"Todo
documento de civilização é também um documento de barbárie" – WALTER BENJAMIN (Said, 2007, p. 69).
Por Marcos Costa Lima*
A
recepção no Brasil da obra de Edward W. Said (1935-2003), professor de
literatura na Universidade de Columbia, é, salvo melhor aviso, recente. Em
1990, a editora Companhia das Letras publicou Orientalismo1,
seu livro mais polêmico e, em 1995, Cultura e imperialismo. Em seguida
vieram seus ensaios Reflexões sobre o exílio e Paralelos e
paradoxos, em 2003, conversas com o músico Daniel Beremboim, Representações
do intelectual, em 2005, e, em 2007, Humanismo e crítica democrática.
Também
recente é minha aproximação com sua obra. Em 2003, realizando meu pós-doutorado
em Paris, tive contato com um artigo seu publicado na revista Carré Rouge2,
uma homenagem quando de seu falecimento. A curiosidade aumentou após a leitura
deste artigo, que tratava do conflito Israel-Palestina e em particular do
assassinato de Raquel Corrie, jovem norte-americana que prestava serviços
voluntários no International Solidarity Movement, uma ONG que organiza missões
civis nos territórios ocupados e que perdeu a vida ao ajudar seres humanos
sofridos em Gaza. Nesse texto, encontrei a defesa convicta da Palestina, a
denúncia dos terrores praticados contra esse povo, mas, sobretudo, uma busca
pela justiça, o rechaço firme do terrorismo, o repúdio a uma solução militar.
Dizia
ele então que "nenhuma cultura ou civilização existe isolada das outras,
nenhuma entende estes conceitos de individualidade e de iluminismo como sendo
completamente exclusiva. E nenhuma existe sem os atributos humanos fundamentais
que são a comunidade, o amor, a valorização da vida e de todo o resto".
Em
um mundo tão fragmentado como o nosso, tão dilacerado, tão exposto à
intransigência e à violência, as palavras de Said beiravam a ingenuidade. Mas a
força de seu pensamento está justamente numa reflexão que é, a uma só vez,
densa, erudita e analítica, mas também corajosa. Coragem de expor suas idéias,
de optar pelo lado mais frágil e pelos que sofrem privação, de afrontar a
sociedade norte-americana que é também a sua e, mais do que chamar-lhe à razão,
apontar suas iniquidades. A partir daí, passei a ler os seus ensaios sobre
literatura, pois alguns dos seus autores prediletos eram também os meus, a
exemplo de Joseph Conrad, Flaubert, Dickens, Sartre, entre tantos outros, tudo
isso associado a uma larga bagagem analítica de teóricos da filologia, como
Eric Auerbach e Leo Spitzer; mas também de Gramsci, Adorno e Walter Benjamin;
Luckács; Foucault, Raymond Williams e Bourdieu, uma formidável galeria. Para
fechar o repertório, em si muito atrativo, uma prosa agradável, uma erudição
aguçada aliadas a uma capacidade crítica inovadora. À medida que fazia as
leituras, digamos, marginais ou complementares, o interesse aumentou e cheguei,
portanto, ao núcleo do seu pensamento, exposto em Orientalismo e Cultura
e imperialismo.
Esta
breve introdução, portanto, é mais para dizer que este é um trabalho
preliminar, uma primeira aproximação analítica da obra de Edward W. Said. Mais,
ainda, tem a intenção de trazer, para o contexto da política internacional
comparada, a contribuição teórica de uma análise da literatura européia e norte-americana
comparada, eminentemente política e, ao mesmo tempo, fortemente literária.
Said
queria destacar o papel central do pensamento imperialista na cultura ocidental
moderna e se perguntava por que a centralidade dessa visão imperial que foi
registrada e apoiada pela cultura que a produziu, em certa medida, a ocultou.
Ele considerava que, para entender as preocupações imperiais, que foram
constitutivas do Ocidente moderno, deve-se avaliar essa cultura tanto do ponto
de vista da apologia quanto do ponto de vista da resistência antiimperialista,
em geral silenciada na obra dos grandes autores ocidentais. A este instrumento
analítico Said (1995) denomina de "leitura em contraponto". E, como
ele mesmo afirmou, "no encerramento do século XIX, com a disputa pela
África, a consolidação da união imperial francesa, a anexação americana das
Filipinas e o domínio inglês no subcontinente indiano, em seu auge, o império
era uma preocupação universal". Ao mesmo tempo asseverava: "Os
grandes praticantes da crítica [literária] simplesmente ignoram o
imperialismo" (Said, 1995, p. 102).
Autores,
como Jane Austen, Camus, Kipling, escreveram para um público ocidental, mesmo
quando tratavam e narravam personagens, lugares, situações que se referiam ou
utilizavam territórios ultramarinos dominados por europeus. Mas, ao mesmo
tempo, Said nos dizia que esses povos colonizados não-europeus "não
aceitavam indiferentes a autoridade projetada sobre eles, nem o silêncio geral
que cercava sua presença, sob formas mais ou menos atenuadas". Said (1995)
conclui afirmativamente como se definisse seu método e suas intenções:
"Devemos,
pois, ler os grandes textos canônicos, e talvez também todo arquivo da cultura
européia e americana pré-moderna, esforçando-nos por extrair, entender, enfatizar
e dar voz ao que está calado, ou marginalmente presente ou ideologicamente
representado em tais obras" (Said, 1995, p. 104).
Said
tem muito de Bourdieu (1989) na forma de pensar, na forma de estruturar a
análise, sobretudo na compreensão de que há uma economia do simbólico que é
irredutível à economia (em sentido restrito) e que as lutas simbólicas têm
fundamentos e efeitos econômicos.
Para
além de uma reatualização do conceito de imperialismo, central na obra de Said,
cinco outros temas tratados ao longo da sua obra interessam diretamente ao campo da
Política Internacional Comparada, alguns dos quais serão desenvolvidos no
desenrolar deste trabalho: o primeiro é o presente poder hegemônico exercido
pelo governo dos Estados Unidos3 ao
longo do século XX e início do XXI, que nos interpela para além da pretensão
imperial exercida por aquele país, sobre as possibilidades de uma multipolaridade
entre nações, dos desafios de uma interdependência transnacional, enfim, da
construção de uma ordem mundial efetivamente democrática. A questão central
aqui é, portanto, a democracia. O segundo tema é a questão nacional que, embora
entendida como momento nativista e necessário em resposta ao processo colonial,
passa pelo crivo da crítica, em que autores como C. L. R. James, Frantz Fanon,
Noam Chomsky, entre outros, são invocados no sentido de apontar os riscos de
uma consciência nacional despreparada ou ainda desvirtuada após as lutas de
independência e libertação. Mas também as relações Norte-Sul, reapresentações
das velhas desigualdades imperiais e persistência do "antigo regime".
Neste contexto, Said introduz um argumento de Noam Chomsky, de 1982, que ainda
hoje traduz uma inquietante realidade mundial:
"[O
conflito] Norte-Sul não se aplacará, e novas formas de dominação terão de ser
triadas para assegurar aos segmentos privilegiados da sociedade industrial a
preservação de um controle substancial dos recursos mundiais humanos e
materiais, e dos lucros desproporcionais derivados desse controle. Assim, não
surpreende que a reconstituição da ideologia nos Estados Unidos encontre eco em
todo mundo industrial. [...] Mas é absolutamente indispensável para o sistema
ideológico ocidental que se estabeleça um enorme fosso entre o Ocidente
civilizado, com seu tradicional compromisso com a dignidade humana, a liberdade
e a autodeterminação, e a brutalidade bárbara daqueles que, por alguma razão -
talvez genes defeituosos -, não conseguem apreciar a profundidade desse
compromisso histórico, tão bem revelado pelas guerras americanas na Ásia, por
exemplo" (apud Said, 1995, p. 351).
O
terceiro tema, mas não menos importante, diz respeito a toda a sua luta pela
causa palestina, tensionada pelo fato de ser um americano-árabe, vivendo nos
dois mundos, revoltado contra os estereótipos à cultura árabe nos Estados
Unidos, durante e após a Guerra do Golfo; de que os árabes só entendem a força;
de que a brutalidade e a violência lhes são inerentes e fazem parte da cultura
árabe; de que o islamismo é uma religião intolerante, segregacionista e
medieval, fanática, cruel, contra as mulheres. A força da análise de Said está
justamente na busca de um paradigma outro, inovador para a pesquisa humanista,
capaz de desmistificar as construções culturais. Ao entender e criticar o hegemon,
não poupa os descaminhos políticos no mundo árabe, sobretudo de suas elites:
"a
atmosfera generalizada de mediocridade e corrupção que paira sobre essa região
desmedidamente rica, magnificamente dotada em termos históricos e culturais, e
amplamente abençoada com talentos individuais, constitui um enorme enigma, uma
imensa decepção" (Said, 1995, p. 370).
E
conclui:
"A
democracia em qualquer sentido real do termo não se encontra em parte alguma do
Oriente Médio ainda 'nacionalista': que são as oligarquias privilegiadas ou
grupos étnicos privilegiados. A grande massa do povo permanece esmagada sob
ditaduras ou governos inflexíveis, impopulares. Mas, a ideia de que os Estados
Unidos sejam um virtuoso inocente nesse terrível estado de coisas é inaceitável
[...]" (Said, 1995, p. 370).
O
repertório de incongruências e preconceitos a respeito da civilização
árabe-muçulmana está também vinculado à ignorância ocidental sobre esta
cultura, sobre suas contribuições, bem como por um trabalho de negação feito,
sistematicamente, no século XIX por pensadores europeus, a exemplo de Ernest
Renan, que faziam com que a contribuição destes povos só aparecesse furtivamente
nas histórias gerais das civilizações e, no melhor dos casos, como uma simples
transmissão entre a Grécia e a Europa do Renascimento (Djebar, 2001).
Em
quarto lugar, a importância de Said em trazer e dar visibilidade à inestimável
contribuição intelectual periférica de autores como Eqbal Ahmad (paquistanês),
Ngugi Wa Thongo (queniano), Ali Shariat (iraniano), Wole Soyinka (nigeriano),
Tayeb Salih (sudanês), C. L. R. James (de Trinidad-Tobago), George Antonius
(libanês), Faiz Ahmada Faiz (paquistanês), José Martí (cubano), Partha
Chatterjee (indiano), Ranajit Guha (indiano), Aimé Césaire (martiniquenho),
Dereck Walcott (caribenho), muito embora a literatura sul-americana e a
brasileira, em particular, estejam ausentes deste universo do qual, sem dúvida,
poderiam fazer parte Machado de Assis, Lima Barreto, Joaquim Nabuco, Antonio
Candido, entre tantos outros.
Finalmente,
a figura do exílio, tanto intelectual quanto aquela que tem sua encarnação
atual no migrante, nas migrações internacionais que têm sido um tema que cresce
em importância, em razão de tantas diásporas produzidas na contemporaneidade,
frutos da violência, das guerras, da incompetência e intransigência de elites
nacionais.
Imperialismo
e cultura
Este
livro é uma ampliação da argumentação desenvolvida em Orientalismo, tentando
aprofundar o modelo mais geral de relações entre o Ocidente metropolitano
moderno e seus territórios de ultramar, pela via dos estudos e discursos
europeus sobre a Índia, a África, Extremo Oriente e Caribe, "[...] na tentativa
geral de dominar povos e terras distantes, e portanto relacionados com as
descrições orientalistas do mundo islâmico [...]" (Said, 2005, p. 11).
Said quer aprofundar a relação geral entre cultura e império. As figuras
retóricas que desvela são muitas, os estereótipos construídos do
"espírito" do colonizado, transformando-os em bárbaros, primitivos,
irresponsáveis, selvagens, necessitando, portanto, de disciplina, quando não de
açoite, justificam assim a "tarefa" européia de "levar a
civilização até lá", pois do contrário só a entenderiam através da força
ou da violência (Lévi-Strauss, 1951).
Said
parte de um conceito de cultura abrangente, aquele que designa as artes da
descrição, comunicação e representação, com relativa autonomia dos campos
econômico, político e social e que, não raro, existe sob a forma estética. Isto
inclui tanto o saber popular quanto o conhecimento especializado de disciplinas
como Etnografia, Historiografia, Filologia, Sociologia e História Literária.
Para ele, a narrativa é crucial, tendo como tese básica a ideia de que as
histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas
acerca de regiões estranhas do mundo, mas que, ao mesmo tempo, elas se tornam
um método utilizado pelos povos colonizados para afirmar sua identidade e a
existência de uma história própria (Said, 2005, p. 13).
Assim,
tanto o poder de narrar quanto o de bloquear ou de impedir a formação de novas
narrativas é relevante para o estudo da cultura e do imperialismo. Por outro
lado, Said afirma, a partir de Matthew Arnold, que a cultura é um conceito que
inclui um elemento de elevação e refinamento, o que de melhor produz uma
sociedade no saber e no pensamento e, de forma derivada, entendida como um
elemento mitigador, excluindo os efeitos danosos ou perversos da vida moderna e
agressiva. A cultura acaba associada à nação ou ao Estado, a um nós,
gerando identidade, via os clássicos nacionais:
"O
problema com essa ideia de cultura é que ela faz com que a pessoa não só venere
sua cultura, mas também a veja como divorciada, pois transcendente, do mundo
cotidiano. [...] Uma das difíceis verdades que descobri trabalhando neste livro
é que pouquíssimos, dentre os artistas ingleses ou franceses que admiro,
questionaram a noção de 'raça submissa' ou 'inferior', tão evidente entre
funcionários que colocavam essas idéias em prática, ao governarem a Índia ou a
Argélia" (Said, 2005, p. 14).
Ao
analisar Nostromo, de Joseph Conrad (um dos autores mais admirados por
Said), que se passa numa república da América Central dominada por interesses
externos, mas ao mesmo tempo diferente de suas usuais obras na Índia e na
África coloniais, Said mostra como o autor antevê a incontrolável insatisfação
e os "desmandos" das repúblicas latino-americanas. Conrad cita
Bolívar, que entendia que governá-las era igual a arar no oceano, e ao mesmo
tempo desvela, na conversa entre dois personagens - o financista de São
Francisco e o proprietário inglês da mina de São Tomé - o sentido da empreitada
"imperial":
"Podemos
sentar e olhar. Claro, algum dia interviremos. Estamos fadados a isso. Mas não
há pressa. [...] estaremos ditando as regras para tudo - indústria, comércio,
leis, jornalismo, arte, política e religião, do Cabo Horn até Surith's Sound, e
também mais adiante, se algo que valer a pena surgir no pólo Norte [...]
Conduziremos os negócios do mundo, quer ele goste ou não. O mundo não pode
evitá-lo - e nem nós, imagino eu".
Seja
em Nostromo ou em Heart of darkness, para Conrad a própria
imagem das trevas está associada à imagem revertida do eurocentrismo como luz,
a um projeto civilizador. Ele não podia admitir que os nativos pudessem ser
livres da dominação européia e esta compreensão está associada ao personagem
Kurtz quando, em momento de fúria e loucura, ordena: "exterminem todos os
bárbaros!". É o próprio Said quem conclui:
"Portanto,
não é paradoxal que Conrad fosse imperialista e antiimperialista: progressista
quando se tratava de apresentar com destemor e pessimismo a corrupção
autoconfirmadora e autoenganosa do domínio ultramarino; profundamente
reacionário quando se tratava de conceder que a África ou a América do Sul
pudessem algum dia ter uma história ou uma cultura independentes, que os
imperialistas abalaram violentamente, mas pela qual foram, afinal,
derrotados" (Said, 2005, p. 19).
A
atualização desta interpretação com o modus operandi dos Estados
Unidos é imediata, sobretudo ao manter o refrão de reivindicar e tornar-se o
guardião da democracia no mundo, e a todo custo. A destruição que se perpetuou
no Vietnã, no passado, e hoje, no Iraque, é exemplar.
A
densa reflexão de Said sobre o imperialismo atualiza o termo. Para ele, o
século XIX foi o apogeu da ascensão do Ocidente, estabelecendo esta geografia:
em 1800, as potências ocidentais detinham 35% da superfície do globo e, em
1878, essa proporção chegou a 67%. Em 1914, a Europa detinha 85% do mundo sob a
forma de colônias, protetorados etc. Depois de 1945, com o desmantelamento das
estruturas coloniais, essa "Era do Império" chega ao fim, mas, ao
mesmo tempo, como Said afirma, a luta pela geografia não se "restringe a
soldados e canhões" (Said, 2005, p. 38). Ela abrange também idéias,
formas, imagens e representações, e continua a exercer uma influência
considerável no presente.
A
definição de Imperialismo dada por Said é aquela que designa
"a
prática, a teoria e as atitudes de um centro metropolitano dominante governando
um território distante; o 'colonialismo', quase sempre uma conseqüência do
imperialismo, é a implantação de colônias em territórios distantes" (Said,
2005, p. 40).
Nenhum
deles é simples ato de acumulação e aquisição:
"ambos
são sustentados e talvez impelidos por potentes formações ideológicas que
incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela
dominação [...]" (Said, 2005, p. 40).
Esta
presença visceral do Imperialismo se faz manifesta em Said quando está a
comentar a obra de seu colega indiano, Salman Rushdie:
"Posso
entender muito bem a raiva que alimentou o raciocínio de Rushdie, pois, como
ele, sinto-me excluído por um consenso ocidental predominante, que veio a
encarar o Terceiro Mundo como um território estorvo, um lugar inferior em
termos políticos e culturais" (Said, 2005, p. 61).
Ao
tratar especificamente do seu campo de estudo, a literatura comparada, Said
admite que ela surgiu no auge do Imperialismo europeu e, portanto, estaria
inegavelmente ligada a ele.
O
principal traço desse estilo literário é a própria erudição, a começar por
Erich Auerbach e Leo Spitzer, grandes comparatistas alemães que fugiram para os
Estados Unidos por conta do nazismo. Said partia da tradição européia e da
norte-americana nesse campo, que carregava consigo a crença de que a humanidade
se constituía em uma totalidade maravilhosa, cujo progresso podia ser estudado
como um todo, mas também como uma experiência secular e não como algo
transcendente. O homem fazia a história e o iluminismo era a manifestação dessa
história.
Por
maior que tenha sido a admiração que Said cultivou, sobretudo por Auerbach, o
fato não o impediu de entender que essa concepção da cultura humana se tornou
corrente na Europa e nos Estados Unidos de 1745 e 1945 e esteve relacionada à
ascensão do nacionalismo no mesmo período. Ao mesmo tempo, entendeu que, ao
celebrarem a humanidade e a cultura, estavam celebrando idéias e valores de
suas próprias culturas, distintas, portanto, daquelas do Oriente, da África ou
da América Latina (Said, 2005, p. 79). Portanto, um universalismo muito
restrito e particular.
Tratando
da criação do primeiro departamento americano de literatura comparada, que data
de 1891, na Universidade de Columbia, Said nos diz que o trabalho oriundo deste
centro acadêmico
"trazia
consigo a ideia de que a Europa e os Estados Unidos, juntos, constituíam o
centro do mundo, não meramente devido às suas posições políticas, mas também
porque suas literaturas eram as mais dignas de estudo" (Said, 2005, p.
82).
Em
1950, com os progressos realizados pela Revolução Russa na disputa espacial,
nos fala Said sobre a criação do National Defense Educational Act, que
transformou o estudo das línguas estrangeiras e da literatura comparada em
campos diretamente relacionados à Segurança Nacional.
Em
plena Guerra Fria, o etnocentrismo ganha terreno. Said estabelece inclusive uma
interessante ilação entre a relação geografia-literatura, cuja visão de uma
"literatura mundial" passa a coincidir com o que tinha sido enunciado
pelos teóricos da geografia colonial, a exemplo de Mackinder, Lucien Fevre,
entre outros. Aparece entre aqueles teóricos uma avaliação do sistema mundial
metropolicêntrico e imperial em que, para além da história, o espaço geográfico
colabora para produzir um "império mundial" comandado pela Europa. O
mapa imperial autorizava de fato a visão cultural. Por isso Said sintetizava
que
"os
discursos universalizantes da Europa e Estados Unidos modernos, sem nenhuma
exceção significativa, pressupõem o silêncio, voluntário ou não, do mundo não-europeu.
Há incorporação; há inclusão; há domínio direto; há coerção. Mas muito
raramente admite-se que o povo colonizado deve ser ouvido e suas idéias
conhecidas" (Said, 2005, p. 86).
Said
chama a atenção para o fato de que os Estados Unidos substituíram os grandes
impérios anteriores, sendo a força econômica e militar no mundo contemporâneo,
e dominam a América Latina, boa parte do Oriente Médio, África e Ásia; mas
também assinala o fato de que se vivemos em um mundo para além do mercado, mas
de representações, a cultura não pode estar dissociada desta realidade.
Desvincular a esfera cultural do contexto político é um falseamento, é querer
entender a cultura como impermeável ao poder, como se as representações
pudessem ser tratadas como imagens apolíticas.
Finalmente,
no último capítulo de Cultura e imperialismo, ele trata da ascendência
americana após a Segunda Guerra Mundial.
Humanismo
e crítica democrática
Este
livro, que se compõe de cinco capítulos, foi apresentado, a princípio, como um
conjunto de conferências na Universidade de Columbia, em janeiro de 2000, e
ampliado em 2002. A data é significativa, pois no intervalo aconteceu a
tragédia do 11 de setembro de 2001, que alterou substantivamente a esfera
política nos EUA e no restante do globo.
Seu
ponto de partida é o Curso de Humanidades em sua universidade, que se inicia em
1937, um programa de quatro horas semanais e duração de um ano, que introduz e
familiariza os estudantes em Homero, Heródoto, Ésquilo, Eurípides, Platão e
Aristóteles, a Bíblia, Virgílio, Dante, Santo Agostinho, Shakespeare, Cervantes
e Dostoievski. O objetivo central de Said era reexaminar a relevância do
Humanismo ao se entrar em um novo milênio. Era buscar compreender o alcance
viável do Humanismo como prática persistente e não como patrimônio, mais sobre
o que tem sido e é, do que uma mera lista de atributos desejáveis que
definissem um humanista.
Essa
necessidade de discutir o significado atual do Humanismo interessa, quando
sabemos que o termo perdeu substantividade, ganhou foros de tradição e de
conservadorismo, de elitismo; quando tantas palavras no discurso corrente têm o
termo humano (sugerindo humanista ou humanitário) em seu núcleo;
quando ao mesmo tempo o bombardeio da Iugoslávia pela OTAN em 1999 foi descrito
como uma "intervenção humanitária" (Said, 2007a, p. 25).
Como
diz Said, desde o dia "11 de setembro" o terror e o terrorista têm
sido introduzidos na consciência pública norte-americana com uma insistência
espantosa. A ênfase tem sido reforçar a distinção entre o "nosso bem"
e o "deles", na qual os cidadãos estadunidenses representariam a
cultura humanitária e "eles", a violência e o ódio. Uns, civilizados;
"eles", a barbárie. Aí também está presente a crítica a Samuel
Huntington (como também em outras obras suas - Said, 2003), sobretudo pela
abordagem redutora, vaga e reducionista presente em Choque de civilizações
e a reconstrução da ordem mundial (Huntington, 1997).
Said
não ignora o advento e a influência, nos anos 1960 e 1970, da teoria francesa
sobre os departamentos de humanidades das universidades norte-americanas que,
sobretudo após a Guerra do Vietnã e o Maio de 1968, praticamente destrói
criticamente o humanismo tradicional, através dos pensamentos estruturalista e
pós-estruturalista, que professavam a morte do homem e a preeminência dos
sistemas anti-humanistas, presentes nas obras de Lévi-Strauss (Pensamento
selvagem) e de Michel Foucault (Arqueologia das ciências humanas4),
e onde as vozes de Rousseau e de Nietzsche ecoam forte, onde o bom
selvagem e o louco são as figuras que refratam as fragilidades da razão.
Foucault,
em entrevista que deu em 1966, falava da ruptura com Sartre e sua escola, que
se situa no momento em que Lévi-Strauss e Lacan mostraram que o
"sentido" não era mais que um efeito de superfície, uma reverberação,
"e
aquilo que nos atravessava profundamente, o que estava antes de nós, o que nos
sustentava no tempo e no espaço era o sistema". [...] "Antes de toda
a existência humana, antes de todo o pensamento humano, haveria já um saber, um
sistema, que nós redescobrimos [...]" (Foucault, 1974, pp. 29-36).
Para
Foucault, a herança mais pesada que tínhamos recebido do século XIX fora o
Humanismo e, para ele, era tempo de nos desembaraçarmos:
"O
humanismo foi uma maneira de resolvermos em termos de moral, de valores, de
reconciliação, problemas que não se podiam resolver de modo algum. Conhece a
frase de Marx? A humanidade só formula problemas que pode resolver. Eu creio
que se pode dizer: o humanismo finge resolver problemas que não pode
formular" (Foucault, 1974, pp. 29-36).
A
posição adotada por Edward Said não é, portanto, ingênua, ainda mais quando
utiliza o trabalho de Foucault para reforçar a sua elaboração teórica:
"Michel
Foucault e Thomas Kuhn prestaram um serviço considerável lembrando-nos nas suas
obras que, de forma consciente ou não, os paradigmas e epistemes têm um domínio
perfeito sobre as áreas do pensamento e expressão, um domínio que inflecte, se
não modela, a natureza do pronunciamento individual. Os mecanismos implicados
na preservação do conhecimento em arquivos, as regras que regem a formação dos
conceitos, o vocabulário das linguagens expressivas, os vários sistemas de
disseminação, tudo isso entra em alguma medida na mente humana e a infliuencia,
de modo que já não podemos dizer com absoluta confiança onde termina a
individualidade e onde começa o domínio público" (Said, 2007a, pp. 64-65).
Ao
aceitar a contribuição de Foucault, não deixa de acreditar que seja possível
ser crítico ao Humanismo em nome do Humanismo e que, por exemplo, escolado nos
seus abusos pela experiência do eurocentrismo e do império, se poderia dar
forma a um tipo diferente de Humanismo que fosse cosmopolita, capaz de
apreender as grandes lições do passado. Isso, na medida em que esse Humanismo
seja uma prática contra as idéias prontas e os clichês, que seja um meio de
resistência à linguagem sem reflexão. Tomando o exemplo recente da luta
sul-africana contra o apartheid, nos diz que "as pessoas em todo o
mundo podem ser, e o são, movidas por ideais de justiça e igualdade"
(Said, 2007a, p. 29).
Said
quer garantir o sentido, a afirmação do sujeito, a sua opção e
possibilidade de compreensão, quando entende Humanismo como noção secular de
que o mundo histórico é feito por homens e mulheres e não por Deus, e que pode
ser compreendido racionalmente segundo o princípio estabelecido pelo filósofo
Vico que, em sua Ciência Nova, dizia podermos conhecer as coisas segundo o modo
como foram feitas.
Nos
Estados Unidos, sobretudo após a Guerra do Vietnã, as humanidades caíram em
descrédito, mas o Humanismo tornara-se conservador e elitista e abandonara o
processo de criação da história, de mudá-la. A expressão literária e acadêmica
desse conservantismo e arrogância foi Allan Bloom, que ganhou projeção ao se
tornar um best-seller com O declínio da cultura ocidental.
Justamente na contracorrente de Said, que compreendia o Humanismo como
democrático, como aberto a todas as classes e formações, e como um processo de
incessante descoberta, autocrítica e liberação.
Um
tema que esteve sempre presente nas reflexões de Said foi o nacionalismo5.
Para o autor de Beginnings(Said, 1975), a história de todas as culturas é
a história dos empréstimos culturais. As culturas são, portanto, permeáveis. O
assunto é tratado de forma contundente em "Resistência e oposição" e
de forma dialética em Cultura e imperialismo. Mas também em Humanismo e
crítica democrática (Said, 2007a, p. 73) o intelectual palestino aponta
para os danos e exemplos históricos negativos, devastação e sofrimento humano
provocados pelo nacionalismo, pelo entusiasmo religioso e pelo pensamento
identitário, este último trabalhado, sobretudo na obra de Adorno.
Os
três elementos se opõem ao pluralismo cultural. Em relação exclusiva aos
Estados Unidos, o nacionalismo dá origem ao excepcionalismo e à paranóia do
antiamericanismo presentes na cultura desse país que, segundo ele, desfigura a
sua história, reforçando narrativas belicosas e criando constantemente inimigos
poderosos e ameaçadores, ao mesmo tempo em que cristaliza uma concepção de
superioridade natural, estimulando políticas de intervencionismo arrogante em
todo o mundo. Essa expressão do nacional leva a uma compreensão mais abrangente
do que talvez Bourdieu intitulasse de economia simbólica nacional ou de
representação coletiva do nacional: "Somos ainda herdeiros desse estilo
segundo o qual o indivíduo é definido pela nação, a qual, por sua vez, extrai
sua autoridade de uma tradição supostamente contínua" (Said, 2005, p. 27).
Said
é de fato um internacionalista. Esse imprint é herança forte de Eric
Auerbach, a quem atribui ter produzido em Mimesis "a maior e
mais infliuente obra humanista-literária do último meio-século6"
(Said, 2007a, p. 111). E o nosso autor aprecia citar reiterada vezes a frase do
filólogo alemão na qual este afirma que "o nosso lar filológico é o mundo,
não a nação ou mesmo o escritor individualmente" (Ahmad, 2002, p. 162).
Ao
mesmo tempo, o professor de Columbia não quer ser identificado, ou mal
interpretado, como defensor de uma posição antinacionalista. Para ele, é fato
histórico que a restauração da comunidade, a afirmação da identidade, o
surgimento de novas práticas culturais tenham consolidado, nas regiões
oprimidas, movimentos de superação da alienação e assim pudesse avançar a luta
contra a dominação e a exploração ocidental em todos os quadrantes do planeta:
"opor-se a isto tem tanto resultado quanto se opor à descoberta da
gravidade por Newton" (Said, 2005, p. 276). Mas, ao mesmo tempo, esse
nacionalismo não pode ser acrítico, não pode ser ufanista, não pode ser
caracterizado como uma etapa final que substitui um déspota ocidental por um
local: "Não se deve esquecer a crítica firme do nacionalismo, derivada dos
vários teóricos da libertação que abordei, pois não podemos nos condenar a
repetir a experiência imperial" (Said, 2005, p. 405). Essa interpretação o
conduz a estabelecer uma grande pergunta, qual seja: como manter vivas as
energias libertárias desencadeadas pelos grandes movimentos de resistência e
colonização e pelas revoltas populares desde 1980. Será que estas energias
conseguirão escapar aos processos homogeneizadores da vida moderna, conseguirão
suspender as intervenções da nova centralidade imperial?
São
necessárias cautela e prudência para tratar da difícil relação entre
nacionalismo e processos de libertação, que, segundo ele, são dois ideais ou
objetivos de pessoas empenhadas contra o imperialismo. Mas, se é verdade que a
criação de inúmeras nações-Estado independentes recentes no mundo pós-colonial
restaurou o primado das ditas comunidades imaginadas, ao mesmo tempo muitas
delas foram destruídas e saqueadas por ditadores e tiranetes, que acabaram por
desvirtuar todo processo de libertação e de liberdades civis.
"E
então, surpreendentemente, o mundo inteiro se descolonizou depois da Segunda
Guerra Mundial" (Said, 2005, p. 253). A Inglaterra detinha poder imperial
sobre Austrália, Nova Zelândia, Hong Kong, Nova Guiné, Ceilão, Malaia, todo o
subcontinente asiático, a maior parte do Oriente Médio, toda a África Oriental,
do Egito à África do Sul, parte da África Centro-Oriental, a Guiana, certas
ilhas do Caribe, a Irlanda e o Canadá. O império francês era menor, mas ainda
assim detinha o poder de parte das ilhas do Caribe, no Pacífico e no Índico
(Madagascar, Nova Caledônia, Taiti), da Guiana e toda a Indochina; boa parte da
África, do Mediterrâneo, a Síria e o Líbano. A luta antiimperialista tomou
conta do mundo nos anos 1950 e 1960, com os Estados Unidos já surgindo como
substituto em muitas dessas regiões, como aconteceu na Coréia e depois na
Indochina. Essas mudanças só ocorreram pela vontade de pessoas de resistirem às
pressões do domínio colonial, de tomarem armas, conceber idéias de libertação e
imaginar (como diria Benedict Anderson) uma nova comunidade nacional. "E
também não podem ocorrer, a menos que se instale internamente uma exaustão
política ou econômica que se questione, em público, o custo do domínio
colonial" (Said, 2005, p. 255).
Muito
dessa reflexão sobre a complexidade inerente ao projeto nacionalista Edward
Said toma de empréstimo da obra de Frantz Fanon. O psiquiatra e ensaísta
martiniquenho que escreveu obras7 de
grande repercussão mundial sobre colonialismo, racismo, nacionalismo, chama a
atenção para o fato de que a consciência nacionalista pode, com facilidade,
levar a uma rigidez estática e apenas substituir as autoridades e os burocratas
brancos por equivalentes de cor, não sendo, portanto, nenhuma garantia de que
os funcionários nacionalistas não reproduzirão os velhos padrões e arranjos.
É
densa a refliexão nas Ciências Humanas sobre o nacionalismo8 e
não há aqui a intenção nem tampouco possibilidade de esgotá-la. O que
interessa, particularmente, é apresentar a compreensão de Edward Said sobre a
questão. Neste sentido, ele introduz dois importantes autores ocidentais que
trataram do assunto por pontos de vista bastante diferenciados: Hobsbawm e
Ernst Gellner. Ambos entenderam o nacionalismo como uma forma de comportamento
político que foi sendo gradualmente superado pelas novas realidades
transnacionais das economias modernas9,
das comunicações eletrônicas e da projeção militar das superpotências, e são
criticados por Said, que descobre em suas opiniões um acentuado desconforto (e,
segundo Said, uma compreensão a-histórica) em relação às sociedades
não-ocidentais que adquirem independência nacional e, portanto, insistem na
proveniência ocidental das filosofias nacionalistas, que assim seriam
mal-adaptadas aos árabes, zulus, indochineses, latino-americanos, que,
provavelmente, fariam mau uso delas (Said, 2005, p. 274).
Em
contraponto aos dois autores ocidentais, Said introduz a contribuição
contemporânea de Partha Chatterjee, sociólogo indiano e um dos fundadores do
Subaltern Studies. Chatterjee entende que parte do nacionalismo indiano
respondeu ao domínio colonial para afirmar uma consciência patriótica. A figura
de Gandhi se inspira em pensadores ocidentais não modernos, como Ruskin e
Tolstoi, e tenta uma regeneração radical da cultura nacional e de seus padrões
de costume, no uso do algodão e da roupa produzida no território nacional, numa
alimentação parca e não processada, natural, enfim em padrões de diferenciação.
O ideal romântico é o de restauração da nação. Para Chatterjee, a figura de
Nehru, ao contrário de Gandhi (e mesmo o respeitando), é pela modernidade, pela
criação do estado nacional. O autor de The nation and its fragments (Chatterjee,
1997), à maneira de Said, se acautela do nacionalismo, que, embora bem-sucedido
no país, pode tornar-se uma panacéia e não enfrentar os problemas das
desigualdades, disparidades de renda e região, as injustiças sociais. Pode ser
capturado por uma elite nacionalista antipopular.
Esta
não é uma questão de fácil solução, sobretudo em um mundo onde as estruturas
militares de poder de algumas potências estão diretamente articuladas com o
novo paradigma tecnológico, com uma imensa estrutura de corporações atuando em
escala global e apoiadas a partir de um sistema financeiro que tem suas raízes
emWall Street, na City londrina, em Paris ou Frankfurt. Tudo isso
"envolucrado" numa convergência de idéias e de visões de mundo
pró-mainstream, que infantilizam o público com alternativas simplórias do
"bom" e do "ruim", do "bem" e do "mal",
como se a complexidade da história das sociedades humanas estivesse determinada
por tamanho primarismo. E aqui a compreensão de Noam Chomsky nos alerta para o
fenômeno do controle midiático, quando informa que, em 1983, cinqüenta
megacompanhias dominavam a paisagem; sete anos mais tarde, restavam vinte e
três, terminando pelo controle da indústria midiática centralizadas em nove
companhias10.
Para
concluir, esta recepção à obra de Edward W. Said quis revelar a riqueza e
densidade deste autor, mas também a complexidade crítica de sua abordagem, que
não conduz a respostas simples - muito ao contrário, a um quase estado de
crítica permanente, muito à maneira de Adorno, um autor reverenciado pelo
palestino.
"Não
vamos fingir que existam modelos prontos para uma ordem mundial
harmoniosa", diz Said, e seria igualmente tolo supor que as idéias de paz
e de comunidade têm grande chance quando o poder é levado a agir movido pelos
conceitos agressivos dos "interesses nacionais vitais" ou da
"soberania irrestrita" (Said, 2005, p. 52).
Esta
chave aparentemente pessimista, ou realista, não impele o teórico da literatura
à resignação. Para ele, o intelectual tem um papel, que é aquele de elucidar e
revelar, de desafiar e derrotar tanto os silêncios impostos quanto as quietudes
que se transformam em normas. Carrega consigo a premissa da desmistificação,
capaz de gerar instrumentos analíticos de defesa contra a dominação simbólica que
se baseia, muitas vezes, na autoridade da ciência. Aqui, ele se aproxima de
Gramsci, outro autor que faz parte de seu universo filosófico e, como em
Gramsci, é absurdo pensar apenas em previsões puramente objetivas. Quem faz
previsões carrega consigo um programa, o que reduz a compreensão de que a
previsão é sempre arbitrária ou tendenciosa. Às vezes, esta adquire
objetividade e, como diz Gramsci, "somente a paixão aguça o intelecto e
ajuda a tornar mais clara a intenção [...]. Somente quem deseja fortemente
identifica os elementos necessários para a realização de sua vontade"
(2005, p. 35). Mas Gramsci diz também que a crença de que uma determinada
concepção de mundo e da vida tem, em si própria, uma capacidade de previsão
superior é um erro grosseiro, exercício de fatuidade. Trata-se de ver se
"o 'dever ser' é um ato arbitrário ou necessário, é vontade ou veleidade,
desejo ou sonho com a cabeça nas nuvens" (Gramsci, 2005, p. 37), passa,
portanto, por todo um exercício e mediação da crítica e da história.
Em Humanismo
e crítica democrática (Said, 2007a, p. 173), tratando do papel público de
intelectuais e escritores na sociedade contemporânea, Said apresenta dois de
seus maiores embates, que, segundo ele, estão diretamente vinculados à
intervenção e elaboração do intelectual: o primeiro diz respeito a impedir o
desaparecimento do passado, muito ao gosto de certas escolas pós-modernas e a
certos estruturalismos sincrônicos; o segundo trata da construção de campos de
coexistência, em lugar de campos de batalha, como resultado do trabalho intelectual
e onde ganha magnitude a sua luta pela libertação da Palestina, sua posição
antibeligerante e pacifista.
Finalmente,
espero ter evidenciado não apenas as diversas interfaces da obra de Edward W.
Said com o campo da política internacional comparada, suas aproximações
temáticas, mas também as possibilidades que suas refluexões podem aportar à
teoria da globalização desigual, numa epistemologia e metodologia que se querem
abertas, dinâmicas, capazes de incorporar, aproximar e frutificar a produção
científica e a teoria da literatura.
Tratando
de suas várias disputas a respeito da justiça e dos direitos humanos, Said
enfatizou a necessidade "da redistribuição dos recursos", capaz de
defender "o imperativo teórico contra as imensas acumulações de poder e capital
que tanto desfiguram a vida humana" (Said, 2007a, p. 171).
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1 O
livro publicado em 1978 tornou-se um clássico dos estudos culturais pela
arrojada tese que defende, ou seja, a de que o Oriente é uma invenção
ocidental, que inferioriza as civilizações a leste da Europa, atribuindo-lhe
características exóticas, estranhas, mitológicas.
2 Carré
Rouge, nº 26, outubro de 2003. Disponível em: http://carre-rouge.org. O texto,
intitulado "Dignidade e solidariedade", foi um dos últimos artigos
publicados em língua inglesa no Al-Ahram Weekly, tendo sido traduzido para o
português por Maria de Jesus de Britto Leite, arquiteta e professora da UFPE.
3 Em
particular, tratar da força das idéias emitidas a partir dos Estados Unidos, do
culto da especialidade e do profissionalismo, hegemônico no discurso cultural
desse país e que termina por contaminar a produção das ciências humanas na vida
americana, estabelecendo cânones de validade universal ou paradigmas
impositivos.
4 Arqueologia
que Sartre, generalizando a crítica ao estruturalismo, afirmou ser irracional,
por propor a eliminação da História e optar pela pura descontinuidade. Nessa
disputa, Foucault argumentava, contra o existencialismo sartriano, que não é o
sujeito que pensa, mas sim o Sistema, por ele.
5 Aijaz
Ahmad, numa chave marxista ortodoxa, embora qualificada, acusa Said de
transformar a controvérsia a respeito da descolonização em um mero assunto
literário e, pior, de estabelecer uma crítica cultural em convergência com o
mercado mundial, por entender que Said pretende se livrar, e aos seus leitores,
de identidades de classe, nação e gênero (Ahmad, 2002, pp. 109-165). Sem
dúvida, uma leitura que faz tábula rasa do essencial da obra de Edward Said.
6 Cf.
ainda a crítica próxima à antipatia de Ahmad (2002, p.113), quando estabelece
uma quase transferência freudiana entre Said e Auerbach, na medida em
que Auerbach é o emblema da retidão erudita, uma figura solitária defendendo o
valor humanista em meio ao holocausto, um estudioso no melhor dos sentidos,
quando Said seria o palestino sem Estado, vivendo em um quase exílio a sua
ambiciosa obra o Orientalismo.
7 Os condenados da terra (1968); Peau noire, masques blancs (1952).
8 O excelente livro organizado por Gopal Balakaishnan (2000) ou ainda Benedict Anderson (1991).
7 Os condenados da terra (1968); Peau noire, masques blancs (1952).
8 O excelente livro organizado por Gopal Balakaishnan (2000) ou ainda Benedict Anderson (1991).
9 Gellner
(2000) diz, por exemplo, que, embora a cultura superior compartilhada, baseada
na educação, continue a ser a precondição da cidadania moral, da participação
econômica e política efetiva, no industrialismo avançado ela já não precisa
gerar um nacionalismo intenso. "O nacionalismo pode então ser domesticado,
como foi a religião. É possível deslocar a etnia pessoal da esfera pública para
a particular e fingir que isso é apenas assunto desta, como a vida sexual, algo
que não tem por que interferir em sua vida pública e que é impróprio mencionar.
Mas, na verdade, isto é um fingimento, que pode ser admitido quando uma cultura
dominante é apropriada por todos e utilizável como uma espécie de moeda
corrente [...]" (Gellner, 2000, p. 135).
10 São
elas: 1. Disney; 2. AOL-Time Warner; 3. Viacom (proprietária da CBS); 4.
NewsCorporation; 5. Bertsman; 6. General Electric (proprietária da NBC); 7.
Sony; 8. AT&T-Liberty Media; e 9. Vivendi Universa. O mais grave é que
essas gigantes têm o controle dos grandes estúdios de cinema, as cadeias de
televisão e sociedades de produção musical, bem como de boa parte dos
principais canais pagos, das revistas e editoras (Chomsky e Herman, 2003, p.
XIII).
*Professor
do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciência
Política da Universidade Federal de Pernambuco.