O primeiro canto

O primeiro canto

terça-feira, 28 de novembro de 2017

O humanismo crítico de Edward W. Said

"Todo documento de civilização é também um documento de barbárie" – WALTER BENJAMIN (Said, 2007, p. 69).

Por Marcos Costa Lima*

A recepção no Brasil da obra de Edward W. Said (1935-2003), professor de literatura na Universidade de Columbia, é, salvo melhor aviso, recente. Em 1990, a editora Companhia das Letras publicou Orientalismo1, seu livro mais polêmico e, em 1995, Cultura e imperialismo. Em seguida vieram seus ensaios Reflexões sobre o exílio e Paralelos e paradoxos, em 2003, conversas com o músico Daniel Beremboim, Representações do intelectual, em 2005, e, em 2007, Humanismo e crítica democrática.
Também recente é minha aproximação com sua obra. Em 2003, realizando meu pós-doutorado em Paris, tive contato com um artigo seu publicado na revista Carré Rouge2, uma homenagem quando de seu falecimento. A curiosidade aumentou após a leitura deste artigo, que tratava do conflito Israel-Palestina e em particular do assassinato de Raquel Corrie, jovem norte-americana que prestava serviços voluntários no International Solidarity Movement, uma ONG que organiza missões civis nos territórios ocupados e que perdeu a vida ao ajudar seres humanos sofridos em Gaza. Nesse texto, encontrei a defesa convicta da Palestina, a denúncia dos terrores praticados contra esse povo, mas, sobretudo, uma busca pela justiça, o rechaço firme do terrorismo, o repúdio a uma solução militar.
Dizia ele então que "nenhuma cultura ou civilização existe isolada das outras, nenhuma entende estes conceitos de individualidade e de iluminismo como sendo completamente exclusiva. E nenhuma existe sem os atributos humanos fundamentais que são a comunidade, o amor, a valorização da vida e de todo o resto".
Em um mundo tão fragmentado como o nosso, tão dilacerado, tão exposto à intransigência e à violência, as palavras de Said beiravam a ingenuidade. Mas a força de seu pensamento está justamente numa reflexão que é, a uma só vez, densa, erudita e analítica, mas também corajosa. Coragem de expor suas idéias, de optar pelo lado mais frágil e pelos que sofrem privação, de afrontar a sociedade norte-americana que é também a sua e, mais do que chamar-lhe à razão, apontar suas iniquidades. A partir daí, passei a ler os seus ensaios sobre literatura, pois alguns dos seus autores prediletos eram também os meus, a exemplo de Joseph Conrad, Flaubert, Dickens, Sartre, entre tantos outros, tudo isso associado a uma larga bagagem analítica de teóricos da filologia, como Eric Auerbach e Leo Spitzer; mas também de Gramsci, Adorno e Walter Benjamin; Luckács; Foucault, Raymond Williams e Bourdieu, uma formidável galeria. Para fechar o repertório, em si muito atrativo, uma prosa agradável, uma erudição aguçada aliadas a uma capacidade crítica inovadora. À medida que fazia as leituras, digamos, marginais ou complementares, o interesse aumentou e cheguei, portanto, ao núcleo do seu pensamento, exposto em Orientalismo e Cultura e imperialismo.
Esta breve introdução, portanto, é mais para dizer que este é um trabalho preliminar, uma primeira aproximação analítica da obra de Edward W. Said. Mais, ainda, tem a intenção de trazer, para o contexto da política internacional comparada, a contribuição teórica de uma análise da literatura européia e norte-americana comparada, eminentemente política e, ao mesmo tempo, fortemente literária.
Said queria destacar o papel central do pensamento imperialista na cultura ocidental moderna e se perguntava por que a centralidade dessa visão imperial que foi registrada e apoiada pela cultura que a produziu, em certa medida, a ocultou. Ele considerava que, para entender as preocupações imperiais, que foram constitutivas do Ocidente moderno, deve-se avaliar essa cultura tanto do ponto de vista da apologia quanto do ponto de vista da resistência antiimperialista, em geral silenciada na obra dos grandes autores ocidentais. A este instrumento analítico Said (1995) denomina de "leitura em contraponto". E, como ele mesmo afirmou, "no encerramento do século XIX, com a disputa pela África, a consolidação da união imperial francesa, a anexação americana das Filipinas e o domínio inglês no subcontinente indiano, em seu auge, o império era uma preocupação universal". Ao mesmo tempo asseverava: "Os grandes praticantes da crítica [literária] simplesmente ignoram o imperialismo" (Said, 1995, p. 102).
Autores, como Jane Austen, Camus, Kipling, escreveram para um público ocidental, mesmo quando tratavam e narravam personagens, lugares, situações que se referiam ou utilizavam territórios ultramarinos dominados por europeus. Mas, ao mesmo tempo, Said nos dizia que esses povos colonizados não-europeus "não aceitavam indiferentes a autoridade projetada sobre eles, nem o silêncio geral que cercava sua presença, sob formas mais ou menos atenuadas". Said (1995) conclui afirmativamente como se definisse seu método e suas intenções:
"Devemos, pois, ler os grandes textos canônicos, e talvez também todo arquivo da cultura européia e americana pré-moderna, esforçando-nos por extrair, entender, enfatizar e dar voz ao que está calado, ou marginalmente presente ou ideologicamente representado em tais obras" (Said, 1995, p. 104).
Said tem muito de Bourdieu (1989) na forma de pensar, na forma de estruturar a análise, sobretudo na compreensão de que há uma economia do simbólico que é irredutível à economia (em sentido restrito) e que as lutas simbólicas têm fundamentos e efeitos econômicos.
Para além de uma reatualização do conceito de imperialismo, central na obra de Said, cinco outros temas tratados ao longo da sua obra interessam diretamente ao campo da Política Internacional Comparada, alguns dos quais serão desenvolvidos no desenrolar deste trabalho: o primeiro é o presente poder hegemônico exercido pelo governo dos Estados Unidos3 ao longo do século XX e início do XXI, que nos interpela para além da pretensão imperial exercida por aquele país, sobre as possibilidades de uma multipolaridade entre nações, dos desafios de uma interdependência transnacional, enfim, da construção de uma ordem mundial efetivamente democrática. A questão central aqui é, portanto, a democracia. O segundo tema é a questão nacional que, embora entendida como momento nativista e necessário em resposta ao processo colonial, passa pelo crivo da crítica, em que autores como C. L. R. James, Frantz Fanon, Noam Chomsky, entre outros, são invocados no sentido de apontar os riscos de uma consciência nacional despreparada ou ainda desvirtuada após as lutas de independência e libertação. Mas também as relações Norte-Sul, reapresentações das velhas desigualdades imperiais e persistência do "antigo regime". Neste contexto, Said introduz um argumento de Noam Chomsky, de 1982, que ainda hoje traduz uma inquietante realidade mundial:
"[O conflito] Norte-Sul não se aplacará, e novas formas de dominação terão de ser triadas para assegurar aos segmentos privilegiados da sociedade industrial a preservação de um controle substancial dos recursos mundiais humanos e materiais, e dos lucros desproporcionais derivados desse controle. Assim, não surpreende que a reconstituição da ideologia nos Estados Unidos encontre eco em todo mundo industrial. [...] Mas é absolutamente indispensável para o sistema ideológico ocidental que se estabeleça um enorme fosso entre o Ocidente civilizado, com seu tradicional compromisso com a dignidade humana, a liberdade e a autodeterminação, e a brutalidade bárbara daqueles que, por alguma razão - talvez genes defeituosos -, não conseguem apreciar a profundidade desse compromisso histórico, tão bem revelado pelas guerras americanas na Ásia, por exemplo" (apud Said, 1995, p. 351).
O terceiro tema, mas não menos importante, diz respeito a toda a sua luta pela causa palestina, tensionada pelo fato de ser um americano-árabe, vivendo nos dois mundos, revoltado contra os estereótipos à cultura árabe nos Estados Unidos, durante e após a Guerra do Golfo; de que os árabes só entendem a força; de que a brutalidade e a violência lhes são inerentes e fazem parte da cultura árabe; de que o islamismo é uma religião intolerante, segregacionista e medieval, fanática, cruel, contra as mulheres. A força da análise de Said está justamente na busca de um paradigma outro, inovador para a pesquisa humanista, capaz de desmistificar as construções culturais. Ao entender e criticar o hegemon, não poupa os descaminhos políticos no mundo árabe, sobretudo de suas elites:
"a atmosfera generalizada de mediocridade e corrupção que paira sobre essa região desmedidamente rica, magnificamente dotada em termos históricos e culturais, e amplamente abençoada com talentos individuais, constitui um enorme enigma, uma imensa decepção" (Said, 1995, p. 370).
E conclui:
"A democracia em qualquer sentido real do termo não se encontra em parte alguma do Oriente Médio ainda 'nacionalista': que são as oligarquias privilegiadas ou grupos étnicos privilegiados. A grande massa do povo permanece esmagada sob ditaduras ou governos inflexíveis, impopulares. Mas, a ideia de que os Estados Unidos sejam um virtuoso inocente nesse terrível estado de coisas é inaceitável [...]" (Said, 1995, p. 370).
O repertório de incongruências e preconceitos a respeito da civilização árabe-muçulmana está também vinculado à ignorância ocidental sobre esta cultura, sobre suas contribuições, bem como por um trabalho de negação feito, sistematicamente, no século XIX por pensadores europeus, a exemplo de Ernest Renan, que faziam com que a contribuição destes povos só aparecesse furtivamente nas histórias gerais das civilizações e, no melhor dos casos, como uma simples transmissão entre a Grécia e a Europa do Renascimento (Djebar, 2001).
Em quarto lugar, a importância de Said em trazer e dar visibilidade à inestimável contribuição intelectual periférica de autores como Eqbal Ahmad (paquistanês), Ngugi Wa Thongo (queniano), Ali Shariat (iraniano), Wole Soyinka (nigeriano), Tayeb Salih (sudanês), C. L. R. James (de Trinidad-Tobago), George Antonius (libanês), Faiz Ahmada Faiz (paquistanês), José Martí (cubano), Partha Chatterjee (indiano), Ranajit Guha (indiano), Aimé Césaire (martiniquenho), Dereck Walcott (caribenho), muito embora a literatura sul-americana e a brasileira, em particular, estejam ausentes deste universo do qual, sem dúvida, poderiam fazer parte Machado de Assis, Lima Barreto, Joaquim Nabuco, Antonio Candido, entre tantos outros.
Finalmente, a figura do exílio, tanto intelectual quanto aquela que tem sua encarnação atual no migrante, nas migrações internacionais que têm sido um tema que cresce em importância, em razão de tantas diásporas produzidas na contemporaneidade, frutos da violência, das guerras, da incompetência e intransigência de elites nacionais.

Imperialismo e cultura
Este livro é uma ampliação da argumentação desenvolvida em Orientalismo, tentando aprofundar o modelo mais geral de relações entre o Ocidente metropolitano moderno e seus territórios de ultramar, pela via dos estudos e discursos europeus sobre a Índia, a África, Extremo Oriente e Caribe, "[...] na tentativa geral de dominar povos e terras distantes, e portanto relacionados com as descrições orientalistas do mundo islâmico [...]" (Said, 2005, p. 11). Said quer aprofundar a relação geral entre cultura e império. As figuras retóricas que desvela são muitas, os estereótipos construídos do "espírito" do colonizado, transformando-os em bárbaros, primitivos, irresponsáveis, selvagens, necessitando, portanto, de disciplina, quando não de açoite, justificam assim a "tarefa" européia de "levar a civilização até lá", pois do contrário só a entenderiam através da força ou da violência (Lévi-Strauss, 1951).
Said parte de um conceito de cultura abrangente, aquele que designa as artes da descrição, comunicação e representação, com relativa autonomia dos campos econômico, político e social e que, não raro, existe sob a forma estética. Isto inclui tanto o saber popular quanto o conhecimento especializado de disciplinas como Etnografia, Historiografia, Filologia, Sociologia e História Literária. Para ele, a narrativa é crucial, tendo como tese básica a ideia de que as histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas acerca de regiões estranhas do mundo, mas que, ao mesmo tempo, elas se tornam um método utilizado pelos povos colonizados para afirmar sua identidade e a existência de uma história própria (Said, 2005, p. 13).
Assim, tanto o poder de narrar quanto o de bloquear ou de impedir a formação de novas narrativas é relevante para o estudo da cultura e do imperialismo. Por outro lado, Said afirma, a partir de Matthew Arnold, que a cultura é um conceito que inclui um elemento de elevação e refinamento, o que de melhor produz uma sociedade no saber e no pensamento e, de forma derivada, entendida como um elemento mitigador, excluindo os efeitos danosos ou perversos da vida moderna e agressiva. A cultura acaba associada à nação ou ao Estado, a um nós, gerando identidade, via os clássicos nacionais:
"O problema com essa ideia de cultura é que ela faz com que a pessoa não só venere sua cultura, mas também a veja como divorciada, pois transcendente, do mundo cotidiano. [...] Uma das difíceis verdades que descobri trabalhando neste livro é que pouquíssimos, dentre os artistas ingleses ou franceses que admiro, questionaram a noção de 'raça submissa' ou 'inferior', tão evidente entre funcionários que colocavam essas idéias em prática, ao governarem a Índia ou a Argélia" (Said, 2005, p. 14).
Ao analisar Nostromo, de Joseph Conrad (um dos autores mais admirados por Said), que se passa numa república da América Central dominada por interesses externos, mas ao mesmo tempo diferente de suas usuais obras na Índia e na África coloniais, Said mostra como o autor antevê a incontrolável insatisfação e os "desmandos" das repúblicas latino-americanas. Conrad cita Bolívar, que entendia que governá-las era igual a arar no oceano, e ao mesmo tempo desvela, na conversa entre dois personagens - o financista de São Francisco e o proprietário inglês da mina de São Tomé - o sentido da empreitada "imperial":
"Podemos sentar e olhar. Claro, algum dia interviremos. Estamos fadados a isso. Mas não há pressa. [...] estaremos ditando as regras para tudo - indústria, comércio, leis, jornalismo, arte, política e religião, do Cabo Horn até Surith's Sound, e também mais adiante, se algo que valer a pena surgir no pólo Norte [...] Conduziremos os negócios do mundo, quer ele goste ou não. O mundo não pode evitá-lo - e nem nós, imagino eu".
Seja em Nostromo ou em Heart of darkness, para Conrad a própria imagem das trevas está associada à imagem revertida do eurocentrismo como luz, a um projeto civilizador. Ele não podia admitir que os nativos pudessem ser livres da dominação européia e esta compreensão está associada ao personagem Kurtz quando, em momento de fúria e loucura, ordena: "exterminem todos os bárbaros!". É o próprio Said quem conclui:
"Portanto, não é paradoxal que Conrad fosse imperialista e antiimperialista: progressista quando se tratava de apresentar com destemor e pessimismo a corrupção autoconfirmadora e autoenganosa do domínio ultramarino; profundamente reacionário quando se tratava de conceder que a África ou a América do Sul pudessem algum dia ter uma história ou uma cultura independentes, que os imperialistas abalaram violentamente, mas pela qual foram, afinal, derrotados" (Said, 2005, p. 19).
A atualização desta interpretação com o modus operandi dos Estados Unidos é imediata, sobretudo ao manter o refrão de reivindicar e tornar-se o guardião da democracia no mundo, e a todo custo. A destruição que se perpetuou no Vietnã, no passado, e hoje, no Iraque, é exemplar.
A densa reflexão de Said sobre o imperialismo atualiza o termo. Para ele, o século XIX foi o apogeu da ascensão do Ocidente, estabelecendo esta geografia: em 1800, as potências ocidentais detinham 35% da superfície do globo e, em 1878, essa proporção chegou a 67%. Em 1914, a Europa detinha 85% do mundo sob a forma de colônias, protetorados etc. Depois de 1945, com o desmantelamento das estruturas coloniais, essa "Era do Império" chega ao fim, mas, ao mesmo tempo, como Said afirma, a luta pela geografia não se "restringe a soldados e canhões" (Said, 2005, p. 38). Ela abrange também idéias, formas, imagens e representações, e continua a exercer uma influência considerável no presente.
A definição de Imperialismo dada por Said é aquela que designa
"a prática, a teoria e as atitudes de um centro metropolitano dominante governando um território distante; o 'colonialismo', quase sempre uma conseqüência do imperialismo, é a implantação de colônias em territórios distantes" (Said, 2005, p. 40).
Nenhum deles é simples ato de acumulação e aquisição:
"ambos são sustentados e talvez impelidos por potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação [...]" (Said, 2005, p. 40).
Esta presença visceral do Imperialismo se faz manifesta em Said quando está a comentar a obra de seu colega indiano, Salman Rushdie:
"Posso entender muito bem a raiva que alimentou o raciocínio de Rushdie, pois, como ele, sinto-me excluído por um consenso ocidental predominante, que veio a encarar o Terceiro Mundo como um território estorvo, um lugar inferior em termos políticos e culturais" (Said, 2005, p. 61).
Ao tratar especificamente do seu campo de estudo, a literatura comparada, Said admite que ela surgiu no auge do Imperialismo europeu e, portanto, estaria inegavelmente ligada a ele.
O principal traço desse estilo literário é a própria erudição, a começar por Erich Auerbach e Leo Spitzer, grandes comparatistas alemães que fugiram para os Estados Unidos por conta do nazismo. Said partia da tradição européia e da norte-americana nesse campo, que carregava consigo a crença de que a humanidade se constituía em uma totalidade maravilhosa, cujo progresso podia ser estudado como um todo, mas também como uma experiência secular e não como algo transcendente. O homem fazia a história e o iluminismo era a manifestação dessa história.
Por maior que tenha sido a admiração que Said cultivou, sobretudo por Auerbach, o fato não o impediu de entender que essa concepção da cultura humana se tornou corrente na Europa e nos Estados Unidos de 1745 e 1945 e esteve relacionada à ascensão do nacionalismo no mesmo período. Ao mesmo tempo, entendeu que, ao celebrarem a humanidade e a cultura, estavam celebrando idéias e valores de suas próprias culturas, distintas, portanto, daquelas do Oriente, da África ou da América Latina (Said, 2005, p. 79). Portanto, um universalismo muito restrito e particular.
Tratando da criação do primeiro departamento americano de literatura comparada, que data de 1891, na Universidade de Columbia, Said nos diz que o trabalho oriundo deste centro acadêmico
"trazia consigo a ideia de que a Europa e os Estados Unidos, juntos, constituíam o centro do mundo, não meramente devido às suas posições políticas, mas também porque suas literaturas eram as mais dignas de estudo" (Said, 2005, p. 82).
Em 1950, com os progressos realizados pela Revolução Russa na disputa espacial, nos fala Said sobre a criação do National Defense Educational Act, que transformou o estudo das línguas estrangeiras e da literatura comparada em campos diretamente relacionados à Segurança Nacional.
Em plena Guerra Fria, o etnocentrismo ganha terreno. Said estabelece inclusive uma interessante ilação entre a relação geografia-literatura, cuja visão de uma "literatura mundial" passa a coincidir com o que tinha sido enunciado pelos teóricos da geografia colonial, a exemplo de Mackinder, Lucien Fevre, entre outros. Aparece entre aqueles teóricos uma avaliação do sistema mundial metropolicêntrico e imperial em que, para além da história, o espaço geográfico colabora para produzir um "império mundial" comandado pela Europa. O mapa imperial autorizava de fato a visão cultural. Por isso Said sintetizava que
"os discursos universalizantes da Europa e Estados Unidos modernos, sem nenhuma exceção significativa, pressupõem o silêncio, voluntário ou não, do mundo não-europeu. Há incorporação; há inclusão; há domínio direto; há coerção. Mas muito raramente admite-se que o povo colonizado deve ser ouvido e suas idéias conhecidas" (Said, 2005, p. 86).
Said chama a atenção para o fato de que os Estados Unidos substituíram os grandes impérios anteriores, sendo a força econômica e militar no mundo contemporâneo, e dominam a América Latina, boa parte do Oriente Médio, África e Ásia; mas também assinala o fato de que se vivemos em um mundo para além do mercado, mas de representações, a cultura não pode estar dissociada desta realidade. Desvincular a esfera cultural do contexto político é um falseamento, é querer entender a cultura como impermeável ao poder, como se as representações pudessem ser tratadas como imagens apolíticas.
Finalmente, no último capítulo de Cultura e imperialismo, ele trata da ascendência americana após a Segunda Guerra Mundial.

Humanismo e crítica democrática
Este livro, que se compõe de cinco capítulos, foi apresentado, a princípio, como um conjunto de conferências na Universidade de Columbia, em janeiro de 2000, e ampliado em 2002. A data é significativa, pois no intervalo aconteceu a tragédia do 11 de setembro de 2001, que alterou substantivamente a esfera política nos EUA e no restante do globo.
Seu ponto de partida é o Curso de Humanidades em sua universidade, que se inicia em 1937, um programa de quatro horas semanais e duração de um ano, que introduz e familiariza os estudantes em Homero, Heródoto, Ésquilo, Eurípides, Platão e Aristóteles, a Bíblia, Virgílio, Dante, Santo Agostinho, Shakespeare, Cervantes e Dostoievski. O objetivo central de Said era reexaminar a relevância do Humanismo ao se entrar em um novo milênio. Era buscar compreender o alcance viável do Humanismo como prática persistente e não como patrimônio, mais sobre o que tem sido e é, do que uma mera lista de atributos desejáveis que definissem um humanista.
Essa necessidade de discutir o significado atual do Humanismo interessa, quando sabemos que o termo perdeu substantividade, ganhou foros de tradição e de conservadorismo, de elitismo; quando tantas palavras no discurso corrente têm o termo humano (sugerindo humanista ou humanitário) em seu núcleo; quando ao mesmo tempo o bombardeio da Iugoslávia pela OTAN em 1999 foi descrito como uma "intervenção humanitária" (Said, 2007a, p. 25).
Como diz Said, desde o dia "11 de setembro" o terror e o terrorista têm sido introduzidos na consciência pública norte-americana com uma insistência espantosa. A ênfase tem sido reforçar a distinção entre o "nosso bem" e o "deles", na qual os cidadãos estadunidenses representariam a cultura humanitária e "eles", a violência e o ódio. Uns, civilizados; "eles", a barbárie. Aí também está presente a crítica a Samuel Huntington (como também em outras obras suas - Said, 2003), sobretudo pela abordagem redutora, vaga e reducionista presente em Choque de civilizações e a reconstrução da ordem mundial (Huntington, 1997).
Said não ignora o advento e a influência, nos anos 1960 e 1970, da teoria francesa sobre os departamentos de humanidades das universidades norte-americanas que, sobretudo após a Guerra do Vietnã e o Maio de 1968, praticamente destrói criticamente o humanismo tradicional, através dos pensamentos estruturalista e pós-estruturalista, que professavam a morte do homem e a preeminência dos sistemas anti-humanistas, presentes nas obras de Lévi-Strauss (Pensamento selvagem) e de Michel Foucault (Arqueologia das ciências humanas4), e onde as vozes de Rousseau e de Nietzsche ecoam forte, onde o bom selvagem e o louco são as figuras que refratam as fragilidades da razão.
Foucault, em entrevista que deu em 1966, falava da ruptura com Sartre e sua escola, que se situa no momento em que Lévi-Strauss e Lacan mostraram que o "sentido" não era mais que um efeito de superfície, uma reverberação,
"e aquilo que nos atravessava profundamente, o que estava antes de nós, o que nos sustentava no tempo e no espaço era o sistema". [...] "Antes de toda a existência humana, antes de todo o pensamento humano, haveria já um saber, um sistema, que nós redescobrimos [...]" (Foucault, 1974, pp. 29-36).
Para Foucault, a herança mais pesada que tínhamos recebido do século XIX fora o Humanismo e, para ele, era tempo de nos desembaraçarmos:
"O humanismo foi uma maneira de resolvermos em termos de moral, de valores, de reconciliação, problemas que não se podiam resolver de modo algum. Conhece a frase de Marx? A humanidade só formula problemas que pode resolver. Eu creio que se pode dizer: o humanismo finge resolver problemas que não pode formular" (Foucault, 1974, pp. 29-36).
A posição adotada por Edward Said não é, portanto, ingênua, ainda mais quando utiliza o trabalho de Foucault para reforçar a sua elaboração teórica:
"Michel Foucault e Thomas Kuhn prestaram um serviço considerável lembrando-nos nas suas obras que, de forma consciente ou não, os paradigmas e epistemes têm um domínio perfeito sobre as áreas do pensamento e expressão, um domínio que inflecte, se não modela, a natureza do pronunciamento individual. Os mecanismos implicados na preservação do conhecimento em arquivos, as regras que regem a formação dos conceitos, o vocabulário das linguagens expressivas, os vários sistemas de disseminação, tudo isso entra em alguma medida na mente humana e a infliuencia, de modo que já não podemos dizer com absoluta confiança onde termina a individualidade e onde começa o domínio público" (Said, 2007a, pp. 64-65).
Ao aceitar a contribuição de Foucault, não deixa de acreditar que seja possível ser crítico ao Humanismo em nome do Humanismo e que, por exemplo, escolado nos seus abusos pela experiência do eurocentrismo e do império, se poderia dar forma a um tipo diferente de Humanismo que fosse cosmopolita, capaz de apreender as grandes lições do passado. Isso, na medida em que esse Humanismo seja uma prática contra as idéias prontas e os clichês, que seja um meio de resistência à linguagem sem reflexão. Tomando o exemplo recente da luta sul-africana contra o apartheid, nos diz que "as pessoas em todo o mundo podem ser, e o são, movidas por ideais de justiça e igualdade" (Said, 2007a, p. 29).
Said quer garantir o sentido, a afirmação do sujeito, a sua opção e possibilidade de compreensão, quando entende Humanismo como noção secular de que o mundo histórico é feito por homens e mulheres e não por Deus, e que pode ser compreendido racionalmente segundo o princípio estabelecido pelo filósofo Vico que, em sua Ciência Nova, dizia podermos conhecer as coisas segundo o modo como foram feitas.
Nos Estados Unidos, sobretudo após a Guerra do Vietnã, as humanidades caíram em descrédito, mas o Humanismo tornara-se conservador e elitista e abandonara o processo de criação da história, de mudá-la. A expressão literária e acadêmica desse conservantismo e arrogância foi Allan Bloom, que ganhou projeção ao se tornar um best-seller com O declínio da cultura ocidental. Justamente na contracorrente de Said, que compreendia o Humanismo como democrático, como aberto a todas as classes e formações, e como um processo de incessante descoberta, autocrítica e liberação.
Um tema que esteve sempre presente nas reflexões de Said foi o nacionalismo5. Para o autor de Beginnings(Said, 1975), a história de todas as culturas é a história dos empréstimos culturais. As culturas são, portanto, permeáveis. O assunto é tratado de forma contundente em "Resistência e oposição" e de forma dialética em Cultura e imperialismo. Mas também em Humanismo e crítica democrática (Said, 2007a, p. 73) o intelectual palestino aponta para os danos e exemplos históricos negativos, devastação e sofrimento humano provocados pelo nacionalismo, pelo entusiasmo religioso e pelo pensamento identitário, este último trabalhado, sobretudo na obra de Adorno.
Os três elementos se opõem ao pluralismo cultural. Em relação exclusiva aos Estados Unidos, o nacionalismo dá origem ao excepcionalismo e à paranóia do antiamericanismo presentes na cultura desse país que, segundo ele, desfigura a sua história, reforçando narrativas belicosas e criando constantemente inimigos poderosos e ameaçadores, ao mesmo tempo em que cristaliza uma concepção de superioridade natural, estimulando políticas de intervencionismo arrogante em todo o mundo. Essa expressão do nacional leva a uma compreensão mais abrangente do que talvez Bourdieu intitulasse de economia simbólica nacional ou de representação coletiva do nacional: "Somos ainda herdeiros desse estilo segundo o qual o indivíduo é definido pela nação, a qual, por sua vez, extrai sua autoridade de uma tradição supostamente contínua" (Said, 2005, p. 27).
Said é de fato um internacionalista. Esse imprint é herança forte de Eric Auerbach, a quem atribui ter produzido em Mimesis "a maior e mais infliuente obra humanista-literária do último meio-século6" (Said, 2007a, p. 111). E o nosso autor aprecia citar reiterada vezes a frase do filólogo alemão na qual este afirma que "o nosso lar filológico é o mundo, não a nação ou mesmo o escritor individualmente" (Ahmad, 2002, p. 162).
Ao mesmo tempo, o professor de Columbia não quer ser identificado, ou mal interpretado, como defensor de uma posição antinacionalista. Para ele, é fato histórico que a restauração da comunidade, a afirmação da identidade, o surgimento de novas práticas culturais tenham consolidado, nas regiões oprimidas, movimentos de superação da alienação e assim pudesse avançar a luta contra a dominação e a exploração ocidental em todos os quadrantes do planeta: "opor-se a isto tem tanto resultado quanto se opor à descoberta da gravidade por Newton" (Said, 2005, p. 276). Mas, ao mesmo tempo, esse nacionalismo não pode ser acrítico, não pode ser ufanista, não pode ser caracterizado como uma etapa final que substitui um déspota ocidental por um local: "Não se deve esquecer a crítica firme do nacionalismo, derivada dos vários teóricos da libertação que abordei, pois não podemos nos condenar a repetir a experiência imperial" (Said, 2005, p. 405). Essa interpretação o conduz a estabelecer uma grande pergunta, qual seja: como manter vivas as energias libertárias desencadeadas pelos grandes movimentos de resistência e colonização e pelas revoltas populares desde 1980. Será que estas energias conseguirão escapar aos processos homogeneizadores da vida moderna, conseguirão suspender as intervenções da nova centralidade imperial?
São necessárias cautela e prudência para tratar da difícil relação entre nacionalismo e processos de libertação, que, segundo ele, são dois ideais ou objetivos de pessoas empenhadas contra o imperialismo. Mas, se é verdade que a criação de inúmeras nações-Estado independentes recentes no mundo pós-colonial restaurou o primado das ditas comunidades imaginadas, ao mesmo tempo muitas delas foram destruídas e saqueadas por ditadores e tiranetes, que acabaram por desvirtuar todo processo de libertação e de liberdades civis.
"E então, surpreendentemente, o mundo inteiro se descolonizou depois da Segunda Guerra Mundial" (Said, 2005, p. 253). A Inglaterra detinha poder imperial sobre Austrália, Nova Zelândia, Hong Kong, Nova Guiné, Ceilão, Malaia, todo o subcontinente asiático, a maior parte do Oriente Médio, toda a África Oriental, do Egito à África do Sul, parte da África Centro-Oriental, a Guiana, certas ilhas do Caribe, a Irlanda e o Canadá. O império francês era menor, mas ainda assim detinha o poder de parte das ilhas do Caribe, no Pacífico e no Índico (Madagascar, Nova Caledônia, Taiti), da Guiana e toda a Indochina; boa parte da África, do Mediterrâneo, a Síria e o Líbano. A luta antiimperialista tomou conta do mundo nos anos 1950 e 1960, com os Estados Unidos já surgindo como substituto em muitas dessas regiões, como aconteceu na Coréia e depois na Indochina. Essas mudanças só ocorreram pela vontade de pessoas de resistirem às pressões do domínio colonial, de tomarem armas, conceber idéias de libertação e imaginar (como diria Benedict Anderson) uma nova comunidade nacional. "E também não podem ocorrer, a menos que se instale internamente uma exaustão política ou econômica que se questione, em público, o custo do domínio colonial" (Said, 2005, p. 255).
Muito dessa reflexão sobre a complexidade inerente ao projeto nacionalista Edward Said toma de empréstimo da obra de Frantz Fanon. O psiquiatra e ensaísta martiniquenho que escreveu obras7 de grande repercussão mundial sobre colonialismo, racismo, nacionalismo, chama a atenção para o fato de que a consciência nacionalista pode, com facilidade, levar a uma rigidez estática e apenas substituir as autoridades e os burocratas brancos por equivalentes de cor, não sendo, portanto, nenhuma garantia de que os funcionários nacionalistas não reproduzirão os velhos padrões e arranjos.
É densa a refliexão nas Ciências Humanas sobre o nacionalismo8 e não há aqui a intenção nem tampouco possibilidade de esgotá-la. O que interessa, particularmente, é apresentar a compreensão de Edward Said sobre a questão. Neste sentido, ele introduz dois importantes autores ocidentais que trataram do assunto por pontos de vista bastante diferenciados: Hobsbawm e Ernst Gellner. Ambos entenderam o nacionalismo como uma forma de comportamento político que foi sendo gradualmente superado pelas novas realidades transnacionais das economias modernas9, das comunicações eletrônicas e da projeção militar das superpotências, e são criticados por Said, que descobre em suas opiniões um acentuado desconforto (e, segundo Said, uma compreensão a-histórica) em relação às sociedades não-ocidentais que adquirem independência nacional e, portanto, insistem na proveniência ocidental das filosofias nacionalistas, que assim seriam mal-adaptadas aos árabes, zulus, indochineses, latino-americanos, que, provavelmente, fariam mau uso delas (Said, 2005, p. 274).
Em contraponto aos dois autores ocidentais, Said introduz a contribuição contemporânea de Partha Chatterjee, sociólogo indiano e um dos fundadores do Subaltern Studies. Chatterjee entende que parte do nacionalismo indiano respondeu ao domínio colonial para afirmar uma consciência patriótica. A figura de Gandhi se inspira em pensadores ocidentais não modernos, como Ruskin e Tolstoi, e tenta uma regeneração radical da cultura nacional e de seus padrões de costume, no uso do algodão e da roupa produzida no território nacional, numa alimentação parca e não processada, natural, enfim em padrões de diferenciação. O ideal romântico é o de restauração da nação. Para Chatterjee, a figura de Nehru, ao contrário de Gandhi (e mesmo o respeitando), é pela modernidade, pela criação do estado nacional. O autor de The nation and its fragments (Chatterjee, 1997), à maneira de Said, se acautela do nacionalismo, que, embora bem-sucedido no país, pode tornar-se uma panacéia e não enfrentar os problemas das desigualdades, disparidades de renda e região, as injustiças sociais. Pode ser capturado por uma elite nacionalista antipopular.
Esta não é uma questão de fácil solução, sobretudo em um mundo onde as estruturas militares de poder de algumas potências estão diretamente articuladas com o novo paradigma tecnológico, com uma imensa estrutura de corporações atuando em escala global e apoiadas a partir de um sistema financeiro que tem suas raízes emWall Street, na City londrina, em Paris ou Frankfurt. Tudo isso "envolucrado" numa convergência de idéias e de visões de mundo pró-mainstream, que infantilizam o público com alternativas simplórias do "bom" e do "ruim", do "bem" e do "mal", como se a complexidade da história das sociedades humanas estivesse determinada por tamanho primarismo. E aqui a compreensão de Noam Chomsky nos alerta para o fenômeno do controle midiático, quando informa que, em 1983, cinqüenta megacompanhias dominavam a paisagem; sete anos mais tarde, restavam vinte e três, terminando pelo controle da indústria midiática centralizadas em nove companhias10.
Para concluir, esta recepção à obra de Edward W. Said quis revelar a riqueza e densidade deste autor, mas também a complexidade crítica de sua abordagem, que não conduz a respostas simples - muito ao contrário, a um quase estado de crítica permanente, muito à maneira de Adorno, um autor reverenciado pelo palestino.
"Não vamos fingir que existam modelos prontos para uma ordem mundial harmoniosa", diz Said, e seria igualmente tolo supor que as idéias de paz e de comunidade têm grande chance quando o poder é levado a agir movido pelos conceitos agressivos dos "interesses nacionais vitais" ou da "soberania irrestrita" (Said, 2005, p. 52).
Esta chave aparentemente pessimista, ou realista, não impele o teórico da literatura à resignação. Para ele, o intelectual tem um papel, que é aquele de elucidar e revelar, de desafiar e derrotar tanto os silêncios impostos quanto as quietudes que se transformam em normas. Carrega consigo a premissa da desmistificação, capaz de gerar instrumentos analíticos de defesa contra a dominação simbólica que se baseia, muitas vezes, na autoridade da ciência. Aqui, ele se aproxima de Gramsci, outro autor que faz parte de seu universo filosófico e, como em Gramsci, é absurdo pensar apenas em previsões puramente objetivas. Quem faz previsões carrega consigo um programa, o que reduz a compreensão de que a previsão é sempre arbitrária ou tendenciosa. Às vezes, esta adquire objetividade e, como diz Gramsci, "somente a paixão aguça o intelecto e ajuda a tornar mais clara a intenção [...]. Somente quem deseja fortemente identifica os elementos necessários para a realização de sua vontade" (2005, p. 35). Mas Gramsci diz também que a crença de que uma determinada concepção de mundo e da vida tem, em si própria, uma capacidade de previsão superior é um erro grosseiro, exercício de fatuidade. Trata-se de ver se "o 'dever ser' é um ato arbitrário ou necessário, é vontade ou veleidade, desejo ou sonho com a cabeça nas nuvens" (Gramsci, 2005, p. 37), passa, portanto, por todo um exercício e mediação da crítica e da história.
Em Humanismo e crítica democrática (Said, 2007a, p. 173), tratando do papel público de intelectuais e escritores na sociedade contemporânea, Said apresenta dois de seus maiores embates, que, segundo ele, estão diretamente vinculados à intervenção e elaboração do intelectual: o primeiro diz respeito a impedir o desaparecimento do passado, muito ao gosto de certas escolas pós-modernas e a certos estruturalismos sincrônicos; o segundo trata da construção de campos de coexistência, em lugar de campos de batalha, como resultado do trabalho intelectual e onde ganha magnitude a sua luta pela libertação da Palestina, sua posição antibeligerante e pacifista.
Finalmente, espero ter evidenciado não apenas as diversas interfaces da obra de Edward W. Said com o campo da política internacional comparada, suas aproximações temáticas, mas também as possibilidades que suas refluexões podem aportar à teoria da globalização desigual, numa epistemologia e metodologia que se querem abertas, dinâmicas, capazes de incorporar, aproximar e frutificar a produção científica e a teoria da literatura.
Tratando de suas várias disputas a respeito da justiça e dos direitos humanos, Said enfatizou a necessidade "da redistribuição dos recursos", capaz de defender "o imperativo teórico contra as imensas acumulações de poder e capital que tanto desfiguram a vida humana" (Said, 2007a, p. 171).

Referências bibliográficas
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1 O livro publicado em 1978 tornou-se um clássico dos estudos culturais pela arrojada tese que defende, ou seja, a de que o Oriente é uma invenção ocidental, que inferioriza as civilizações a leste da Europa, atribuindo-lhe características exóticas, estranhas, mitológicas. 
2 Carré Rouge, nº 26, outubro de 2003. Disponível em: http://carre-rouge.org. O texto, intitulado "Dignidade e solidariedade", foi um dos últimos artigos publicados em língua inglesa no Al-Ahram Weekly, tendo sido traduzido para o português por Maria de Jesus de Britto Leite, arquiteta e professora da UFPE. 
3 Em particular, tratar da força das idéias emitidas a partir dos Estados Unidos, do culto da especialidade e do profissionalismo, hegemônico no discurso cultural desse país e que termina por contaminar a produção das ciências humanas na vida americana, estabelecendo cânones de validade universal ou paradigmas impositivos. 
4 Arqueologia que Sartre, generalizando a crítica ao estruturalismo, afirmou ser irracional, por propor a eliminação da História e optar pela pura descontinuidade. Nessa disputa, Foucault argumentava, contra o existencialismo sartriano, que não é o sujeito que pensa, mas sim o Sistema, por ele. 
5 Aijaz Ahmad, numa chave marxista ortodoxa, embora qualificada, acusa Said de transformar a controvérsia a respeito da descolonização em um mero assunto literário e, pior, de estabelecer uma crítica cultural em convergência com o mercado mundial, por entender que Said pretende se livrar, e aos seus leitores, de identidades de classe, nação e gênero (Ahmad, 2002, pp. 109-165). Sem dúvida, uma leitura que faz tábula rasa do essencial da obra de Edward Said. 
6 Cf. ainda a crítica próxima à antipatia de Ahmad (2002, p.113), quando estabelece uma quase transferência freudiana entre Said e Auerbach, na medida em que Auerbach é o emblema da retidão erudita, uma figura solitária defendendo o valor humanista em meio ao holocausto, um estudioso no melhor dos sentidos, quando Said seria o palestino sem Estado, vivendo em um quase exílio a sua ambiciosa obra o Orientalismo.
7 Os condenados da terra (1968); Peau noire, masques blancs (1952).
8 O excelente livro organizado por Gopal Balakaishnan (2000) ou ainda Benedict Anderson (1991). 
9 Gellner (2000) diz, por exemplo, que, embora a cultura superior compartilhada, baseada na educação, continue a ser a precondição da cidadania moral, da participação econômica e política efetiva, no industrialismo avançado ela já não precisa gerar um nacionalismo intenso. "O nacionalismo pode então ser domesticado, como foi a religião. É possível deslocar a etnia pessoal da esfera pública para a particular e fingir que isso é apenas assunto desta, como a vida sexual, algo que não tem por que interferir em sua vida pública e que é impróprio mencionar. Mas, na verdade, isto é um fingimento, que pode ser admitido quando uma cultura dominante é apropriada por todos e utilizável como uma espécie de moeda corrente [...]" (Gellner, 2000, p. 135). 
10 São elas: 1. Disney; 2. AOL-Time Warner; 3. Viacom (proprietária da CBS); 4. NewsCorporation; 5. Bertsman; 6. General Electric (proprietária da NBC); 7. Sony; 8. AT&T-Liberty Media; e 9. Vivendi Universa. O mais grave é que essas gigantes têm o controle dos grandes estúdios de cinema, as cadeias de televisão e sociedades de produção musical, bem como de boa parte dos principais canais pagos, das revistas e editoras (Chomsky e Herman, 2003, p. XIII).



*Professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.



sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O Fantasma de Canterville - Oscar Wilde



O Fantasma de Canterville
I
Quando Mister Hiram B. Otis, o Ministro Americano, adquiriu Canterville Chase, não faltou quem o advertisse de que fazia um péssimo negócio, pois sem dúvida o lugar era mal assombrado.Na verdade, o próprio Lord Canterville, cujo caráter era escrupuloso e da mais absoluta honestidade, julgara seu dever mencionar o fato a Mr Otis, quando chegara o momento de discutirem as condições do contrato.

"Nós mesmos tratamos de não morar mais aqui," disse Lord Canterville " desde que a minha tia-avó, a Duquesa Viúva de Bolton, teve um acesso de terror, (do qual jamais recobrou-se integralmente) quando duas mãos de esqueleto pousaram sobre seus ombros ao vestir-se para o jantar. Sinto-me obrigado a dizer-lhe, Mr Otis, que o fantasma tem sido visto por vários membros ainda vivos da minha família, bem como pelo pároco, o Reverendo Augustus Dampier, membro do King's College, em Cambridge. Após o infortunado incidente sucedido à duquesa, nenhum dos nossos criados mais jovens quis permanecer conosco, e Lady Canterville dificilmente dormia bem à noite, por causa dos misteriosos ruídos vindos do corredor e da biblioteca".

"Milorde", respondeu o Ministro " Vamos incluir o fantasma no preço da mobília. Venho de um país moderno,onde temos tudo quanto o dinheiro pode comprar, e com todos os nossos dinâmicos jovens compatriotas pintando o sete no Velho Mundo, arrebatando seus melhores atores e prima-donnas, concluo que se existisse algo parecido com um fantasma na Europa, certamente já estaria em nosso país, sendo exibido em um dos nossos museus, ou nos espetáculos ambulantes".

"Temo que o fantasma exista", respondeu sorrindo, Lord Canterville, "embora tenha resistido às propostas dos seus arrojados empresários. É bem conhecido há três séculos, precisamente a partir do ano de 1584, e nunca deixa de aparecer na véspera do falecimento de qualquer membro da nossa família".

"Bem, em todas as famílias o médico faz o mesmo, Lord Canterville. Fantasmas não existem, e não creio que as leis da natureza sejam suspensas em favor da aristocracia inglesa."

"Os americanos certamente são bem naturais", comentou Lord Canterville, sem compreender inteiramente a última observação de Mr. Otis, "e se não se incomoda em ter um fantasma em casa, está tudo certo. Mas não deve esquecer-se de que eu o avisei".

Poucas semanas depois o negócio foi concluído, e ao fim da temporada o Ministro e sua família mudaram-se para Canterville Chase.Mrs Otis, que como Miss Lucrécia R. Tappan, da rua West 53, fora célebre em New York por sua beleza, era agora uma elegantíssima mulher de meia-idade, com lindos olhos e soberbo perfil. Muitas damas americanas ao deixarem o país natal afetam um ar de indisposição crônica, que imaginam corresponder ao modelo de refinamento europeu, mas Mrs. Otis jamais caíra em semelhante erro.Possuia magnifica constituição e uma energia espantosa. Na verdade, e sob vários aspectos ela era quase inglesa, e um excelente exemplo de que hoje em dia temos tudo em comum com a América, exceto, naturalmente, o idioma. Seu filho mais velho, a quem os pais deram o nome de Washington num momento de patriotismo que ele jamais deixara de lamentar, era um rapaz de cabelos louros e feições agradáveis, que parecia perfeitamente dotado para entrar na diplomacia americana, pois liderara os alemães no Cassino de Newport por três temporadas seguidas, e mesmo em Londres era conhecido como exímio dançarino.

Gardênias e nobreza eram suas únicas fraquezas.Fora isso,era extremamente ajuizado. Miss Virgínia E. Otis era uma jovenzinha de quinze anos, graciosa e esbelta como uma gazela, e cujos enormes olhos azuis refletiam agradável desembaraço.Era admirável amazona, e uma vez montada em seu potro, apostara uma corrida com o velho Lord Bilton, dando duas voltas no parque e o vencera por corpo e meio, precisamente diante da estátua de Aquiles, para grande enlevo do jovem Duque de Cheshire, que a pediu em casamento ali mesmo, e foi mandado por seus tutores de volta a Eton nesta mesma noite , afogado em lágrimas. Depois de Virgínia, vinham os gêmeos, geralmente chamados de "estrelas e listas", pois eram frequentemente chicoteados.

Eram garotos encantadores e com exceção do digno Ministro, os únicos verdadeiros republicanos da família.

Como Canterville Chase ficava a sete milhas de Ascot, a estação ferroviária mais próxima, Mr. Otis telegrafara pedindo uma carruagem para esperá-los e puseram-se todos a caminho, muito animados. Era um adorável fim de tarde de julho, e o aroma dos pinheiros embalsamava o ar.De quando em quando, ouviam um pombo bravo arrulhar docemente, ou vislumbravam escondido no mato o peito brilhante de um faisão.À sua passagem, pequenos esquilos os espreitavam por entre as faias, e os coelhos fugiam em disparada através dos arbustos ou por sobre os outeiros recobertos de musgo, com suas caudas brancas para o alto. Porém, quando tomaram a alameda de Canterville Chase, o céu nublou-se subitamente, uma estranha calma pareceu envolver a atmosfera, um bando de gralhas passou silenciosamente sobre suas cabeças, e, antes que chegassem até a casa, começaram a cair grandes pingos de chuva.

De pé na escada para recebê-los estava uma mulher idosa, caprichosamente vestida de seda negra, com touca branca e avental. Era Mrs Umney, a governanta, a quem Mrs. Otis, mediante o decidido empenho de Lady Canterville, consentira em conservar na sua antiga posição. Logo que saíram do coche, ela fez uma profunda reverência a cada um deles e disse de um jeito graciosamente antiquado e fora de moda:

"Sejam bem-vindos a Canterville Chase".

Seguiram-na, e depois de atravessarem um belo vestíbulo Tudor, entraram na biblioteca, comprido aposento de teto baixo, apainelado de carvalho negro, tendo ao fundo uma grande janela com vitrais. Ali fora arrumada a mesa do chá, e, após tirarem os abrigos de viagem, sentaram-se olhando em torno, enquanto Mrs. Umney os servia.

De repente Mrs. Otis atentou para uma mancha vermelho escuro no soalho perto da lareira, e inteiramente alheia quanto ao real significado daquilo, disse a Mrs Umney:

"Creio que derramaram alguma coisa ali".
"Sim, minha senhora", respondeu em voz baixa, a velha governanta, "derramaram sangue naquele lugar".

" Mas é horrível", exclamou Mrs. Otis. " Não gosto nada de ver manchas de sangue nos salões. É preciso remove-la imediatamente".
A velhota sorriu e respondeu, na mesma voz baixa e misteriosa:
"É o sangue de Lady Eleanor de Canterville, assassinada exatamente neste local por seu próprio marido, Sir Simon de Canterville, em 1575. Sir Simon sobreviveu-lhe nove anos, e um dia desapareceu misteriosamente. Seu corpo jamais foi encontrado , mas seu espírito culpado ainda assombra esta casa. A mancha de sangue sempre provocou o espanto dos visitantes e turistas e não pode ser removida".

"Que absurdo", exclamou Washington Otis, "O Campeão dos Tira- Manchas Pinkerton e o detergente Paragon, limparão isso num instante".E antes que a apavorada governanta pudesse intervir, Washington, ajoelhou-se e esfregou vigorosamente assoalho com um bastãozinho que lembrava um cosmético negro.Num instante a mancha de sangue sumiu sem deixar traços. "Eu sabia que o Pinkerton resolveria o caso", exclamou triunfante, olhando a família, que o rodeava cheia de admiração, mas mal acabara acabara de pronunciar aquelas palavras, o clarão de um raio iluminou o sombrio aposento, um apavorante trovão ribombou, e Mrs. Umney desmaiou.
"Que clima monstruoso", disse calmamente o Ministro Americano enquanto acendia um longo charuto, "Acho que este velho país está tão super povoado que não há um clima decente que chegue para todo mundo.Fui sempre de opinião que a emigração era a única solução para a Inglaterra".
"Meu caro Hiram", disse Mrs. Otis, " que faremos com uma mulher que desmaia assim ?"

"Desconte-lhe as coisas quebradas do salário", respondeu o Ministro, "ela não tornará a desmaiar depois disso".Mrs. Uniney voltou a si em poucos instantes. Estava, porém, sem dúvida alguma,muito abalada.Com ar grave, preveniu Mrs. Otis de que não tardariam a registrar-se acontecimentos perturbadores na casa. "Tenho visto com os meus próprios olhos, Senhor", disse ela, " coisas que fariam qualquer Cristão ficar com os cabelos em pé, e noite após noite não prego os olhos por causa dos fatos terríveis que se passam aqui".Mr. Otis e sua esposa afirmaram calorosamente à boa mulher que não tinham medo de fantasmas, e depois de invocar as bênçãos da Providência sobre seus novos patrões e procedido de jeito a obter aumento de salário, a velha governanta recolheu-se ao seu quarto,um tanto trôpega.

II
A violenta tempestade desabou com selvageria durante toda aquela noite, mas nada de especial aconteceu. Na manhã seguinte, porém, ao descer para o desjejum, os Otis verificaram que a horrível mancha de sangue reaparecera no assoalho. "Não acho que a culpa seja do Detergente Paragon", disse Washington , " pois já o experimentei num monte de coisas. Isto deve ser o fantasma".Ele conseguiu apagar a mancha pela segunda vez, mas na segunda manhã ela apareceu de novo. Na manhã do terceiro dia também lá estava, embora a biblioteca tivesse sido trancada à noite por Mr. Otis em pessoa, que ainda tomara o cuidado de levar a chave consigo ao subir.Toda a família encontrava-se agora interessadíssima e Mr. Otis começou a suspeitar de que havia sido dogmático demais ao negar a existência de fantasmas, Mrs. Otis manifestou sua intenção de inscrever-se na Sociedade de Estudos Psíquicos, e Washington enviou uma extensa carta aos senhores Myers e Podmore, acerca da Persistência das Manchas Sanguíneas relacionadas aos Crimes de Morte. Nessa noite, todas as dúvidas a respeito da existência objetiva dos fantasmas dissiparam-se para sempre.
0 dia havia sido quente e ensolarado e ao frescor do anoitecer , toda a família saiu para dar uma volta.Não regressaram senão lá pelas nove horas, quando fizeram uma ceia leve.De modo algum, a conversa incluiu qualquer alusão aos fantasmas, de maneira que não se poderiam pôr em causa essas preliminares condições de expectativa e auto-sugestão que tantas vezes precedem a aparição dos fenômenos psíquicos. Como Mr. Otis contou-me mais tarde, a discussão girou em torno de assuntos triviais que constituem a conversação entre americanos cultos da melhor sociedade, como a imensa superioridade de Miss Fanny Davenport, como atriz, sobre Sarah Bernhardt; a dificuldade de obter milho verde, bolos de trigo mouro, mesmo nos melhores estabelecimentos ingleses; a importância de Boston no desenvolvimento da espiritualidade mundial; as vantagens do sistema de registro das bagagens nas estradas de ferro; a suavidade do sotaque nova-iorquino,comparada com a pronúncia arrastada de Londres. Nenhuma menção foi feita às coisas sobrenaturais, ou muito menos a Sir Simon de Canterville.
Às onze horas a família recolheu-se, e às onze e meia todas as luzes já estavam apagadas.
Algum tempo depois, Mr. Otis foi despertado por um ruído singular que vinha do corredor, em frente a porta do seu quarto. Soava como um clangor de metal, e aproximava-se cada cada vez mais.Levantou-se imediatamente, riscou um fósforo e olhou o relógio.Era uma hora em ponto.Razoavelmente calmo, Mr.Otis tomou o próprio pulso e verificou que as pulsações não estavam exageradas, logo, não era febre. O ruído estranho continuava, e dentro em pouco Mr. Otis percebeu distintamente passos. Enfiou os chinelos, tirou do seu estojo de toalete uma garrafinha oblonga e abriu a porta. Bem diante de si, ao pálido luar ele viu um velho de terrível aspecto. Seus olhos, pareciam carvões em brasa e lançavam clarões vermelhos.Os cabelos longos e grisalhos caíam-lhe sobre os ombros em madeixas emaranhadas.O traje, de corte antiquado estava manchado e em farrapos.Pesados grilhões enferrujados pendiam-lhe dos pulsos e dos tornozelos. "Meu caro senhor, disse Mr. Otis, "devo realmente insistir para que lubrifique esses grilhões, e pensando no senhor, trouxe-lhe esta garrafinha do Lubrificante Tammany Sol Levante. Dizem ser inteiramente eficaz logo à primeira aplicação. Na embalagem há vários testemunhos assinados por teólogos eminentes do meu país. Deixarei o frasco aqui, junto dos candelabros, e sentir-me-ei deveras feliz em arranjar-lhe outro, se o senhor assim o desejar". Ao dizer isto, o Ministro dos Estados Unidos colocou o frasco sobre o tampo de mármore de uma mesa e, fechando a porta, voltou a meter-se na cama.

O Fantasma de Canterville ficou uns instantes imóvel, cheio de uma indignação bem natural; depois, arremessando violentamente o frasco ao soalho encerado, sumiu-se ao longo do corredor a soltar grunhidos cavernosos e projetando terrificantes clarões verdes ao redor.Porém, ao atingir o alto da grande escadaria de carvalho, uma porta abriu-se bruscamente, apareceram duas figurinhas vestidas de branco, e um enorme travesseiro passou-lhe, zumbindo, rente à cabeça! Decididamente, não havia tempo a perder e, adotando a Quarta Dimensão como rápido meio de salvação, esgueirou-se através da parede, e casa voltou ao sossego.
Tendo alcançado a pequena câmara secreta situada da ala esquerda, apoiou-se para retomar fôlego, e pôs-se a refletir no que lhe acabara de suceder.Em toda a sua carreira de trezentos anos, brilhante e ininterrupta, nunca havia sido tão grosseiramente insultado. Recordou o paroxismo de terror que infundira na Duquesa Viuva, levando-a a ter um ataque, quando se contemplava no espelho,enfeitada de diamantes e rendas; as quatro criadinhas que haviam tido uma crise de nervos, muito simplesmente porque ele, rindo com escárnio, as espreitara através dos cortinados de um dos quartos de hóspedes; o cura da paróquia, cuja vela apagara com um sopro quando saia tarde da noite da biblioteca, e de como este ficara sob os cuidados de Sir William Gul, desde então um perfeito Mártir dos distúrbios nervosos ; a velha senhora de Tremouillac, a qual tendo acordado de manhã cedinho e visto um esqueleto sentado numa poltrona junto da lareira, imerso na leitura do seu diário, ficara presa ao leito por seis semanas com febre cerebral. Ao convalescer, reconciliara-se com a Igreja, cortando todas as relações com Monsier de Voltaire, esse cético notório Lembrou-se também da terrível noite em que o patife do Lord Carterville fora encontrado no seu quarto de vestir meio sufocado, com o valete de ouros no fundo da garganta;e de como este confessara antes de morrer, ter trapaceado no jogo por meio dessa carta, e roubado de Charles James Fox, em Crockford's, cinqüenta mil libras esterlinas, e jurava que o fantasma obrigara-o a engolir a carta. Rememorou todos estas grandes façanhas e evocou ainda o caso do mordomo que atirara em si mesmo na dispensa, após ter visto uma mão verde bater nos vidros; depois, o da bela Lady Stutfield, que fora obrigada a usar sempre uma fita de veludo negro em volta do pescoço, para ocultar a marca que cinco dedos de fogo haviam impresso na sua pele branca, e que acabara por se matar, afogando-se no lago das carpas, no fim da Alameda do Rei. Com o egoísmo entusiástico do verdadeiro artista, o Fantasma passou em revista as suas realizações mais famosas. E com um sorriso cheio de azedume, recordou-se da sua última aparição como "Red Ruben ou o Bebê Estrangulado", da sua estréia em "O Magro Gibeon ou O Vampiro de Bexley Moor", e da agitação que provocara, numa encantadora tarde de junho, brincando muito simplesmente com a sua própria ossada, em cima da relva do campo de tênis. E ao fim de estes feitos, eis que uns miseráveis americanos modernos lhe vinham oferecer Lubrificantes Sol Levante e arremessar-lhe travesseiros à cabeça! Era verdadeiramente intolerável. Nunca fantasma algum fora tratado daquela maneira. Decidiu que teria sua vingança, e até romper a aurora, permaneceu em atitude de profunda meditação.

III
Na manhã seguinte, quando a família Otis reuniu-se durante o café da manhã, conversou-se um pouco sobre o fantasma, mas o Ministro dos Estados Unidos, estava, como é natural, um pouco aborrecido por ver que sua dádiva não fora aceita.

"De forma alguma eu tive a intenção de infligir ao fantasma qualquer dano pessoal e,sendo certo que ele reside na casa há tanto tempo, vocês devem admitir que é muito pouco delicado atirar-lhe travesseiros à cabeça."
Lamento declarar, que perante esta justa advertência, os gêmeos desataram em gargalhadas.

"Por outro lado", prosseguiu o embaixador, "se ele se recusa, teimosamente, a usar o lubrificante Sol Levante, teremos que confiscar-lhe os grilhões. É impossível dormir comum barulho assim no corredor!"
Mas, durante todo o resto da semana, não foram incomodados de forma alguma, e a única coisa a excitar a atenção era o reaparecimento contínuo da mancha de sangue no soalho da biblioteca. E isso era muito estranho, porque Mr. Otis fechava a porta a chave todas as tardes e mandava trancar bem as janelas. O fato da mancha mudar tantas vezes de cor como se fosse um camaleão, provocava igualmente numerosos comentários.
Em determinadas manhãs, ela aparecia em vermelho escuro (quase indiano), numa outra, em vermelhão francês, em seguida, púrpura, até que uma vez, quando os Otis desceram para as orações familiares, conforme os ritos cheios de simplicidade da Igreja Livre Americana Reformada e Episcopal, eles a encontraram em verde esmeralda resplandecente. Naturalmente, estas mutações caleidoscópicas muito divertiam a família, e todas as noites, estabeleciam-se apostas a seu respeito. A única pessoa que não tomava parte na brincadeira era a pequena Virgínia, que, por qualquer razão ignorada, parecia sempre consternada ao ver a mancha de sangue e esteve perto de desatar a chorar na manhã em que a nódoa apareceu no tom verde-esmeralda.
A segunda aparição do fantasma aconteceu num domingo, à noite. Pouco tempo depois de se haverem recolhido, foram de súbito alarmados por um medonho estrondo vindo do vestíbulo.Descendo precipitadamente as escadas, verificaram que uma grande e antiga armadura fora despregada de seu pedestal e atirada no lajedo, enquanto o Fantasma de Canterville, sentado numa cadeira de espaldar alto e com uma expressão de intensa agonia, esfregava os joelhos.Os gêmeos, que se tinham munido das suas atiradeiras, descarregaram imediatamente dois pequenos projéteis sobre o fantasma, com essa precisão de pontaria que só longos e sérios exercícios, tendo por mestre um professor exímio, podem dar, enquanto o Ministro dos Estados Unidos, mantendo-o sob a ameaça do seu revólver, intimava-o, segundo a etiqueta californiana, a que pusesse as mãos ao alto. O Fantasma levantou-se bruscamente, com um medonho grito de raiva e deslizou por entre eles todos tal qual um nevoeiro, apagando na sua passagem a vela de Washington Otis e deixando-os na completa escuridão. Ao alcançar o cimo da escadaria, o Fantasma recobrou ânimo e decidiu soar o famoso carrilhão de risos demoníacos, cuja utilidade mais de uma vez havia experimentado.
Contava-se que aquilo fizera embranquecer, durante o espaço de uma só noite, a cabeça de Lorde Raker, e fizera com que três governantas francesas de Lady Canterville se despedissem antes do fim do mês. Riu portanto com seu riso mais horripilante fazendo tremer o teto abobadado. Mal porém se extinguira o medonho eco, abriu-se uma porta e Mrs. Otis surgiu trajando um leve roupão azul." Temo que o senhor não esteja se sentindo bem, disse ela," e trouxe-lhe um vidro do Elixir do Dr. Dobell, e se por ventura tratar-se de indigestão, o senhor verá que é um excelente remédio."
O Fantasma olhou-a furioso e começou a fazer preparativos para transformar-se num grande cão negro, proeza pela qual era justamente renomado e que motivara, segundo o médico da família, a permanente idiotia do tio de Lorde Canterville, o Hon.Thomas Horton.O som de passos aproximando-se fê-lo, porém, hesitar. Limitou-se a tornar-se ligeiramente fosforescente e desapareceu com um tétrico gemido, exatamente quando os gêmeos acabavam de chegar.

Entrou em seu quarto inteiramente aniquilado, tomado de violenta agitação.
A vulgaridade dos gêmeos e o crasso materialismo de Mrs Otis eram extremamente desagradáveis, contudo, o que realmente o perturbava era o fato de não ter podido usar a armadura. Tivera a esperança de que mesmo americanos modernos, se emocionassem à vista do Espectro de Armadura, se não por um motivo razoável, pelo menos por respeito ao poeta nacional Longfellow, cuja graciosa e atraente poesia, a ele mesmo entretivera quando os Cantervilles estavam na cidade. Além disso tratava-se de sua própria armadura. Usara-a com êxito no torneio de Kenilworth e fora muito cumprimentado pela Rainha Virgem em pessoa. Todavia, ao vesti-la, sentira-se completamente abatido pelo peso da enorme couraça e do capacete de aço, caindo pesadamente no cão de pedra e ferindo os joelhos e os dedos da mão direita.

Durante alguns dias sentiu-se muito doente e não se afastou do quarto, exceto para manter em ordem a mancha de sangue. Porém, acreditando-se restabelecido resolveu fazer uma terceira tentativa de assustar o Ministro dos Estados Unidos e sua família.

Escolheu sexta-feira, 17 de agosto, para a aparição e gastou a maior parte do dia examinando seu guarda-roupa. Decidiu-se por fim a favor de um grande chapéu de penacho vermelho e um enferrujado punhal. À tarde desabou um violento temporal e o vento era tão forte que fazia estremecer todas as janelas e portas da velha casa. Era exatamente a espécie de tempo que lhe agradava. Seu plano de ação era o seguinte: caminharia sem ruído até o quarto de Washington Otis, gemeria aos pés da cama e se apunhalaria três vezes no pescoço, ao som de música lenta. Nutria por Washington um especial rancor, estando ciente do fato de que era ele o responsável pela remoção da mancha de Canterville com o Detergente Paragon, de Pinkerton. Depois de reduzir o desabrido e tolo jovem à condição de abjeto terror, avançaria pelo quarto ocupado pelo Ministro dos Estados Unidos e sua esposa, colocaria mão pegajosa sobre a testa de Mrs. Otis, ao mesmo tempo que murmuraria aos ouvidos de seu trêmulo marido segredos medonhos de necrotério. Com respeito a Virgínia ainda não tomara uma decisão. Ela jamais o insultara de modo algum, e era bonita e tranquila. Alguns gemidos cavos dentro do armário seriam mais que suficientes ou, se isso não a despertasse, poderia segurar a colcha com os dedos trêmulos. Quanto aos gêmeos estava decidido a dar-lhes uma lição. A primeira coisa a fazer, naturalmente sentar-se sobre o peito deles, de maneira a produzir a sufocante sensação de asfixia e pesadelo. Depois, como suas camas ficassem bem juntas, surgiria de pé entre elas sob a forma de um cadáver verde e gelado, até que os meninos ficassem paralisados de medo. Por último, despojando-se da mortalha, arrastar-se-ia em volta de todo o aposento com a sua ossada embranquecida, fazendo ao mesmo tempo os olhos girarem, numa imitação de "Daniel, o Mudo, ou o Esqueleto do Suicida", papel no qual produzira grande efeito em muitas ocasiões e ao qual atribuía a mesma importância da sua famosa personagem "Martin, o Louco, ou O Mistério Mascarado”.

Às dez e meia, ouviu a família recolher-se. Durante um bocado de tempo foi perturbado pelas selvagens risadas dos gêmeos, os quais, com a descuidada alegria de estudantes, certamente se divertiam antes de se meterem na cama.Todavia, às onze horas e um quarto tudo estava quieto, e ao soar a meia-noite, ele partiu para a sua expedição.O mocho vinha roçar as asas nos vidros das janelas, o corvo crocitava no cimo do velho teto e o vento vagueava em volta da casa, gemendo como alma penada. Mas, a família Otis dormia, inconsciente do seu destino, e o cadenciado ressonar do Ministro dos Estados Unidos cobria o ruído do temporal. O fantasma esgueirou-se para fora da madeira das paredes sem dar sinal de si. Sobre a sua boca murcha e cruel desenhava-se um aflitivo sorriso, e a lua escondeu-se por detrás de uma nuvem, quando ele passou junto da grande janela ogival, ornada de um brasão azul e ouro, que representava as suas próprias armas e as da sua esposa assassinada. Deslizava como uma sombra funesta e até as trevas pareciam odiá-lo. De súbito, supôs ouvir alguém a chamá-lo. Deteve-se; mas apenas o latido de um cão subia da Granja Vermelha. Prosseguiu caminho,resmungando estranhas pragas do século dezesseis e brandindo de quando em quando a adaga cheia de ferrugem.O fantasma atingiu, por fim, o recanto do corredor que conduzia ao quarto do infortunado Washington. Parou um instante. O vento sacudia-lhe as madeixas compridas e cinzentas, fazendo ondular, de maneira grotesca e fantástica, o sudário de morto. O quadro inspirava indizível horror. O relógio soou então o quarto de hora. Compreendeu que chegara o momento. Soltou, baixinho, uma risadinha de escárnio e contornou a esquina do corredor. Mas, mal tinha dado um passo, logo recuou com um lamentoso gemido de terror, ocultando a face macilenta nas mãos ossudas. Diante de si, erguia-se um horrível espectro, tão imóvel como uma figura de pedra, tão monstruoso como o sonho de um louco. A cabeça dele era calva e luzidia, a face redonda, gorda e branca. Um riso ignóbil parecia ter-lhe contorcido as feições numa expressão eterna de zombaria. Dos olhos, escorriam clarões escarlates. A boca era um largo poço de fogo e uma horrenda vestimenta, semelhante à sua, envolvia de longas pregas brancas o vulto titânico.Um letreiro, contendo uma inscrição em caracteres estranhos e antigos, ornava-lhe o peito: sem dúvida, um pergaminho de infâmia, a narrativa de medonhas faltas, uma lista de crimes espantosos. Com a mão direita, brandia um gládio de aço luzidio.

Nunca tendo visto um fantasma antes, sentiu naturalmente um grande pavor.
Relanceou os olhos sobre o outro fantasma uma segunda vez e desatou a fugir para o seu quarto, tropeçando, ao seguir pelo corredor, no longo sudário que trazia. Por último, deixou cair a adaga enferrujada dentro das grossas botas do embaixador, onde o mordomo foi encontrá-la no dia seguinte de manhã. Uma vez no refúgio da sua alcova, atirou-se para cima da estreita enxerga e enterrou o rosto nos lençóis. Porém, transcorrido um pedaço de tempo, a antiga coragem dos Cantervilles recuperou os seus direitos. Decidiu ir falar com o outro fantasma logo que nascesse o dia. E apenas a aurora prateou as colinas, voltou ao local onde havia, visto pela primeira vez o formidável espectro, raciocinando que, no final das contas, dois fantasmas valiam mais do que um e que, com a ajuda do seu novo colega, talvez vencesse melhor os gêmeos. Mas quando ali chegou, no mesmo lugar, um horrível espetáculo feriu seus olhos: Era de todo evidente que acontecera qualquer coisa ao fantasma, porque a luz lhe desaparecera completamente das órbitas, o gládio luzidio escorregara-lhe da mão e o corpo encostava-se à parede numa atitude de constrangimento e incômodo. Precipitou-se para ele e tornou-o nos braços. Mas, com assombro seu, a cabeça do outro rolou para o chão, o corpo foi-se abaixo e ele percebeu que estreitava apenas um cortinado de cama, de fustão branco, ao mesmo tempo que uma escova de cabo, um machado de cozinha e um nabo oco lhe jaziam aos pés. Incapaz de compreender esta curiosa transformação, pegou o letreiro com pressa febril e, à luz fosca da aurora, leu estas palavras abomináveis:
"0 FANTASMA OTIS é o único, autêntico e original espantalho. DESCONFIEM DAS Imitações!..."

Como num relâmpago, compreendeu tudo. Tinham-lhe pregado uma peça! A característica expressão dos Cantervilles perpassou-lhe nos olhos; cerrou as maxilas sem dentes ,levantando muito alto, acima da cabeça, as mãos descamadas, jurou, segundo a fraseologia pitoresca da escola antiga, que, quando Chantecler entoasse seu canto pela segunda vez, dar-se-iam ali acontecimentos sangrentos e a Morte deslizaria por aqueles lugares em passos silenciosos.

Mal formulara este temível juramento, subiu, a distância, do galinheiro coberto de telhas vermelhas, o canto alegre de um galo. O Fantasma soltou um prolongado e amargo riso e esperou. Hora após hora, esteve à espera; mas, por qualquer razão estranha,Chantecler não repetiu o canto. Por fim, às sete horas e meia, a chegada dos criados obrigou-o a abandonar o seu horrível posto de sentinela. Regressou ao quarto a passos lentos, a meditar na sua vã esperança e no seu abortado plano. Consultou, então, muitas obras a que dedicava particular apreço e que tratavam dos antigos tempos da cavalaria. Aí verificou que, em todas as vezes que tal juramento havia sido formulado, sempre o galo cantara uma segunda vez. “Que a perdição recaia sobre esta maldita ave!”, resmungou ele, “ Pena não me encontrar no empo em que, com minha intrépida lança, lhe trespassaria a garganta e em que o teria obrigado a cantar só para mim até perder o sopro!” Depois, estendeu-se num confortável ataúde de chumbo, onde permaneceu até o anoitecer.

IV
No dia seguinte, o Fantasma estava muito fraco e cansadíssimo. Começava a ressentir-se dos efeitos da medonha agitação das quatro últimas semanas. Seus nervos estavam abalados e até o menor ruído o sobressaltava. Não saiu do quarto durante cinco dias e decidiu por fim renunciar à nódoa de sangue no chão da biblioteca. Se a família Otis não queria aquilo, estava claro que, sem sombra de dúvida, não era digna do caso. Era evidente que essas pessoas viviam num plano de existência de baixo materialismo e eram incapazes de apreciar o valor simbólico dos fenômenos sobrenaturais. O assunto das aparições espectrais e o desenvolvimento dos corpos astrais eram, bem entendido, coisas diferentes e alheias à atenção dessa gente. Ele, Fantasma, tinha como missão, missão solene, aparecer no corredor uma vez por semana e ulular através de um janelão ogival na primeira e na terceira quartas-feiras do mês e não via maneira de poder subtrair-se honrosamente às suas ocupações. A sua vida, é certo, fora culposa, mas por outro lado, ele era rigidamente escrupuloso em tudo quanto se relacionava com o sobrenatural.
Portanto, três sábados a fio, o Fantasma atravessou o corredor como de costume, entre a meia-noite e as três horas da manhã, tomando mil precauções para não ser visto, nem ouvido. Tirou os sapatos, pisou tão levemente quanto possível as faixas do assoalho roídas pelo caruncho,enrolou-se no manto de veludo negro e pensou empregar o Lubrificante Sol Levante para untar os seus grilhões. Devo ressaltar que reconheço não ter sido sem dificuldade que veio a adotar este radical meio de proteção, contudo,certa noite na hora em que a família se preparava para o jantar, introduziu-se nos aposentos de Mr. Otis e levou a tal garrafinha. Inicialmente sentiu-se um tanto humilhado, mas logo teve o bom senso de reconhecer que a invenção estava longe de ser má, e até certo ponto, lhe favorecia os planos.

Apesar de tudo, não deixaram de molesta-lo. Constantemente, estendiam barbantes no corredor que o faziam tropeçar no escuro, e uma vez, em que se encontrava vestido para desempenhar o papel de " Isaac Negro ou O Caçador de Hogley Woods", sofreu uma queda muito grave sobre um declive que os gêmeos haviam armado, e que ia da sala das tapeçarias até o cimo da escada de carvalho. Esta última afronta pô-lo em tamanha fúria que resolveu fazer um derradeiro esforço a fim de restabelecer a sua dignidade e a sua posição social. Decidiu, pois, uma visita, na noite seguinte, aos juvenis e insolentes colegiais de Eton, no seu famoso disfarce de "Rupert, o Despreocupado Tudo, ou o Conde-sem-Cabeça". O Fantasma já não fazia aparição alguma mascarado desta maneira há mais de setenta anos, precisamente desde que, assim vestido, aterrorizara a gentil Lady Bárbara Modish, a ponto de ela ter rompido bruscamente as promessas de noivado com o avô do atual Lord Canterville e fugido para Gretna Green com o belo Jack Castleton, declarando que nada neste mundo a faria entrar numa família que deixava um tão horrível fantasma percorrer o terraço, ao crepúsculo. Mais tarde, o pobre Jack foi morto em duelo por Lord Canterville em Wandsworth Common, e Lady Bárbara, com o coração despedaçado, morreu em Tunbridge Wells. E morrera antes de findar aquele mesmo ano, de sorte que, sob todos os aspectos, fora um esplêndido sucesso.
Todavia, tratava-se de uma caracterização extremamente difícil, se me é permitido usar esta expressão de teatro, a propósito de um dos maiores mistérios do sobrenatural, ou, para empregar um termo mais científico, do mundo natural supra-normal. Foram gastas precisamente três horas para executar os preparativos, mas finalmente tudo ficou pronto.Estava muitíssimo satisfeito com sua aparência. As altas botas de montar que condiziam com o traje eram um tanto largas demais para ele, e não tinha podido achar senão uma de suas pistolas. Ainda assim, estava muito contente, e à uma hora e um quarto, deslizou através do forro de madeira e desceu suavemente para o corredor. Chegando ao quarto ocupado pelos os gêmeos,(chamavam-no "Câmara do Leito Azul", por causa de cor de seus cortinados) encontrou a porta entreaberta. Querendo fazer uma entrada de pleno efeito, empurrou bruscamente a porta, mas o conteúdo de um grande jarro entornou-se em cima dele e o próprio jarro, ao cair, roçou-lhe pela espádua esquerda.

No mesmo instante, risadas que alguém procurava reprimir subiram dos leitos de colunas. O abalo nervoso que experimentou foi tamanho que desatou a fugir para o seu esconderijo com a maior rapidez. No dia seguinte, muitíssimo resfriado, teve de conservar-se na cama. A consolação única que lhe restava era a de não ter levado a sua própria cabeça nesta expedição; do contrário, a imprudência poder-lhe-ia ter acarretado as mais graves conseqüências.

O Fantasma abandonou, então, toda a esperança de assustar aquela grosseira família americana e contentou-se, afinal, em percorrer os corredores com chinelos de solas de feltro, o pescoço envolto num espesso cachenê vermelho, em virtude das correntes de ar, e empunhando um bacamarte com receio de ser atacado pelos gêmeos.
Foi a 19 de setembro que ele recebeu o golpe final. Descera ao vasto hall de entrada, certo de que ali ninguém o molestaria, e divertia-se agora alvejando com observações satíricas, as grandes fotografias do Ministro dos Estados Unidos e sua mulher, assinadas por Saroni, que haviam substituído os retratos da família dos Cantervilles. Encontrava-se vestido com uma longa mortalha, muito simples, mas decente, salpicada de manchas de lama vinda do cemitério. Prendera o queixo com uma atadura e segurava uma pequena lanterna e uma enxada de coveiro. Numa palavra, estava disfarçado para o papel de "Jonas, o Morto sem Sepultura, ou o Ladrão de Cadáveres de Chestsey Barn", uma das suas mais notáveis caracterizações, da qual os Cantervilles tinham excelentes razões para se lamentar, porque fora essa a verdadeira origem da desavença com o seu vizinho, Lord Rufford. Eram aproximadamente duas horas e um quarto da manhã e ele poderia afirmar que todos os moradores da casa repousavam, mas ao dirigir-se, calmamente, para a biblioteca, a fim de ver se ainda restava qualquer vestígio da mancha de sangue, saltaram de súbito sobre ele, de um recanto escuro, dois vultos que agitavam ferozmente os braços por cima da cabeça e lhe berravam "BU-u! BU-u!" aos ouvidos.
Tomado de pânico, o que em tais circunstâncias era muitíssimo natural, ele precipitou-se para a escadaria; porém, aí esperava-o Washington com o grande esguicho do jardim.

Cercado de todos os lados pelos inimigos, literalmente encurralado, desapareceu no interior da enorme lareira, que,felizmente para ele, não estava acesa. Teve de abrir caminho através dos canos e das chaminés e alcançou o seu quarto num terrível estado de sujeira, desarranjo e desespero.
Após esta aventura renunciou às expedições noturnas. Os gêmeos muitas vezes se ocultaram à espera dele e, todas as noites, juncavam os corredores de cascas de nozes, coisa que aborrecia bastante os pais e os criados; mas foi tudo inútil. Era manifesto que o Fantasma, ferido nos seus sentimentos, se recusava a aparecer. Em conseqüência, Mr. Otis retomou a sua grande obra sobre a "História do Partido Democrático", em que trabalhava havia uma porção de anos. Mrs. Otis organizou um maravilhoso clambake, prato feito de moluscos de todas as espécies, cozidos entre camadas de algas sobre pedras em brasa.,que surpreendeu toda a região. Os rapazes dedicaram-se ao cross, ao écarté, ao poquer e a outros jogos nacionais americanos. Virgínia percorreu no seu potro todas as alamedas em companhia do jovem Duque de Cheshire, que viera passar a última semana de férias em Canterville Chase.Acreditou-se, naturalmente, que o fantasma desaparecera dali e Mr. Otis escreveu a Lord Canterville para informá-lo do caso. Este respondeu que a notícia lhe dava grande prazer e enviou os seus cumprimentos à digna esposa do embaixador.

Entretanto, os Otis enganavam-se, pois o fantasma permanecia ainda na casa e, embora estivesse agora quase inválido. Não tinha, aliás, de forma alguma a intenção de ficar quieto, sobretudo ao saber que, entre os convidados, se encontrava o jovem Duque de Cheshire, cujo tio-avô, Lord Francis Stilton, apostara um dia cem guinéus em como jogaria dados com o fantasma de Canterville, vindo a ser encontrado, na manhã seguinte, estendido no chão da sala de jogo e completamente paralítico. Não obstante ter vivido até avançada idade, nunca s pôde dizer senão isto: "Duplo-seis!"A história fora bem-conhecida na altura, mas, para poupar os sentimentos de duas famílias nobres, tudo fora tentado para ocultar o fato. Todavia, encontrar-se-á uma narrativa pormenorizada a respeito do caso no terceiro volume da bra de Lord Tattle: "Memórias Relativas ao Príncipe Regente e seus Amigos”. Por isso era mais que natural o desejo do Fantasma de provar que não tinha perdido a influência sobre os Stilton, aos quais estava unido por um parentesco afastado, por conta de uma sua prima-irmã haver se casado em segundas núpcias com o Senhor de Bulkeley, de quem os Duques de Cheshire, como se sabe, descendem em linha direta. Assim, tomou as suas disposições para aparecer ao jovem enamorado de Virgínia na sua célebre criação do "Monge Vampiro, ou o Beneditino Exangue", espetáculo tão horrível que quando a velha Lady Startup o viu, coisa que lhe sucedeu nessa fatal véspera do ano de 1764, desatou nos mais dilacerantes gritos, que terminaram por um ataque de apoplexia. Morreu três dias depois, não sem antes deserdar os parentes, os quais aliás, eram seus parentes mais próximos, deixando todo o dinheiro que possuía ao seu boticário de Londres.

Entretanto, à última hora, o terror que lhe infundiam os gêmeos impediu de abandonar o seu quarto. Assim, na câmara real, o duquezinho pode dormir em paz, no vasto leito de baldaquino ornado de plumas, a sonhar com Virgínia.

V

Alguns dias depois, quando Virgínia e o seu apaixonado de cabelos encaracolados percorriam a cavalo as pradarias de Brockley, jovenzinha prendeu-se numa sebe e rasgou o vestido de amazona tão desastradamente, que ao voltar para casa, decidiu usar a escada dos fundos para que ninguém a visse. Porém, ao passar correndo diante da sala das tapeçarias, cuja porta, precisamente estava aberta, percebeu que havia alguém lá dentro e imaginou que seria a criada de quarto da mãe, a qual, às vezes, levava para lá a costura. Assim, entrou no aposento decidida a pedir à criada que lhe consertasse a saia.

Entretanto, para sua imensa surpresa,Virgínia deparou-se com o Fantasma de Canterville em pessoa! Estava sentado junto da janela,contemplando o ouro das árvores amarelentas e as folhas rubras que rodopiavam como loucas na grande alameda.Tinha a cabeça apoiada na mão e toda a sua atitude traía uma depressão extrema. Na verdade, ele apresentava um ar tão desolado e tão lamentável, que a pequena Virgínia, cuja primeira ideia fora fugir para seu quarto, compadeceu-se e tentou reconfortá-lo. Contudo,os passos de Virgínia eram tão leves e a melancolia do Fantasma tão profunda que este não teve consciência da presença da jovem senão quando ela lhe dirigiu a palavra.

“Sinto muito pelo senhor, disse Virgínia, “mas os meus irmãos voltam amanhã para Eton, e se o senhor se comportar bem, ninguém o atormentará”.
Comportar-me bem? Mas que absurdo! respondeu ele, olhando em volta espantado, à vista daquela gentil jovenzinha que ousava dirigir-se a ele.“Um completo absurdo! É imprescindível que eu faça ranger os meus grilhões e que ulule pelos buracos das fechaduras e que passeie por aí de noite, se é a isto que você se refere. Essa é a minha única razão de existir.”
“Isso não é uma razão de existência, e o senhor bem sabe que tem sido muito mau. Mrs. Urnney contou-nos, no dia da nossa chegada aqui, que o senhor matou a sua mulher.”

“Bem, eu admito,” respondeu ele com petulância, “mas trata-se de um assunto de família, e ninguém tem nada a ver com isso.”

“É muito malfeito matar alguém”, insistiu Virgínia, que, às vezes, mostrava uma encantadora expressão de gravidade puritana, herdada de algum antepassado da Nova Inglaterra.

“Oh, eu odeio a severidade barata da ética abstrata!, respondeu ele, “ Minha mulher era feia, nunca engomava convenientemente a minha gola de pregas e não conhecia nada de cozinha. Olhe, eu tinha matado um gamo nos bosques de Hogley, um animal magnífico.

Quer saber como ela mandou prepara-lo? Mas que importa este caso agora!?
Tudo isso acabou. Não creio, porém, que fosse muito bonito da parte de seus irmãos fazerem-me morrer de fome, embora eu a tenha matado.”
“Fazê-lo morrer de fome? Oh, senhor Fantasma, quero dizer, Sir Simon, o senhor tem fome? Tenho um sanduíche na minha bolsa. Quer?”
“Não, obrigado, já não como agora. Mas apesar de tudo, é muita amabilidade da sua parte. A senhorita é muito mais gentil do que o resto daquela sua família horrível, grosseira, indigna!”

“Pare!”- exclamou Virgínia, batendo com o pé no chão. “Quem é grosseiro, horrível e vulgar, é o senhor; e, quanto à indignidade, sabe perfeitamente que foi o senhor quem roubou os tubos de tinta da minha caixa de pintura para tentar avivar essa ridícula mancha de sangue na biblioteca.Primeiro pegou todos os meus vermelhos, sem esquecer o vermelhão, e eu tive de deixar de pintar o pôr do sol. Depois, arrebatou o verde e o amarelo cromado, e por fim só havia o índigo e o branco da China, de modo que eu só podia pintar paisagens à luz do luar, que deprimem tanto quando a gente as olha e são tão pouco fáceis de fazer. Eu nunca disse nada contra o senhor; ainda assim estava muito aborrecida, e tudo aquilo era bastante ridículo.Onde já se viu sangue verde esmeralda?”

“Bem,” disse o Fantasma um tanto embaraçado, “ o que posso fazer? Nestes nossos dias, é muito difícil encontrar sangue verdadeiro e como foi o seu irmão a começar tudo isso com a história do Pargon, não vejo razão para não lançar mão dos seus tubos tubos de tinta. Quanto à cor, isso é simples questão de gosto: os Cantervilles, por exemplo,têm sangue azul, o mais azul da Inglaterra, mas sei que vocês, os americanos, zombam de tudo isto.”
“O senhor não sabe nada a esse respeito, e o melhor que tem a fazer é emigrar, para cultivar o espírito. Meu pai não deixará de sentir-se muitíssimo feliz em lhe conseguir uma passagem gratuita. O senhor não encontrará dificuldade alguma, na alfândega, onde todos os funcionários são democratas. Uma, vez em Nova Iorque, o senhor alcançará o maior dos êxitos. Conheço uma porção de gente que daria cem mil dólares para ter um antepassado, e ainda mais para ter um fantasma na família.”
“Estou convicto de que não gostaria da América.”

“Porque, suponho, não temos lá ruínas, nem curiosidades” disse Virgínia ironicamente.
“Nem ruínas! Nem curiosidades!” - replicou o fantasma. “Mas vocês têm a sua Marinha e as boas maneiras americana!”

“Tenha uma boa noite”, disse Virginia, “pedirei ao meu pai que conceda aos gêmeos uma semana suplementar de férias”.

“Por favor, não se vá, Miss Virgínia!” exclamou o Fantasma. “Estou tão só e tão desgraçado que não sei verdadeiramente o que fazer. Quero dormir e não posso”

- Mas isso é absurdo! Basta deitar-se e soprar a vela. Às vezes, é difícil a gente se manter acordada, principalmente na igreja, mas a coisa mais fácil do mundo é dormir. Até os próprios bebês sabem disso,e nem ao menos são tão inteligentes”

“Há trezentos anos que não durmo”,disse ele com tristeza, enquanto Virginia arregalava os belos olhos azuis,” Há trezentos anos que não durmo, e estou tão cansado!”

O rosto de Virgínia tornou-se grave e seus lábios puseram-se a tremer como pétalas de rosa. Aproximou-se do espectro e, ajoelhando-se junto dele, ergueu os olhos para a velha face enrugada.

“Pobre, pobre Fantasma!”, murmurou, “ Não há então local onde possa dormir?”
“Lá embaixo, para lá do pinheiral”, respondeu ele numa voz lenta e sonhadora,“há um jardinzinho. A erva ali é espessa e alta, salpicada por grandes estrelas brancas de cicuta, e o rouxinol canta lá toda noite..Por toda a noite ele canta, a fria lua de cristal olha para baixo e o teixo estende seus braços gigantescos sobre aqueles que dormem.”

Os olhos de Virgínia velaram-se de lágrimas e ela escondeu o rosto nas mãos.
“Fala do Jardim da Morte”, murmurou.

“Sim, da Morte! A Morte deve ser tão bela! Repousar na terra doce e escura, tendo as ervas a ondular por cima de nós, e escutar o silêncio! Não ter ontem, nem amanhã!

Esquecer o tempo! Esquecer a vida, estar em paz! Pode ajudar-me e abrir para mim os Portas da Morte, porque traz o Amor consigo, e o Amor é mais forte do que a Morte”.

Virgínia estremeceu e um frêmito percorreu-a. Durante alguns momentos, fez-se silêncio. Tinha a impressão de estar mergulhada num terrível sonho.
Então, o Fantasma voltou a falar e sua voz ressoava um suspiro do vento.
“Alguma vez leu a velha profecia inscrita nos vitrais da biblioteca?”
“Oh, muitas vezes! - exclamou a mocinha, erguendo a cabeça. “Conheço-a muito bem. Está pintada em curiosas letras negras e é difícil de ler-se. São apenas seis versos”
Quando uma menina loura de coração puro conseguir
Tirar dos lábios pecaminosos uma prece,
Quando a estéril amendoeira florescer,
Quando dos olhos inocentes brotar uma lágrima,
Esta casa ficará para todo o sempre tranquila,
E a Graça voltará a Canterville.

“Mas não sei o que isto quer dizer..”

“Isto quer dizer”, respondeu ele tristemente, “que você deve chorar por mim os meus pecados, porque eu já não tenho lágrimas, e rezar comigo pela minha alma, pois nada me resta de fé. Então, se tiver sido sempre meiga e boa, o Anjo da Morte terá piedade de mim.” Verá na escuridão”, continuou ele, “vultos horríveis, e vozes maldosas falarão no seu ouvido, mas não há de sofrer mal algum, pois o inferno nada pode contra a pureza de uma criança.”

Virgínia não respondeu e o Fantasma torceu as mãos com desespero, baixando o olhar sobre a cabeça coroada de cabelos de ouro reclinada perto dele. A jovem ergueu-se de súbito, muito pálida. Um estranho clarão perpassou pelo seu olhar.

“Não tenho medo,” disse ela com firmeza., e rogarei ao Anjo que tenha piedade.
O Fantasma aprumou-se emitindo um débil grito de alegria. Então, inclinando-se, com uma gentileza já há muito fora de moda, pegou na mão dela e beijou-a. Os dedos de Sir Simon tinham a frieza do gelo e os seus lábios queimavam como fogo, mas Virgínia não sentiu o menor desfalecimento, enquanto ele a fazia atravessar o aposento cheio de sombras.
Bordadas nas tapeçarias, cujo verde já se desbotara, viam-se figurinhas de caçadores. Estes sopraram nas suas trompas enfeitadas de glandes e, com as minúsculas mãos, fizeram-lhe sinal para que fugisse.

“Volte, pequena Virgínia”, gritavam eles, “vá embora!”

Mas o fantasma apertava-lhe a mão com mais força e Virgínia fechou os olhos.
Horrorosos animais de caudas semelhantes às dos lagartos e olhos salientes, pestanejaram-lhe repetidamente, de cima da chaminé esculpida, e murmuravam:
“Tome cuidado, Virginiazinha, tome cuidado, talvez jamais tornemos a vê-la”
Mas, o fantasma deslizou mais depressa e Virgínia não lhes deu ouvidos. Ao atingirem a extremidade da sala, o fantasma parou e murmurou umas palavras que Virgínia não podia compreender. Ela abriu os olhos e viu a parede desaparecer lentamente como um nevoeiro, após o que se encontrou diante de uma grande caverna negra. Envolveu-os um vento áspero e frio e a jovem sentiu que a puxavam pela saia.
“Depressa! Depressa! “ gritou o fantasma. “Senão será demasiadamente tarde.”
Num instante, o forro de madeira tomou a cerrar-se por detrás deles. A sala das tapeçarias ficara vazia.


VI
Dez minutos mais tarde, a sineta tocou para o chá e, como Virgínia não descesse, Mrs. Otis mandou um dos criados chamá-la. Passado um momento, este voltou para dizer que não tinha encontrado Miss Virgínia em parte alguma. Como a menina adquirira o costume de todas as tardes colher flores para o jantar, Mrs. Otis não se inquietou; mas ao soarem as seis horas, sem que a filha houvesse reaparecido, começou a alarmar-se e mandou os rapazes à sua procura, ao mesmo tempo em que ela própria e Mr. Otis percorriam a casa. Aposento por aposento.
As seis e meia, os meninos voltaram , mas sem qualquer notícia irmã. Agora estavam todos na maior ansiedade e não sabiam o que fazer, quando Mr. Otis lembrou-se de repente, que dias antes, havia dado licença a um bando de ciganos para acamparem no parque. Imediatamente, ele partiu para Blackfell Hollow, onde imaginava que os ciganos pudessem estar, acompanhado pelo filho mais velho e dois empregados.
O pequeno Duque de Cheshire, louco de ansiedade, insistira veementemente em juntar-se a eles. Mr. Otis. entretanto, opusera-se terminantemente , temendo alguma escaramuça por parte dos ciganos. Lá chegando, porém, descobriu que estes haviam desaparecido. Contudo, o fogo ainda aceso, e alguns pratos dispersos pelo chão, denunciavam claramente uma retirada repentina.Depois de ter ordenado a Washington e aos dois homens que explorassem a vizinhança, Mr. Otis regressou a toda pressa e expediu telegramas para todos os inspetores de polícia do condado, pedindo-lhes que procurassem uma menina que fora raptada por vagabundos ou ciganos. Em seguida, mandou que lhe selassem o cavalo, recomendou à família e ao hóspede que não deixassem de jantar, e acompanhado de um lacaio, dirigiu-se a Ascot. Porém, mal percorrera duas milhas, ouviu atrás de si um galope. Voltando-se, avistou o o jovem Duque , que vinha montado no seu potro, com o rosto afogueado e os cabelos ao vento.“Lamento muito, Mr. Otis”, disse o rapazinho ofegante, “mas não poderei jantar enquanto Virgínia não for encontrada. Peço-lhe que não se zangue, mas se o senhor houvesse permitido nosso noivado, ano passado, nada disto teria acontecido. Não me fará voltar, não é verdade?! Eu não quero ir . E não irei!”
O Ministro não pôde evitar um sorriso ante o arroubo juvenil e encantador, mas sentiu-se muito comovido com sua devoção por Virgínia. Inclinando-se sobre o cavalo, deu uma palmada no ombro do rapaz e disse: Bem, Cecil, se você não quer ir para casa, suponho ter que levá-lo comigo, mas devo comprar-lhe um chapéu em Ascot.”

“Ora, dane-se o chapéu, preciso é de Virgínia !”, exclamou, rindo, o Duquezinho.
Galoparam até a estação da estrada de ferro, onde Mr.Otis perguntou se não havia sido vista ali, na plataforma, qualquer pessoa correspondendo aos sinais de Virgínia, mas não pôde obter qualquer indicação. Contudo, o chefe da estação telegrafou para todas as outras estações da linha e prometeu severa vigilância. Depois de ter comprado um chapéu para o Duque de um comerciante de novidades, que ia precisamente naquele momento fechar a loja, Mr. Otis dirigiu-se para Brockley, aldeia a quatro milhas dali, a qual, segundo lhe haviam dito, era local de encontro dos ciganos, por lá haver uma comunidade deles. Lá chegando, Mr. Otis e o seu companheiro acordaram o guarda rural, mas não puderam extrair dele a menor informação e, após terem percorrido o prado inteiro, retomaram o caminho de casa. Alcançaram Canterville Chase por volta das onze horas da noite, completamente esgotados e desesperados. Washington e os gêmeos esperavam por eles no portão da propriedade, com lanternas, pois a alameda estava muito escura.

Não se conseguira descobrir a mais leve pista de Virgínia.Os ciganos haviam se concentrado nas pradarias de Brockley, mas a menina não se encontrava entre eles.

Uma confusão de datas explicava sua brusca partida: a feira de Chorton, que se realizava mais cedo do que eles pensavam, obrigara-os a se mover a toda pressa.

Na verdade eles ficaram consternados ao saber do desaparecimento de Virgínia, porque tinham grande reconhecimento a Mr.Otis pela permissão de acampar no seu parque. Por isso, quatro deles ficaram para trás a fim de colaborar nas pesquisas. O tanque das carpas fora esvaziado, e toda a propriedade vasculhada de ponta a ponta sem qualquer resultado. Era forçoso renderem-se à evidência de que pelo menos, naquela noite, Virgínia estava perdida para eles. Profundamente abatidos, Mr. Otis e os rapazes dirigiram-se para casa seguidos do lacaio, o qual conduzia pelas rédeas, os dois cavalos e o potro.

Encontraram no vestíbulo um grupo de criados cheios de medo. A pobre Mrs. Otis estava estendida num divã da biblioteca, semi louca de inquietação e pavor. A velha governanta banhava-lhe a fronte com água-de-colônia, Mr. Otis insistiu imediatamente com ela para que comesse alguma coisa e mandou servir o jantar para todos.

Foi uma refeição bem triste, em que quase não se proferiu palavra. Os próprios gêmeos estavam aterrados, chocados, porque adoravam a irmã. No fim do jantar, Mr. Otis, não obstante as súplicas do pequeno Duque, ordenou que todos se deitassem, dizendo que nenhuma outra coisa poderia ser feita naquela noite, e no dia seguinte de manhã, telegrafaria à Scotland Yard para que enviassem imediatamente alguns agentes.

Precisamente no instante em que saíam da sala de jantar, soava a meia-noite no relógio da torre e ao bater a décima segunda badalada, todos ouviram um enorme estrondo, seguido de um grito penetrante. Um formidável trovão abalou a casa, os acordes de uma harmonia irreal flutuaram no espaço, uma das almofadas da parede abriu-se no alto da escadaria, e Virgínia, apareceu muito pálida, trazendo um pequeno cofre nas mãos. Numa fração de segundo todos se precipitaram sobre ela. Mrs. Otis abraçou-a apaixonadamente, o Duque afagou-a com a violência dos seus beijos, e os gêmeos executaram envolta do grupo uma dança guerreira.
“Santo Deus, de onde vem você? “, perguntou Mr. Otis numa voz bastante irritada, ao pensar que a filha lhes tinha pregado uma peça insensata.“Cecil e eu cavalgamos toda a região à sua procura e sua mãe esteve prestes a morrer de angústia. Aconselho-a a não voltar entregar-se a farsas tão estúpidas como esta”.

“Exceto contra o fantasma! Exceto contra o fantasma!”, bradaram os gêmeos entre mil piruetas.

“Minha querida, graças a Deus você foi encontrada! É preciso que nunca mais me deixe,” murmurou Mrs. Otis, enlaçando a criança que tremia, tremia, e alisando seus cachos dourados, agora emaranhados.
“Papai”, disse Virgínia num tom calmo, “eu estava com o Fantasma. Ele morreu e você deve ir vê-lo. Era muito mau, mas arrependeu-se verdadeiramente do que fez, e antes de morrer, deu-me este cofrezinho com lindas jóias.”

Toda a família a fitava, tomada de assombro, mas ela permanecia grave e séria.Desviando-se, guiou-os através de uma abertura na parede, por um estreito corredor secreto.

Washington seguia-os empunhando uma vela que havia tirado de cima da mesa.
Chegaram, por fim, a uma grande porta de carvalho trabalhada com pregos, já enferrujados. Quando Virgínia a tocou, esta girou sobre os pesados gonzos e abriu-se.

Encontraram-se todos numa salinha baixa, de teto abobadado, onde a ventilação era garantida apenas por uma minúscula janela gradeada.
Uma enorme argola de ferro estava chumbada na parede e, preso a ela via-se um grande esqueleto estendido de comprido no chão de pedra, parecendo tentar agarrar com seus dedos descarnados um prato antigo e uma bilha colocada fora do seu alcance. A bilha devia ter contido outrora água, pois mostrava-se embolorada por dentro, no velho prato, contudo, não havia senão uma camada de pó. Virgínia ajoelhou-se junto do esqueleto e, juntando as delicadas mãos, pôs-se a rezar em silêncio, enquanto o resto da família contemplava com espanto a horrível tragédia, cujo segredo lhes era assim revelado.

“Olhem!” gritou de repente um dos gêmeos, o qual se dependurara na janela para observar em que ala da mansão situava-se aquele quarto.
“Olhem! A velha amendoeira toda sequinha está em florida. Vêem-se muito bem as flores, ao luar”.

“Deus perdoou-o” disse gravemente Virgínia, erguendo-se, e uma luz maravilhosa parecia banhar-lhe o rosto.

“Você é um anjo!” exclamou o jovem Duque, passando os braços em torno dos ombros dela e beijando-a.

VII
Quatro dias após estes curiosos acontecimentos, um cortejo fúnebre deixava Canterville Chase por volta das onze horas da noite. Oito cavalos negros puxavam o carro morro acima e sobre suas cabeças agitavam-se grandes penachos de plumas de avestruz. Um suntuoso tecido cor de púrpura, com as armas dos Cantervilles, bordadas em ouro cobria o caixão de chumbo. Junto do carro, marchavam os criados empunhando tochas, e todo o séquito assumia singular imponência. Lord Canterville dirigia o funeral. Tinha vindo expressamente do País de Gales para assistir à cerimônia e ocupava a primeira carruagem, acompanhado da jovem Virgínia. A seguir iam o Ministro dos Estados Unidos e a esposa, depois Washington e os três rapazes, e, por fim, na carruagem da cauda, Mrs. Uniney. Partiu-se da convicção que a governanta, apoquentada durante mais de cinqüenta anos pelo fantasma, tinha todo o direito de vê-lo desaparecer para sempre.

Fora escavada num canto do cemitério uma profunda sepultura, precisamente sob o galho do velho teixo, e o Reverendo Augustus Dampier proferiu as preces da maneira mais impressionante.Ao término da cerimônia, os criados, conforme um costume tradicional na família Canterville, apagaram as suas tochas e, no momento de se fazer descer o caixão à sepultura, Virgínia avançou e depôs sobre ele uma grande cruz tecida de rosas e flores de amendoeira. Simultaneamente, a lua surgiu de trás de uma nuvem e inundou o pequeno cemitério com sua luz prateada. De uma moita, à distância, subiu o canto de um rouxinol. A jovem recordou a descrição que o fantasma fizera do Jardim da Morte. Lágrimas velaram-lhe os olhos e mal articulou palavra durante o caminho de volta.
No dia seguinte de manhã, antes que Lord Canterville partisse para Londres, Mr. Otis conferenciou com ele a respeito das jóias dadas a Virgínia pelo fantasma. Era de notável magnificência, em especial certo colar de rubis com um engaste veneziano, admirável trabalho do século dezesseis, e o valor delas todas era tal que Mr. Otis sentia grandes escrúpulos em consentir que a filha as aceitasse.

“Milorde”, disse o Ministro, “eu sei que o regime de heranças, chamado de “alienação de bens”, é aplicável neste país tanto às jóias como às terras, e está claro que estas jóias de família lhe pertencem. Portanto, devo pedir-lhe que as leve consigo para Londres, as considere simplesmente como uma parte da sua herança, agora restituída em inesperadas circunstâncias.Quanto à minha filha, ela é ainda uma criança e ,sinto-me feliz em dize-lo, tem pouco interesse por estes acessórios de luxo. Além disso, Mrs. Otis (embora isso não signifique que ela seja uma autoridade no assunto) que teve o privilégio de passar muitos invernos em Boston quando solteira, avisou-me que essas jóias são extremamente valiosas e se postas a venda, atingiriam um altíssimo preço. Nestas condições, Lord Canterville, estou certo de que compreenderá que não posso permitir a nenhum membro da minha família conservá-las em poder. E a bem da verdade, por mais necessários e convenientes que estes frívolos adornos sejam à aristocracia inglesa, ficariam deslocados entre pessoas educadas nos severos e, suponho, imortais princípios da simplicidade republicana. Talvez me seja lícito acrescentar que Virgínia deseja vivamente que o senhor a autorize aguardar para cofrezinho, como lembrança dos desvarios e dos infortúnios desse seu antepassado.

Visto que o cofre se acha muito velho e muito estragado, talvez o senhor julgue razoável deferir este pedido. Da minha parte, confesso estar bastante surpreso ao ver um dos meus filhos exprimir simpatia por medievalismos, seja sob qual aspecto for, e não posso explicar isto a mim próprio, senão pelo fato de Virgínia haver nascido num subúrbio de Londres pouco tempo depois Mrs Otis regressar de Atenas.”
Lord Canterville escutou com muita gravidade o discurso do digno Embaixador, repuxando de quando em quando as pontas do seu bigode grisalho para dissimular um sorriso involuntário. Quando Mr. Otis acabou de falar, apertou-lhe a mão cordialmente e respondeu:“Meu caro senhor, a sua encantadora filhinha prestou a Sir Simon, meu infeliz antepassado,um serviço de grande importância. Minha família e eu devemos muito à maravilhosa coragem dela, e está claro que as jóias lhe pertencem e se eu fosse mesquinho o bastante para as tirar dela, estou certo de em duas semanas o malvado velho sairia do seu túmulo e causar-me-ia uma vida infernal. Quanto ao fato de serem jóias de família, tal só seria possível provar, se figurassem num testamento ou em algum documento legal. Asseguro-lhe que a existência dessas jóias me era completamente desconhecida, e que não possuo mais direitos sobre elas do que, por exemplo, seu mordomo. Ouso dizer-lhe ainda,que quando Miss Virgínia for crescida ficará encantada em usar estes lindos objetos. Por outro lado, Mr. Otis, o senhor se esquece que comprou em conjunto a propriedade e o Fantasma ,e assim sendo, tudo o que pertencia a ele passou, implícita e imediatamente, para a sua posse. Afinal, por maior atividade de que Sir Simon tenha dado sinal durante a noite, pelos corredores da casa, sob o ponto de vista jurídico, ele estava verdadeiramente morto, e a compra feita pelo senhor tornou-o possuidor dos bens dele.

Mr. Otis, muito perturbado com a recusa de Lord Canterville, suplicou-lhe que reconsiderasse a sua decisão, mas o nobre par do Reino,permaneceu firme e acabou por persuadir o embaixador de que consentisse à filha guardar o presente do Fantasma.E quando na primavera de 1890 a jovem Duquesa de Cheshire foi, por ocasião do seu casamento, foi apresentada pela primeira vez numa recepção da Rainha, as jóias que ostentava tornaram-se tema de admiração geral. Virgínia recebeu a coroa, que é a recompensa de todas as boas meninas americanas, e desposou aquele que a amava desde a infância, logo que ele atingiu a idade conveniente. Eram ambos tão sedutores e amavam-se tanto que esta união encantava todo mundo, salvo a velha Marquesa de Dumbleton, que havia tentado apoderar-se do duque para uma das suas sete filhas ainda solteiras e que, com esse desígnio, dera nada menos do que três dispendiosos jantares, se bem que isto possa parecer estranho. Pessoalmente o Ministro nutria pelo jovem Duque uma grande afeição,mas em teoria, não era partidário de títulos de nobreza. Usando suas próprias palavras, “temia que sob a influência deletéria de uma aristocracia amante dos prazeres mundanos, fossem esquecidos os verdadeiros princípios da simplicidade republicana.
Contudo, suas observações foram inteiramente rejeitadas, e creio bem que, ao avançar, com a filha pelo braço, ao longo da nave da Igreja de S. Jorge, não houve, nesse instante, homem mais orgulhoso do que ele em toda a Inglaterra.
Após a sua lua-de-mel, o Duque e a Duquesa voltaram a Canterville Chase, e na tarde do dia seguinte, foram a passeio até o cemitério solitário, ao lado do pinheiral.

A escolha da inscrição para a lápide de Sir Simon havia encontrado muitas dificuldades, mas fora finalmente decidido mandar-se gravar nela as simples iniciais do velho aristocrata e os versos existentes na biblioteca. A Duquesa havia levado consigo umas rosas adoráveis, que espalhou sobre a sepultura, e depois de se conservarem em recolhimento algum tempo, os jovens dirigiram-se, sempre passeando, até o santuário em ruínas da velha abadia. Sentou-se, então, a Duquesa numa pilastra mutilada do templo, enquanto o marido, estendido a seus pés, fumava um cigarro, tendo o olhar fixo nos belos olhos da jovem. De súbito, arremessando para longe o cigarro, pegou-lhe na mão e disse: “Virgínia, uma mulher não deve ter segredos para seu marido”.

“Querido Cecil, não tenho segredos para você”.

“Tem sim,” replicou ele sorrindo, “nunca me disse o que aconteceu quando esteve sozinha com o fantasma.”

“ Nunca o disse a ninguém”, respondeu Virgínia com ar grave.
“Sei disso, mas podia dize-lo a mim.”

“Não me peça tal coisa, Cecil, eu não posso dizer-lhe.Pobre Sir Simon! Devo-lhe muito. É verdade; não ria, Cecil. Mostrou-me o que é a vida, o que significa a morte e porque razão o amor é mais forte do que a vida e a morte.”
O Duque, pondo-se de pé, abraçou com ternura sua mulher.

“Pode preservar o seu segredo por tanto tempo, quanto eu guardarei o seu coração” murmurou.

“Ele sempre lhe pertenceu, Cecil.”

“E dirá um dia aos nossos filhos, não é verdade?”

As faces de Virgínia cobriram-se de rubor.