“Às
vezes não existem palavras que estimulem a coragem.
Às
vezes, é preciso, simplesmente, mergulhar.”
Clarissa
Pinkola Estés
“Às
vezes não existem palavras que estimulem a coragem.
Às
vezes, é preciso, simplesmente, mergulhar.”
Clarissa
Pinkola Estés
Michel de
Montaigne
Diz
Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. Isso,
talvez, porque o estudo e a contemplação tiram a alma para fora de nós,
separam-na do corpo, o que, em suma, se assemelha à morte e constitui como que
um aprendizado em vista dela. Ou então é porque, de toda sabedoria e
inteligência, resulta finalmente que aprendemos a não ter receio de morrer. Em
verdade, ou nossa razão falha ou seu objetivo único deve ser a nossa própria satisfação,
e seu trabalho tender para que vivamos bem,
e com alegria,
como recomenda a Sagrada Escritura [Eclesiastes 3,12: “Então compreendi que
não existe para o homem
nada melhor do que se alegrar e agir bem durante a vida”]. Todas as
opiniões propõem que o prazer é a meta da vida, mas diferem no que concerne aos
meios de atingir o alvo. E, se assim não fosse, as repeliríamos de imediato, pois
quem daria ouvido a alguém que apontasse a pena e o sofrimento como os
objetivos da existência? A esse respeito, as dissensões entre seitas filosóficas
são puro palavrório: “deixemos de lado essas sutilezas” (Sêneca); em tais
discussões entra mais obstinação e picuinha do que convém à ciência tão
respeitável. Mas em qualquer papel que se proponha desempenhar põe o homem um pouco
de si mesmo.
Digam
o que disserem, na própria prática da virtude o fim visado é a volúpia. E agrada-me
repetir essa palavra que pronunciam constrangidos. E, se significa prazer supremo
e extremada satisfação, melhor se deva ela à virtude do que a qualquer outra causa,
pois volúpia, robusta e viril, é a mais
seriamente voluptuosa. E deveríamos chamá-la prazer, denominação
mais feliz e mais natural, do que a de vigor que lhe damos. Quanto à volúpia de
ordem menos elevada, se acreditam que mereça igual nome, que o mantenham, mas não
com exclusividade. Mais do que a virtude, tem ela seus inconvenientes e seus momentos
difíceis; além de serem mais efêmeras as sensações que nos procura, e mais
fluidas e fugidias, tem suas vigílias, seus jejuns, suas penas, seu suor e sangue.
Paixões de toda sorte influem nela, e redunda ela em tão pesada saciedade, que equivale
a uma penitência. É erro nosso imaginar que tais inconvenientes a estimulam, e a
condimentam, em razão dessa lei da natureza que afirma tudo se fortalecer ante o
obstáculo encontrado; e erro é também pensar que, quando se trata de volúpia proveniente
da virtude, semelhantes dificuldades a acabrunham e a tornam austera e inacessível.
Ao
contrário do que se verifica com a volúpia, na prática da virtude tais
dificuldades enobrecem, requintam e realçam o prazer divino e perfeito que ela nos
procura. Bem indigno de senti-lo é, por certo, quem pesa o custo e o rendimento
dela; não lhe conhece as belezas nem o uso. Os que nos afirmam que, embora sua
posse seja agradável, penosa e laboriosa é a sua conquista, não nos estarão dizendo
ser a virtude coisa sempre desagradável? Mesmo porque, quem a terá
jamais atingido? Os mais perfeitos tiveram de se contentar
com aspirar a ela, dela se aproximar sem nunca chegar a possuí-la. Enganam-se,
porém, os que assim falam, pois não há prazer conhecido cuja procura em si já
não constitua uma satisfação. Ela se liga ao objetivo visado e contribui muito
para o resultado de que participa essencialmente. A felicidade e a
bem-aventurança da virtude enchem-lhes as dependências e os caminhos, desde o portão
de entrada até os muros que lhe cercam
os domínios.
Um
dos principais benefícios da virtude está no desprezo que nos inspira pela morte,
o que nos permite viver em doce quietude e faz que se desenrole agradavelmente
e sem preocupações nossa existência. E, sem esses sentimentos, toda volúpia é sem
encanto. Eis porque todos os sistemas filosóficos concordam nesse ponto e para
ele convergem. Embora todos se entendam igualmente em nos recomendar o desprezo
à dor, à pobreza e outros acidentes a que está sujeita a vida humana, nem todos
o fazem com igual cuidado, ou porque
tais acidentes não nos atingem forçosamente (em sua maioria, os homens vivem
sua vida sem sofrer com a pobreza, e alguns, como o músico Xenófilo [1] que
morreu com cento e seis anos, vivem em perfeita saúde, sem conhecer nem a dor nem
a doença), ou porque, na pior das hipóteses, pode a morte, quando menos esperamos,
pôr fim aos nossos males. E ela própria é inevitável: “Marchamos todos para a
morte; nosso destino agita-se na urna funerária; um pouco mais cedo, um pouco
mais tarde, o nome de cada um dali sairá e a barca fatal nos levará a todos ao
eterno exílio” (Horácio). Portanto, se a receamos, temos nela um motivo
permanente de tormentos e andaremos como em país inimigo, a deitar os olhos
para todos os lados: “ela é sempre uma ameaça, como o rochedo de Tântalo” (Cícero).
Nossos
tribunais ordenam, muitas vezes, que se execute o criminoso no próprio local do
crime. “Conduzam-no durante o trajeto, entre belas residências, e deem-lhe as
melhores refeições; as mais deliciosas iguarias não poderão acariciar-lhe o paladar,
nem o canto dos pássaros, nem os acordes da lira lhe devolverão o sono” (Horácio).
Pensais que será sensível a nossos cuidados e que o fim último de sua viagem,
sempre em mente, não lhe alterará e tornará insosso qualquer possível prazer?
“Inquieta-se com o caminho, conta os dias, mede a vida pela extensão da estrada,
sem cessar atormentado pela ideia do suplício que o espera” (Cláudio).
A
meta de nossa existência é a morte; é este o nosso objetivo fatal. Se nos apavora,
como poderemos dar um passo à frente sem tremer? O remédio do homem vulgar consiste
em não pensar na
morte. Mas quanta estupidez será precisa para uma tal cegueira?
“Por que não coloca o freio no rabo do asno, já que meteu na cabeça andar de
costas?” (Lucrécio). Não há como estranhar que caia tantas vezes na armadilha.
As pessoas se apavoram simplesmente com lhe ouvir o nome: a morte! E persignam-se
como se ouvissem falar no diabo. E, como ela é mencionada nos testamentos, só resolvem
fazer o seu quando o médico os condenou. E Deus sabe em que estado de espírito se
encontram então, sob o impacto da dor e do pavor.
Como
esta palavra ressoava demasiado forte a seus ouvidos, e lhes parecia de mau augúrio,
tinham os romanos se habituado a adoçá-la ou a empregar perífrases. Em vez de
dizer: “morreu”, diziam: “parou de viver, viveu”; bastava-lhes que se falasse em
vida. Nós lhes tomamos de empréstimo esses eufemismos e dizemos: “Mestre João se
foi”. [2] Se, porventura, se aplica o ditado “a palavra é de prata”, como nasci
no último dia de fevereiro de 1533, faz exatamente quinze dias que completei
meus trinta e nove anos. Posso, pois, esperar viver ainda tal período; e atormentar-me
meditando sobre tão longínqua eventualidade, seria loucura. Mas jovens e velhos
se vão da vida em condições idênticas. Partem todos como se acabassem de
chegar, sem contar que não há homem tão decrépito ou velho ou alquebrado que
não alimente a esperança da longevidade de Matusalém, e não tenha ainda vinte anos
de vida diante de si. Direi mais: quem, pobre louco, fixou
a duração de tua existência? Acreditas no que dizem os médicos,
sem atentar para o que se verifica em torno de ti, e sem julgar pela experiência.
Pelo andar das coisas, há muito já não vives, senão por excepcional
favor. Já ultrapassaste
a duração habitual da vida. Podes comprová-lo contando quantos entre os
teus conhecidos morreram antes dessa idade, em bem maior número do que os que a
alcançaram. Anota os nomes dos que, pelo
brilho de sua existência, adquiriram certa fama; aposto
encontrar, entre eles, mortos antes dos trinta e cinco, muito mais do que depois.
O
razoável e o piedoso está em tomar como exemplo a humanidade de Jesus: ora, sua
existência terrena findou-se aos trinta
e três anos. O maior imperador do mundo, Alexandre, morreu também com essa idade.
Quantas
maneiras diversas tem a morte de nos surpreender? “O homem nunca pode chegar a
prever todos os perigos que o ameaçam a cada instante” (Horácio). Deixo de lado
as doenças, as febres, as pleurisias. Quem poderia imaginar que um duque da
Bretanha fosse morrer sufocado pela multidão, como aconteceu a um deles, quando
da entrada em Lyon do Papa Clemente, meu compatriota? Não vimos um dos nossos
reis morrer num folguedo? E não faleceu outro, seu antepassado, da queda de um
porco que montava? Ésquilo, advertido de que morreria da queda de uma casa, embora
dormisse num campo de trigo, foi esmagado por uma tartaruga caída das garras de
uma águia. Houve quem sucumbisse em consequência de uma semente de uva engolida;
outro, imperador, morreu de um arranhão feito com o pente; Emílio Lépido em
virtude de uma topada na porta de sua casa; Aufídio por ter batido com a cabeça
no batente da entrada da sala do Conselho. E entre as coxas das mulheres: o
pretor Cornélio Galo, Tigelino, comandante da guarda de Roma, Ludovico, filho
de Guy de Gonzaga, Marquês de Mântua, e, o que é péssimo exemplo, Espêusipo, filósofo
platônico. E até um papa de nosso tempo.
O
pobre Bebius, que era juiz, ao adiar o julgamento de certa causa, morreu
subitamente; chegara a sua hora. O médico Caio Júlio, ao tratar dos olhos de um
enfermo, teve os seus próprios fechados para sempre. E, para misturar-me à enumeração:
um dos meus irmãos, Capitão Saint Martin, de vinte e quatro anos e que já dera provas
sobejas de seu valor, foi atingido por uma bola logo abaixo da orelha direita quando
jogava queimada. Nem vestígio nem contusão, não se sentou sequer, não
interrompeu o jogo, e, no entanto, cinco ou seis horas depois, ei-lo atacado de
apoplexia causada pelo golpe recebido.
Tais
exemplos são tão frequentes, repetem-se tão comumente diante de nossos olhos,
que não parece possível evitar que nosso pensamento se oriente para a morte, nem
negar que a cada instante ela nos ameace. Que importa o que possa acontecer, direis,
se não nos preocupamos com isso? É também
meu parecer, e se houvesse
meio de escapar ao golpe, ainda que fosse sob uma pele de vitela, não seria homem
se não
o empregasse, pois a mim me basta viver sossegado e pondo em prática
tudo o que para isto venha contribuir, embora pouco glorioso ou exemplar:
“prefiro passar por louco ou impertinente, se meu erro me agrada ou não o percebo,
a ser sábio e sofrer” (Horácio). É loucura, porém, querer se furtar assim a
essa ideia. Vai-se, volta-se, corre-se, dança-se: nenhuma notícia da morte, que
beleza! Mas, quando ela nos cai em cima, ou em cima de nossas mulheres, nossos filhos,
nossos amigos, que os surpreenda ou não, quantos tormentos, gritos, imprecações, desespero! Vistes alguém
mais humilhado, transtornado, confundido? É preciso preocupar-se com ela de antemão.
Pois esse descuido animal, ainda que pudesse se alojar na mente de um homem inteligente,
o que acho inteiramente impossível, nos faz pagar caro demais sua mercadoria.
[3] Se a morte fosse um inimigo suscetível de se evitar, aconselharia agir
diante dela como um covarde diante do perigo; mas, em não sendo isso verdade, e
atingindo ela infalivelmente os fugitivos, covardes ou valentes, “persegue o homem
em sua fuga e não poupa nem mesmo a tímida juventude que tenta escapar-lhe” (Horácio); como
nenhuma couraça nos protege contra ela, “cobri-vos de ferro e
bronze, a morte vos atingirá sob a armadura” (idem), aprendamos a esperá-la de pé
firme e a lutar. Para começar a despojá-la da vantagem maior de
que dispõe contra
nós, tomemos o caminho inverso ao habitual. Tiremos dela o que tem de estranho;
habituemo-nos a ela,
não pensemos em outra coisa; tenhamo-la a todo instante presente em
nosso pensamento e sob todas as formas. Ao tropeço de um cavalo, à queda de uma
telha, à menor picada de alfinete, digamos: “se fosse a morte!”, e esforcemo-nos
em reagir contra a apreensão que uma tal reflexão pode provocar. Em meio às festas
e aos divertimentos, lembremo-nos sem cessar de que somos mortais, e não nos
entreguemos tão inteiramente ao prazer que não nos sobre tempo para recordar que
de mil maneiras nossa alegria pode acabar na morte, nem em quantas circunstâncias
ela sobrevém inopinadamente. É o que faziam os egípcios quando, em seus festivais
e voltados aos prazeres da mesa, mandavam trazer um esqueleto humano para rememorar
aos convivas a fragilidade de sua vida: “Pensa que cada dia é teu último dia, e
aceitarás com gratidão aquele que não mais esperavas” (idem).
Não
sabemos onde a morte nos aguarda, esperemo-la em toda parte. Meditar sobre a
morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer desaprendeu a servir;
nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida
não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento. Paulo Emílio,
ao ir receber as honras do triunfo, respondia ao mensageiro enviado por esse infeliz
rei da Macedônia, seu prisioneiro, a fim de suplicar-lhe que não o incluísse em
seu séquito: “Que o solicite a si próprio”.
Em verdade, sem certo assentimento da natureza é difícil que a arte e a
indústria progridam nas obras que produzem. Eu não sou melancólico, sou
sonhador. Não há nada que minha imaginação vasculhe mais do que a ideia da
morte, e isso desde sempre, mesmo no período de minha vida em que mais me
dediquei aos prazeres: “estava então na flor da idade” (Catulo). Entre senhoras
e festas, imaginavam que eu andasse preocupado a remoer algum ciúme ou à espera
inquieta de qualquer acontecimento, enquanto, na realidade, meu pensamento se orientava
para não sei quem que, dias antes, ao sair de festa semelhante, entregue ao ócio,
ao amor e às doces recordações, fora tomado de febre e morrera. E considerava que
coisa análoga me aguardava de tocaia: “Em breve, o tempo presente já não será e
não poderemos lembrá-lo” (Lucrécio). E não me franzia a fronte, mais do que qualquer
outro, esse pensamento.
É
impossível que, a princípio, essa ideia não nos cause penosa impressão. Mas,
voltando a ela, encarando-a de todos os ângulos, aos poucos acabamos por nos acostumarmos
a ela. De outro modo, teria eu andado continuamente agitado e amedrontado, pois
ninguém mais do que eu jamais desconfiou tanto da vida e contou menos com a sua
duração. Minha saúde, até agora excelente, apenas perturbada por pequenas indisposições,
não me dá maiores esperanças de grande longevidade, como tampouco doenças me fazem
temer um fim prematuro. A cada instante tenho a impressão de haver chegado
minha última hora, e repito sem cessar: o que deverá ocorrer fatalmente um dia,
pode acontecer hoje. Efetivamente, os acasos e perigos a
que estamos expostos pouco ou nada
nos aproximam do fim. E, se pensarmos em quantos acidentes podem ameaçar-nos, além
dos que imaginamos iminentes, deveremos reconhecer que, no mar como no lar, na guerra
como no retiro, a morte sempre se encontra perto de nós: “Nenhum homem é mais frágil
do que outro, nenhum tem assegurado o dia seguinte” (Sêneca).
Para
fazer o que me cumpre fazer antes de morrer, todo tempo me parece curto, ainda que
se trate de trabalho de uma hora. Alguém, folheando meu caderno de notas,
revelou algo que eu desejava que se fizesse depois de minha morte; disse a essa
pessoa a verdade, isto é, que, ao registrar essa nota, encontrava-me a uma légua
apenas de casa, mas me apressara em escrevê-la porque não estava certo de não
morrer antes de entrar. A chegada da morte não me surpreenderá; acho-me sempre,
e o quanto posso, preparado para essa ocorrência. Ela se mistura sem cessar a meu
pensamento, nele se grava. Na medida do possível, andemos sempre de botas e prontos
para partir e, em particular, não tenhamos negócios a tratar senão com nós mesmos:
“por que, em tão
curta
vida, fazer tantos projetos?” (Horácio). Suficiente trabalho teremos com esses
negócios próprios, para que nos embaracemos com outros. Mais do que da morte, queixam-se
uns de que venha interromper uma
bela vitória; lamentam-se outros de não terem podido casar a filha antes
ou educarem as crianças; um lastima deixar a mulher, outro, o filho, entes a que
mais se apegavam. Quanto a mim, graças a Deus, estou em estado de desaparecer quando
Lhe aprouver, sem nenhuma saudade senão da própria vida. Estou em regra com tudo
e como que já disse adeus a todos, salvo a mim mesmo. Nunca homem se apresentou
mais bem preparado para deixar a vida no momento necessário e sem a menor dissimulação.
Ninguém se desprendeu melhor e mais completamente da vida do que eu. As mortes mais
mortais são as mais desejáveis. [4] “Oh desgraça — dizem uns —, um só dia
nefasto basta para envenenar todas as alegrias da vida” (Lucrécio). “Não
terminarei nunca a minha obra — lamenta o arquiteto —, deixarei, pois,
imperfeitos esses soberbos baluartes” (Virgílio). Nada se empreenda, pois, em vista
de tão remota conclusão, pelo menos não o
faça com a
apaixonada intenção de chegar ao fim. Nascemos para agir: “quero que
a morte me surpreenda em pleno trabalho” (Ovídio).
Vamos
agir, portanto, e prolonguemos os trabalhos da existência o quanto pudermos, e que
a morte nos encontre a plantar as nossas couves, mas indiferentes
à sua chegada e mais ainda ante as nossas hortas inacabadas. Conheço alguém que,
na hora extrema, lastimava incessantemente lhe fosse cortar, a morte, no décimo quinto ou no décimo sexto de nossos
reis, o foi de uma história em andamento. “Não pensem que a morte nos rouba a saudade
das coisas mais queridas”.
Devemos
nos desfazer dessas preocupações vulgares e nocivas. Se se construíram
cemitérios perto das igrejas e nos lugares mais frequentados da cidade, foi, diz
Licurgo, para acostumar a plebe, as mulheres e as crianças a não se assustarem à
vista de um morto e a fim que o contínuo espetáculo de ossadas,
túmulos, pompas funerárias, advirta
todos do que os espera: “Era outrora costume alegrar os festins com execuções e com combates de gladiadores; estes caíam muitas
vezes entre as taças e inundavam de sangue
as mesas do banquete” (Sílio Itálico).
Os
egípcios, em seus festins, faziam apresentar aos convivas uma imagem da morte, que
lhes gritava: “bebe, goza, pois serás assim depois de morto”. Também se tornou em
mim um hábito não somente
ter sempre presente a ideia da morte
como também falar dela constantemente. E nada me interessa mais do que indagar da
morte das pessoas: que disseram, que atitude assumiram? Nas histórias que leio,
os trechos referentes à morte são os que mais me prendem a atenção. Vê-se isso pela
escolha dos meus exemplos e pela afeição particular que revelo pelo assunto.
Se fosse escritor, anotaria as mortes que mais me impressionaram e as comentaria,
pois quem ensinasse os homens a morrer os ensinaria a viver. Dicearco escreveu
um livro com esse título, porém, diferente e menos útil em seu objetivo.
Dirão
que, em sua realidade, a morte ultrapassa nossa concepção; por mais que
nos preparemos para enfrentá-la, quando ela chegar estaremos
no mesmo ponto. Deixai-os falar. Sem dúvida, uma tal preparação comporta
grandes vantagens, pois será pouco caminhar ao seu encontro sem apreensões? Tem
mais: a própria natureza nos ajuda na ocorrência e nos dá a coragem que poderia
nos faltar. Se nossa morte é súbita e violenta, não temos tempo de receá-la; se
não, na medida em que a enfermidade nos domina, diminui naturalmente nosso apego
à vida. Custa-me muito mais aceitar a ideia de morrer quando gozo saúde do que
quando estou com febre. Quando não me sinto bem, as alegrias da vida me parecem
menos valiosas, tanto mais quanto não estou em condições de usufruí-las, a morte
se me afigura menos temível. Disso concluo que, quanto mais me desprender da vida
e me aproximar da morte, mais facilmente me conformarei com a passagem de uma para
outra. Como diz César, e como verifiquei em mais de uma circunstância, as
coisas produzem maiores efeitos de longe que de perto. Assim é que me
atormentam mais as doenças se estou bem de saúde do que se as enfrento. A
alegria, o prazer e a força me induzem a uma ampliação desproporcional do estado
contrário, e os incômodos da enfermidade eu os concebo mais pesados do que os sinto
realmente quando adoeço. E espero que o mesmo se dê quanto à morte.
As
flutuações a que se sujeita a nossa saúde, o enfraquecimento gradual que
sofremos, são meios
que a natureza emprega para nos dissimular
a aproximação de nosso fim e de nossa decrepitude. Que resta a um ancião do
vigor de sua juventude e do seu passado? “Ah, como sobra pouco aos velhos”
(Pseudo-Galo). César, a quem um soldado alquebrado e decrépito viera pedir em
plena sua autorização para se matar, respondeu rindo: “Pensas então que ainda estás
vivo?” Creio que não seríamos capazes de suportar uma tal mudança se a ela chegássemos
repentinamente. Mas, em nos conduzindo pela mão, devagar, quase insensivelmente,
a natureza nos familiariza com essa miserável condição. De tal modo que a mocidade
se extingue em nós sem que lhe percebamos o fim, em verdade mais penoso do que o
de nosso ser inteiro ao ter de deixar uma vida de achaques quando morremos de velhice.
O salto que nos cabe dar para passar de uma existência miserável ao fim dela não
é tão sensível quanto o que separa uma vida tranquila e florescente de uma vida
difícil e dolorosa. O corpo curvado tem menos força para carregar um fardo; o mesmo
ocorre com a alma, que é preciso fortalecer e pôr em condição
de resistir à opressão causada pelo medo da morte. Como é
impossível que encontre a calma sob o peso desse temor, se o pudesse dominar
inteiramente — o que está acima das forças humanas — estaria a alma assegurada
contra a inquietação, a ansiedade, o medo e tudo o que nos aflige: “nem o rosto
cruel de um tirano, nem a tempestade furiosa que revolve o Adriático, nada lhe pode
abalar o ânimo; nada, nem Zeus lançando seus raios” (Horácio). A alma se
tornaria então senhora de suas paixões e de seus mais ardentes desejos; nada a
atingiria, nem a indigência, nem a vergonha, nenhuma adversidade.
Esforcemo-nos, pois, por conseguir essa vantagem. Nisso consiste a verdadeira e
soberana liberdade, a que nos permite desafiar a violência e a injustiça, desprezar
a prisão e os ferros escravizadores: “Vou te sobrecarregar os pés e as mãos de cadeias
e te entregarei ao mais cruel dos carcereiros. ― Um Deus me libertará. Esse deus,
penso eu, é a morte, a morte, termo de todas as coisas” (idem).
Nossa
religião não teve alicerce humano mais sólido que o do desprezo à vida. E não é
somente a voz da razão que a isso nos conduz, pois por que temeríamos perder uma
coisa que, uma vez perdida, já não podemos lamentar? E, como a morte nos ameaça
sem cessar sob vários aspectos, não será mais desagradável ficarmos todos a
receá-los de antemão, do que nos resignarmos de uma vez por todas diante dela?
Por que se preocupar com sua vinda, se é inevitável? Alguém disse a Sócrates:
“os Trinta Tiranos te condenaram à morte”. Ao que o filósofo respondeu: “Eles já
foram condenados pela natureza”. Que tolice nos afligirmos no momento em que nos
vamos ver livres de nossos males! Nossa vinda ao mundo foi para nós a vinda de todas
as coisas; nossa morte será a morte de tudo. Lastimar não mais viver daqui a
cem anos é tão absurdo quanto lamentar não ter nascido um século antes. A morte
é origem de outra vida. Nascemos entre lágrimas e muito nos custou entrar na vida
atual; passando para uma nova vida, despojamo-nos do que fomos na precedente. Não
pode ser grave uma coisa que acontece uma só vez; será razoável recear com
tanta antecedência acidente de tão curta duração? Em relação à morte, viver pouco
ou muito é a mesma coisa, pois nada é longo ou curto quando deixa de existir. Diz
Aristóteles que há no rio Hipanis insetos que vivem somente um dia: os que morrem
às oito da manhã morrem jovens e os que morrem às cinco da tarde morrem na
decrepitude. Quem não acharia divertido que tão insignificante diferença em
existências tão efêmeras bastasse para tachá-las de felizes? Semelhante
apreciação acerca da duração da vida humana não é menos ridícula se a comparamos
com a eternidade, ou simplesmente com a duração das montanhas, dos rios, das estrelas,
das árvores e até de certos animais.
A
natureza nos ensina: vós saís deste mundo como nele entrastes. Passastes da
morte à vida sem que fosse por efeito de vossa vontade e sem temores; tratai de
vos conduzirdes de igual maneira aos passardes da vida à morte; vossa morte entra
na própria organização do universo: é um fato que tem seu
lugar assinalado no decurso dos séculos: “Os mortais se emprestam
mutuamente a vida… é a tocha que se transmite de mão em mão nas corridas sagradas”
(Lucrécio). Mudarei para vós esse belo
entrosamento das coisas?
Morrer é a própria condição de vossa criação; a morte é
parte integrante de vós mesmos. A existência
de que gozais participa da vida e da morte ao mesmo tempo;
desde o dia de vosso nascimento caminhais concomitantemente na vida e para a
morte: “a primeira hora de vossa vida é uma hora a menos que tereis para viver”
(Sêneca) — “nascer é começar a morrer; o último instante de vida é consequência
do primeiro” (Manílio). O tempo que viveis, vós o roubais à vida e a restringis
proporcionalmente. Vossa vida tem como efeito conduzir-vos à morte. E enquanto
viveis estais constantemente sob a ameaça de morte, e, mortos, já não viveis
mais; ou, se assim preferis, a morte sucede à vida, logo, durante a vida estais
moribundos; e a morte atinge muito mais duramente e essencialmente o moribundo do
que o morto. Se soubestes usar a vida e gozá-la quanto pudestes, ide-vos e vos
declareis satisfeitos: “por que não sair do banquete da vida como um conviva
saciado?” (Lucrécio). Se não a soubestes usar, se ela vos foi inútil, que vos importa
perdê-la? E, se ela continuasse, em que a empregaríeis? “Para que prolongar dias
de que não se saberá tirar melhor proveito do que no passado?” (idem). A vida em
si não é um bem nem um mal. Torna-se bem ou mal segundo o que dela fazeis. E,
se vivestes um dia, já vistes tudo, pois um dia é igual a todos os outros. Uma
é a luz, uma é a noite. Esse sol, essa lua, essas estrelas, em sua disposição, são
os mesmos que apreciaram vossos antepassados
e que conhecerão
vossos descendentes. “Vossos sobrinhos
não verão nada mais do que viram seus pais” (Manílio). E, em última análise, pode-se
dizer que a totalidade dos atos diversos que comporta a comédia a que vos
convidei se cumpre no decurso de um ano, cujas quatro estações, se o observastes,
abarcam a infância, a adolescência, a idade viril e a velhice do mundo. Essa
marcha é constante; não a modifico nunca e sem cessar ela se repete, e assim
será eternamente: “Giramos sempre em torno do mesmo círculo” (Lucrécio); “o ano
retoma sem descontinuar a
estrada percorrida” (Virgílio). Não
está em meus projetos inovar para vós a ordem das coisas: “não posso nada imaginar,
nada inventar de novo para vos agradar; é, e será sempre, a repetição das mesmas
cenas” (Lucrécio). Daí vosso lugar a outros como outros vos deram o seu. A igualdade
é a primeira condição da equidade. Quem se há de queixar de uma medida que
atinge a todos? Podeis prolongar vossa vida, o que quer que façais não
diminuirá em nada o tempo que tendes para serdes mortos. Por mais comprida que seja,
vossa vida não será nada, e esse estado que lhe sucederá — e que pareceis tanto
temer — terá a mesma duração que se houvésseis morrido no berço: “Vivei quantos
séculos quiserdes, nem por isso será menos eterna a morte” (idem).
Nesse
estado em que vos porei, não tereis motivo para descontentamento: “Ignorais que
não vos sobrevirá um outro vós mesmo, o qual, vivo, vos possa chorar como morto
e gemer sobre o vosso cadáver!” (Lucrécio). E essa vida, que tanto lamentais
perder, não mais a desejareis: “Não teremos mais com que nos inquietarmos nem
com nós mesmos, nem com a vida… nenhuma saudade teremos da existência” (idem). “A
morte é menos temível do que nada, se é que alguma coisa menos que nada é
possível” (idem). Morto ou vivo, vós não lhe escapais: vivo, porque sois; morto,
porque não sois mais. Por outro lado, ninguém morre antes da hora. O tempo que perdeis
não vos pertence mais do que o que precedeu vosso nascimento, e não vos interessa:
“Considerai em verdade que os séculos inumeráveis, já passados, são para vós como
se não tivessem sido” (idem).
Qualquer
que seja a duração de vossa vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na duração,
e sim no emprego que lhe dais. Há quem viveu muito e
não viveu. Meditai sobre isso enquanto o podeis
fazer, pois depende de vós, e não
do número de anos, terdes vivido bastante. Imagináveis então nunca chegardes ao
ponto para o qual vos dirigíeis? Haverá caminho que não tenha fim? E se o fato de
ter companheiros vos
pode consolar, pensai que o mundo inteiro segue caminho idêntico: “As raças
futuras vos seguirão por sua vez” (idem).
Tudo
obedece ao mesmo impulso a que obedeceis. Haverá algo que não envelheça como vós
envelheceis? Milhares de homens, milhares de animais, milhares de outras
criaturas morrem no mesmo instante em que morreis: “não há uma só noite, nem
um só dia, em que não se ouçam, misturados aos gemidos dos recém-nascidos, os gritos
de dor em torno dos esquifes” (idem).
Por
que tentar recuar se não vos é permitido voltar atrás? Vistes mais de um indivíduo
morrer que se satisfez com morrer, fugindo assim a grandes misérias; já
deparastes com alguém que se achou prejudicado? E não será tolice condenar uma coisa
que não conheceis nem pessoalmente nem através de outro? Por que vos queixardes
de mim e do destino? Nós vos estaremos prejudicando? Cabe a vós nos governar
ou, ao contrário, dependeis de nós? Por mais moço que sejais, vossa vida chegou
ao fim; um homem de pequena estatura
é tão completo quanto outro muito grande. Nem a estatura
do homem nem a sua existência têm medidas determinadas.
Quíron
recusou a imortalidade quando Cronos, seu pai, deus do tempo e da mortalidade,
lhe revelou as condições dela. Imaginai a que ponto uma vida
sem fim seria menos tolerável e mais penosa para o homem do que a que lhe foi dada.
Se não tivésseis a morte, vós me amaldiçoaríeis sem cessar por vos haver privado
dela. Foi propositalmente que a ela juntei alguma amargura, a fim de impedir
que, ante a comodidade dela, não a buscásseis com avidez. Para vos trazer a essa
moderação que solicito de vós, de não abreviar a vida e não tentar esquivar a morte,
temperei-as pelas sensações mais ou menos suaves, mais ou menos duras que vos podem
conceder. Ensinei a Tales, o primeiro entre vossos sábios, que viver e
morrer são igualmente indiferentes; o que o impeliu a
responder, muito sabiamente, a alguém que lhe perguntava por que então não se matava:
porque é indiferente. A água, a terra, o fogo, tudo o que constitui meu domínio
e contribui para vossa vida, não contribuem mais do que à morte. Por que temeis
vosso último dia? Ele não vos entrega mais à morte do que o faz cada um dos
dias anteriores. Não é o último passo a causa de nossa fadiga; ele apenas a
determina. Todos os dias levam à morte, só o último a alcança. Eis os sábios conselhos
que vos dá a natureza, nossa mãe.
Frequentemente
indaguei de mim mesmo por que, na guerra, a perspectiva ou a presença da morte,
nossa ou de outrem, nos impressiona muito menos do que em nossos lares. Se
assim não fosse, um exército se comporia unicamente de médicos e de chorões. Estranho
igualmente que a morte, em sendo a mesma
para todos, a acolham com mais calma os camponeses e o povo
miúdo que os outros. Creio, em verdade, que são esses semblantes de
circunstância e esse aparato lúgubre com que a cercam, que nos impressionam
mais do que ela própria. Quando ela se aproxima, há uma modificação total em
nossa vida cotidiana: mães, mulheres e crianças gritam e se lamentam. Inúmeras pessoas
nos visitam, consternadas; a gente da
casa fica aí,
pálida e desesperada; a
obscuridade reina no quarto; acendem-se velas; à nossa cabeceira juntam-se
padres e médicos; tudo, em suma, em volta de nós se dispõe como para inspirar horror;
ainda não rendemos o último suspiro, e já estamos amortalhados e enterrados. As
crianças se amedrontam quando as pessoas, mesmo suas conhecidas, se apresentam
mascaradas; pois é o que ocorre nesse momento. Arranquemos as máscaras das
coisas como das pessoas e, por baixo, veremos muito simplesmente a morte. A
mesma com a qual partiu ontem, sem maior pavor, tal ou qual criado ou
camareira. Feliz é a morte que nos surpreende sem que haja tempo para
semelhantes preparativos!
Notas
[1]
Filósofo que Montaigne qualifica como músico.
[2]
“Maître Jean” é o apelido que se dava outrora aos pedantes, sábios ou doutores.
[3]
Sa denreé — no caso, suas ilusões.
[4]
No texto, “les plus mortes morts”, isto é, as mortes em que tudo morre ao mesmo
tempo, em oposição às mortes em que o indivíduo se extingue gradualmente, através
de sucessivas perdas de faculdades.
Como escreveu Jorge Luis Borges: “Creio que uma forma de felicidade é a leitura.” Posto isto, que possamos viver uma vida, quiçá, mais feliz.