivas e com nexo em processos
de reconhecimento. O sofrimento não é outra coisa senão desejo de ser-estar
diferente no mundo, o mal-estar é gerado pelo declínio da experiência e as
psicopatologias têm de ser compreendidas na sua condição de contradições não-resolvidas (ou sequer mesmo reconhecidas enquanto tais). A zona de fronteira entre mal-estar/sofrimento/sintoma sob o
modelo de regulação hegemônico é reequacionada a partir da uma arqueologia do
saber psicanalítico ‘teoricamente informado’, com vistas ao conhecimento da
formação social brasileira. A proposta original e inovadora do ensaio é a
apropriação de antropologia não-totêmica, baseada no perspectivismo, de Viveiros de Castro.
A seqüência
do raciocínio exige um nível de especialização intelectual bastante elevado. A
teoria do perspectivismo, do renomado antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, já seria
todo um desafio de apresentação, por si só. Não bastasse ter de lidar de modo
bastante familiar com o material da psicanálise brasileira, o pensamento social
e a teoria crítica, de Marx a Lacan, o autor nos impele aí a conhecer o xamanismo transversal como forma simbólica da Amazônia brasileira para, só então,
repensar re-conhecimento, in-determinação e contingênciapara a vida social tal qual a queria o velho poeta –Vinicius de
Moraes– “a arte do encontro”. A essa altura Maria Rita Khel, com seu habitual
despojamento de intelectual pública, oxigenada pelo contato assíduo com as
amplas audiências, nos sugere O Som ao Redor, o filme pernambucano do cineasta Kleber Mendonça, para ilustrar
uma série complexa de questões e perturbações levantadas por Dunker. O ‘retorno do reprimido’ n’O Som ao Redor é uma verdadeira retomada cinematográfica e, a um só e mesmo tempo, projeção de um resgate social da bôa e velha luta de classes. Pois ao fim e ao cabo –seja através da linguagem de xamãs, divãs
ou ecrãs– é disso, enfim, que se trata ipso facto. 388 anos de escravismo colonial, 389 com formas monárquicas, 41
de regime autocrático e 36 de ditaduras semifascistas é o passado não ultra-passado que insiste em transpirar, por todos poros…
Dicionários
científico-filosóficos, biografias/autobiografias político-intelectuais,
espólio sistemático de jornais e revistas, recenseamento e resenha de livros,
sistematização à bibliografia crítica –própria à concepção total de mundo,
exposta na publicação–, a observação específica do território e situação
regional: eis as rubricas de trabalho jornalístico/metajornalístico em Gramsci.
O regime de produção jornalística concebido (e praticado) nos Quaderni del Carcere correspondia a um conceito de jornalismo o qual ele denominou
«integral». O que significava um tal
adjetivo? Tratar-se-ia de um jornalismo que não só intende satisfazer as
necessidades (de certa categoria) de seu público mas criar e desenvolver a
estas necessidades e até suscitar –em um certo sentido– o seu público, e
estender-lhe, progressivamente, à sua área. A atividade intelectual
pressuposta, nesta dada concepção, volta-se à formação integral de um intelectual coletivo, ocupado não só com ainterpretação do mundo mas, também, com sua respectiva transformação. Nesse sentido o apanhado geral realizado acima, sobretudo na
malha publicística de uma série de blogs críticos como Blog CONVERGÊNCIA, Blog
da Boitempo, Capitalismo em Desencanto e muitos outros, a respeito do debate
descortinado por Guilherme Boulos, desde as páginas da Folha de S. Paulo. O
mesmo explica o detalhe, do lançamento editorial –de Dunker–, e a polêmica,
Löwy-Coutinho.
Tupy or not tupy?
“O Brasil não é um país para
principiantes.” De que outra forma tentar
explicar e/ou mesmo compreender por que Katia Abreu, a famigerada
latifundiária, declarou o voto em Dilma já reivindicando-se contra “o fascismo
da revista Veja”? É isso mesmo! Não é à-tôa que Chico de Oliveira lançara mão à figura d’Ornitorrinco para sentirpensar o esterco de contradições do país. No Sindicato
dos Bancários de São Paulo, Antonio Martins, ao dar início ao debate sobre o
livro de Dunker, leu o breve comentário de Alvaro Bianchi, postado nas redes
sociais, a 09 de Março: “Dilma foi à TV e anunciou que adotará medidas do
programa do Aécio, as quais jurou que não aplicaria; ‘nem que a vaca tussa’.
Daí os eleitores de Aécio foram para a varanda bater panela e xingá-la, porque
ela decidiu implementar… a plataforma na qual haviam votado. Ato seguinte,
aqueles que a chamavam de ‘Coração Valente’ ocuparam as redes sociais para
defendê-la e apoiar a sua coragem… de abraçar um programa contra o qual eles
haviam sufragado. Confere?”. Há um tempo-espaço caracterizado por uma extensa e
profunda crise de hegemonia (Gramsci) dos dominantes no país –sob o signo da transição, entre o velho que não morre e o
novo que não nasce–, a qual coincide com uma crise de direção (Trotsky) dos subalternos no mundo. Trata-se de fértil terreno para
fenômenos mórbidos e bizarros –como o avanço conservador no país bem atesta–,
por um lado, mas também é favorável para a superação de todo o ciclo
histórico-político.
O caráter de
repressão sexual –e moralismo burguês– manifestos na expressão ‘Família Tradicional
Brasileira’, o obscurantismo intelectual –tanto filosoficamente irracionalista
quanto idealmente decadente–, a estigmatização de um Outro (comunistas, gays,
mulheres, negros etc.) em base ao preconceito, o fundamentalismo religioso
–sectário e politicamente intolerante–, as formas e relações político-sociais
de violência/segregação são necessária contraparte ideológica de uma moderna
tradição brasileira. O neoconservadorismo à brasileiranão é propriamente algo de uma nouvelle vague ou New Right, à vanguarda do atraso que, na verdade, sempre esteve ali. Há algo dum espanto nada
filosófico com as recentes manifestações da direita no Brasil, como se fossem
algo fora-de-lugar e/ou sem-tempo, resquícios de tempos passados que se queriam ultra-passados. Uma
concepção de história opaca, linear e nada dialética se esconde nesse assombro, já nos dizia Walter Benjamin com as
Teses sobre a Concepção de História. A moderna tradição do
neoconservadorismo que ora se apresenta na
ação coletiva à direita não é algo do passado que se apresenta,
anacronicamente, no cenário duma moderna democracia, nem algo surgido ex-nihilo. O conservadorismo sempre foi coetâneo/coextensivo à nossa hora e
lugar. Nesse sentido, gostaríamos de defender a um só e mesmo tempo a noção operativa
do quê seria omodernismo reacionário, em contraponto tanto a Guilherme Boulos quanto a João P.
Coutinho.
A estratégia
“frentepopulista”, ‘democrático-popular’ e/ou de colaboracionismo de classes
apostou na possibilidade efetiva de mitigação real das lutas de classe por meio
de uma série de reformas sociais –com conflitos de baixa
intensidade– de larga duração. A «revolução passiva à brasileira», com a sua transição pelo alto, redundou, contudo, num cenário de acirramento das contradições
fundamentais entre as classes sociais hierarquicamente postas. Nesse sentido
não há, já dissemos, como compreender a “nova direita” sem explicar o devir da
“velha esquerda”. No sentido de que se trata de um aprofundamento da Ordem, política, e doProgresso, histórico, –tal qual concebidos pela lógica imanente, mesma, do
Estado integral brasileiro– o conceito de modernismo reacionário indica, para começo de conversa, que não há documento de civilização
isento de barbárie no interior do metabolismo social típico da sociabilidade burguesa
e, tanto mais, às margens da história da semiperferia do sistema de controle social-político. Desse modo tratar-se-ia de um
complexo irreformável e, por isso, apostar na administração da política e da
economia em crise só poderá, daí, redundar em recrudescimento de uma crise
civilizacional total. Como já bem lembrava o saudoso Edmundo Fernandes Dias,
toda modernização é uma “modernização conservadora”, isto é, a atualização de
formas sociais e políticas, do que é a dominação/direção capitalista burguesa.
O fim do
ciclo histórico-político com a crise de hegemonia da regulação de tipo lulista
é a antessala para a reapresentação do embate hegemônico de projetos e racionalidades
antagônicas, sob a forma de batalha de ideias. O avanço conservador, e a ofensiva da direita, contra direitos
sociais e trabalhistas –políticos e democráticos– dizem a respeito da
indissociabilidade entre o que é a contrarreforma trabalhista e previdenciária
e as vestes demodernismo reacionário que lhes cabem. Um projeto e uma racionalidade alternativas dignas
desse nome devem se apresentar como verbo e como ação com aspiração de direito à nova cidade futura e
rebelde generalizando um modo de vida do mundo do trabalho (contra o mundo do capital) através das lutas de classes. A chave para compreender a forma e
o sentido da história está nos signos criptografados que se expressam
intercambiados: se o modernismo é reacionário
já, o romantismo, é revolucionário. Não se
trata duma vanguarda artística do Séc.19. Respira e luta na vaga europeia de
1967-1975, na batalha ecossocialista, arte engajada do Brasil anos 60, embate
antiditatorial latinoamericano, em plataformas alterglobalistas na Europa
Ocidental e Norte das Américas. A ênfase está no quê se define como o espírito anticapitalista que “não deseja uma volta ao passado, mas, uma volta pelo passado,
em direção à utopia futura”. Duas perguntas se impõe à crítica Crítica, e
com elas puxamos o freio de emergência que faz descarrilhar a locomotiva de
continuidade e a linearidade de texto e contexto: Para onde vamos? Que horas
são?
Referências bibliográficas:
ARANTES,
Paulo. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira:
dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1992.
COUTINHO,
João P. Os horrores de Michael Löwy. FSP, 10/Jun./2015.
DUNKER,
Christian. Mal-estar, Sofrimento e Sintoma: uma psicopatologia do Brasil
entre muros. São Paulo, Boitempo, 2015
LÖWY,
Michael e SAYRE, Robert. Revolta e Melancolia: romantismo na
contracorrente da modernidade. São Paulo, Boitempo, 2015.
LUCENA,
Eleonora e LÖWY, Michael. País vive onda de ‘modernismo reacionário’, diz
sociólogo. FSP, 09/Jun./2015.
GRAMSCI,
Antonio. Quaderni del Carcere. Torino, Einaudi, 1975.
TROTSKY,
Leon. The Transitional Program: death and agony of capitalism and the
tasks of the Fourth International. Pathfinder, New York, 1938/1973.
segunda-feira, 8 de junho de 2015
Angelus Novus
“Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus.
Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara
fixamente.
Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas.
O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o
passado.
Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que
acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés.
Ele gostaria de deter-se para acordar os
mortos e juntar fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em
suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las.
Essa tempestade o impele
irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o
amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de
progresso.”
Walter Benjamin, “Obras Escolhidas”,
tradução: Sérgio Paulo Rouanet, 1994 – 7.ed. Editora Brasiliense. p.226.
quarta-feira, 13 de maio de 2015
domingo, 10 de maio de 2015
sábado, 25 de abril de 2015
A Verdadeira Liberdade
A liberdade,
sim, a liberdade!
A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!
A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais
A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!
Como o luar quando as nuvens abrem
A grande liberdade cristã da minha infância que rezava
Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim...
A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,
A noção jurídica da alma dos outros como humana,
A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez
Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma
E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!
Passos todos passinhos de criança...
Sorriso da velha bondosa...
Apertar da mão do amigo [sério?]...
Que vida que tem sido a minha!
Quanto tempo de espera no apeadeiro!
Quanto viver pintado em impresso da vida!
Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,
Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote
Da casa do campo da minha velha infância...
Eu bebia e ele chiava,
Eu era fresco e ele era fresco,
E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre.
Que é do púcaro e da inocência?
Que é de quem eu deveria ter sido?
E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?
Álvaro de Campos, in "Poemas (Inéditos)"
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!
A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais
A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!
Como o luar quando as nuvens abrem
A grande liberdade cristã da minha infância que rezava
Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim...
A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,
A noção jurídica da alma dos outros como humana,
A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez
Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma
E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!
Passos todos passinhos de criança...
Sorriso da velha bondosa...
Apertar da mão do amigo [sério?]...
Que vida que tem sido a minha!
Quanto tempo de espera no apeadeiro!
Quanto viver pintado em impresso da vida!
Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,
Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote
Da casa do campo da minha velha infância...
Eu bebia e ele chiava,
Eu era fresco e ele era fresco,
E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre.
Que é do púcaro e da inocência?
Que é de quem eu deveria ter sido?
E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?
Álvaro de Campos, in "Poemas (Inéditos)"
quarta-feira, 1 de abril de 2015
"Longe"- Arnaldo Antunes
“Dizem que a vida é assim
Cinco sentidos em mim
Dentro de um corpo fechado
no vácuo de um quarto no espaço sem fim.”
Dentro de um corpo fechado
no vácuo de um quarto no espaço sem fim.”
domingo, 29 de março de 2015
História do Olho e Minha Mãe - Georges Bataille
“Renuncio a ver-te por muito tempo,
meses, anos talvez. Parece-me que, por esse preço, e separada de ti pela imensa
viagem empreendida, que nesta carta te posso dizer o que, se te falasse de viva
voz, seria intolerável. Sou toda eu aquilo que tu viste. Quando te falei,
preferia morrer do que deixar de ser a teus olhos, perante ti, aquilo que gosto
de ser. Gosto dos prazeres que viste. Amo-os a tal ponto que tu deixarias de
contar para mim se eu não soubesse que tu os amas tão desesperadamente como eu.
Mas é bem pouco dizer como os amo. Sufocaria se me faltasse, mesmo por um
instante, a clareza da verdade que me habita. O prazer é toda a minha vida.
Nunca escolhi, e sei que nada sou sem o prazer em mim, e que tudo aquilo de que
a minha vida é uma espera, não existiria sem o prazer. Seria o universo sem
luz, o caule sem flor, o ser sem vida. O que digo é pretensioso, mas é
sobretudo insignificante ao pé da perturbação que me invade, que me cega, ao
ponto de, perdida nela, já não ver nem saber nada. Ao escrever-te apercebo-me
da impotência das palavras, mas sei que a longo prazo, apesar da sua
impotência, elas te atingirão. Quanto te atingirem, adivinharás aquilo que não
pára de me extasiar, de me extasiar de olhos revirados. O que os insensatos
dizem acerca de Deus não é nada comparado com o grito que uma tão louca verdade
me faz lançar.
Agora, tudo o que no mundo está ligado
nos separa. Não poderíamos doravante encontrar-mos sem desordem e, na desordem,
não devemos encontrar-nos mais. O que te liga a mim, o que me liga a ti, é a
partir de agora intolerável, e encontrarmo-nos separados pela profundidade
daquilo que nos une. Que poderia eu fazer? Chocar-te, destruir-te. Não me
resigno, porém, a calar-me. Destroçar-te-ei, mas vou falar. Porque te arranquei
do meu coração e se a luz algum dia me atingiu, foi por te ter contado o
delírio em que te concebi."
Georges Bataille in: História do Olho
e Minha Mãe.
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