O primeiro canto

O primeiro canto

quinta-feira, 13 de março de 2014

Um coração simples, de Gustave Flaubert

Não se deixem iludir com o espaço que esse conto ocupa. Vale a pena a leitura!

Durante meio século, os burgueses de Pont-l’Évêque invejaram a Sra. Aubain por sua criada Felicidade.
Por cem francos ao ano, ela cozinhava e limpava a casa, costurava, lavava, passava, sabia arrear cavalos, engordar aves, bater a manteiga; permaneceu fiel à sua patroa, que, no entanto, não era uma pessoa agradável.
Ela esposara um belo rapaz sem fortuna, que falecera no começo de 1809, deixando-lhe duas crianças pequenas e uma quantidade considerável de dívidas. Então, vendeu seus imóveis, exceto as terras arrendadas de Toucques e de Geffosses, cujos rendimentos atingiam, no máximo, 5 mil francos, e deixou sua casa de Saint-Melaine para morar em outra menos dispendiosa que pertencera a seus ancestrais, localizada atrás do mercado.
Essa casa, revestida de ardósia, situava-se entre um beco e uma ruela que terminava no riacho. Seu interior tinha desníveis que faziam tropeçar. Um vestíbulo estreito separava a cozinha da sala onde a Sra. Aubain permanecia durante o dia, sentada em uma poltrona de palha, perto da janela. Encostadas no lambri, pintado de branco, alinhavam-se oito cadeiras de acaju. Um velho piano sustentava, sob um barômetro, um pilha piramidal de caixas variadas, algumas de papelão. Duas “bergères” em tapeçaria, ladeavam a lareira em mármore amarelo, em estilo Luís XV. O relógio, no meio, representava um templo de Vesta — e todo o ambiente cheirava um pouco a mofo, pois o piso era mais baixo do que o quintal.
No primeiro andar, havia primeiro o quarto da “senhora”, muito grande, forrado com um papel de flores desbotadas, contendo o retrato do “senhor”, de aparência janota. Ele se comunicava com um quarto menor, onde se viam duas camas de crianças sem colchões. Depois, vinha a sala de visitas, sempre fechada, cheia de móveis cobertos por lençóis. Em seguida, um corredor levava a um escritório; livros e papéis lotavam as prateleiras de uma estante que tomava três lados de uma escrivaninha grande em madeira escura. Dois painéis, por sua vez, desapareciam sob desenhos em bico de pena, paisagens a guache e gravuras de Audran, lembranças de um tempo melhor e de um luxo perdido. Uma lucarna, no segundo andar, clareava um pouco o quarto de Felicidade, com vista para os campos.
Felicidade levantava-se com a madrugada, para não perder a missa, e trabalhava até a noite, sem interrupção; depois, terminado o jantar, a louça em ordem e a porta bem fechada, ela cobria de cinzas a acha de lenha e adormecia diante da lareira com o rosário na mão. Ninguém, nas redondezas, demonstrava mais perseverança. Quanto à limpeza, o brilho de suas panelas levava ao desespero as outras criadas. Econômica, ela comia com lentidão e recolhia com os dedos as migalhas de pão — um pão de doze libras, especialmente feito para ela, que durava vinte dias.
Em todas as estações do ano, ela usava um lenço indiano fixado nas costas por um alfinete, uma touca escondendo-lhe os cabelos, meias cinzas, um saiote vermelho e sobre a camisola, um avental inteiriço, como o das enfermeiras de hospital.
Seu rosto era magro e sua voz aguda. Com vinte e cinco anos, davam-lhe quarenta. A partir dos cinquenta, não aparentava mais nenhuma idade; e, sempre silenciosa, postura ereta e gestos comedidos, parecia uma mulher de madeira, funcionando de maneira automática.
II
Ela tivera, como qualquer outra, sua história de amor.
O pai, pedreiro, morreu quando caiu de um andaime. Depois, a mãe faleceu, as irmãs se dispersaram, um arrendatário recolheu-a e empregou-a, ainda pequena, para cuidar das vacas no pasto. Ela tremia de frio em seus farrapos, bebia, deitada no chão, a água das poças, apanhava por qualquer motivo; por fim, acabou sendo expulsa por causa de um furto de trinta soldos, que não havia cometido. Foi para uma outra propriedade, onde trabalhava no fundo do quintal, cuidando dos animais; e, como agradava aos patrões, os outros criados invejavam-na.
Numa noite do mês de agosto (tinha, então, dezoito anos), eles a levaram à feira em Colleville. Imediatamente ficou atordoada, estupefata pela balbúrdia dos violeiros, pelas luzes nas árvores, pela miscelânea de cores das roupas, pelas rendas, crucifixos de ouro, pela multidão indo e vindo ao mesmo tempo. Mantinha-se a distância, modestamente, quando um jovem, de aparência abastada, fumando cachimbo, com os dois cotovelos sobre o timão de uma carroça, veio tirá-la para dançar. Pagou-lhe sidra, café, bolo, um lenço e, imaginando que ela o adivinharia, ofereceu-se para levá-la para casa. Ao lado de um aveal, ele a derrubou brutalmente. Ela teve medo e se pôs a gritar. Ele se afastou.
Uma outra noite, na estrada de Beaumont, ela quis ultrapassar uma grande carroça de feno que avançava lentamente; e, ao esbarrar nas rodas, reconheceu Teodoro.
Ele a abordou com um ar tranquilo, dizendo que precisava perdoar tudo, pois era “culpa da bebida”.
Ela não soube o que responder e teve vontade de fugir.
Logo em seguida, ele falou das colheitas e das pessoas importantes da comuna, pois seu pai tinha deixado Colleville pelas terras de Écots, de modo que, agora, eram vizinhos.
— Ah! — disse ela.
Acrescentou que desejavam casá-lo. Porém não estava apressado e aguardava uma mulher do seu agrado. Ela abaixou a cabeça. Então, ele lhe perguntou se pensava em casamento. Ela respondeu, sorrindo, que não era bom debochar.
— Mas, não, eu lhe juro! — e, com o braço esquerdo ele lhe enlaçou a cintura.
Ela caminhava amparada pelo seu abraço; diminuíram o passo. O vento estava suave, as estrelas brilhavam, a enorme carroça de feno balançava diante deles; e os quatro cavalos arrastando os passos, levantavam poeira. Em seguida sem comando, viraram à direita. Ele a beijou ainda uma vez. Ela desapareceu na penumbra.
Teodoro, na semana seguinte, conseguiu marcar encontros com ela.
Viam-se no fundo dos pátios, atrás de um muro, sob uma árvore isolada. Ela não era inocente à maneira das moças finas — os animais haviam-na instruído; — mas a razão e o instinto de honra impediram-na de se entregar. Essa resistência exasperou o amor de Teodoro, de modo que para satisfazê-lo (ou ingenuamente talvez) ele lhe propôs casamento. Ela hesitava em acreditar. Ele fez grandes juras.
Logo em seguida, confessou-lhe algo desagradável: seus pais, no ano anterior, haviam pago a um homem para se alistar em seu lugar; contudo, cedo ou tarde, poderiam chamá-lo; a ideia do recrutamento assustava-o. Essa covardia foi para Felicidade uma prova de afeto; seu sentimento por ele redobrou. Ela escapava de noite, e uma vez juntos, Teodoro torturava-a com suas inquietudes e insistências.
Enfim, Teodoro anunciou que ele mesmo iria à administração para obter informações e as traria no domingo seguinte, entre onze horas e meia-noite.
Chegado o momento, ela correu ao encontro de seu amado.
Em seu lugar, encontrou um de seus amigos.
Este lhe disse que não mais deveria revê-lo. Para se livrar do alistamento, Teodoro havia-se casado com uma mulher velha e muito rica, sra. Lehoussais, de Toucques.
Foi uma crise de desgosto. Ela se atirou ao chão, gritou, clamou pelo bom Deus, e gemeu sozinha no campo até o sol se levantar. Depois, retornou à propriedade, declarou sua intenção de ir embora; e, no final do mês, tendo recebido suas contas, reuniu seus poucos pertences em uma trouxa e foi para Pont-l’Évêque.
Diante de um albergue, interpelou uma burguesa com capelina de viúva, que justamente procurava por uma cozinheira. A jovem não sabia grande coisa, mas parecia ter tanta boa vontade e tão poucas exigências, que a sra. Aubain acabou por dizer:
— Está bem, eu a admito!
Felicidade, quinze minutos depois, estava instalada na casa dela.
No começo, conviveu com uma espécie de estremecimento que lhe causavam “o estilo da casa” e a lembrança do “senhor”, pairando sobre tudo! Paulo e Virgínia, aquele com sete anos, esta com apenas quatro, pareciam-lhe formados de uma matéria preciosa; ela os carregava nas suas costas como se fosse um cavalo, e a sra. Aubain proibiu-lhe de beijá-los a cada minuto, o que a mortificava. No entanto estava feliz. A suavidade do ambiente tinha dissolvido sua tristeza.
Todas as quintas-feiras, frequentadores assíduos vinham jogar uma partida de bóston. Felicidade preparava com antecedência as cartas e os aquecedores. Eles chegavam às oito horas em ponto e se retiravam antes de soar as onze.
Toda segunda-feira, o vendedor de objetos usados que morava no lado de baixo da alameda esparramava pelo chão suas tranqueiras. Depois a cidade enchia-se de um murmúrio de vozes, ao qual se misturavam relinchos de cavalos, balidos de carneiros, grunhidos de porcos, com o barulho seco das charretes na rua. Por volta de meio-dia, no auge da feira, via-se surgir na soleira um velho camponês de estatura alta, com boné para trás, nariz adunco, e que era Robelin, o arrendatário das terras de Geffosses. Logo depois, chegava Liébard, arrendatário de Toucques, pequeno, vermelho, obeso, usando um casaco cinza e botinas munidas de esporas.
Os dois ofereciam à proprietária galinhas ou queijos. Felicidade invariavelmente adivinhava suas astúcias; e eles iam embora plenos de consideração por ela.
De quando em quando, a sra. Aubain recebia a visita do marquês de Gremanville, um tio seu, arruinado pela devassidão, que vivia em Falaise no seu último quinhão de terra. Chegava sempre na hora do almoço, com um cão insuportável cujas patas sujavam todos os móveis. Apesar de seus esforços para parecer um fidalgo, chegando mesmo a tirar o chapéu cada vez que dizia: “Meu falecido pai”, o hábito era mais forte, ele bebia um copo após o outro e deixava escapar inconveniências. Felicidade colocava-o para fora polidamente. “Já é o bastante, senhor de Gremanville! Até uma outra vez!” E fechava a porta.
Ela a abria com prazer para o sr. Bourais, antigo procurador judicial. Sua gravata branca e sua calvície, o peitilho da camisa, ampla sobrecasaca marrom, o modo de tomar o rapé curvando o braço, todo o seu ser produzia-lhe uma perturbação em que nos lança o espetáculo dos homens extraordinários.
Como ele gerenciava as propriedades da “senhora”, trancava-se com ela, durante horas, no escritório do “senhor” e sempre temia comprometer-se, respeitava infinitamente a magistratura, tinha pretensões de conhecer o latim.
Para instruir as crianças de um modo agradável, deu-lhes de presente um livro de geografia em estampas. Elas representavam diferentes cenas do mundo, antropófagos com as cabeças cobertas de penas, um macaco aprisionando uma moça, beduínos no deserto, uma baleia arpoada etc.
Paulo explicou essas gravuras a Felicidade. Essa foi toda sua educação literária.
A das crianças era feita por Guyot, um pobre-coitado, empregado da prefeitura, famoso por sua bela caligrafia, que afiava o canivete na bota.
Quando o tempo estava bom, iam bem cedo para as terras de Geffosses.
No pátio em declive, a casa ficava no meio; e o mar, ao longe, surgia como uma mancha cinza.
Felicidade retirava de seu cesto fatias de carne fria e almoçavam em uma peça contígua à leiteria. Foi a única que restou de uma construção de lazer, agora desaparecida. O papel da parede, todo rasgado, tremia com as correntes de ar. A sra. Aubain abaixava a cabeça, abatida pelas lembranças; as crianças não se atreviam mais a falar. “Brinquem, vamos!” dizia ela; elas saíam correndo.
Paulo subia no celeiro, apanhava pássaros, fazia ricochetes sobre as poças, ou batia com um bastão os largos barris que ressoavam como tambores.
Virgínia dava comida aos coelhos, corria para colher florezinhas azuis, e a rapidez de suas pernas descobria as pequenas calças bordadas.
Numa noite de outono, voltaram pelas pastagens.
A lua, em quarto crescente, iluminava uma parte do céu e uma neblina flutuava como um véu sobre as sinuosidades do rio Toucques. Alguns bois, deitados na relva, olhavam tranquilamente passarem essas quatro pes-soas. No terceiro pasto cercado, alguns se levantaram, puseram-se, em seguida, em círculo diante delas.
— Não tenham medo! — disse Felicidade e, murmurando uma espécie de lamento, acariciou o dorso do animal que se encontrava mais próximo; ele fez meia-volta, os outros o imitaram. Porém, quando atravessaram o pasto seguinte, um mugido medonho soou. Era um touro que a neblina escondia. Ele avançou em direção às duas mulheres. A sra. Aubain ia correr.
— Não! Não! Mais devagar!
Elas apertaram o passo, contudo, e ouviam por trás uma respiração forte que se aproximava. Seus tamancos, como martelos, batiam na relva da campina; e agora ele galopava! Felicidade virou-se; com as duas mãos arrancava placas de terra e jogava-lhe nos olhos. Ele abaixava o focinho, sacudia os chifres e tremia de furor, mugindo horrivelmente. A sra. Aubain, no fim do pasto, com as duas crianças, procurava, perdida, como atravessar a cerca alta. Felicidade recuava sempre diante do touro e lançava continuamente torrões de relva que o cegavam, enquanto gritava:
— Corram! Corram!
A sra. Aubain desceu a vala, empurrou Virgínia, Paulo em seguida; caiu muitas vezes tentando subir o talude, e, à força de muita de coragem, conseguiu fazê-lo.
O touro tinha encurralado Felicidade contra uma cerca; sua baba jorrava no rosto dela, um segundo mais ele a estriparia. Ela teve tempo de deslizar entre duas barras da cerca, e o grande animal, surpreso, parou.
Esse acontecimento, durante muitos anos, foi assunto de conversa em Pont-l’Évêque. Felicidade não tirou nenhuma vantagem disso, duvidando até mesmo de que tivesse feito algo de heroico.
Virgínia sozinha ocupava todo o seu tempo — porque teve, após o seu pavor, uma afecção nervosa e o doutor Poupart aconselhou banhos de mar de Trouville.
Naquele tempo, não se tomavam banhos de mar. A sra. Aubain informou-se, consultou Bourais, fez preparativos como se fosse fazer uma longa viagem.
Seus pertences partiram na véspera, na charrete de Liébard. No dia seguinte, ele levou dois cavalos; um tinha uma sela para mulher, munida de um encosto de veludo; na garupa do segundo, um manto enrolado formava uma espécie de assento. A sra. Aubain sentou-se atrás dele.
Felicidade encarregou-se de Virgínia, e Paulo montou o burro do sr. Lechaptois, emprestado com a condição de se ter muito cuidado com ele.
A estrada era tão ruim que seus oitos quilômetros exigiram duas horas. Os cavalos enterravam até as quartelas na lama e, para sair, faziam bruscos movimentos de ancas; ou, então, apoiavam-se nos sulcos na estrada; outras vezes, era-lhes preciso pular. A égua de Liébard, em certos lugares, parava de repente. Ele esperava pacientemente que ela se pusesse em marcha; e falava de pessoas cujas propriedades margeavam a estrada, acrescentando a suas histórias reflexões morais. Assim, no meio de Toucques, quando passaram sob umas janelas rodeadas de capuchinhas, ele disse, levantando os ombros:
— Aí está uma, a sra. Lehoussais, que em vez de aceitar um jovem rapaz...
Felicidade não ouviu o resto; os cavalos trotavam, o burro galopava; todos entraram por um caminho estreito, uma porteira se abriu, dois garotos apareceram, e desceram em frente da purina, na soleira da porta.
A velha Liébard, vendo sua patroa, prodigalizou demonstrações de alegria. Serviu-lhe um almoço com lombo de boi, rabada, chouriço, um fricassê de frango, sidra espumante, uma torta de compotas e ameixas embebidas em aguardente, tudo regado com cortesias à senhora que parecia cheia de saúde, e à senhorita que se tinha tornado “maravilhosa”, ao sr. Paulo excepcionalmente “gordo”, sem esquecer seus avós falecidos que os Liébard tinham conhecido, pois estavam a serviço da família havia muitas gerações. As terras tinham, como eles, caráter de antiguidade. As vigotas do teto estavam corroídas, as paredes, negras de fumaça, os ladrilhos cinza de poeira. Um aparador de carvalho mantinha todos os tipos de utensílios, jarras, pratos, tigelas de estanho, armadilhas de lobo, tesouras para a tosquia de carneiros; uma enorme seringa provocou risos nas crianças. Não havia ne-nhuma macieira nos três pátios que não tivesse cogumelos em sua base ou, em seus galhos, um tufo de visgo. O vento derrubara várias delas. Voltaram a brotar pelo meio; e todas se curvavam com a quantidade de maçãs. Os telhados de palha, como veludos castanhos de diferentes espessuras, resistiam aos mais fortes vendavais. Entretanto a cocheira caía em ruínas. A sra. Aubain disse que iria partir e mandou selar os animais.
Levaram ainda meia hora antes de chegar a Trouville. O pequeno grupo teve que apear para passar as Écores, tratava-se de uma falésia que pendia sobre os barcos; e três minutos mais tarde, no fim do cais, entraram no pátio do Agneau d’or, na casa da velha David.
Virgínia, desde os primeiros dias, sentiu-se um pouco mais forte, resultado da mudança de ares e da ação dos banhos. Ela os tomava de camisa, por não ter roupa apropriada; e sua empregada a vestia em uma cabana de aduaneiro que servia aos banhistas.
À tarde, ia-se com o burro para além de Roches-Noires, ao lado de Hennequeville. O caminho, no começo, subia entre terrenos com vales como o gramado de um parque depois, chegava a um planalto onde alternavam as pastagens e as plantações. À beira do caminho, no amontoado de espinheiros, azevinhos erguiam-se; aqui e acolá, havia grandes árvores mortas que faziam ziguezagues com seu galhos no ar azul.
Quase sempre, eles repousavam em um campo, tendo Deauville à esquerda, o Havre à direita e, em frente, o mar aberto. Ele brilhava sob o sol, liso como um espelho tão calmo que mal se escutava seu murmúrio; pardais escondidos chilreavam, e a imensa abóbada celeste recobria tudo. A sra. Aubain, sentada, trabalhava em sua costura; Virgínia, próxima a ela, trançava juncos; Felicidade arrancava flores de lavanda; Paulo, que se entediava, queria ir embora.
Outras vezes, tendo passado de barco por Toucques eles procuravam conchas. A maré baixa deixava à mostra ouriços-do-mar, moluscos, medusas; as crianças corriam para pegar os flocos de espuma que o vento carregava. As ondas adormecidas, quebrando na areia, desenrolavam-se ao longo da praia; esta se estendia a perder de vista, mas, do lado da terra, tinha como limite as dunas que a separavam do Marais, ampla pradaria em forma de hipódromo. Quando retornavam por aí, Trouville, ao fundo sobre o penhasco da encosta, a cada passo, aumentava, e com todas suas casas desiguais parecia desabrochar-se em uma alegre desordem.
Nos dias de muito calor, eles não saíam do quarto. A ofuscante claridade do exterior imprimia faixas de luz entre as lâminas das persianas. Nenhum ruído no vilarejo. Embaixo, na calçada, ninguém. Esse silêncio espalhado aumentava a tranquilidade das coisas. Ao longe, os martelos dos calafates batiam nas carenas, e uma brisa densa trazia o cheiro do piche.
O principal divertimento era o regresso da barca. Assim que ultrapassavam as boias, eles começavam a bordejar. As velas dos mastros vinham dois terços arriadas; e, com a mezena cheia como um balão, eles avançavam, deslizavam no marulho das ondas, até o meio do porto, onde, de repente, lançavam a âncora. Em seguida, o barco se colocava junto ao cais. Os marujos jogavam por cima da borda peixes ainda palpitantes, uma fila de charretes os aguardava e mulheres com gorros de algodão corriam para pegar as cestas e abraçar seus homens.
Uma delas, um dia, abordou Felicidade, que pouco tempo após entrou no quarto, toda feliz. Havia reencontrado uma de suas irmãs; e Nastácia Barette, mulher de Leroux, apareceu, com um bebê no colo, segurando à mão direita uma outra criança, e tendo à sua esquerda um pequeno grumete com os punhos nas ancas e a boina até as orelhas.
Ao cabo de quinze minutos, a sra. Aubain dispensou-a.
Reencontravam-se sempre nos arredores da cozinha ou nos passeios que faziam. O marido nunca aparecia.
Felicidade afeiçoou-se por eles. Ela lhes deu um cobertor, camisas, um fogão; evidentemente, eles a exploravam. Essa fraqueza irritava a sra. Aubain, que, aliás, não gostava das familiaridades do sobrinho, porque ele tratava seu filho por “você”; e, como Virgínia estivesse tossindo e como o tempo tivesse mudado, retornou a Pont-l’Évêque.
O sr. Bourais orientou-a na escolha de um colégio. O de Caen parecia ser o melhor. Paulo foi enviado para lá; e despediu-se valentemente, satisfeito por ir viver em uma casa onde teria amigos.
A sra. Aubain conformou-se com o afastamento do filho, porque era indispensável. Virgínia pensava nisso cada vez menos. Felicidade, sentia falta da balbúrdia que ele fazia. Mas uma ocupação veio distraí-la; depois do Natal, ela levava todos os dias a menina ao catecismo.
III
Uma vez feita, à porta, uma genuflexão, ela avançava sob a alta nave entre as duas fileiras de cadeiras, abria o banco da sra. Aubain, sentava-se e deixava os olhos vagarem à sua volta.
Os rapazes à direita, as moças à esquerda ocupavam a estala do coro; o pároco permanecia de pé perto da estante do coro; em um vitral da abside, o Espírito Santo se elevava sobre a Virgem; um outro mostrava-a de joelhos diante do Menino Jesus e, atrás do tabernáculo, um grupo em madeira representava São Miguel subjugando o dragão.
De início, o padre fez um resumo da História Sagrada. Ela acreditava ver o paraíso, o dilúvio, a torre de Babel, as cidades completamente em chamas, pessoas que morriam, ídolos derrubados; e guardava desse assombro o respeito pelo Altíssimo e o temor de sua cólera. Depois, chorou ao ouvir a Paixão. Por que o haviam crucificado, ele que amava as crianças, alimentava as multidões, curava os cegos e quisera, por bondade, nascer entre os pobres, sobre o esterco de um estábulo? A semeadura, a colheita, o lagar, todas essas coisas familiares de que fala o Evangelho, encontravam-se em sua vida; a passagem de Deus as havia santificado; e ela sentia mais afeto pelos cordeiros por amor ao Cordeiro, e pelas pombas, por causa do Espírito Santo.
Era-lhe difícil imaginar sua pessoa; já que não era apenas uma ave, mas ainda um fogo e, outras vezes, um sopro. Talvez seja sua luz que paira à noite sobre a margem dos pântanos, sua respiração que empurra as nuvens, sua voz que torna os sinos harmoniosos; e ela se estendia em uma adoração, gozando o frescor das paredes e a tranquilidade da igreja.
Quanto aos dogmas, não compreendia absolutamente nada, nem mesmo se esforçava para compreendê-los. O padre discorria, as crianças recitavam, ela acabava por adormecer; e acordava de repente, quando os outros, ao saírem, faziam soar os tamancos sobre o piso.
Foi dessa maneira, de tanto ouvi-lo, que aprendeu o catecismo, uma vez que sua educação religiosa tinha sido negligenciada na juventude; e desde aquele momento, imitava todas as práticas de Virgínia, jejuando como ela, confessando-se com ela. Para a festa de Corpos Christi fizeram juntas um andor.
A primeira comunhão atormentava-a por antecipação. Preocupou-se com os sapatos, o terço, o livro, as luvas. Com que tremor não ajudou a mãe a vesti-la!
Durante toda a missa, sentiu uma angústia. O Bourais escondia-lhe um lado do coro; mas logo à frente o bando de virgens usando coroas brancas sobre os véus abaixados formavam como que um campo de neve; e reconhecia de longe a menina querida pelo pescoço fino e a atitude recolhida. O sino tocou. As cabeças se curvaram; fez-se silêncio. Ao som do órgão, os cantores e a multidão entoaram o Agnus Dei; então começou o desfile dos meninos; e, depois deles, as meninas se levantaram. Passo a passo e de mãos juntas andavam em direção ao altar todo iluminado, ajoelhavam-se no primeiro degrau, recebiam sucessivamente a hóstia e, na mesma ordem, voltavam aos seus genuflexórios. Quando foi a vez de Virgínia, Felicidade debruçou-se para vê-la e, com a imaginação dos verdadeiros afetos, parecia ser ela mesma aquela criança; aquele rosto se tornava seu, aquele vestido a vestia, aquele coração batia em seu peito; no momento de abrir a boca, fechando as pálpebras, estava a ponto de desmaiar.
No dia seguinte, logo cedo, apresentou-se na sacristia para que o padre lhe desse a comunhão. Recebeu-a devotamente, mas não experimentou as mesmas delícias. A sra. Aubain queria tornar sua filha uma pessoa perfeita e, como Guyot não pudesse lhe ensinar inglês e tampouco música, resolveu colocá-la em um pensionato nas Ursulinas de Honfleur.
A criança não fez nenhuma objeção. Felicidade suspirava, julgando a senhora insensível. Depois considerou que talvez a sua patroa tivesse razão. Todas essas coisas ultrapassavam sua competência.
Um dia, afinal, uma velha traquitana parou em frente à porta e dela desceu uma religiosa que vinha buscar a senhorita. Felicidade pôs a bagagem no carro, fez recomendações ao cocheiro e colocou no baú seis potes de doces e uma dúzia de peras com um ramalhete de violetas.
Virgínia, no último momento, foi tomada por um grande choro; abraçava a mãe que a beijava no rosto, repetindo:
— Vamos! Coragem! Coragem!
O degrau foi levantado e o carro partiu.
Então, a sra. Aubain teve um desfalecimento e à noite todos os amigos — o casal Lormeau, a sra. Lechaptois, as senhoritas Rochefeuille, o sr. de Houppeville e Bourais — apareceram para consolá-la.
De início, a privação de sua filha foi muito dolorosa. Mas três vezes por semana recebia uma carta, nos demais dias escrevia-lhe, passeava no quintal, lia um pouco e, dessa forma, preenchia o vazio das horas.
De manhã, por força do hábito, Felicidade entrava no quarto de Virgínia e olhava as paredes. Sentia falta de pentear os seus cabelos, amarrar-lhe as botinas, colocá-la na cama, — e de ver continuamente seu delicado rosto, de segurá-la pela mão quando saíam juntas. Em sua ociosidade, tentou fazer rendas. Os dedos pesados demais rompiam os fios; não ouvia nada, perdera o sono, segundo sua palavra, estava “minada”.
Para “se distrair”, pediu a permissão para receber seu sobrinho Vítor.
Ele chegava aos domingos após a missa, com as faces rosadas, o peito nu e cheirando aos campos que atravessara. Imediatamente ela botava a mesa. Almoçavam um diante do outro e, comendo ela o menos possível para evitar as despesas, empanturrava-o de tal maneira que ele acabava por adormecer. Ao primeiro toque das vésperas, ela o acordava, escovava suas calças, apertava-lhe a gravata e dirigia-se à igreja, apoiada em seu braço com um orgulho maternal.
Seus pais sempre o encarregavam de conseguir alguma coisa, fosse um pacote de açúcar, sabonete, aguardente, às vezes até mesmo dinheiro. Trazia suas roupas velhas para remendar; e ela aceitava esse trabalho, feliz por haver uma oportunidade que o forçasse a voltar.
No mês de agosto, seu pai enviou-o à marinha.
Era época de férias. A chegada das crianças consolou-a. Mas Paulo tornara-se caprichoso e Virgínia não tinha mais idade para ser tratada por “você”, o que colocava um constrangimento, uma barreira entre elas.
Vítor foi sucessivamente a Morlaix, Dunkerque e Brighton; no regresso de cada viagem ele lhe trazia um presente. Da primeira vez, foi uma caixa de conchas; da segunda, uma xícara de café; da terceira, um grande boneco de pão de mel. Estava tornando-se belo, era magro, tinha um bigodinho, olhos sãos e francos e um pequeno chapéu de couro, que usava para trás como um piloto. Divertia-a contando histórias repletas de termos de marinheiro.
Em uma segunda-feira, 14 de julho de 1819 (ela não esqueceu a data), Vítor anunciou que havia sido recrutado para uma longa viagem e que dali a duas noites, com o navio de Honfleur, iria juntar-se à galé, que deveria partir do porto do Havre em breve. Ele talvez ficasse fora por dois anos.
A perspectiva de tal ausência deixou Felicidade desolada; e, para ainda lhe dizer adeus, na quarta-feira à noite, após o jantar da senhora, vestiu as galochas e percorreu as quatro léguas que separavam Pont-l’Évêque de Honfleur.
Chegando diante do Calvário, em vez de pegar a esquerda, pegou a direita, perdeu-se nos canteiros de obras, voltou para trás; as pessoas que abordava mandavam-na apressar-se. Ela deu a volta na doca repleta de navios, batia nas amarras; depois o terreno se inclinou, as luzes se entrecruzaram e ela acreditou estar louca, avistando cavalos no céu.
À margem do cais, outros relinchavam assustados com o mar. Uma talha, que os levantava, desceu-os no barco onde os viajantes se acotovelavam entre os barris de sidra, os cestos de queijo, os sacos de grãos; ouvia-se o barulho das galinhas, o capitão blasfemava e um grumete permanecia apoiado ao turco da embarcação, indiferente a tudo aquilo. Felicidade, que não o reconhecera, gritou:
— Vítor!
Ele levantou a cabeça; ela avançou quando, de repente, retiraram a escada.
O navio, que mulheres cantando puxavam pelas cordas, deixou o porto. A carcaça estalava, as ondas pesadas fustigavam a proa. A vela virara, não se via mais ninguém; e, sobre o mar prateado pela lua, o navio deixou uma mancha negra que se ia empalidecendo, embrenhou-se nas águas, desapareceu.
— Felicidade, ao passar perto do Calvário, quis recomendar a Deus o que mais amava; e rezou muito tempo de pé, com as faces banhadas em lágrimas, os olhos em direção às nuvens. A cidade dormia, os aduaneiros passeavam; e a água caía sem parar pelos buracos da eclusa com um barulho de torrente. Soaram duas horas.
O locutório não abriria antes do amanhecer. Um atraso, certamente, deixaria a senhora contrariada e, apesar do desejo de beijar a outra criança, ela voltou. As moças do albergue despertavam quando ela entrou em Pont-l’Évêque.
O pobre rapaz durante meses iria então vaguear sobre as ondas! Suas viagens precedentes não a haviam assustado. Da Inglaterra e da Bretanha podia-se voltar; mas a América, as Colônias, as Ilhas, aquilo ficava perdido em uma região incerta, do outro lado do mundo.
Desde então, Felicidade pensou exclusivamente em seu sobrinho. Nos dias de sol, atormentava-se com a sede; quando caía um temporal, temia os raios por ele. Escutando o vento que troava na chaminé e varria as ardósias, via-o batido pela mesma tempestade, no topo de um mastro despedaçado, com o corpo todo para trás, sob um lençol e espuma; ou então — lembranças do livro de geografia estampas — ele era devorado pelos selvagens, aprisionado pelos macacos em uma floresta, morria ao longo de uma praia deserta. E jamais falou de suas inquietudes.
A sra. Aubain tinha outras pela filha.
As freiras achavam que ela era afetuosa, mas delicada. A mínima emoção deixava-a nervosa. Era preciso largar o piano.
A mãe exigia do convento uma correspondência regular. Numa manhã em que o carteiro não viera, impacientou-se e andava pela sala, da poltrona até a janela. Era realmente extraordinário! quatro dias, sem notícias!
Para que ela se consolasse com o exemplo, Felicidade disse-lhe:
— E eu, senhora, já faz seis meses que não recebo nada!...
— Mas de quem?...
A criada replicou suavemente:
— Mas ... de meu sobrinho!
— Ah! seu sobrinho! — E, dando de ombros, a sra. Aubain retomou seu passo, o que queria dizer: “Eu nem penso nele!... Além disso, pouco me importa! Um grumete, um miserável, grande coisa!... Enquanto que minha filha... Imagine só!...
Felicidade, embora crescida em meio à crueldade, indignou-se com a senhora, depois esqueceu.
Parecia-lhe fácil perder a cabeça em se tratando da menina.
As duas crianças tinham uma importância igual; um lugar em seu coração as unia e seus destinos deviam ser os mesmos.
O farmacêutico contou-lhe que o barco de Vítor chegara a Havana. Lera essa informação em uma gazeta.
Por conta dos charutos, ela imaginava Havana como um país onde não se fazia outra coisa senão fumar, e Vítor circulava entre os negros em uma nuvem de tabaco. Podia-se “em caso de necessidade” voltar de lá por terra? A que distância ficava de Pont-l’Évêque? Para sabê-lo, interrogou o sr. Bourais.
Ele pegou o atlas, depois começou explicações sobre longitudes; e estampava no rosto um grande sorriso pedante diante do pasmo de Felicidade. Por fim, com sua lapiseira, indicou nos recortes de uma mancha oval um ponto negro, imperceptível, acrescentando:
— Aqui está.
Ela se debruçou sobre o mapa; aquela malha de linhas coloridas cansava a vista, sem lhe ensinar coisa alguma; e a Bourais, o qual insistia que lhe dissesse o que a perturbava, pediu que lhe mostrasse a casa onde morava Vítor.
Bourais levantou os braços, espirrou, riu a valer; tamanha candura excitava sua alegria; e Felicidade não compreendia o motivo, — ela que esperava talvez ver até o retrato do sobrinho, de tal modo sua inteligência era limitada!
Foi após quinze dias que Liébard, na hora do mercado, como de costume, entrou na cozinha e entregou-lhe uma carta enviada pelo cunhado. Uma vez que nenhum dos dois sabia ler, ela recorreu à patroa.
A sra. Aubain, que contava as malhas de um tricô, colocou-o de lado, deslacrou a carta, estremeceu e, com uma voz baixa, um olhar profundo:
— É uma desgraça... que lhe é anunciada. Seu sobrinho...
Morrera. Não estava escrito mais nada.
Felicidade caiu sobre uma cadeira, apoiando a cabeça na parede e fechou as pálpebras, que, de repente, tornaram-se rosadas. Depois, com a fronte baixa, as mãos caídas, o olhar fixo, repetia em intervalos:
— Pobre menino! Pobre menino!
Liébard via-a soltando suspiros. A sra. Aubain tremia um pouco.
Ela lhe propôs ir ver a irmã em Trouville.
Felicidade respondeu, com um gesto, que não era preciso.
Fez-se silêncio. Liébard, homem simples, julgou conveniente se retirar.
Então ela disse:
— Para eles, isso não significou nada!
Sua cabeça baixou; e maquinalmente ela erguia, de tempos em tempos, as longas agulhas sobre a mesa de costura.
Algumas mulheres passaram no pátio com uma padiola de onde gotejava a roupa.
Vendo-as pela janela, lembrou-se da roupa lavada; tendo-a deixado de molho no dia anterior, precisava hoje enxaguá-la; e saiu do aposento.
A tábua de bater roupa e a tina estavam nos limites do Toucques. Jogou sobre o talude uma pilha de camisas, arregaçou as mangas, pegou a tábua de bater; e os fortes golpes que dava eram ouvidos nos outros quintais ao lado. Os campos estavam vazios, o vento agitava o riacho; ao fundo, a relva alta se inclinava sobre ele como cabeleiras de cadáveres flutuando na água. Reteve sua dor, até a noite foi muito corajosa; mas, em seu quarto, jogou-se de ventre sobre o colchão, com o rosto no travesseiro e os dois punhos contra as têmporas.
Muito depois, pelo próprio capitão de Vítor, conheceu as circunstâncias de seu fim.
Haviam-no sangrado demais no hospital, por causa da febre amarela. Quatro médicos ocuparam-se dele ao mesmo tempo. Morreu imediatamente e o médico chefe dissera:
— Bem! Mais um!
Os pais sempre o tinham tratado com crueldade. Preferiu não os rever; e eles não tentaram nenhuma aproximação, por esquecimento ou por endurecimento dos miseráveis.
Virgínia enfraquecia.
Sufocações, tosse, uma febre contínua e marcas na face revelavam uma enfermidade profunda. O dr. Poupart aconselhara uma estada na Provence. A sra. Aubain decidiu-se e teria imediatamente trazido sua filha para casa, se não fosse pelo clima de Pont-l’Évêque.
Fez um trato com um dono de carros que a levava ao convento todas as terças-feiras. Há no jardim um terraço de onde se descobre o Sena. Ali Virgínia passeava de braços dados com ela sobre as folhas caídas das videiras. Às vezes o sol atravessando as nuvens forçava-a a piscar, en-quanto olhava as velas ao longe e todo o horizonte, desde o castelo de Tancarville até o farol do Havre. Em seguida repousavam sob o caramanchão. Sua mãe providenciara um pequeno barril de excelente vinho de Málaga; e rindo com a idéia de ficar levemente embriagada, bebia dois dedos, não mais.
Recobrou forças. O outono passou suavemente. Felicidade tranquilizava a sra. Aubain. Mas, certa noite, quando fora aos arredores fazer compras, encontrou à porta o cabriolé do sr. Poupart; e ele estava no vestíbulo. A sra. Aubain amarrava o chapéu.
— Dê-me meu aquecedor, minha bolsa, minhas luvas. Ande, mais rápido!
Virgínia tinha uma fluxão do peito. Talvez fosse grave.
— Ainda não! — disse o médico; e ambos subiram no carro, sob os flocos de neve que turbilhavam. A noite estava por chegar. Fazia muito frio.
Felicidade precipitou-se para a igreja para acender uma vela. Depois correu atrás do cabriolé, que alcançou uma hora mais tarde, saltou ligeiramente por trás, segurando-se nas barras, quando lhe veio um pensamento: “O pátio não estava fechado! e se entrassem ladrões?” E ela desceu.
No dia seguinte, logo de madrugada, apareceu na casa do médico. Ele tinha chegado e saído novamente para o campo. Depois ela permaneceu no albergue, acreditando que algum desconhecido lhe entregaria uma carta. Por fim, ao amanhecer, pegou a diligência de Lisieux.
O convento encontrava-se no fim de uma ruela íngreme. Aproximadamente no meio, ela ouviu sons estranhos, um toque de finados. “É para outra pessoa”, pensou ela; e Felicidade puxou violentamente a aldrava.
Ao cabo de alguns minutos, chinelos arrastaram-se, a porta entreabriu-se e uma religiosa apareceu.
A freira com um ar de compunção disse que “ela acabara de falecer”. Ao mesmo tempo o sino fúnebre de São Leonardo tocou.
Felicidade chegou ao segundo andar.
Já na soleira do quarto, viu Virgínia estendida de costas, com as mãos juntas, a boca aberta e a cabeça para trás sob uma cruz negra que se inclinava sobre ela, entre as cortinas imóveis, menos pálidas que seu rosto. A sra. Aubain, aos pés do leito que abraçava, soluçava de agonia. A madre superiora estava de pé à direita: Três candelabros sobre a cômoda faziam manchas vermelhas e a névoa esbranquiçava as janelas. Algumas religiosas retiraram a sra. Aubain.
Durante duas noites, Felicidade não deixou a morta. Repetia as mesmas preces, aspergia água benta sobre os lençóis, voltava a sentar-se e contemplava-a. Ao final da primeira noite, notou que o rosto havia amarelado, os lábios azulado, o nariz afinava-se, os olhos afundavam. Beijou-os diversas vezes e não teria experimentado nenhuma imensa surpresa se Virgínia os houvesse reaberto; para semelhantes almas o sobrenatural é muito simples. Fez sua toalete, envolveu-a no lençol, desceu-a para o esquife, colocou-lhe uma coroa, estendeu seus cabelos. Eram louros e de extraordinário comprimento para sua idade. Felicidade cortou uma grande mecha, cuja metade deixou deslizar dentro do peito, decidida a jamais dela se separar.
O corpo foi levado a Pont-l’Évêque, seguindo as intenções da sra. Aubain, que seguia o féretro em um carro fechado.
Após a missa foram necessárias ainda quatro horas para alcançar o cemitério. Paulo andava à frente e soluçava. O sr. Bourais vinha atrás, depois os principais habitantes, as mulheres cobertas de mantas negras e Felicidade. Sonhava com seu sobrinho e por não haver podido lhe render suas honrarias, sentia um acréscimo em sua tristeza, como se o estivessem enterrando com a outra.
O desespero da sra. Aubain foi ilimitado.
Primeiro, revoltou-se contra Deus, julgando injusto de sua parte ter levado sua filha, — ela que jamais fizera mal algum e cuja consciência era tão pura! Mas não! ela deveria tê-la levado ao Sul. Outros médicos a teriam salvado! Acusava-se, queria juntar-se a ela, gritava de angústia no meio dos sonhos. Um deles, sobretudo, obcecava-a. Seu marido, vestido como um marinheiro, voltava de uma longa viagem e dizia-lhe chorando, que havia recebido a ordem de levar Virgínia. Então, planejaram juntos de encontrar um esconderijo em alguma parte.
Certa vez, voltou do quintal, transtornada. Havia pouco (ela mostrava o lugar) o pai e a filha tinham-lhe aparecido um após o outro e não faziam nada; observavam-na.
Durante vários meses, permaneceu no quarto, inerte. Felicidade reprimia-a delicadamente; era preciso conservar-se pelo filho e pela outra, em memória “dela”.
— Ela? — repetia a sra. Aubain, como que acordando. — Ah! sim!... sim!... Você não esquece mesmo! — Alusão ao cemitério que lhe haviam proibido escrupulosamente.
Felicidade lá ia todos os dias.
Às quatro horas precisamente, passava ao longo das casas, subia a encosta, abria a grade e chegava à tumba de Virgínia. Era uma pequena coluna de mármore rosa com uma laje por baixo e correntes em volta circundando um pequeno jardim. Os canteiros desapareciam sob uma cobertura de flores. Regava as folhas, renovava a areia, ajoelhava-se para melhor trabalhar a terra. A sra. Aubain, quando podia vir, sentia um alívio, uma espécie de consolo.

Depois os anos passaram, todos iguais e sem outros episódios senão a volta das grandes festas: Páscoa, Assunção, Todos os Santos. Alguns acontecimentos no interior da casa marcaram data, a que se reportavam mais tarde. Assim, em 1825, dois vidraceiros pintaram o vestíbulo; em 1827 uma parte do teto, ao cair no pátio, quase matou um homem. No verão de 1828, foi a vez de a senhora oferecer o pão bento; Bourais, nessa época, ausentou-se misteriosamente; e os antigos conhecidos aos poucos se foram: Guyot, Liébard, a sra. Léchaptois, Robelin, o tio Gremanville, paralítico havia tempos.
Certa noite, o condutor da mala-posta anunciou em Pont-l’Évêque a Revolução de Julho. Um novo subprefeito, poucos dias depois, foi nomeado: o barão de Larsonnière, ex-cônsul na América e que tinha em casa, além da mulher, a cunhada com três senhoritas, já bem grandes. Eram vistas na relva vestidas de blusas esvoaçantes; possuíam um negro e um papagaio. A sra. Aubain recebeu a visita deles e não se esqueceu de fazer a sua. Por mais longe que fosse de onde aparecessem, Felicidade corria para avisá-la. Mas uma coisa apenas era capaz de comovê-la, as cartas de seu filho.
Ele não podia seguir nenhuma profissão, por estar absorvido nos botequins. Ela lhe pagava as dívidas, ele fazia outras; e os suspiros que soltava a sra. Aubain, tricotando perto da janela, chegavam até Felicidade, que girava a roca na cozinha.
Elas passeavam juntas ao longo da fileira de árvores e falavam sempre de Virgínia, perguntando-se se tal coisa lhe teria agradado, em tal ocasião o que provavelmente teria dito.
Todos os seus pequenos objetos ocupavam um armário no quarto com duas camas. A sra. Aubain os inspecionava o menos possível. Certo dia de verão, resignou-se; e borboletas saíram voando do armário.
Os vestidos alinhavam-se sob uma prateleira onde havia três bonecas, arcos, uma casinha, a bacia de mãos de que se servia. Elas retiraram igualmente os saiotes, as meias, os lenços e estenderam-nos sobre os dois leitos antes de dobrá-los novamente. O sol iluminava aqueles pobres objetos, fazendo aparecer as manchas e as dobras formadas pelo movimento do corpo. O ar estava quente e azul, um melro chilreou, tudo parecia viver em uma profunda tranquilidade. Reencontraram um pequeno chapéu de pelúcia, com longos pelos, de cor marrom; mas estava todo comido por traças. Fixaram os olhos uma na outra, eles se encheram de lágrimas; por fim a patroa abriu os braços, a criada neles se jogou; e abraçaram-se, satisfazendo a dor te em um abraço que as igualava.
Foi a primeira vez de suas vidas, pois a sra. Aubain não era uma pessoa de natureza expansiva. Felicidade ficou-lhe grata como por uma caridade e doravante adorava-a com uma devoção bestial e uma veneração religiosa.
A bondade de seu coração desenvolveu-se.
Quando ouvia na rua os tambores de um regimento em marcha colocava-se à porta com uma moringa de sidra e oferecia de beber aos soldados.
Cuidava dos doentes de cólera. Protegia os poloneses; e houve mesmo um que declarou querer se casar com ela. Mas eles se desentenderam; pois certa manhã, ao voltar da igreja, encontrou-o na cozinha, onde entrara e preparara um molho vinagrete que comia tranquilamente.

Depois dos poloneses, foi a vez do velho Colmiche, conhecido por cometer atrocidades em 93. Vivia à margem do riacho, nos escombros de uma pocilga. Os meninos observavam-no pelas fendas do muro e atiravam-lhe pedregulhos que lhe caíam sobre a enxerga, onde jazia, continuamente abalado por um catarro, com os cabelos muito longos, as pálpebras vermelhas e no braço um tumor maior que a cabeça. Ela lhe providenciou roupas, tratou de limpar aquele chiqueiro, sonhava em instalá-lo na casa do forno, sem que isso incomodasse a senhora. Quando o câncer rebentou, ela o tratava todos os dias, algumas vezes trazia-lhe um pouco de bolo, sentava-o no sol sobre um feixe de palha; e o pobre velho, babando e tremendo, agradecia-lhe com a voz apagada, temendo perdê-la, estendia as mãos assim que a via afastar-se. Ele morreu; ela encomendou uma missa para o descanso de sua alma.
Naquele dia teve uma grande felicidade: na hora do jantar, o negro da sra. de Larsonnière apareceu segurando o papagaio na gaiola, com o bastão, a corrente e o cadeado. Um bilhete da baronesa anunciava à sra. Aubain que, na vez que seu marido havia sido promovido para uma prefeitura, eles partiriam àquela noite; e ela pedia que aceitasse este pássaro como uma lembrança e testemunho de seu respeito por ela.
Ele já ocupava há muito tempo a imaginação de Felicidade, pois vinha da América; aquela palavra lembrava-lhe Vítor, tanto que se informava sobre ele com o negro. Certa vez até disse:
— A senhora é que ficaria feliz em tê-lo!
O negro repetira aquela fala à sua patroa que, não podendo levá-lo, livrou-se dele dessa maneira.
IV
Ele se chamava Lulu. Seu corpo era verde, as pontas das asas rosa, a fronte azul e o pescoço dourado.
Mas tinha a irritante mania de morder seu bastão, arrancava as penas, espalhava sua sujeira, derramava a água de sua banheira; a sra. Aubain, a quem aborrecia, deu-o para sempre para Felicidade.
Ela se ocupou a ensiná-lo; logo ele repetia: “Belo rapaz! Às ordens, senhor! Ave Maria!” Ficava perto da porta e muitos espantavam-se que não atendesse pelo nome de Jacquot, uma vez que todos os papagaios se chamam Jacquot. Comparavam-no a um peru, achavam-no estúpido: tantas punhaladas para Felicidade! Estranha obstinação de Lulu de não falar assim que o observavam!
No entanto procurava companhia; pois aos domingos, enquanto as senhoritas Rochefeuille, o sr. de Houppeville e novos freqüentadores — Onfroy o boticário, senhor Varin e o capitão Mathieu — jogavam sua partida de cartas, ele batia nos vidros com as asas e agitava-se tão furiosamente, que era impossível ouvir qualquer coisa.
O rosto de Bourais, provavelmente, parecia-lhe muito engraçado. Logo que o via, começava a rir com todas as forças. Os estalos de sua voz repercutiam no pátio, o eco repetia-os, os vizinhos colocavam-se às janelas, rindo também; e, para não ser visto pelo papagaio, o sr. Bourais passava rente ao muro, dissimulando o perfil com o chapéu, alcançava o riacho, depois entrava pela porta do quintal; e os olhares que lançava ao pássaro não tinham nenhuma ternura.
Lulu recebera do empregado do açougueiro um piparote, quando se permitira afundar a cabeça em seu cesto; e desde então tratava sempre de beliscá-lo através da camisa. Fabu ameaçava torcer-lhe o pescoço, se bem que não fosse cruel, apesar das tatuagens nos braços e das grandes suíças. Pelo contrário! tinha até uma afeição pelo papagaio, querendo mesmo, por brincadeira jovial, ensinar-lhe alguns palavrões.
Felicidade, a quem estas, maneiras desagradavam, colocou-o na cozinha. Tirou-lhe a corrente e ele circulava pela casa.

Quando descia as escadas, apoiava sobre os degraus a curva do bico, levantava a pata direita, depois a esquerda; e ela temia que tal ginástica lhe causasse tonturas. Ele ficou doente, não podia mais falar nem comer. Tinha sob a língua uma membrana grossa, como às vezes a tem algumas galinhas. Ela o curou arrancando essa película com suas unhas. O sr. Paulo, certo dia, teve a imprudência de soprar-lhe nas narinas a fumaça de um charuto; uma outra vez a sra. Lormeau provocou-o com a ponta de sua sombrinha, ele engoliu o aro da mesma, por fim desapareceu.
Ela o havia colocado sobre a relva para refrescá-lo, ausentando-se por um minuto e, quando voltou, nada do papagaio! Primeiro procurou-o nas moitas à beira da água e sobre os telhados, sem ouvir sua patroa que gritava:
— Tome cuidado! Você está louca! Em seguida verificou todos os quintais de Pont-l’Évêque; e parava os passantes.
— Não viram, por acaso, meu papagaio?
— Àqueles que não conheciam o papagaio, dava uma descrição. De repente, acreditou distinguir detrás dos moinhos, ao final das ladeiras, uma coisa verde que esvoaçava. Mas do alto das ladeiras, nada! Um mascate lhe afirmou que o havia encontrado agora mesmo, em Saint-Melaine, na loja da velha Simão. Para lá ela correu. Não entendiam o que ela queria dizer. Por fim, voltou para casa esgotada, os chinelos aos farrapos, com a morte na alma; e sentada no meio do banco, perto da senhora, contava todas as suas peripécias, quando um leve peso lhe pousou sobre o ombro. Lulu! Que diabos tinha ele feito? Talvez tivesse passeado pelos arredores!
Custou-lhe recompor-se, ou melhor, não se recompôs jamais.
Como consequência de um resfriado, ela pegou uma angina; pouco tempo depois, uma dor nos ouvidos. Três anos mais tarde, ela ficou surda; e falava muito alto, mesmo na igreja. Ainda que seus pecados pudessem, sem desonra para ela e sem inconveniência para o mundo, espalhar-se pelos quatro cantos da diocese, o pároco julgou conveniente não mais ouvir sua confissão na sacristia.
Zunidos ilusórios conseguiam atormentá-la. Frequentemente sua patroa dizia:
— Meu Deus! Como você é tola!
Ela retrucava:
— Sim, senhora! — procurando alguma coisa à sua volta.
O pequeno círculo de suas ideias encolheu ainda mais e o badalar dos sinos, o mugido dos bois, não existiam mais. Todos os seres funcionavam com o silêncio das almas. Um único som chegava agora a seus ouvidos, a voz do papagaio.
Como que para distraí-la, ele reproduzia o tique-taque do relógio, o grito agudo de um vendedor de peixes, o serrote do marceneiro que morava em frente e, ao soar da campainha, imitava a sra. Aubain: “Felicidade! A porta! A porta!”
Mantinham diálogos, ele recitando à saciedade as três frases de seu repertório, e ela as respondendo com palavras sem lógica, mas com as quais seu coração se extravasava, Lulu, em seu isolamento, era quase um filho, um amado. Ele escalava seus dedos, mordia seus lábios, agarrava-se a seu lenço; e quando ela se debruçava inclinando a cabeça como as babás, as grandes asas de sua toca e as asas do papagaio tremiam juntas.
Quando nuvens se acumulavam e trovões estrondavam, ele dava gritos talvez se recordando das tempestades de sua floresta natal. O cair das águas excitava seu delírio. Esvoaçava, desvairado subia ao teto, derrubava tudo e pela janela ia agitar-se no quintal; mas voltava rapidamente sobre um dos cães da lareira, e saltitando para secar as plumas, mostrava ora o rabo, ora o bico.
Numa manhã do terrível inverno de 1837, quando ela o colocara diante da lareira, por causa do frio, encontrou-o morto, no meio da gaiola, com a cabeça para baixo e as garras nas barras de ferro. Uma congestão, talvez, o matara? Ela acreditava ter sido um envenenamento pela salsa; e apesar da ausência de qualquer prova, suas suspeitas recaíram sobre Fabu. Chorou tanto, que sua patroa lhe disse:
— Bom! Mande empalhá-lo!
Pediu conselho ao farmacêutico, que sempre fora bom com o papagaio.
Ele escreveu ao Havre. Um certo Fellacher encarregou-se desse trabalho. Mas, como a diligência por vezes perdia os pacotes, ela resolveu levá-lo ela mesma até Honfleur.
As macieiras sem folhas sucediam-se à margem do caminho. Gelo cobria as valas. Cães latiam ao redor das casas e, com as mãos sob o manto, seus pequenos tamancos pretos e a sacola, andava apressadamente, no meio da rua.
Atravessou a floresta, passou Haut-Chêne, chegou a volt Saint-Gatien.
Atrás dela, em uma nuvem de poeira uma mala-posta a todo galope vinha violentamente, acelerada pela descida. Vendo aquela mulher que nem se incomodava, o condutor ergueu-se por sobre a capota e o cocheiro também gritou, enquanto os quatro cavalos, que não conseguia conter, aceleravam a marcha; os dois primeiros roçaram-na; com uma sacudida nas rédeas, ele os jogou para fora do caminho, mas furioso levantou o braço, e com toda a força e o grande chicote acertou-lhe do ventre ao coque um tamanho golpe que ela caiu de costas.
O primeiro gesto ao recuperar a consciência foi abrir o cesto. Lulu não tinha nada, felizmente. Sentiu uma queimação na face direita; as mãos, que a tocaram, estavam vermelhas. O sangue corria.
Sentou-se sobre os pedregulhos, limpou o rosto com o lenço, depois comeu uma côdea de pão colocada no cesto por precaução e consolou-se de sua ferida olhando o pássaro.
Chegando ao topo de Ecquemauville, viu as luzes de Honfleur que cintilavam na noite como um punhado de estrelas; o mar, ao longe, estendia-se confusamente. Então uma fraqueza fê-la parar; e a miséria de sua infância, a decepção do primeiro amor, a partida do sobrinho, a morte de Virgínia, como o fluxo das marés, voltaram ao mesmo tempo e, subindo-lhe pela garganta sufocavam-na.
Depois quis falar com o capitão do barco e, sem lhe dizer o que estava enviando, fez-lhe muitas recomendações.
Fellacher ficou por muito tempo com o papagaio. Prometia-o sempre para a semana seguinte; ao cabo de seis meses, anunciou a remessa de um caixote; e não se falou mais naquilo. Parecia que Lulu não voltaria jamais. “Eles o roubaram de mim!” — pensava ela.
Finalmente ele chegou, — e esplêndido, em pé sobre um galho de árvore, que estava parafusado a um soquete de acaju, com uma das patas no ar, a cabeça inclinada e mordendo uma noz que o empalhador tinha dourado por amor ao grandioso.
Ela o trancou em seu quarto.
Neste lugar, onde apenas poucos podiam entrar, havia um clima ao mesmo tempo de capela e de bazar, de tantos objetos religiosos e coisas heteróclitas que continha.
Um grande armário dificultava a abertura da porta. Do lado oposto da janela, dominando o quintal, um olho-de-boi dava para o pátio; uma mesa, perto da cama de lona, continha um pote de água, dois pentes e um cubo de sabonete azul em um pratinho lascado. Viam-se nas pare-des: terços, medalhas, diversas Virgens, uma pia batismal talhada em uma casca de coco; sobre a cômoda coberta com um lençol, como um altar, a caixa de conchas que Vítor lhe havia dado; depois um regador e uma bola, cadernos, o livro de geografia em estampas, um par de botinas; e no prego do espelho, preso pelas fitas, o chapéu de pelúcia! Felicidade cultivava mesmo esse tipo de respeito tão distante que guardava uma das sobrecasacas do senhor. Todas as velharias que a sra. Aubain não queria mais, ela levava para o quarto. Assim havia flores artificiais no canto da cômoda e o retrato do conde de Artois no vão da lucarna.
Com uma prancheta, Lulu foi instalado em um canto da lareira que avançava para dentro do quarto. Todas as manhãs, ao levantar, ela o via na claridade da aurora e se lembrava então dos dias passados e de ações insignificantes em seus menores detalhes, sem dor, com toda a tranquilidade.
Por não se comunicar com ninguém, vivia em um torpor de sonâmbulo. As procissões de Corpus Christi reanimavam-na. Ela ia até os vizinhos pedir tochas e esteiras para embelezar os andores que passavam na rua.
Na igreja, sempre contemplava o Espírito Santo observava que nele havia algo de similar com o papagaio. A semelhança pareceu-lhe ainda mais evidente em uma imagem de Épinal representando o batismo de Nosso Senhor. Com as asas de púrpura e o corpo de esmeralda era realmente o retrato de Lulu.
Tendo-o comprado pendurou-o no lugar do conde de Artois — de maneira que, com um só olhar, via-os juntos. Associavam-se em seu pensamento, o papagaio santificado pela relação com o Espírito Santo, que por sua vez se tornava mais vivo a seus olhos e inteligível. O Pai para expressar-se não deveria ter escolhido uma pomba, uma vez que esses animais não tem voz, mas antes um dos ancestrais de Lulu. E Felicidade fazia suas preces olhando a imagem mas, de vez em quando, virava-se um pouco em direção ao pássaro.
Ela teve vontade de entrar para as Filhas de Maria. A sra. Aubain dissuadiu-a.
Um acontecimento considerável sucedeu: o casamento de Paulo.
Após ter sido primeiro escrivão de cartório, após ter trabalhado no comércio, na alfândega, nas arrecadações e ter mesmo começado a pleitear um emprego nas águas e reflorestamento, aos trinta e seis anos, de repente por uma inspiração dos céus, descobriu seu caminho: o registro! e nele mostrava tamanha habilidade que um aferidor ofereceu-lhe a filha, prometendo-lhe proteção.
Paulo, agora homem sério, trouxe-a até a mãe.
Ela denegriu os hábitos de Pont-l’Évêque, agiu com ares de princesa, ofendeu Felicidade. A sra. Aubain, assim que ela saiu, sentiu um alívio.
Na semana seguinte, souberam da morte do sr. Bourais, na Baixa Bretanha, em um albergue. O rumor de um suicídio acabou se confirmando; levantaram-se dúvidas quanto a sua probidade. A sra. Aubain conferiu suas contas e não tardou a conhecer uma infinidade de falcatruas: desvios de pagamentos, vendas de madeira dissimuladas, falsas quitações etc. Além do mais, tinha um filho natural e “relações com uma certa pessoa de Dozulé”.
Essas baixezas afligiram-na muito. No mês de março de 1853, teve uma dor no peito; sua língua parecia coberta de fumaça, as sanguessugas não acalmaram suas sufocações; e na nona noite ela expirou tendo precisamente setenta e dois anos.
Julgavam-na mais jovem, por causa dos cabelos castanhos, cujos bandôs envolviam o rosto macilento, marcado pela varíola. Poucos amigos entristeceram-se por ela, de tal forma suas maneiras eram de uma altivez que distanciava.
Felicidade chorou-a como não se costuma chorar os patrões. Que a senhora morresse antes dela, isso lhe perturbava as ideias, parecia-lhe contrário à ordem natural das coisas, inadmissível, monstruoso.
Dez dias depois (o tempo de chegarem de Besançon), os herdeiros apareceram. A nora vasculhou gavetas, escolheu alguns móveis, vendeu os demais, depois recuperaram o registro.
A poltrona da senhora, sua mesinha redonda, o aquecedor, as oito cadeiras, foram-se! No lugar das gravuras desenhavam-se quadrados amarelos no meio das paredes. Eles haviam levado as duas camas e os colchões, e dentro do armário não se via mais nenhum dos pertences de Virgínia! Felicidade subiu os andares, ébria de tristeza.
No dia seguinte, havia sobre a porta um cartaz; o boticário gritou-lhe aos ouvidos que a casa estava à venda.
Ela cambaleou e foi obrigada a se sentar.
O que a desolava principalmente era ter de abandonar seu quarto, — tão cômodo para o pobre Lulu. Envolvendo-o em um olhar de angústia, implorava ao Espírito Santo e adquiriu o hábito idólatra de dizer as preces ajoelhada diante do papagaio. Às vezes, o sol entrando pela lucarna atingia seu olho de vidro, fazendo jorrar um grande raio luminoso que a fazia entrar em êxtase.
Tinha uma renda de trezentos e oitenta francos, legados pela patroa. A horta fornecia-lhe legumes. Quanto as vestimentas, tinha com o que se vestir até o fim de seus dias, e economizava luz, deitando-se logo ao crepúsculo.
Ela não saía muito, a fim de evitar a loja do antiquário, onde estavam expostos alguns dos antigos móveis. Desde seu atordoamento, puxava uma perna; e, como suas forças minguavam, a velha Simão, que perdera tudo no armazém, vinha todas as manhãs cortar a lenha e bombear água.
Seus olhos enfraqueceram-se. As persianas não se abriam mais. Muitos anos se passaram. E a casa nem se alugava, nem se vendia.
Com medo de que fosse mandada embora, Felicidade não pedia por nenhum conserto. As ripas do telhado apodreciam; durante todo um inverno a cabeceira de sua cama ficou molhada. Depois da Páscoa, cuspiu sangue. Então a velha Simão recorreu a um médico. Felicidade quis saber o que tinha. Mas, surda demais para ouvir, uma única palavra chegou-lhe aos ouvidos: “pneumonia”. Era-lhe conhecida e replicou suavemente:
— Ah! Como a senhora. — achando natural seguir a patroa.
A época dos altares aproximava-se.
O primeiro era sempre montado ao pé da encosta, o segundo na frente do correio, o terceiro no meio da rua. Houve disputas a respeito desse último; e os paroquianos escolheram finalmente o pátio da sra. Aubain.
As sufocações e a febre aumentavam. Felicidade entristecia-se por nada fazer para o altar. Ao menos, se ela pudesse ter colocado qualquer coisa sobre ele! Então pensou no papagaio. Não era conveniente, objetaram os vizinhos. Mas o pároco deu a permissão; ela ficou tão feliz, que lhe pediu que aceitasse, quando falecesse, Lulu, sua única riqueza.
Da terça-feira ao sábado, na véspera de Corpus Christi, ela tossiu com mais frequência. À noite, seu rosto estava crispado, os lábios colavam-se às gengivas, os vômitos surgiram; e no dia seguinte, ao amanhecer, sentindo-se muito mal, mandou chamar um padre.
Três velhas rodeavam-na durante a extrema-unção. Depois disse que precisava falar com Fabu.
Ele chegou em trajes de domingo, pouco à vontade naquela atmosfera lúgubre.
— Perdoe-me — disse ela com um esforço para estender o braço — Eu acreditava que fora você quem o havia matado!
O que significavam semelhantes asneiras? Ter suspeitado dele como um assassino, um homem como ele! e indignou-se, ia fazer um alvoroço.
— Ela perdeu o juízo, vocês estão vendo!
Felicidade, vez ou outra, falava com as sombras. As velhas afastaram-se. A Simone foi almoçar.
Um pouco mais tarde, pegou Lulu e, aproximando-o de Felicidade:
— Vamos! Diga-lhe adeus!
Embora não fosse um cadáver, os vermes devoravam-no; uma de suas asas estava quebrada, a estopa saía-lhe do ventre. Mas, cega agora, ela o beijou na fronte e o mantinha encostado à face. A Simone pegou-o. de volta para colocá-lo sobre o altar.
V
As pastagens exalavam o aroma do verão; moscas zumbiam; o sol fazia brilhar o ribeirão, aquecia as ardósias. A velha Simão, de volta ao quarto, dormia tranquilamente.
Toques de sino acordaram-na; saía-se das vésperas. O delírio de Felicidade diminuiu. Sonhando com a procissão, ela a via, como se a tivesse acompanhado.
Todas as crianças das escolas, os cantores e os bombeiros andavam nas calçadas, enquanto pelo meio da rua avançavam primeiramente: o suíço carregando a alabarda, o sacristão com uma grande cruz, o instrutor vigiando os garotos, a religiosa inquieta com suas meninas — três das menores, cacheadas como anjos, lançavam no ar pétalas de rosas —, o diácono, com os braços abertos, moderando a música e dois incensadores voltando-se a cada passo em direção ao Santo Sacramento, que o pároco, na sua bela casula, carregava, sob um pálio de veludo vermelho vivo, segurado por quatro membros da igreja. Uma multidão seguia atrás, entre as toalhas brancas cobrindo o murro das casas; e chegou ao final da ladeira.
Um suor frio molhava as têmporas de Felicidade. A Simone a enxugava com um pano, dizendo que precisaria um dia passar por lá.
O murmúrio da multidão aumentou. Tornou-se muito forte por um momento, distanciou-se.
Uma rajada de fuzis abalou os ladrilhos. Eram os postilhões saudando o ostensório. Felicidade virou suas pupilas, e disse, o mais alto que pode:
— Ele está bem? — angustiada pelo papagaio.
Sua agonia começou. E estertores, cada vez mais frequentes, erguiam-lhe as costas. Bolhas de espuma escorriam-lhe pelo canto da boca, e todo seu corpo tremia.
Logo se distinguiu o ronco dos oficlides, as vozes cristalinas das crianças, a voz grave dos homens. Tudo silenciava de vez em quando, e a batida dos passos, amortecida pelas flores, fazia o barulho de um rebanho sobre a relva.
O pároco surgiu no pátio. A Simone subiu em uma cadeira para alcançar o olho-de-boi, e dessa maneira dominava o andor.
Guirlandas verdes pendiam sobre o altar, ornado por um falbalá em ponto inglês. Havia no meio um pequeno quadro contendo relíquias, duas laranjeiras nos cantos e, em todo o comprimento, candelabros de prata e vasos de porcelana, de onde saíam girassóis, lírios, peônias, dedaleiras, cachos de hortênsias. Esse amontoado de cores brilhantes descia obliquamente, do primeiro andar até o tapete, prolongando-se sobre os paralelepípedos; e objetos estranhos atraíam os olhares. Um açucareiro de prata dourada tinha uma coroa de violetas, pingentes em pedras de Alençon brilhavam sobre musgo, dois biombos chineses expunham suas paisagens. Lulu, escondido sob as rosas, só deixava ver sua testa azul, parecida com uma placa de lápis-lazúli.
Os membros da igreja, os cantores, as crianças enfileiraram-se nos três lados do pátio. O padre subiu lentamente os degraus e colocou sobre a renda seu grande sol de ouro que cintilava. Todos se ajoelharam. Fez-se um grande silêncio. E os incensórios, balançados vigorosamente, deslizavam em suas correntinhas.
Um vapor azul subiu no quarto de Felicidade. Ela avançou as narinas, inalando-o com uma sensualidade mística; depois fechou suas pálpebras. Seus lábios sorriam. Os movimentos de seu coração diminuíram um a um, cada vez mais vagos, mais suaves, como uma fonte se esgota, como um eco desaparece; e quando exalou seu último suspiro, ela acreditou ver, nos céus entreabertos, um papagaio gigantesco, planando acima de sua cabeça.
 
Nota: Conto publicado no livro “Um Coração Simples”, editora Paz e Terra, com tradução de Clotilde Mariano Vaz, Daniel Vaz e Simia Katarina Rickmann.  


segunda-feira, 10 de março de 2014

A Paixão de Fernando Pessoa- Rui Tavares

O 8 de março é um dia deveras marcante. Segundo o grandioso Pessoa, foi nesse dia, no ano de 1914, que  foram criados os seus heterônimos. Pois bem, segue, sobre esse assunto, um breve artigo do luso Rui Tavares. Vale a leitura!
A estátua de Fernando Pessoa no Chiado em Lisboa. MIGUEL MANSO

A Paixão de Fernando Pessoa
Rui Tavares

Harold Bloom, um estudioso da literatura, escreveu uma vez um livro chamado A Ansiedade da Influência, no qual lidava com a tensão entre o grande escritor e o escritor ainda maior.
Para pôr as coisas em termos simples, o grande escritor que admira o escritor ainda maior passa pela tal “ansiedade da influência”, a admiração torna-se inveja, a inveja emulação, a emulação frustração, a frustração afastamento, e o afastamento (nos melhores dos casos) superação. Os maiores dos grandes escritores pairam como uma sombra sobre todos os outros: todo o escritor de língua inglesa vive na ansiedade da influência de Shakespeare (ou na sua rejeição), como o russo sob (ou contra) Tolstoi, etc.

Faz por estes dias cem anos, Fernando Pessoa encontrava a sua forma de escapar à ansiedade da influência, e de sair dela por cima. Também ele tinha Camões, e Vieira. E como escritor de língua inglesa, Shakespeare. Mas para poder ser maior, inventou um outro seu mestre, Alberto Caeiro, e declarou-o o seu ideal a atingir. Assim se libertou e superou em simultâneo. Poderíamos dizer que o mestre de Fernando Pessoa vivia dentro de si, mas isso é enganador. Pondo Alberto Caeiro no centro do seu sistema, Fernando Pessoa poderia deslocar a sua “ansiedade de influência” para fora de si. Camões ou Vieira (ou Shakespeare) estavam marcados na sua pele e de todos os outros escritores. Alberto Caeiro era um sol inventado, exterior a qualquer realidade, e à volta dele poderiam encontrar a sua órbita todos os outros planetas inventados de Fernando Pessoa: Ricardo Reis, Álvaro de Campos, e o próprio Fernando Pessoa. Foi como um momento-Galileu em literatura.
Depois, Fernando Pessoa fez o que fazem os grandes escritores: narrou a história. Mentiu um bocado e disse que tudo tinha acontecido no mesmo dia, 8 de março, um “dia triunfal”, disse ele, em que tinha inventado juntos os seus heterónimos mais importantes, com biografia e tudo, e escrito grande parte d’O Guardador de Rebanhos, e os poemas da Chuva Oblíqua, e as odes “futuristas” de Álvaro de Campos, e as odes propriamente ditas de Ricardo Reis.
Segundo os especialistas, parece que isto não foi bem assim, e que o dia triunfal de Pessoa durou vários dias. Até dia 13 ainda não tinha acabado o transe, e por isso ainda nos podemos declarar dentro do centenário. Nessa Europa ainda estranhamente calma, a poucas semanas de se desequilibrar na Grande Guerra (que lhe daria “O menino de sua mãe”), Fernando Pessoa passou a sua ansiedade da influência a todos os escritores de língua portuguesa que lhe sucederam.
Poderíamos chamar a isto, usando uma linguagem semirreligiosa, “o mistério de Fernando Pessoa”. Mas não há mistério nenhum, ele bem explicou o que sucedeu, e se mentiu um bocadinho foi só para fazer a coisa ainda mais simples e menos misteriosa.
Talvez seja melhor chamar-lhe “a paixão de Fernando Pessoa”, no velho sentido greco-cristão: alguém que se fez desaparecer por nós, ou alguém que reapareceu (em glória?) através do seu desaparecimento.

Disponível em: 


sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

domingo, 29 de dezembro de 2013

Diário de um Louco - Nikolai Gógol

Representante do realismo russo, Gógol escreve com primazia. O conto abaixo, Diário de um Louco é do tipo “literatura fantástica”.
Antes do conto, eis a sinopse:

"Diário de um Louco é uma aventura invulgar vivida por um funcionário atormentado que, perdido de amores pela filha do director e condenado, por vezes, a “ouvir e ver coisas que ainda ninguém viu nem ouviu”, decide perseguir o animal de estimação da rapariga, “a ver o que é que ele pensa.” Na leitura deste diário, misturam-se “o real e o fantástico, o normal e o patológico, o razoável e o delírio (...) a ponto de o leitor se sentir desconfortavelmente a assistir ao sofrimento de um ser humano a quem a identidade se vai estilhaçando com a rapidez e a intensidade de um pequeno conto”. 

Sem delongas, é questão de ler e se apaixonar. 



3 de outubro.

Aconteceu-me hoje uma aventura insólita. Levantei-me bastante tarde e, quando Mavra me trouxe as botas limpas, perguntei-lhe que horas eram. Ao ouvir que já passava muito das dez, comecei a vestir-me com mais pressa. Confesso que não tinha a menor vontade de ir à repartição, pois já sabia com que cara feia o nosso chefe de seção me receberia. Há muito tempo que ele passa a vida a dizer-me: - "Então, irmão, que tens? Que confusão é essa na tua cabeça? De vez em quando agitas-te como quem ficou asfixiado pelo vapor da estufa, e atrapalhas o serviço de tal maneira que nem o próprio Satanás o desembaralharia, pões minúscula no título, não colocas nem data nem número!" Maldito palerma! Decerto está com inveja de mim, porque o meu lugar é no gabinete do director, onde aparo as penas de S. Ex.a. Numa palavra, eu não teria ido à repartição se não fosse a esperança de lá encontrar o caixa e, talvez, extorquir daquele judeu alguma coisa por conta do próximo ordenado. Mas que homem! Para ele fazer um adiantamento sobre o mês que vem - Deus do Céu! - mais depressa virá o juízo anal. Pode a gente pedir, estar em extrema necessidade, rebentar, que o diabo do velho não adianta nada. Entretanto em casa - todo o mundo sabe - leva bofetões até da cozinheira. Não vejo, aliás, a utilidade de trabalhar na repartição. Não dá vantagem nenhuma. Já na administração estadual, nos tribunais e nas recebedorias o caso é outro. Lá, cada funcionário se encolhe no seu cantinho e vai escrevinhando, metido num fraque sujo, com uma cara de se escarrar nela; mas veja-se a casa de campo que ele aluga. Ninguém lhe ofereça de presente uma taça de porcelana, pois dirá logo: - "Isso é presente para um doutor"; mas aceitará uma parelha de cavalos, um carro ou uma peliça de castor de trezentos rublos. De aparência tão delicada, fala baixinho: - "Empreste-me, por favor, o canivetezinho para fazer ponta na peninha" - mas depois limpa o requerente de tal forma que mal lhe deixa a camisa do corpo. É verdade que o serviço da repartição é diferente: há uma limpeza como nunca se vê numa repartição estadual; as mesas são de madeira vermelha e,os chefes tratam-nos por "o senhor". Com efeito, se o serviço não tivesse este caráter honroso, confesso que há muito teria deixado a repartição. Vesti um velho capote e apanhei o guarda-chuva, pois chovia torrencialmente. Nas ruas não se via ninguém. a não ser umas camponesas que cobriam a cabeça com as saias, uns comerciantes russos sob guarda-chuvas, e alguns cocheiros.
De nobres, apenas um funcionário trocava pernas. Avistei-o numa encruzilhada e disse logo com os meus botões: - "Bonito, meu caro: em vez de ir à repartição, ficas a andar atrás da pessoa que vai à tua frente, olhando-lhe as perninhas finas." Belo patife o nosso irmão funcionário! Palavra de honra, um oficial não lhe leva vantagem: basta passar uma mulher de chapéu, e ele a aborda inevitavelmente. Enquanto meditava assim, vi um carro aproximar-se da loja perto da qual me encontrava. Reconheci-o logo: era a caleça do nosso diretor. - "Mas ele nada tem que fazer nesta loja - pensei. - Realmente: é a filha dele." Encolhi-me rente à parede. Um lacaio abriu a portinhola, e ela saltou do carro feito um passarinho. Como olhava à direita e à esquerda, como levantava as sobrancelhas e as pálpebras... Deus do Céu! senti-me perdido, sim, inteiramente perdido. Foi então para isso que ela resolveu sair em dia tão chuvoso? Digam-me agora que as mulheres não são loucas por todos aqueles trapos. Ela não me reconheceu, pois eu mesmo fiz tudo para esconder o rosto; estava com um capote bastante surrado e, além disso, fora de moda. Usam-se hoje capotes de gola comprida, e o meu era de gola curta e sem lustre. A cachorrinha dela, como não teve tempo de acompanhá-la até à loja, ficou na rua. Conheço essa cachorra. Chamam-na Medji. Nem decorreu um minuto, e de repente ouvi uma vozinha fina: - Bom dia, Medji. Vejam só! Quem será mesmo? Olhei em redor, e vi aproximarem-se duas damas sob o mesmo guarda-chuva, uma velhinha, a outra moça. Mal haviam passado, ouvi perto de mim a mesma voz : - Que modos feios, Medji! Que diabo! Vi que Medji e outro cachorro, vindo atrás das senhoras, se andavam farejando um ao outro. - "Estarei completamente bêbedo? - perguntei a mim mesmo. - Mas isto acontece-me raras vezes." Então vi a própria Medji pronunciar estas palavras: - Não, Fidel, estás enganado. Au, au! Eu tenho estado - au, au! - muito doente. Que cachorra esquisita! Fiquei bastante surpreendido, devo confessá-lo, ao ouvi-la exprimir-se em linguagem humana. Mas depois, ao reflectir direitinho no caso, deixei de estranhá-lo. Com efeito, já se deram no mundo muitos factos parecidos. Dizem que na Grã-Bretanha um peixe veio a terra e pronunciou duas palavras numa língua tão estranha que os sábios, por muito que a procurem determinar, há três anos, ainda não chegaram a nenhum resultado. Li também nos jornais acerca de duas vacas que entraram numa loja e pediram para si uma libra de chá. Mas surpreendi-me outra vez ao ouvir Medji acrescentar: - Eu escrevi-te, Fidel. Provavelmente Polkan não te entregou a minha carta.

Assim receba eu o meu ordenado! Nunca em minha vida tinha ouvido dizer que os cachorros sabiam escrever. Só mesmo um fidalgo pode escrever direito. Sem dúvida, há também uns caixeiros e até uns servos que assinam o nome de vez em quando, mas na maioria dos casos aquilo é puramente mecânico; eles não têm nem pontuação nem estilo. Fiquei bastante admirado com esse caso. É verdade que de algum tempo para cá tenho ouvido e visto coisas que nunca ninguém ouviu nem viu. - "Bem - disse comigo mesmo - vamos atrás dessa cachorra para saber o que ela é e o que pensa." Abri o guarda-chuva e pus-me a seguir as duas damas. Elas atravessaram a Rua da Ervilha, entraram na dos Burgueses, dali passaram à dos Marinheiros, e finalmente detiveram-se diante de um casarão junto à ponte Kokuchkin. - "Conheço esta casa - disse comigo mesmo. - É a casa de Zverkof." Que coincidência! Quanta gente não mora ali: quantos cozinheiros, quantos hóspedes e quantos irmãos funcionários vivendo uns em cima dos outros como cachorros! Ali mora também um amigo meu que sabe tocar trombeta. As senhoras subiram ao quinto andar. - "Está certo - pensei - desta vez não subo, mas anoto o endereço e não deixarei de utilizá-lo na primeira ocasião."

4 de outubro.

Hoje é quarta-feira, e por isso estive no gabinete do director. De propósito cheguei mais cedo, e, sentado à vontade, afiei todas as penas. O nosso director deve ser um homem inteligentíssimo. O seu gabinete está cheio de armários com livros. Já espiei os títulos de alguns: são todos livros de erudição, de tamanha erudição que estão fora do alcance de um homem como eu, pois são escritos em francês ou em alemão. Mas vejam só a cara dele: xi! que gravidade se irradia daqueles olhos! Nunca o ouvi dizer uma palavra supérflua, salvo talvez quando lhe entregam os papéis e ele pergunta: - "Que tempo faz lá fora?" - "Húmido, Excelência." Não, ele não pode ser comparado aos outros mortais. É um homem de Estado. No entanto, devo dizer que de mim ele gosta de maneira especial. Se a filhinha também... Alto, canalha, chiu!... Li a Abelha. Que tolos esses franceses! Que pretendem eles? Por Deus, gostaria de pegar neles todos e dar-lhes uma boa chicotada. No mesmo jornal vi uma excelente descrição de um baile, feita por um fazendeiro de Kursk, Os fazendeiros de Kursk escrevem bem. Depois disso, notei que já era mais de meio-dia e meia, e o nosso homem ainda não tinha saído de seu quarto de dormir. Por volta da uma e meia verificou-se um acontecimento que nenhuma pena saberia descrever. Abriu-se a porta. Pensando que fosse o diretor, levantei-me de um pulo com toda a papelada. Mas não; foi ela, ela mesma!

Santos do Céu, como estava vestida, toda de branco como um cisne! Xi, que esplendor! E que olhares! Só mesmo o Sol, por Deus, só mesmo o Sol! Cumprimentou-me e perguntou: - O papá ainda não esteve aqui? Ai de mim, que voz! Um canário, sem tirar nem pôr! - "Excelência - ia dizer-lhe - não ordene a minha execução, mas se fizer questão da minha morte, mate-me logo com sua mãozinha de filha de general." Mas, com os diabos, a minha língua não se desemperrava e eu disse apenas: - Ainda não. Ela olhou para mim, para os livros, e deixou cair o lenço. Ergui-me de um salto. O maldito soalho fez-me escorregar, e quase descolei o nariz, mas acabei por me equilibrar, apanhando o lenço. Deus do Céu, que lenço! finíssimo, de batista, âmbar, âmbar de verdade! Exalava-se dele um legítimo perfume de general. Agradeceu-me, sorriu com um movimento imperceptível de seus doces labiozinhos, e saiu. Fiquei sentado mais uma hora, quando de repente apareceu um criado e me disse: - Aksenti Ivanovitch, pode ir embora, o patrão já saiu. Não posso tolerar esta súcia de lacaios. Refestelam-se o dia inteiro na antecâmara e mal se dão ao trabalho de cumprimentar com um aceno de cabeça. Mas isso ainda é o menos. Outro dia um desses idiotas lembrou-se de me oferecer rapé sem se levantar. Pois fica sabendo, criado besta, que eu sou funcionário de origem nobre. De qualquer maneira, tornei o chapéu e vesti eu mesmo o capote, pois esses tais senhores nunca auxiliam a gente a se vestir. Em casa, passei a maior parte do tempo deitado na cama. Depois copiei uns versinhos bonitos:
Uma hora sem a querida Foi um ano a padecer: - Agora que odeio a vida - Disse - como hei de viver?
Devem ser de Puchkin. À noitinha, enrolando-me no capote, postei-me à porta de S. Ex.' e esperei bastante, a ver se não saía para tomar o carro, na esperança de avistá-la mais uma vez. Mas não, não saiu.

6 de novembro.

O chefe de seção deixou-me louco de raiva. Quando cheguei à repartição, mandou-me chamar ao seu gabinete e disse-me : - Explica-me, por favor, o que estás a fazer. - O que estou a fazer? Mas não estou a fazer coisa nenhuma - respondi. - Ora essa! Reflete bem. Vê lá, já passaste dos quarenta, é tempo de criares juízo. Que é que estás a pensar?

Imaginas que não sei das tuas tratantadas? Então estás fazendo a corte à filha do director? Vamos, enxerga-te, vê bem o que és. Um zero, nada mais. Não tens nem meio copeque de teu! Ainda por cima, olha a tua cara no espelho, para ver se acabas com essas ideias. Com os diabos! por ter um rosto meio parecido com uma redoma de farmácia, na cabeça um punhado de cabelos frisados em crista, penteados para cima e fixados com pomada numa espécie de roseta, ele pensa que pode fazer tudo o que lhe vem às ventas? Mas compreendo, sim, compreendo muito bem o motivo por que está irritado comigo. Inveja-me talvez por ter percebido algum sinal de simpatia dirigido a mim e não a ele. Pois eu cuspo-lhe na cara! Grande coisa um conselheiro da corte! Ostenta uma corrente de ouro no relógio, manda fazer botas de trinta rublos - pois bem, o Diabo o leve! Serei eu, porventura, da arraia-miúda, algum filho de alfaiate ou de suboficial? Sou nobre, e posso também ser promovido. Tenho apenas quarenta e dois anos - a idade com que, hoje em dia, se entra em serviço. Deixa estar, amigo! Eu também posso chegar a coronel e, se Deus quiser, a um pouco mais. Posso ter também um dia a minha reputaçãozinha, maior que a tua. Que é que te faz imaginar que não há, além de ti, nenhuma pessoa decente? Dá-me um fraque de Rutch talhado na moda, deixa-me amarrar a gravata como a tua está amarrada - e nem me chegarás aos pés. Falta-me dinheiro, eis a minha infelicidade.

8 de novembro.

Estive no teatro. Representaram uma peça russa, O Bobo Filatka. Houve também uma espécie de vaudeville com versos jocosos sobre os homens da lei, particularmente sobre um escrivão, em estilo bastante livre, de forma que estranhei como a censura deixara passá-los. A respeito dos comerciantes diziam abertamente que enganam o povo, que seus filhos vivem na pândega e procuram introduzir-se na nobreza. No tocante aos jornalistas, houve também um couplet muito engraçado, onde se dizia que estes gostavam de criticar tudo e por isso o autor pedia a proteção do público. Os autores de hoje escrevem peças muito divertidas. Gosto de ir ao teatro. Logo que me aparece um tostão no bolso, não posso afixar de assistir a uma representação, ao contrário de muitos de meus colegas funcionários que vivem como porcos. Um mujique não vai ao teatro a não ser quando lhe dão o ingresso de graça. Também houve uma actriz que cantava muito bem. Lembrei-me dela... alto, canalha... psiu!

9 de novembro.

Cheguei à repartição às oito horas.

O chefe de seção fez como se não tivesse notado a minha chegada. Por minha parte, também fiz como se nada houvesse acontecido entre nós. Revi e cotejei alguns papéis. Às quatro horas saí, passei pelo gabinete do diretor, mas não vi ninguém. Depois do jantar, levei a maior parte do tempo na cama.

11 de novembro.

Ontem, sentado no gabinete do diretor, aparei para ele vinte e três penas, e para ela... ai de mim!... para S. Ex.a., quatro. O diretor gosta de ter na mesa um grande número de penas. Ih! deve ser um homem inteligente! Está sempre calado, mas dentro daquela cabeça, penso eu, há um mundo de meditações. Gostaria de saber sobre que coisa ele medita de preferência, o que é que projeta naquela cabeça. Gostaria também de ver mais de perto a vida desses senhores, todas essas complicações e truques da gente da corte, tudo o que fazem na sua roda... tudo isso eu teria vontade de saber. Por várias vezes tentei entabular conversação com S. Ex.a, mas, com os diabos, a língua sempre se recusa a obedecer; chego apenas a dizer que faz frio ou faz calor, e decididamente não consigo articular nada além disso. Gostaria de deitar um olhar ao salão, cuja porta de vez em quando vejo aberta, e ainda mais a um quarto atrás do salão. Ui! que rica decoração, que espelhos e porcelanas! Sim, gostaria de deitar um olhar ao aposento em que vive S. Ex.a. Eis o que eu gostaria de ver: o toucador, com todos os seus frasquinhos e potezinhos, todas aquelas flores que a gente chega a ter medo de cheirar, e todas as suas vestes espalhadas, mais semelhantes ao ar do que a vestidos. Teria vontade de ver um instante o seu quarto de dormir. Aquilo, penso eu, deve ser uma maravilha; aquilo deve ser um paraíso que nem no Céu. E olhar o escabelo sobre o qual ela costuma pôr os pezinhos ao se levantar da cama, e ver como os calça de meias brancas como a neve... ai de mim, ai de mim!... mas basta... psiu! Ontem, de repente fui como que iluminado por um clarão: lembrei-me da conversa dos dois cães que eu surpreendera no Nevski Prospekt. - "Muito bem - disse eu comigo - agora vou saber tudo. É preciso apoderar-me da correspondência trocada entre esses dois cachorros ordinários. Por ela provavelmente ficarei sabendo alguma coisa." Confesso que já cheguei a chamar Medji e falar-lhe assim: - Olha, Medji, nós agora .estamos aqui a sós; se quiseres, vou até fechar a porta para que ninguém nos possa ver. Conta-me tudo o que sabes a respeito de tua senhora, diz-me como ela é. Juro-te que não o revelarei a ninguém.
Mas a esperta cachorrinha encolheu o rabo, contraiu-se toda e saiu do quarto caladinha, como se nada tivesse ouvido. Suspeito há muito tempo que o cachorro é mais inteligente do que o homem. Estou até convencido de que sabe falar, apenas tem uma espécie de teimosia. É um político extraordinário: observa tudo, todos os passos do homem. Não, custe o que custar, hei de ir amanhã à casa de Zverkof, interrogarei Fidel, e, se for possível, interceptarei todas as cartas que Medji lhe escreveu.

12 de novembro.

Às duas da tarde pus-me a caminho com a intenção de visitar Fidel e de interrogá-la. Não posso suportar o cheiro de repolho que se exala de todos os armazéns da Rua dos Burgueses; além deste, da porta de todas as casas vieram fedores tão infernais que passei por elas a correr e tapando o nariz. Demais, os diabos daqueles operários deixam sair tanta fuligem e fumaça de suas oficinas, que não é absolutamente possível passear por ali. Chegando ao sexto andar, toquei a campainha. Apareceu uma criadinha de aparência não de todo má, de rosto sardento. Reconheci-a: era a mocinha que tinha estado com a velha. Corou ao ver-me, e eu compreendi de que se tratava. - Tu precisas, pombinha, é de um marido. - Que é que o senhor deseja? - perguntou-me. - Preciso falar com a vossa cachorrinha. Mas que criada tola! Logo vi como era estúpida. Ao mesmo tempo a cachorra acorreu latindo. Fiz menção de agarrá-la, mas o bicho ordinário quase que me abocanhou o nariz. Nesse meio tempo, percebi a um dos cantos uma cesta de esparto. Pois é disso justamente que eu preciso! Aproximei-me dela, revolvi a palha na caixa de madeira e com extraordinário prazer retirei da mesma um pacote de papelinhos. Vendo isto, a danada da cachorra mordeu-me primeiro a barriga da perna; depois, ao farejar que eu levava os papéis, pôs-se a ganir, a fazer-me festa, mas eu lhe disse: - Não, minha pombinha, até logo. E fui-me embora correndo. A criadinha deve ter-me tomado por maluco, tal o medo que lhe causei. Chegando a casa, quis-me entregar imediatamente ao trabalho de decifrar as cartas, pois à luz das velas vejo bastante mal. Mavra, porém, tinha-se lembrado de lavar o soalho. Essas finlandesas idiotas lembram-se de limpeza sempre no pior momento. Diante disso fui dar uma volta a meditar o acontecido. Agora, de vez, acabarei por saber tudo; todos os pensamentos, todas as molas, tudo hei de descobrir. Essas cartas hão de me revelar tudo. Os cachorros são uma raça inteligente, conhecem todas as relações políticas, e, assim, sem dúvida tudo estará aqui dentro, o retrato e todos os negócios do homem.

Deverá também haver algo a respeito daquela que... mas - psiu!... À noitinha cheguei a casa. Passei a maior parte do tempo deitado na cama.

13 de novembro.

Pois bem, vejamos. A carta é bastante legível. Embora escrita em letra humana, tem algo de canino. Leiamos:

"Querida Fidel, não posso absolutamente acostumar-me ao teu nome burguês. Não podiam dar-te um nome melhor? Fidel, Rosa - soam tão vulgarmente! Mas deixemos isso de lado. Estou bem contente de havermos resolvido escrever-nos."

A carta está correctamente escrita. A pontuação e a ortografia estão bem. Nem o nosso chefe de secção escreve tão bem, embora afirme que estudou algures numa universidade. Mas adiante :
"Parece-me que partilhar com outrem os pensamentos, sentimentos e impressões é uma das maiores felicidades do mundo." Hum! este pensamento é tirado de uma obra traduzida do alemão. Do título é que não me lembro. "Eu digo isto por experiência, embora não tenha corrido mundo além do portão de nossa casa. Será que a minha vida não é feliz? Minha senhorinha, a quem seu papai chama Sophie, ama-me loucamente." Ai de mim! mas - psiu!... "O paizinho dela acaricia-me também freqüentemente. Bebo chá e café com creme. Ah, ma chère, devo dizer-te que não acho absolutamente nenhum gosto nos grandes ossos roídos que o nosso Polkan devora na cozinha. A mim só me interessam ossos de passarinhos de caça, e estes mesmos só quando ninguém lhes chupou o tutano. Gosto também de molhos misturados, contanto que não lhes ponham alcaparra nem legumes. Em compensação, para mim não há nada pior do que as bolinhas de pão amassado que se dão habitualmente aos cachorros. Um senhor qualquer, sentado à mesa, depois de pegar com as mãos qualquer porcaria, começa a amassar pão com essas mesmas mãos, chama a gente e mete-nos entre os dentes a bolinha. Recusar seria uma falta de consideração, e a gente engole, embora com nojo..." O Diabo que entenda isso! Que tolice! Falar em tal coisa como se não houvesse assunto mais interessante! Vamos ver na outra página. Talvez lá se encontre algo de mais sensato: "É com o maior prazer que te informarei de tudo o que acontecer em nossa casa. Já te falei da personagem principal da casa, a quem Sophie chama papai. É um homem muito estranho." Até que enfim!
Aqui está: eu sabia que eles têm um olhar de político para tudo. Vejamos, pois, o que diz a respeito do papai: "É um homem muito. estranho. Geralmente, mantém-se calado. Fala muito pouco.No entanto, há uma semana, falava sozinho sem parar, dizendo: - "Hei de ganhá-la ou não?" Pegava com uma das mãos um papel, fechava a mão vazia e perguntava: - "Hei de ganhá-la ou não?" Uma vez, até se dirigiu a mim com esta pergunta: - "Que pensas tu, Medji: hei de ganhá-la ou não?" Não podendo compreender absolutamente nada, cheirei-lhe as botas e fui-me embora. Depois, ma chère, ao cabo de uma semana papai apareceu em casa muito alegre. Durante toda a manhã vieram vê-lo senhores uniformizados e deram-lhe parabéns. À mesa ele estava tão contente como nunca o vi, chegou a contar anedotas. Depois do jantar, pôs-me no colo e disse: - "Olha, Medji, eis a tal coisa." Vi uma espécie de fita. Cheirei-a, mas decididamente não lhe achei nenhum perfume. Depois, lambi-a devagar: tinha um gosto meio salgado." Hum! essa cachorrinha me parece até de mais... Queira Deus não apanhe! Então ele é ambicioso? Devo tomar nota disso para meu governo. "Até logo, ma chère! Vou correndo, etc., etc... Acabarei esta carta amanhã." "Bom dia. Eis-me outra vez contigo. Ontem a minha senhora Sophie..." Ah l Vejamos o que faz Sophie. Alto, canalha... Psiu! Deixemo-la continuar: "Minha senhorinha Sophie passou o dia num alvoroço extraordinário. Preparava-se para ir ao baile, e eu, por minha vez, estava contente, porque na ausência dela posso escrever-te. Minha Sophie está sempre contentíssima quando pode ir ao baile, embora quase sempre se aborreça no momento de se vestir. Não posso compreender, ma chere, que prazer se pode sentir em ir ao baile. Sophie chega de lá às seis horas da manhã, e pelo seu ar pálido e exausto quase sempre concluo que não lhe deram de comer, coitadinha. Por mim, confesso, nunca poderia viver assim. Se não me dessem molho com perdiz ou asa de galinha assada... não sei o que seria de mim. Molho com mingau de aveia também é bom. O que, porém, nunca tolerarei, é cenoura, nabo e alcachofra." É exatamente desigual esse estilo. Vê-se logo que o autor não é homem. Começa de um modo razoável e acaba caninamente. Vamos ver mais uma cartinha. Que compridas! Hum! nem põe data: "Ah, minha querida, como é evidente a aproximação da primavera! Bate-me o coração, como se esperasse alguma coisa. Nos meus ouvidos há como que um ruído perpétuo, a tal ponto que muitas vezes, levantando uma perna, fico parada à porta alguns minutos, atenta. Posso revelar-te que tenho muitos apaixonados. Muitas vezes, sentada à janela, observo-os. Se soubesses que monstros há entre eles!

Há um, de cara feia, um gozo idiota cuja estupidez está gravada no focinho, que passeia pela rua com ar importante e se crê uma personagem para quem se voltam todos os olhares. Pois está enganado. Eu não lhe dei atenção, fiz que não o via. Outro, um buldogue horrível, costuma parar diante da minha janela. Se se erguesse nas patas traseiras, coisa de que um vilão como ele provavelmente é incapaz, superaria de uma cabeça inteira o pai de nossa Sophie, que no entanto é de estatura elevada e corpulento. Esse bobalhão deve ser de uma impertinência insuportável. Rosnei um pouco para ele, mas ele fingiu não perceber. Se pelo menos soubesse fazer caretas... mas só sabe pôr a língua de fora e deixar cair as orelhas enormes, olhando para a janela que nem um mujique. Mas não penses, ma chère, que o meu coração é indiferente a todas as solicitações... ah, não... Se tu visses um cavalheiro que trepou na cerca da casa vizinha, chamado Tresor! Que focinho, ma chère!"
Ó diabo! Que porcaria! Como é possível encher páginas com semelhantes bobagens? Dai-me um homem! Quero ver um homem, preciso de um alimento que nutra e deleite a minha alma; em vez disso, vêm estas bobagens... Viremos a página, talvez o avesso tenha mais nexo:

"Sophie estava sentada à sua mesinha e cosia alguma coisa. Eu estava olhando pela janela, pois gosto de examinar os transeuntes. De repente entra o criado e anuncia o Sr. Teplof. - "Mande-o entrar" - exclamou Sophie. E correu a abraçar-me: - "Ah, Medji, Medji! se soubesses quem é! Um rapaz moreno, um fidalgo da corte. E que olhos! Pretos e luminosos como o fogo." Nisto, correu para o seu quarto. Um minuto depois entrou o fidalgo da corte, de suíças negras; foi ao espelho, ajeitou os cabelos e girou o olhar pelo quarto. Rosnei um pouco e fui sentar-me no meu lugar. Sophie voltou depressa e curvou-se alegremente, batendo os saltos; mas eu, como se não tivesse visto nada, continuei a olhar pela janela, embora inclinasse a cabeça de lado e procurasse ouvir de que falavam eles. Ah, ma chère, que tolices conversavam! Comentaram, por exemplo, que uma das damas, em vez de executar determinadas figuras na dança, executara outras; que certo Bovof, com seus bofes de camisa, parecia uma cegonha, e quase caíra; que certa Lidina imaginava ter olhos azuis, quando na realidade os tinha verdes - e outras coisas parecidas. Como seria interessante - pensei - comparar esse gentil-homem com Tresor! Que diferença, meu Deus! Antes de tudo, o gentil-homem da Corte tem o rosto largo, completamente liso, e com suíças em redor, como se estivesse cercado de um lenço preto, ao passo que Tresor tem um focinho fino e, no meio da testa, uma mancha sem pêlo. A cintura de Tresor nem se compara com a do fidalgo. Quanto aos olhos, aos gestos, às maneiras, nada têm de comum. Que diferença!

Não sei, ma chère, o que ela encontra no seu Teplof, que está assim tão enlevada por ele..." A mim me parece que a coisa não deve ser tanto assim. Não é possível que ela esteja tão enlevada por Teplof. Mas vejamos:

"Se esse fidalgo lhe agradou, daqui a pouco a veremos gostar até daquele funcionário que está sentado no gabinete do papá. Ah, ma chère, se soubesses que cara horrorosa! Tal e qual uma tartaruga num saco..."

Quem será esse funcionário? "Ele tem um nome muito esquisito. Está sempre sentado, a aparar as penas. Os cabelos que tem na cabeça parecem palha. O papá o manda a toda parte como a um criado..."

Dir-se-ia que a ordinária da cadela se refere a mim. Mas onde é que eu tenho cabelos como palha?
"Ao olhar para ele, Sophie não pode absolutamente conter o riso."

Estás mentindo, cadela danada! Que língua infame! Como se eu não soubesse de onde provêm todos esses truques: provêm do chefe de seção. Vê-se que o homem me votou um ódio de morte e agora me prejudica no que pode. Vejamos, no entanto, mais uma carta; talvez lá a coisa se explique por si mesma:

"Ma chère Fidel, perdoa-me haver passado tanto tempo sem te escrever. Estava completamente apaixonada. Teve plena razão o autor que escreveu que o amor é uma segunda vida. Além disso, há aqui em casa actualmente grandes transformações. O fidalgo vem agora todos os dias. Sophie está apaixonada por ele até à loucura. O papá anda muito contente. Já ouvi dizer ao nosso Gregório, que varre o chão e quase sempre conversa com os seus botões, que daqui a pouco haverá casamento, pois o papá quer ver Sophie casada quanto antes com um general, um fidalgo da corte ou um coronel do exército..."

Com os diabos! Não posso ler mais... Por toda parte aparece um homem da corte ou um general. Por toda parte, tudo o que há de melhor no mundo é para fidalgos da corte ou generais. Encontra-se um pequeno tesouro, pensa-se atingi-lo com a mão - mas vem um general, e o arrebata. O Diabo os leve. Eu também desejaria tornar-me um general. Não era para obter a mão dela e o resto, não: queria ser general apenas para ver como eles me cortejariam, como me fariam toda espécie de cerimônias e salamaleques, e para depois lhes dizer que escarro em ambos. O Diabo os leve, a esses idiotas. Fiz em pedaços as cartas da idiota da cadela.

3 de dezembro.

Não pode ser! É mentira!

Esse casamento não se deve realizar. Que importa que ele seja um fidalgo da corte? Isto é apenas uma dignidade, não é nenhum sinal visível que se possa tocar com o dedo. O fato de ele ser fidalgo da corte não lhe acrescenta mais um olho à fronte. Também o nariz dele não é de ouro, é como o meu nariz ou como o de qualquer outra pessoa. Serve para cheirar e não para comer, para espirrar e não para tossir. Mais de uma vez procurei já elucidar de onde provêm todas essas diferenças. Por que eu sou conselheiro-titular? Que quer dizer ser eu conselheiro-titular? Talvez eu seja algum conde ou general, parecendo apenas conselheiro-titular. Talvez eu mesmo ignore quem sou. Veja-se quantos exemplos disso temos em toda a história: aparece um homem simples, nem sequer um nobre, mas um burguês qualquer ou até um camponês, e de um momento para outro se descobre que ele é algum magnata ou barão, ou coisa parecida. Quando de um simples mujique pode sair alguma coisa dessa espécie, o que não poderá sair de um nobre? De repente, por exemplo, eu apareço em uniforme de general, com dragonas no ombro esquerdo, dragonas no ombro direito, uma fita azul de um ombro ao outro - pois então? Em que tom me falará a minha bela senhorinha? Que dirá o pai dela, nosso diretor? Oh, ele é ambiciosíssimo; sem a menor dúvida, é maçom, por mais que procure fingir isto ou aquilo; percebi rapidamente que ele é maçom, porque, ao dar a mão a alguém, estende apenas dois dedos. Será que eu não posso neste mesmo instante ser nomeado general-governador ou intendente, ou algo de parecido? Gostaria de saber por que sou conselheiro-titular. Por que justamente conselheiro-titular?

5 de dezembro.

Toda a manhã de hoje li jornais. Na Espanha estão acontecendo coisas estranhas. Nem consegui analisá-ias bem. Escreve-se que o trono está vago e os graúdos se encontram em grande embaraço quanto à eleição de um sucessor; daí provém grande indignação. Acho isso extremamente esquisito. Como pode um trono estar vago? Diz-se que ele deverá ser ocupado por certa dona. Mas uma dona não pode ocupar um trono, de maneira nenhuma. Um trono deve ser ocupado por um rei. Sim, diz-se - mas não há rei. É impossível que não haja rei. Não pode haver Estado sem rei. Há um rei; apenas, ele se encontra em lugar desconhecido. Talvez se encontre lá mesmo, mas algum motivo de família, ou o medo de qualquer potência vizinha, como a França ou outros países, ou algum outro motivo, o obrigue a se esconder.

8 de dezembro.

Pretendia ir hoje à repartição, mas diversos motivos e considerações me impediram de fazê-lo.
Aquele negócio da Espanha não me quer sair da cabeça. Como é possível que eles lá pretendam proclamar rainha a uma dona? Não se há de permitir isto. Antes de tudo, a Inglaterra não consentirá; depois, há a situação política de toda a Europa, o imperador da Áustria, o nosso czar... Confesso que estes acontecimentos me abateram e abalaram de tal forma que decididamente me foi impossível fazer qualquer coisa durante o dia ínterim. Mavra até observou que à mesa eu estava extremamente distraído. De fato, por distração deixei cair dois pratos, que se despedaçaram. Após o jantar fui passear ao pé das montanhas, porém nada consegui apurar durante o passeio. Depois passei a maior parte do tempo na cama a refletir sobre os negócios da Espanha.

Ano 2000, 43 de abril.

O dia de hoje é particularmente solene. A Espanha já tem rei. Ele foi encontrado, afinal. Esse rei sou eu. Somente hoje é que o soube. Confesso, foi como se de repente um relâmpago me tivesse iluminado. Não compreendo como pude pensar e crer que era conselheiro-título. Como me pôde entrar na cabeça ideia tão extravagante? Felizmente ninguém se lembrou de me pôr numa casa de loucos. Tudo se esclareceu aos meus olhos. Agora vejo tudo claramente, como na palma da mão. Até hoje, não sei como, tudo diante de mim estava como que envolvido em uma espécie de névoa. E tudo isto, penso eu, vem do facto de que a gente imagina que o cérebro humano se encontra na cabeça. Pois absolutamente não: ele é trazido pelo vento do lado do Mar Cáspio. Para começar, anunciei a Mavra quem eu sou. Ao ouvir que tinha diante de si o rei da Espanha, bateu com uma das mãos na outra e por um triz não morreu de susto. Tolinha! nunca tinha visto o rei da Espanha. Mas eu procurei tranquilizá-la e com palavras bondosas assegurei-a do meu favor, acrescentando que não estava nada aborrecido por ela às vezes me haver limpado mal as botas. Mas como essa gente é inculta! É impossível falar-lhe em assuntos elevados. Afavra espantou-se, porque está convencida de que todos os reis da Espanha sé parecem com Filipe II. Mas expliquei-lhe que entre mim e este último não há nenhuma semelhança.
Não fui à repartição. Diabo leve a repartição! Não, amigos, não me pegareis mais: não copiarei mais os vossos papéis sujos!

86 de martoubro, entre dia e noite.

Apareceu hoje aqui o executor para me dizer que eu devia voltar à repartição, aonde não comparecia havia três semanas.
Fui, pois, à repartição, por brincadeira.
O chefe de seção pensava que eu ia cumprimentá-lo e pedir-lhe desculpa, mas encarei-o com indiferença, nem muito aborrecido nem muito benévolo. Sentei-me à minha mesa como se não tivesse visto ninguém. Olhei para toda aquela canalha administrativa e pensei: - "Se soubessem quem está sentado entre vocês! Deus do Céu! Seria uma confusão! O próprio chefe de seção se inclinaria tão profundamente como se inclina agora perante o diretor. Foram colocados diante de mim alguns papéis, para que eu fizesse um extrato deles. Ao fim de poucos minutos, houve um alvoroço geral. Disseram que vinha o diretor. Muitos funcionários correram à porfia para se apresentarem ante ele. Mas eu não me levantei do meu lugar. Quando o diretor passou pela nossa seção, todos abotoaram o casaco, menos eu. Quem é esse diretor para eu me levantar na frente dele? Nunca! Que diretor é ele? É uma rolha e não um diretor, uma simples rolha dessas que servem para tapar garrafas. O que me pareceu mais engraçado que tudo foi eles me empurrarem uns papéis para eu assiná-los. Pensavam que eu ia pôr o nome ao pé da folha: Fulano de Tal, chefe de mesa... Que esperança! Lancei no lugar principal, lá onde o diretor da repartição costuma pôr a sua firma: Fernando VIII. Era de ver que silêncio reverente se fez no mesmo instante. Fiz apenas um sinal com a mão, dizendo: - Dispenso qualquer homenagem de meus súditos! E saí. Fui direito ao gabinete do diretor. Ele não es- tava. No primeiro momento o lacaio não me quis deixar entrar, mas eu lhe disse umas coisas que o deixaram desarmado. Dirigi-me de chofre ao toucador. Ela estava sentada diante do espelho. Ergueu-se de um salto e fitou-me com espanto. Eu, porém, não lhe disse que era o rei da Espanha; limitei-me a comunicar-lhe que a esperava uma felicidade tão grande que ela nem podia imaginar, e que, apesar das intrigas dos inimigos, acaba- ríamos por nos unir. Foi tudo o que eu disse, e saí. Como é insidiosa a natureza feminina! Só agora cheguei a compreendê-la. Até agora ninguém tinha adivinhado de quem é que a mulher gosta; fui eu quem o descobriu. Não estou brincando. Os homens de ciência escrevem bobagens, afirmando que ela gosta disto ou daquilo. Pois bem, ela gosta unicamente do Diabo. Senão, vejam sobre quem assenta o binóculo, sentada num camarote de primeira fila. Pensam que é sobre aquele rapaz atarracado, de estrelas? Nada disso. Ela está olhando é paz:a o Diabo que fica atrás das costas ou se esconde no casaco dele. Ainda agora o Diabo lhe fez um sinal com os dedos. Ela vai casar com ele, vai mesmo. Vêem todos esses pais de alta categoria a insinuarem-se em toda parte, a treparem até à Corte, a proclamarem que são patriotas e mais isto e mais aquilo? Pois o que esses patriotas querem são rendas e nada mais!
Vendem a mãe, o pai, o próprio Deus, por dinheiro; são uns ambiciosos, uns vendilhões de Cristo! Tudo isso é ambição e provém do fato de haver debaixo da úvula uma vesícula e, dentro desta, um vermezinho do tamanho de um alfinete. Tudo isso é obra de um barbeiro que mora na Rua da Ervilha. Não lhe sei o nome, mas é sabido que ele com uma parteira procuram espalhar o maometismo por toda parte. Dizem que na França a maioria do povo já professa a fé maometana.

Data nenhuma. Foi um dia sem data.

Fui passear incógnito pelo Nevski Prospekt. Por ali passou o czar, de carruagem. Toda a gente tirou o chapéu, e eu também; não dei o menor sinal de que sou o rei da Espanha. Julguei inconveniente descobrir assim do pé para a mão a minha identidade a todos, pois convém que me apresente em primeiro lugar à Corte. O que me impediu de fazê-lo foi o não possuir um traje nacional espanhol. Se pelo menos pudesse arranjar algum manto! Primeiro quis encomendar um a um alfaiate, mas todos eles são burros, descuram de seu trabalho, atiram-se à especulação e ocupam-se com o calçamento das ruas. Tinha decidido transformar em um manto o novo uniforme de gala que só usara duas vezes ao todo. Mas para que esses tratantes não me estragassem a obra, resolvi eu mesmo cosê-lo e fechei a porta, que ninguém me visse. Talhei-o todo em pedaços com a tesoura, porque o corte deve ser totalmente diverso.
Não me lembro da data. Também mês não houve. Sabe o Diabo o que foi.
O manto está pronto. Ao ver-me vesti-lo, Mavra soltou um grito. Mas não quis ainda apresentar-me à Corte, porque até agora não vieram os emissários da Espanha. Sem emissários, o meu mérito não teria nenhum peso. Aguardo-os de uma hora para outra.

Dia 1.

Espanta-me a demora dos emissários. Que será que os detém? Será a França? Sim, é ela a potência mais desfavorável. Fui ao Correio saber se os emissários espanhóis já chegaram. Mas o chefe do Correio é de uma estupidez extraordinária, não sabe coisa alguma. - Não - disse-me - aqui não há emissários espanhóis de espécie alguma, mas se o senhor quiser escrever cartas, aceitá-las-emos pela tarifa oficial. Diabos te levem! Cartas, para quê? Escrever cartas uma tolice. Só os farmacêuticos é que escrevem cartas...

Madrid, 30 de fevereiro.

Eis-me, afinal, na Espanha. Tudo aconteceu tão depressa que mal pude voltar a mim. Hoje de manhã apareceram lá em casa os emissários espanhóis e me fizeram subir a um carro. A rapidez com que isto se verificou foi extraordinária. Andamos tão depressa que dentro de meia hora chegamos à fronteira espanhola. É verdade que agora em toda a Europa as estradas são de ferro e os vapores viajam a grande velocidade. Estranho país a Espanha: ao entrarmos na primeira sala, encontrei uma multidão de pessoas de cabeça rapada. Adivinhei logo que deviam ser os grandes de Espanha, ou então soldados, pois são estes que usam cabeça rapada. Pareceram-me sumamente estranhas as maneiras do chanceler do governo, o qual me pegou pela mão, arrastou-me a um pequeno quarto e disse: - Senta-te aqui, e se te tratares de rei Fernando, hei de tirar-te essa ideia da cabeça cem pancadas. Sabendo que aquilo era apenas uma provocação, respondi negativamente, ao que o chanceler me deu duas bastonadas nas costas, tão dolorosas que eu quase gritei. Mas contive-me, lembrado de que se tratava de uma cerimônia de cavalaria, um ato de investidura. Com efeito, na Espanha conservam-se até hoje as tradições da cavalaria. Deixado sozinho, resolvi consagrar-me a assuntos do governo. Descobri que a China e a Espanha formam um único país e só por ignorância são consideradas dois Estados diferentes. Aconselho a todos que escrevam num papel Espanha; sairá China.
Estou, porém, preocupadíssimo com um acontecimento que deverá verificar-se amanhã. Às sete horas da manhã produzir-se-á um fenómeno dos mais singulares: a Terra há de sentar-se na Lua. O famoso químico inglês Wellington trata disso. Confesso que sinto profunda inquietação ao imaginar a excessiva maciez e a fragilidade da Lua. Ela é feita regularmente em Hamburgo, e fazem-na muito mal. É estranho que a Inglaterra não tenha reparado neste facto. Quem a faz é um tanoeiro coxo e, ao que parece, louco, que não tem a menor ideia do que seja a Lua. Utilizou uma corda alcatroada e uns restos de azeite de lâmpada rançoso; por isso é terrível o fedor por toda a Terra, é obrigatório tapar o nariz. Pela mesma razão a Lua é um globo tão pouco sólido que nela não pode viver gente de maneira alguma; quem vive lá são apenas os narizes. Nós justamente não vemos os próprios narizes porque eles se encontram todos na Lua. Ao refletir que a substância da Terra é muito pesada e pode reduzir os nossos narizes a farinha, fui presa de tamanha inquietação que, calçando meias e sapatos, me dirigi sem demora à sala do Conselho de Estado para mandar a polícia proibir que a Terra se sentasse na Lua.

Os grandes de cabeça rapada, convocados por mim em grande número à Sala do Conselho de Estado, mostraram-se muito inteligentes, e quando eu lhes disse: - "Meus senhores, salvemos a Lua, pois a Terra quer sentar-se nela!" - imediatamente correram a executar minha real vontade. Muitos deles treparam à parede para apanhar a Lua, quando entrou o grande-chanceler. Ao vê-lo, todos deitaram a correr e se dispersaram. Só eu fiquei ali, como rei. Mas, com viva surpresa minha, o chanceler esbordoou-me e mandou-me voltar ao meu quarto. Tamanha influência conservam na Espanha as tradições nacionais.

Janeiro do mesmo ano, mês que chegou depois de fevereiro.

Não posso compreender até agora que terra é a Espanha. Os hábitos nacionais e a etiqueta da Corte são sobremodo esquisitos. Não compreendo, não compreendo, decididamente não compreendo nada. Hoje raparam-me a cabeça, apesar de eu ter gritado com todas as forças que não me queria tornar monge. Nem me lembro mais do que fiz quando começaram a gotejar-me água fria na cabeça. Nunca tinha sentido dor tão infernal. Estava na iminência de enlouquecer, a tal ponto que só a custo me dominaram. Não posso absolutamente compreender o que significa essa estranha cerimônia. É uma cerimônia estúpida, absurda, e não compreendo a estupidez dos reis que não a aboliram. Considerando bem as coisas, pergunto a mim mesmo se não caí nas garras da Inquisição e se o homem que eu tornei por grande-chanceler não é o próprio Grande Inquisidor. Mas não entendo absolutamente como possa um rei ser submetido à Inquisição.

Tudo isso deve ser obra da França, sobretudo de Polignac! Que velhaco esse Polignac! Ele jurou-me ódio mortal. Ei-la a perseguir-me sem tréguas. Mas eu bem sei, meu amigo, quem te inspira: é o inglês. O inglês é um grande político. Insinua-se por toda parte. Todos já sabem que, quando a Inglaterra toma uma pitada, é a França quem espirra.

Dia 25.

Hoje o Grande Inquisidor entrou no meu quarto, mas eu, ouvindo-lhe de longe os passos, escondi-me debaixo de uma cadeira. Não me encontrando, ele começou a chamar-me. Primeiro gritou: - Poprichin! Porém eu não me mexi. Depois : Axenti Ivanof! Conselheiro-titular! Fidalgo! Continuei calado. - Fernando VIII, rei da Espanha! Quis pôr a cabeça de fora, mas depois refleti: - "Não, meu caro, não contes comigo. Já te conheço bem. O que tu queres é derramar-me de novo água fria na cabeça." Mas ele acabou por me descobrir e fez-me sair do meu esconderijo a bengaladas. As pancadas daquela maldita bengala doem-me extraordinariamente. Tudo isso, porém, é compensado pela descoberta que fiz, a saber, que todos os galos têm uma Espanha, que guardam debaixo da asa. O Grande Inquisidor saiu furioso do meu quarto e ameaçou-me de novos castigos. Mas eu não me importo com a sua fúria impotente. Sei que ele age como máquina, como arma da Inglaterra.


 /349.


Não, não tenho forças para aguentar mais! Meu Deus, que fazem eles comigo! Derramam-me na cabeça água fria. Não me dão a menor importância, não me vêem, não me escutam. Que mal lhes fiz? Por que me estão a atormentar? Que é que eles querem desta pobre criatura? Que lhes posso dar? Não tenho nada. As minhas forças estão-se a acabar, não suporto mais as torturas que me infligem, arde-me a cabeça. Tudo está rodando em torno de mim. Salvem-me! Tirem-me daqui! Dêem-me uma troika com cavalos tão velozes como a tempestade. Senta-te, meu cocheiro, repicai, meus guizos, arrebatai-me, meus cavalos, levai-me para longe desta terra, mais longe, mais longe ainda, para que eu não veja nada mais. Eis que o céu se desdobra ante os meus olhos, com uma estrelinha brilhando ao longe. Eis a floresta com árvores escuras sob o luar. Uma névoa cor de pomba flutua-me em volta dos pés; uma corda ressoa na névoa. De um lado vejo o mar, do outro a Itália; vejo também as choupanas russas. Não é a minha casa que azuleja ali? Não é minha mãe que está sentada à janela? Mãezinha, salva o teu pobre filho! Derrama-lhe lágrimas sobre a cabecinha doente. Olha como o torturam! Aperta ao peito o teu pobre órfão! Ele não tem mais lugar na Terra! Perseguem-no! Mamã, tem piedade do teu filhinho doente! Vocês já sabem que o rei de Argel tem um tumor exatamente debaixo do nariz?