O primeiro canto

O primeiro canto

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Filosofia, Literatura & Grande Sertão: Veredas


Filosofia e literatura. O problema moral no «Grande Sertão: Veredas»

Álvaro Martins Andrade


"Mas liberdade - aposto - ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto,e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer." (GSV, 290)(1).
"A liberdade é assim, movimentação." (GSV, 303).
"ROSA: Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes da minha vida, e, em rigor, a seqüência representa um paradoxo. Como médico, conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte...
LORENZ: Deve-se entender isso como uma escala de valores?
ROSA: Exato, é uma escala de valores.
LORENZ: E não são esses três conhecimentos, no fundo, a espinha dorsal do romance "Grande Sertão"?
ROSA: São, mas somam-se ainda outros, sobre os quais nós temos ainda de falar também."(2)
"Gosto de achar que tudo evolui e avança necessariamente bem." Guimarães Rosa(3)
"O inconsciente é capaz, por momentos, de manifestar mais inteligência e finalidade do que não o é a introspecção consciente." Jung(4A exemplo de toda a travesia do Riobaldo - ou de toda filosofia - a gênese do pensamento moral de Guimarães Rosa se dá segundo um processo que comporta etapas prévias e necessárias. Com efeito, encontra-se no Grande Sertão: Veredas se não uma sistemática 'filosofia das ciências", pelo menos um narrador que reflete sobre o conhecimento do seu mundo e do teu tempo, a ponto de já poder "formular" a "hipótese" (ou "tese"?):
"Ao que, este mundo é muito misturado..." (GSV, 210, grifo nosso)
Embora o problema de uma filosofia das ciências no Grande Sertão: Veredas não esteja compreendido na presente análise, ainda assim é necessário assinalar - para os efeito da análise posterior - que o narrador tem uma síntese coerente de conhecimentos sobre o universo e o homem. Mesmo sem se poder falar ainda e rigorosamente defilosofia, trata-se de uma indagação preliminar que estabelece efetivamente certos referenciais fixos neste "mundo movente" - para usar a feliz expressão de José Carlos Garbuglio(5)Encontramos em seguida uma metafísica - no sentido de uma complementação, seguramente sempre hipotética, do fragmentário quadro de conhecimentos sobre o mundo e o homem. "Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia." (GSV, 62-63). Por isso, seguramente, "o real roda e põe adiante." (GSV, 133) Sem pretender ser superior à "ciência" representada pelo seu interlocutor silencioso, a "metafísica" do narrador ou do compadre meu Quelemém ainda assim visa sempre preencher de maneira "razoável" as persistentes lacunas do conhecimento "científico":
"A razão normal de coisa nenhuma não é verdadeira, não maneja." (GSV, 334),
diz o narrador, talvez melhor esclarecendo suas curiosas referência e descrição do compadre Quelemém, o qual "quer saber tudo diverso: quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra coisa." (GSV, 189, grifos nossos)
Da mesma forma que para o seu autor(6), também para o narrador o ético e o metafísico são inextrincavelmente interdependentes. A partir dos dois conceitos que este sábio ex-jagunço mais elabora - destino e liberdade - ocuparnos-emos agora do ético e do metafísico, com vistas à determinação do conceito que (embora não referido nominalmente pelo narrador) a nosso ver informa toda a sua ação e pensamento: o finalismo inerente à existência humana, o quantum de necessidade que define o sentido comum, invariável e universal dos mitos do herói.
A idéia de um finalismo inerente à substância já se encontra presente no sistema aristotélico: na passagem da potência para o ato, da forma para a matéria, quando o dynamós realiza as melhores potencialidades, já é com afinalidade de realizar "o melhor dos mundos possíveis." Negada pelo Pascal cartesiano ("As flores e os passarinhos não demonstram"), esta orientação ou finalidade interior ao dynamós e à substância, realizando-se continuamente pela transformação (que desta forma supõe o tempo) implicará assim na irreversibilidade, com todas as suas conseqüências que, no caso do narrador, serão de ordem sobretudo ética porque também psicológicas. "A partir de um certo ponto, não há mais retorno. Esse é o ponto que se precisa atingir" - já o sabia o Kafka das Considerações sobre o pecado, a dor, a esperança e o verdadeiro caminho. Nosso narrador vai mais longe: associa e coloca este 'ponto" crítico ("ponto de marca") no interior do finalismo ("Tudo tinha me torcido para um rumo só") - e portanto inerente a este, verdadeira finalidade no interior da necessidade:
"Tem um ponto de marca, que dele não se pode mais voltar para trás. Tudo tinha me torcido para um rumo só, minha coragem regulada somente para diante, somente para diante." (GSV 203, grifos nossos).
Acreditamos ter deixado suficientemente claro, em outras análises dedicadas especificamente ao problema(7), que o "rumo só" para o qual está "minha coragem regulada" é o rumo do inconsciente, o do mergulho nas imagens primordiais do mito pessoal. "Tendo atravessado o Rubicão, seria impossível voltar atrás", diz Jung valendo-setambém das (no caso) indispensáveis metáforas.(8)
Reconhecemos que a insistência com que o narrador - direta ou indiretamente - refere o destino, autorizaria pensar em uma concepção de homem de tipo determinista ou fatalista. Observe-se, contudo, que não só o próprio conceito quanto suas variantes são sempre utilizadas de maneira ambígua, de maneira tal que se tem desde suacategórica afirmação até sua radical negação, passando por outros usos metafóricos e poéticos que permitirão determinar seu verdadeiro valor significativo. Associados a outras "falas", tais usos possibilitam determinar seusentido original. No primeiro caso (acepção ingênua e determinista), tem-se o narrador se referindo à adivinha Ana Duzuza, mãe de Nhorinhá:
"No momento, foi que eu caí em mim, que podia ter perguntado à Ana Duzuza alguma passagem de minha sina por vir. (...) E se a Duzuza adivinhasse mesmo, conhecesse por detrás o pano do destino?"(GSV, 35, grifos nossos)
Com a mesma acepção (embora sem referí-lo), reaparece na estória de Davidão e Faustino, na qual, como após o pacto entre ambos nenhum dos dois morre, o narrador diz que "Para nenhum deles tinha chegado a hora-e-dia"(GSV, 81, grifos nossos) Ou, ainda, referindo-se a Fancho-Bode e Fulorêncio, que "Morreram, porque era seu dia,deles, de boa questão." (GSV, 154, grifo nosso) Entretanto, descrevendo os momentos que precederam ao pacto, o narrador já fala d'"o alto destino possível da gente" (GSV, 381, grifo nosso), introduzindo assim a primeira"variação" que, por si mesma, negaria a noção estrita de um "destino" enquanto determinismo, pre-determinismo ou fatalismo. A menos que se conceba a paradoxal duplicidade do destino - um "alto" e outro "baixo". O "possível", aqui, já abre necessariamente para uma concepção de liberdade que, se não nega a necessidade do determinismo estrito, a relativiza em finalismo. Ou, se é possível dizê-lo - a liberdade no interior da necessidade se traduz em permanente atualidade livre:
"E o que era para ser. O que é pra ser - são as palavras." (GSV, 47, grifos nossos) Esta "relativização" do destino é nitidamente sugerida pelo narrador ao se perguntar se "Deveras se vê que o viver da gente não é tão cerzidinho assim?" (GSV, 106, grifos nossos), pois na realidade ele também conhece e admite o que chama de "acaso" e sua importância: 
"Ao que, digo ao senhor, pergunto: em sua vida é assim? Na minha, agora é que vejo, as coisas importantes, todas, em caso curto de acaso foi que se conseguiram - pelo pulo fino de sem ver se dar - a sorte momenteira, por cabelo por um fio, um clim de clina de cavalo. Ah, e se não fosse, cada acaso não tivesse sido, qual é então que teria sido o meu destino seguinte? Coisa vã, que não conforma respostas. Às vezes essa idéia me põe susto." (GSV, 120-121, grifos nossos) Se o determinismo estrito ("destino") é assim limitado e relativizado pelo narrador, a tal ponto este já se represeenta claramente sua concepção d'"essa idéia", que chega ao extremo cuidado de relativizar também o oposto - isto é, a "liberdade de escolha" - antecipando de quase quatrocentas páginas o conceito-chave de sua concepção da existência humana ("Cumpro." - GSV, 571):
"Quem que diz que na vida tudo se escolhe? O que castiga, cumpre também." (GSV, 205, grifos nossos) O problema que se coloca, portanto, seja para o narrador, seja para nós, é o seguinte: o destino do homem é problema de Deus, ou do próprio homem? Ao nível da narrativa dos "fatos", o artifício utilizado para elaborar o tema será o mesmo utilizado pelo Goethe do Fausto: a aposta, o pacto (Fausto será perdido? Fausto se perderá?). Ora, em relação ao "Deus" do narrador, se é verdade que ele "quer" alguma coisa em relação ao homem, é preciso reconhecer que não somente se trata de um objetivo bastante simples e "saudável" (a "alegria"), como também será necessário reconhecer que este mesmo "Deus" "respeita" a liberdade do homem ("na horinha em que se quer"):
"O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito - por coragem." (GSV, 301, grifos nossos)
Além do já verifcado em relação a esse Deus do narrador como categoria antropológica e imagem do centro ou Si(9) seu "parentesco" com o diabo, esta humanidade liberal de um Deus que assim respeita a liberdade humanaverifica-se ainda pela conseqüente solidariedade e responsabilidade que decorreria do próprio "pacto": "Se vendo minha alma, estou vendendo também a dos outros." (GSV, 294, grifo nosso). Mas não nos iludamos, não se trata de um existencialista a repetir os lugares-comuns sartrianos. Já vimos que, na realidade, enquanto o narrador "brinca" com diferentes jargões filosóficos ou pseudo-filosóficos, simultaneamente "dialetiza" entre os sistemas originários destas linguagens, em busca de sua síntese pessoal. Observe-se que, de tomar ou interpretar isoladamente algumas falas "sentenciosas" do narrador, sem previamente estabelecer seu contexto subjetivo e o global de seu universo, poder-se-ia em conseqüência "definir" sucessivamente seu "pensamento" não apenas como "existencialista"(10), mas também "spinosano", "kantiano" e outros mais.
Com efeito, descrevendo a entrada no sertão de Minas, na perseguição final ao Hermógenes, ao mesmo tempo que reafirma a já apontada irreversibilidade da específica "travessia" que está realizando (a do inconsciente para o consciência), o narrador "se revelaria" também como um "spinosano":
'Dali de lá, eu podia voltar, não podia? Ou será que não podia, não? Bambas asas, me não sei. Bambas asas... Sei ou o senhor sabe? Lei é asada é para as estrelas. Quem sabe, tudo o que já está escritotem constante reforma - mas que a gente não sabe em que rumo está - em bem ou mal, todo-o-tempo reformando?" (GSV, 510, grifos nossos) Se é verdade que "a ilusão da liberdade vem da consciência de nossa ação e da ignorância das causas que nos fazem agir(11), o narrador seria realmente um "spinosano" ("tudo... está escrito... a gente não sabe...");entretanto observe-se: "tudo o que já está escrito tem constante reforma": a liberdade não é uma "ilusão" nem o narrador um "spinosano".
Tem sido esse mesmo tipo de análise (sem levar em conta o contexto subjetivo e global de um narrador que "brinca" com as linguagens dos "sistemas" filosóficos) o que, a nosso ver, tem ocasionado, na crítica rosiana até aqui publicada, a aproximação mais freqüente das "idéias filosóficas" do narrador com as assim chamadas "vertentes existencialistas". E, realmente, se adotado o critério fácil da simples justaposição, pode-se de fato "provar" por tal meio que o narrador é um "sartriano". Se não, vejamos: discutindo o problema da liberdade em Descartes, Sartre observa que "ele compreendeu, melhor que ninguém, que a menor démarche do pensamento engaja todo o pensamento, um pensamento autônomo que se põe, em cada um de seus atos, em sua independência plena e absoluta."(12) Se assim é - e com a mesma facilidade de critério das simples aproximações - nosso narrador seria "sartriano" quando diz que "Ações? O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada." (GSV, 170, grifos nossos), hipótese que imediatamente se "verificaria" pela afirmação de que "A liberdade é assim, movimentação" (GSV, 303, grifos nossos). Entretanto, não esqueçamos que para o narrador, a liberdade é essencialmente uma libertação: libertação das trevas do "não-saber" (GSV, 96, 97, 133, 272, 294), do seu "sertão" (GSV, 149, 270, 271, 274, 334, 354, 409,432, 466, 486-487, 490, 491, 501, 510, 540, 560), enfim, libertação em relação ao seu inconsciente. "Sujeição epossessão são sinônimos. Esta a razão pela qual há sempre algo na alma que toma a dianteira, limita ou põe em xeque a liberdade moral"(13). E não esqueçamos que, se Diadorim é o grande "personagem" deste inconsciente, na fase inicial e caótica do herói "As vontades de minha pessoa estavam entregues a Diadorim." (GSV, 37) Não obstante, "enquanto ser natural, simpelsmente criado ou emerso de pre-condições inconscientes, o homem não tem nenhuma liberdade e a consciência não tem nenhuma 'razão de ser'. O julgamento psicológico deve ter em conta que, em virtude do fato de que a despeito de toda sua intrincação causal, o homem possui um sentimento de liberdade que se confunde com a autonomia da consciência. Embora todas as coisas, tomadas uma a uma, provem ao Eu que ele é dependente e condicionado, não se pode entretanto persuadí-lo de sua escravidão."(14)Convenhamos que, tomada passo a passo a evolução do jagunço Riobaldo ao Chefe Urutú Branco e, finalmente, aonarrador-enquanto-narrador ("hoje", "agora"), não se confundem a falta de "razão de ser" inicial do primeiro (GSV, 11, 272 etc.), o "sentimento de liberdade que se confunde com a autonomia da consciência" do segundo (GSV, 437, 527 etc.) e a liberdade-libertação de que goza o terceiro e último: "Agora, paz." (GSV, 432) Pensada assim, como árdua e penosa libertação do "dentro do ferro de grandes prisões" do inconsciente, comprende-se então quetambém a "verdade" da liberdade tenha de ser aprendida nesta solitária conquista a partir do "encoberto": "Vento que vem de toda parte. Dando no meu corpo, aquele ar me falou em grito de liberdade. Masliberdade - aposto - ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer." (GSV, 290, grifos nossos) Avessas a todo o "racional" e "intelectual", a ética e mesmo a metafísica do narrador e seu autor serão sempre fundadas no vivido, numa concepção geral do universo e do homem simultaneamente "experimentada" e verbalizada ao longo da narrativa. Procuremos assim, agora, determinar a forma e as conseqüências práticas que -para a ação - tem esta concepção ético-metafísica do homem e do universo.
O que estamos chamando de "metafísica", no Grande Sertão: Veredas é o conjunto de proposições "sentenciosas" e "textos teóricos"(15) que - transcendendo as aparentes "contradições" e "ambigüidades" - apresenta verdadeirahomogeneidade entre si, completando assim as poucas certezas "racionais" do narrador e lhe permitindo resolver os problemas e desafios que lhe colocam sua existência e o mundo: o que é o sertão, o que é viver. Observe-se que as progressivas falas e respostas que definem especialmente a "metafísica" do narrador, também aí se dão segundo as possibilidades de toda e qualquer metafísica. Isto é, todas as suas proposições que configuram um "sistema" se conformam segundo a adoção de uma crença radical, prévia e organizadora - mais de Guimarães Rosa que de Riobaldo - e que funciona como postulado fundante da metafísica em questão. Ora, tais possibilidades geradoras das metafísicas - sem pre referidas à "Ordem" ou à idéia de uma ordem - dão-se invariavelmente na raiz de toda e qualquer metafísica sob uma das três alternativas: há uma Ordem no universo; não existe Ordem alguma no universo; ou: uma ordem se ela* hora progressivamente. A adoção da terceira destas três alternativas encontra-se na raiz de toda a reflexão moral do narrador: uma ordem, um mundo e um homem in fieri, fazendo-se, em processo.
Muitas vezes o narrador faz pensar que Guimarães Rosa teria platonicamente optado pela afirmação de uma Ordem. Mas com o simples fato de fazer pensar o narrador, Guimarães Rosa revela estar muito mais próximo da terceira alternativa: toda Ordem é construção e elaboração progressiva: "Gosto de achar que tudo evolui e avançanecessariamente bem."(16) A própria adoção desta alternativa já é de certa forma uma "inclinação" inicial,absolutamente indemonstrável e provavelmente de natureza afetiva, semelhante, talvez, à que faz com que alguns de nós gostemos mais de Riobaldo, outros de Diadorim. Afinal, "A gente sabe mais de um homem, é o que ele esconde." (GSV, 319)
É esta inclinação ou opção pela Ordem in fieri, pelo movimento, transformação orientada e pela metamorfose do processo que, a nosso ver, constitui a verdadeira opção de Riobaldo-Rosa. Desta forma resulta ainda um tanto arbitrário quando dizemos que o pensamento moral de Riobaldo é o resultado ou conseqüência de uma elaboração metafísica anterior; na realidade, no caso deste narrador porta-voz de seu autor, o ético está na origem do "metafísico"ambos inextrincavelmente ligados ao psicológico. Neste sentido se pode dizer indiferentemente que oGrande Sertão: Veredas está construído de trás para diante ou de diante para trás: quando, encerrando sua "estória", o narrador diz que "No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade" (GSV, 564, grifo nosso) é porque efetivamente ele já tem essa "verdade", sabe que só é possível construir uma "metafísica" coerente a partir não de uma "razão normal de coisa nenhuma" - que "não é verdadeira, não maneja" (GSV, 334), mas sim a partir da "Verdade maior", essa "que a vida me ensinou." (GSV, 24, grifsos nossos). Mais precisamente ainda, a ética do narrador se constitui precisamente na elaboração desta intuição afetiva e anterior a qualquer construção lógico-filosófica, elaboração que assim se fazendo no modo da ingenuidade fenomenológica, ao nível da expressãose dará na forma da ambigüidade. Em última instância, o que o narrador procura (e procura definir) é o objeto mesmo de toda a filosofia - o sentido ou não-sentido do universo, desse viver que "nem não é muito perigoso" (GSV, 35), o sentido de sua própria existência. É esta "intuição", "visão" ou modo de sentir o mundo que, se ao nível do poético resulta na criação visionária, ao nível do ético já é de natureza "moral": desenvolvendo-se, realizando-se e objetivando-se no processo, toma forma e consciência de si mesma através da reflexão que prova,organizando-se finalmente em discurso e pensamento moral. Resultados de um engajamento do coração e do sentimento, ética e metafísica rosianas se dão assim em um só movimento; somente para efeito de análise se pode considerá-las separadamente.
* * *

ENGAJAMENTO DO SENTIMENTO E ENGAJAMENTO DA VONTADE
"Eu queria minha vida própria, por meu querer governada." (GSV, 335)
"Quem me entende? O que eu queira. Os fatos passados obedecem à gente; os em vir, também. Só o poder do presente é que é furiável? Não. Esse obedece igual - e é o que é. Isto, já aprendi." (GSV, 324-325)
Graças a um artigo de Karl Krolow tem-se por definitivamente assentado que toda a obra de Guimarães Rosa - e por consequência também seu pensamento - se constituem em um engajamento do coração, ou um engajamento do sentimento.(17) O próprio autor, aliás, jamais negou ou objetou qualquer coisa a respeito. Entretanto, por suas consequências e significação para a determinação do que chamamos um pensamento brasileiro, urge retomar esta afirmação e verificar em que medida a mesma é verdadeira - mas não toda a verdade. Isto só é possível de ser feito a partir sobretudo do próprio texto.
Tomado o Grande Sertão: Veredas como dimensão maior da realização do mito pessoal do homem e artista João Guimarães Rosa, embora sua vida pessoal e seus depoimentos devam contar, são ainda seus textos a sua maiorobjetivação.
Com efeito, a maior parte dos valores afirmados na obra são de natureza e origem sentimental: bondade, alegria, coragem etc.:
"- 'Não sabe que quem é mesmo inteirado valente, no coração, esse também não pode deixar de ser bom?!" (fala de Diadorim - GSV, 143)
"O vau do mundo é a alegria!" (GSV, 288)
"- 'Vau do mundo é a coragem ...' - eu disse." (GSV, 289)
"Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem - que Êle é bondade adiante, quero dizer." (GSV, 296)
Entretanto, na medida em que tais valores têm de ser vividos ("Deus é bondade adiante"), os mesmos sãoinstaurados pelo homem na ação - e não transcendentes ou abstratos. Não obstante, é preciso ter-se em conta que tais valores, em que pese sua incidência e afirmação ao longo de toda a obra rosiana, expressam, no fundo,um modo particular de ser (sentimental, emocional etc) , e que embora postos e elevados à dignidade de valoresmorais, se se pensa a moral na sua relação com a prática de uma ação, dificilmente poderiam caracterizar uma ética. Impõe-se aqui, portanto, o problema dos tipos: não se pode definir como virtudes a alegria de um extrovertido ou a reserva do introvertido; da mesma forma, não se pode falar de "valor" em relação ao sentimentoenquanto função superior do tipo-sentimento, assim como tampouco o é, moralmente, a superior "inteligência" do tipo-pensamento. Vista da perspectiva contrária, é a mesma situação pela qual, jurídica e moralmente, o louco ou débil mental não são considerados responsáveis pelo crime que cometem, ou ainda, da perspectiva religiosa, seu crime não é considerado "falta" ou "pecado". Só há virtude ou não-virtude ali onde se empenham (ou deixam de se empenhar) a vontade, a consciência e a liberdade individuais. Contra o comportamentismo, ainda é possível afirmar que o meio inclina, mas não obriga.
Neste sentido, a nosso ver, aquilo que Krolow chama o engajamento do coração ou do sentimento na obra rosiana, é precisamente aquilo que esta tem de mais pessoal: seja no sentido de uma auto-biografia sincera, seja - eventualmente - no sentido de uma compensação do exatamente oposto. "O artista é um fingidor.. - já o sabia Fernando Pessoa. Não estamos afirmando tal hipótese, mas apenas mostrando a necessidade de se tê-la em conta, em decorrência mesmo do fato de estarmos diante de uma obra que, se nos apresenta um tipo, ao mesmo tempo é obra de um artista.
Se, contrariamente, por valores genuinamente morais entendermos aqueles que dizem respeito à ação e suas conseqüências, aqui, sim, poder-se-á falar de uma ética rosiana - esta porém de tipo muito mais voluntarista que sentimental. De início, refaçamos a "teoria dos valores" do narrador:
"Também, o que é que vale e o que é que não vale? Tudo." (GSV, 138)
A extensão absoluta do conceito ("Tudo") é não obstante mais circunscrita pelo próprio narrador, ao dizer que
"O que vale são outras coisas." (GSV, 95, grifos nossos)
Por sua vez, esta circunscrição do axiológico é logo novamente mais precisada - embora ampliada na ambigüidade de sua formulação:
"Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo ou por cima - o que parece longe e está perto, ou o que está perto e parece longe." (GSV, 217, grifos nossos)
Fazendo intervir o simbolismo da orientação espacial ("em pé" = vertical = consciente) mais um pouco se precisa esta "ambigüidade" quando o narrador declara que
"Só o que a gente pode pensar em pé - isso é que vale." (GSV, 276, grifos nossos).
Se parecemos nos aproximar de uma ética do tipo rácionalista e inoperante ("Só o que... pensar em pé - é que vale"), por outro lado a ação e a proversividade se impõem:
"Não sabia, hoje será que sei, a regra de nenhum meio-têrmo. Sem ação, eu podia gastar ali minha vida inteira, debulhando." (GSV, 83, grifos nossos)
"Tudo tinha me torcido para um rumo só, minha coragem regulada somente para diante, somente para diante." (GSV, 203, grifos nossos)
Entretanto, levando-se em conta o contexto ou experiência específicos a que se refere o narrador - a subjetividade em processo do seu mito pessoal em realização, travessia do "sertão"-inconsciente para a "cidade" da consciência-centro atingido - esta "ação", ao mesmo tempo que assume nova dimensão moral - condição da autonomia - retorna também ao seu sentido primeiro, mitológico e psicológico.
* * *

DA HETERONOMIA À AUTONOMIA: SENTIDO E VALOR DA TRAVESSIA
"Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra." (GSV, 166, grifos nossos)
Ora, "ser bom" e "proceder honesto" apresenta, em relação à consciência individual, um duplo aspecto em que os termos finalmente se invertem: em primeiro lugar, na medida em que têm sua origem na cultura, representampara a consciência individual, tanto o coletivo como o exterior: a heteronomia, pois; em segundo lugar, na medida mesma em que coletivos e exteriores, para a consciência que recebe tais valores como imposição externa (e não conquista interior), tais valores resultam, finalmente e à maneira do superego freudiano, inconscientes. O que é "dificultoso", pois, é a passagem da heteronomia coletivo-multiplicidade-inconsciente para a autonomia unidade-consciência. Não esquecer o
"conselho que Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca não se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempogovernando a idéia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é." (GSV, 225, grifos nossos)
Através do universo de partes mei in aliis personalizadas por via de projeção, continuamente re-verificamos que o ético, para o narrador, está mais estreitamente vinculado ao psicológico do que fariam parecer suas falas tomadasisoladamente. Assim é que melhor se comprende quando o narrador diz que "Eu queria minha vida própria, por meu querer governada" (GSV, 335, grifos nossos), ou quando, se valendo das imagens extremas para o centro (ou eu profundo, ou si mesmo) e para a sombra (o reprimido, ou negativo), já Chefe - mas não narrador ainda,"pensa":
"- 'Não sou do demo e não sou de Deus!' - pensei bruto, que nem se exclamasse." (GSV, 465, grifos nossos)
Afinal o "governo" que definirá a autonomia moral, será (ou não) exercido em relação a um "estado" chamado "sertão":
"O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou osertão maldito vos governa..." (GSV, 466, grifos nossos)
Desta forma, as relações de ordem moral que o narrador estabelece entre os domínios do sentimento e da vontadetrazem-nos de volta às constatações anteriormente apontadas: o sentimento é um dado, fato da subjetividade que decorre do tipo psicológico; prima matéria, deverá ser elaborado pela vontade para, qualitativamentetransformado, assim ascender à eminência de "valor". Neste sentido e para tal objetivo - a vontade (seu uso e exercício a partir da liberdade) é "anterior" e "superior" ao sentimento em questão. Esse esquema de relações, embora constante em todo o conjunto da obra rosiana, encontra sua mais clara formulação na Secção IV do quarto prefácio de Tutaméia ("Sobre a escova e a dúvida"). Introduzindo um equivalente do compadre meu Quelemém, ao qual (não por acaso) chama "o meu guru Weridião"(18) assim se encontra condensada a concepção moral do homem rosiano:
"Suspeito nem sequer minhas vontades profundas. Sob a palavra de Weridião, somos os humanosseres incompletos, por não dominados ainda à vontade os sentimentos e pensamentos. E precisaria, cada um, para simultaneidade no sentir e pensar, de vários cérebros e corações. Quem sabe, temos?Sem amor, eu é que sou um Sísifo sem gravidade."(19)
Ainda aqui coerente com Jung - ao diferenciar "os sentimentos" do amor como uma forma do sentimento - ainda aqui encontramos "os humanos seres incompletos" definidos a partir do herói (Sísifo). Para efeito de verificação da hipótese de um voluntarismo moral que, se não sobrepuja o "engajamento do sentimento", teria como este o mesmo significado ético final, seja-nos permitido adotar, neste domínio, as convenções gráfico-espaciais da formalização matemática, e assim "deduzir" em "fórmula" aquela que se revela a forma da ética rosiana:

 


Assim é que, escapando continuamente de todo abstrato e puramente intelectual, a ética do narrador assume a concretude espessa e humana do psicológico vivido como um
"trabalho de segurar a alma e endurecer as mãos." (GSV, 180, grifos nossos)
Nem absoluta liberdade ou livre arbítrio absoluto, nem destino estrito, fatalismo ou determinismo, se não se pode falar de uma autonomia da moral no pensamento rosiano, necessário é reconhecer-lhe a precisa formulação de uma moral da autonomia. Profundamente humana, porque fundada no que de mais profundo tem o homem; profundamente naturalista, porque fundada no imediato do psicológico; profundamente realista, porque expressa pelo irreal do mito; profundamente concreta, porque tarefa de todos nós. Qualquer análise desta ética, sem qualquer juízo de valor, seria um non-sense. Mais que qualquer síntese, porém,
"Estou dando batalha." (GSV, 296)
E mais sintético ainda, o narrador tudo diz ao dizê-lo em uma única palavra:
"Cumpro." (GSV, 571)


(1) Todas as citações do Grande Sertão: Veredas são feitas sobre a 2ª. edição - que é a definitiva.
(2) in LORENZ, Günter - Literatura Deve Ser Vida. Um Diálogo de Günter W. Lorenz com João Guimarães Rosa.Trad. Jehovanira Füchtner e Chrysóstomo de Sousa, do livro Dialog mit Lateinamerika. Panorama einer Literatur Zukunft - Tübingen, Horst Erdman, 1970. Puhl, in Exposição do Novo Livro Alemão - 1971, org. "Austellungs-und Messe-GmbH Börsenvereins des Buchhandels" em col. Institutos Culturais Brasileiro-Alemães. Págs. 272-273.
(3) Carta a Dora Ferreira da Silva, de 19.2.1958, in Cavalo Azul, S. Paulo, 3 :33, s.d.
(4) JUNG, Carl Gustav - Psychologie et Religion - Trad. Marthe Bernson e Gilbert Cahen, Paris, Buchet/Chastel, 1958, p. 80.       
 (5) O Mundo Movente de Guimarães Rosa. São Paulo, Ed. Ática, 1972.
(6) Cf. Literatura Deve Ser Vida - entrevista a Günter Lorenz, op. cit., passim.
(7) "O Sertão é o inconsciente", "O sonho e o mito: universo e linguagem", "Matéria e matéria vertente no Grande Sertão" - in Revista de Letras, Vol . 16, 1974.     
 (8) JUNG, CG. - Psychologie et Alchimie, Trad. Dr. Roland Cahen e Henry Pernet, Paris, Buchet/Chastel, 1970, p. 161.        
 (9) Cf. ANDRADE, Álvaro Martins - "Matéria e Matéria Vertente no Grande Sertão", Revista de Letras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, Vol . 16, 1974.
(10) Como já tem efetivamente ocorrido na crítica; cf., p. ex., CARDOSO, Wilton - "A estrutura da Composição em Guimarães Rosa", Ciclo de Conferências sobre Guimarães Rosa, Universidade Federal de Minas Gerais - Centro de Estudos Mineiros - Div. autores, Belo Horizonte, 1966, p. 47.
(11) SPINOSA, Êthique, trad. Appuhn, Paris, Garnier, 1958, II , prop. XXXV) escólio. Grifos nossos.         
(12) SARTRE, J . P. - Situations I, Paris, Gallimard, 1947, p. 314 . Grifos nossos.
(13) JUNG, Psychologie et Religion, op. cit., p. 172. Grifos nossos.
(14) JUNG, L'Ame et la Vie, Paris , Buchet/Chastel, 1963, p. 281.
(15) A título de ilustração da natureza especialmente "teórica" de certas falas que - por este motivo - chamamos"textos teóricos", confronte-se, entre outros: pág. 39 (projeção, amor, inconsciente, função da linguagem, homem interior e exterior) ; pág. 59 (Deus, vida, multiplicidade, dôr, nascimento-morte, inferno-diabo, Céu-fim) ; pág. 81 ("antes" e "hoje", Chefia, condição humana-encantamento, projeção) ; pág. 90 (Diadorim, vingança, diabo, "caminho certo", viver) ; pág. 270 (natureza mítica de Zé Bebelo, julgamento, centro, Joca Ramiro e Zé Rebelo) ; pág. 275 (natureza de Diadorim) ; págs. 292 e sgs. (dos mais importantes, síntese contendo "chaves" para quase todos os temas codificados) ; pág. 455-6 (diabo, pacto inegação) ; pág. 456 (processo, ética).
(16) Guimarães Rosa, Carta a Dora Ferreira da Silva, 19.2.1958, Cavalo Azul n.º 3, op. cit., p. 33. Grifos nosos.
(17) Krolow, Karl - "Brasilianisches Epos - João Guimarães Rosa: Corps de Ballet", Süddeutsche Zeitung,Francforte/s/Meno, 8.12.1966.
(18) ROSA, João Guimarães - Tutaméia - Terceiras Estórias, 3.ª ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1969, p. 153.       
 (19) Idem, p. 154. Grifos nossos.





terça-feira, 2 de setembro de 2014

Joyce Carol Oates produz obra-prima


"O lei­tor do ro­man­ce efe­ti­va­men­te não pre­ci­sa sa­ber que a his­tó­ria de Oa­tes é ba­se­a­da em fa­tos re­ais — fic­cio­na­li­za­dos pa­ra se­rem ilu­mi­na­dos, por­que o re­al sem um pou­co de luz extra, das co­res da fic­ção, di­ga­mos as­sim, per­de a gra­ça — pa­ra en­ten­der que se tra­ta de uma his­tó­ria po­de­ro­sa." 


Por Euler de França Belém

 "A Fi­lha do Co­vei­ro" (Al­fa­gu­a­ra, 599 pá­gi­nas, tra­du­ção afi­a­da de Ve­ra Ri­bei­ro), obra-pri­ma de Joyce Ca­rol Oa­tes, é um ro­man­ce que exi­be a be­le­za (Re­bec­ca Schwart, a mú­si­ca de Be­e­tho­ven) cer­ca­da por imen­sa dor (na­zis­mo ale­mão, in­to­le­rân­cia ame­ri­ca­na, vi­o­lên­cia fa­mi­liar). Uma tra­gé­dia gre­ga, con­ta­da por uma Dos­toi­évski que ves­te saia, com uma es­pé­cie de re­den­ção, mas não re­li­gi­o­sa, e sim ter­ri­vel­men­te hu­ma­na. 
Nu­ma en­tre­vis­ta ao "El Pa­ís", con­ce­di­da a An­drea Agui­lar, em ou­tu­bro de 2008, Oa­tes ex­pli­ca co­mo cons­tru­iu o ro­man­ce. Em maio de 1986, seu pai, sep­tu­a­ge­ná­rio, con­ta-lhe, ca­su­al­men­te, um se­gre­do de fa­mí­lia guar­da­do a se­te-cha­ves: a his­tó­ria de seu avô Mor­gen­stern que, de­pois de ati­rar na mu­lher, ma­tou-se com um ti­ro. Blan­che Mor­gen­stern, a fi­lha do ca­sal, es­ta­va no mes­mo re­cin­to. O bi­sa­vô de Oa­tes era co­vei­ro. No li­vro, a úni­ca pis­ta da­da pe­la es­cri­to­ra es­tá na de­di­ca­tó­ria: "Pa­ra mi­nha avó, Blan­che Mor­gen­stern, a 'fi­lha do co­vei­ro'". 
Pos­ta a in­for­ma­ção, o lei­tor po­de pen­sar que se tra­ta de uma bi­o­gra­fia e não de um ro­man­ce, o que não é, po­rém, cer­to. "A Fi­lha do Co­vei­ro" é uma be­la obra de fic­ção, mas, co­mo é ba­se­a­da em fa­tos re­ais, ex­pli­ca­dos e adensados pe­los am­plos re­cur­sos da fic­ção, que cria vi­da on­de os do­cu­men­tos e a me­mó­ria fa­lham, a pró­pria Oa­tes ex­pli­cou-se na en­tre­vis­ta ao "El Pa­ís". "A fic­ção e a au­to­bi­o­gra­fia — que ami­ú­de é uma me­mó­ria se­mi­fic­cio­na­li­za­da — são mei­os pa­ra ex­plo­rar o pas­sa­do. É pre­ci­so ima­gi­nar, mas não in­ven­tar; se há in­ven­ções, fic­ção pu­ra, is­so de­ve bro­tar do re­al, do que ver­da­dei­ra­men­te ocor­reu", dis­se Oa­tes. "En­fren­tei a his­tó­ria as­som­bro­sa da vi­da de mi­nha avó, mas não po­dia apro­pri­ar-me de­la di­re­ta­men­te por­que não sa­bia re­al­men­te na­da de pri­mei­ra mão. Só po­dia che­gar a ela de for­ma elíp­ti­ca e por in­ter­mé­dio da ar­te. Ain­da as­sim pen­so que a voz que ima­gi­nei pa­ra mi­nha avó re­fli­ta de for­ma exa­ta a sim­pa­tia, o pa­thos e a no­tá­vel re­sis­tên­cia de sua vi­da des­co­nhe­ci­da", acres­cen­ta a pro­sa­do­ra. "Um dos da­dos que Oa­tes des­co­nhe­cia so­bre Blan­che era sua as­cen­dên­cia ju­dia", re­ve­la An­drea Agui­lar. 
O lei­tor do ro­man­ce efe­ti­va­men­te não pre­ci­sa sa­ber que a his­tó­ria de Oa­tes é ba­se­a­da em fa­tos re­ais — fic­cio­na­li­za­dos pa­ra se­rem ilu­mi­na­dos, por­que o re­al sem um pou­co de luz extra, das co­res da fic­ção, di­ga­mos as­sim, per­de a gra­ça — pa­ra en­ten­der que se tra­ta de uma his­tó­ria po­de­ro­sa. 
Fu­gin­do dos am­plos ten­tá­cu­los do na­zis­mo de Hit­ler, o ca­sal Ja­cob e An­na Schwart che­gam aos Es­ta­dos Uni­dos, com três fi­lhos, Hers­chel, o mais ve­lho, Au­gust (Gus) e a caçula Re­bec­ca, que, nas­ci­da no na­vio, é ci­da­dã ame­ri­ca­na. Re­bec­ca é Blan­che Mor­gen­stern, a avó de Oa­tes. 
Na Ale­ma­nha, Ja­cob era pro­fes­sor de ma­te­má­ti­ca e lia fi­ló­so­fos, co­mo He­gel e Scho­pe­nhau­er, e An­na to­ca­va pi­a­no e ama­va a mú­si­ca de Be­e­tho­ven. Um ca­sal ju­deu de clas­se mé­dia. Nos Es­ta­dos Uni­dos, de­sen­ra­i­za­do, Ja­cob con­se­gue ape­nas o em­pre­go de co­vei­ro, em Mil­burn. 
Não era uma vi­da fá­cil, e ale­mã­es na­que­le tem­po, mes­mo não na­zis­tas e mes­mo ju­deus, eram exe­cra­dos pe­los nor­te-ame­ri­ca­nos, es­pe­ci­al­men­te os jo­vens. Pa­ra pro­te­ger a fa­mí­lia, Ja­cob ten­tou iso­lá-la do mun­do. Pro­i­biu a mu­lher de fa­lar ale­mão e obri­gou os fi­lhos a não te­rem ami­gos. Era co­mo se ti­ves­se in­ven­ta­do seu pró­prio gue­to. Mo­ra­vam nu­ma ca­si­nha su­ja e ve­lha no in­te­ri­or do ce­mi­té­rio. Não ra­ro a ca­sa e tú­mu­los eram pi­cha­dos com a su­ás­ti­ca na­zis­ta. Ja­cob fi­ca­va hor­ro­ri­za­do e ten­ta­va apa­gar a pre­sen­ça os­ten­si­va da in­to­le­rân­cia ame­ri­ca­na. 
Um dia, Ja­cob com­pra um rá­dio, mas não per­mi­te que nin­guém da fa­mí­lia o li­gue. Só o co­vei­ro po­de ou­vir as no­tí­cias, que o ir­ri­tam quan­do tra­tam das vi­tó­rias de Hit­ler. Quan­do Ja­cob sai, An­na às ve­zes cha­ma Re­bec­ca pa­ra ou­vir mú­si­ca eru­di­ta — o que, mais tar­de, vai mar­car a for­ma­ção do fi­lho de Re­bec­ca. 
Quan­do Hers­chel e Gus sa­em de ca­sa, fu­gin­do da ti­ra­nia do pai, ti­ra­nia com a qual acre­di­ta­va que pro­te­gia sua fa­mí­lia, Ja­cob, tal­vez por jul­gar que per­deu o con­tro­le da fa­mí­lia e por não ter cum­pri­do a pro­mes­sa de uma vi­da me­lhor pa­ra to­dos, ma­ta a en­tor­pe­ci­da An­na e se ma­ta. Re­bec­ca fi­ca vi­va, apa­ren­te­men­te por­que, sen­do ame­ri­ca­na, na­da se po­de­ria fa­zer con­tra ela, na vi­são do pai, uma ví­ti­ma tar­dia do na­zis­mo e de seus pró­prios me­dos. 
Com a mor­te do pai, Re­bec­ca re­nas­ce, por as­sim di­zer. Mas, an­tes de se tor­nar adul­ta, mo­ra na ca­sa de uma re­li­gi­o­sa, a pro­fes­so­ra apo­sen­ta­da Ro­se Lut­ter. Re­bec­ca sai de ca­sa, ain­da me­nor, por não su­por­tar a ca­ro­li­ce da tu­to­ra. 
Jun­ta-se a ami­gas e co­me­ça a tra­ba­lhar num ho­tel, co­mo ca­ma­rei­ra. Aí, de cer­to mo­do, des­co­bre o mun­do. Um hós­pe­de ten­ta es­tu­prá-la e ou­tro hós­pe­de, Ni­les Tig­nor, a protege. 
Tig­nor, ho­mem for­te e im­po­nen­te, con­quis­ta o co­ra­ção de Re­bec­ca, uma ga­ro­ta durona de 17 anos. Ca­sam-se. Tig­nor, con­quis­ta­dor in­ve­te­ra­do, diz que é re­pre­sen­tan­te de uma cer­ve­ja­ria e, no iní­cio, car­re­ga Re­bec­ca por vá­ri­as ci­da­des ame­ri­ca­nas. De­pois, ins­ta­la-a, grá­vi­da, nu­ma ca­sa ve­lha de fa­zen­da. Pa­ra ter o fi­lho, Ni­ley, Re­bec­ca pre­ci­sa da aju­da de vi­zi­nhos pa­ra le­vá-la ao hos­pi­tal. Tig­nor es­ta­va no mun­do e, co­mo não lhe da­va mais di­nhei­ro, Re­bec­ca te­ve de tra­ba­lhar na fá­bri­ca Tu­bos de Fi­bra Ni­á­ga­ra. Um tra­ba­lho du­ro, mas ne­ces­sá­rio. 
Com o tem­po, Tig­nor per­de o vi­ço e o em­pre­go, en­vol­ven­do-se com cri­mi­no­sos. Tor­na-se ciu­men­to e vi­o­len­to. Es­pan­ca bru­tal­men­te Re­bec­ca e o pe­que­no Ti­ley. Pa­ra so­bre­vi­ver e, so­bre­tu­do, sal­var o fi­lho, a co­ra­jo­sa Re­bec­ca es­pe­ra Tig­nor dor­mir e fo­ge. 
Pa­ra es­ca­par de Tig­nor, e tal­vez de sua pró­pria his­tó­ria fa­mi­liar ma­ca­bra, Re­bec­ca mo­ra em vá­ri­as ci­da­des dos Es­ta­dos Uni­dos. Nu­ma das ci­da­des, con­se­gue mu­dar seu no­me e o de Ni­ley. Ela pas­sa a se cha­mar Ha­zel Jo­nes e Ni­ley se tor­na Za­cha­ri­as Au­gust Jo­nes. Os dois rein­ven­ta­ram-se, pa­ra so­bre­vi­ver e se­guir no­vo ca­mi­nho. 
Nu­ma das ci­da­des pa­ra on­de se mu­dam, Re­bec­ca-Ha­zel co­nhe­ce o pi­a­nis­ta de jazz e jor­na­lis­ta Chet Gal­lag­her, fi­lho de uma es­pé­cie de Ro­ber­to Ma­ri­nho dos Es­ta­dos Uni­dos. 
Chet des­co­bre que Zack é apai­xo­na­do por pi­a­no e fi­nan­cia seus es­tu­dos. Sob ori­en­ta­ção de um pro­fes­sor ju­deu, Zack de­sen­vol­ve seu ta­len­to. Ha­zel ca­sa-se com Chet, mes­mo sem amá-lo. Bo­ni­ta e sen­su­al, Ha­zel é uma pre­sen­ça ilu­mi­na­do­ra — há um quê de fan­tas­mal ou má­gi­co nes­ta per­so­na­gem sólida como uma rocha. 
O vir­tu­o­se Zack en­can­ta a to­dos no mun­do do pi­a­no. Ha­zel fi­ca fe­liz com o su­ces­so do ga­ro­to, co­mo se fos­se um pre­sen­te tar­dio à sua mãe que, no par­di­ei­ro do ce­mi­té­rio, le­vou-a es­cu­tar a mú­si­ca "Ap­pas­sio­na­ta" de Be­e­tho­ven to­ca­da por Ar­thur Schna­bel. Num ra­ro mo­men­to de in­ti­mi­da­de, a la­cô­ni­ca An­na diz pa­ra a garota Re­bec­ca: "Quan­do eu era me­ni­na, na mi­nha ve­lha ter­ra [Munique, na Ale­ma­nha], to­ca­va es­sa ´Ap­pas­sio­na­ta'. Não co­mo o Schna­bel, não to­ca­va, mas ten­ta­va". Sem o sa­ber, ao to­car "Ap­pas­sio­na­ta", Zack ar­ran­cou An­na do tú­mu­lo e res­tau­rou o tem­po per­di­do. Um pe­da­ço de Re­bec­ca, que ha­via si­do am­pu­ta­do na in­fân­cia, po­de ser ins­ta­la­do em seu cor­po. 
Qua­se no fi­nal, há dois mo­men­tos di­la­ce­ran­tes. Gus vê Re­bec­ca, mas es­ta fin­ge que não o co­nhe­ce, por­que já era a ri­ca e protegida Ha­zel Jo­nes e não que­ria que o pas­sa­do vol­tas­se a as­som­brá-la — mais do que sua me­mó­ria im­pla­cá­vel a ator­men­ta­va. De­pois, des­co­bre que Freyda, a pri­ma que jul­ga­va mor­ta pe­lo na­zis­mo, é uma ci­en­tis­ta fa­mo­sa, au­to­ra de uma au­to­bi­o­gra­fia na qual con­ta a his­tó­ria de sua fa­mí­lia num cam­po de con­cen­tra­ção e ex­ter­mí­nio. Freyda esnoba a prima e, quando de­ci­de en­con­trá-la, é mui­to tar­de. Re­bec­ca-Ha­zel, com cân­cer, não tem mais condições de se comunicar.
Freyda es­cre­ve nu­ma car­ta aqui­lo que tal­vez re­su­ma o ro­man­ce: "Os fa­tos só são 'ver­da­dei­ros' de­pois de ex­pli­ca­dos". Fiz uma sín­te­se pá­li­da do ro­man­ce, mas na­da dis­se so­bre a for­ma po­de­ro­sa e su­til de Oa­tes narrar sua bela e dolorosa história. A lin­gua­gem do ro­man­ce é, de cer­to mo­do, sua mais po­de­ro­sa "per­so­na­gem".


segunda-feira, 4 de agosto de 2014

"Casa Tomada" - Julio Cortázar

“Casa Tomada bien podría representar todos mis miedos, o quizá, todas mis aversiones; 
en ese caso la interpretación antiperonista me parece bastante posible, 
emergiendo incluso inconscientemente”. Julio Cortázar

Não é à toa que Cortázar é considerado um grande escritor. “Casa Tomada” é um exemplo de sua maestria – do tipo “literatura fantástica”. A lembrar que o contexto histórico é deveras importante para compreender a obra desse argentino de coração. Portanto, há de se ter em consideração que a ditadura militar exerceu influência em sua vida e obra. 


Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância.
Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por volta das onze horas, eu deixava para Irene os últimos quartos para repassar e ia para a cozinha. O almoço era ao meio-dia, sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos. Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem motivos maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a inexpressada ideia de que o nosso simples e silencioso casamento de irmãos era uma necessária clausura da genealogia assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali morreríamos algum dia, preguiçosos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos com toda justiça, antes que fosse tarde demais.
Irene era uma jovem nascida para não incomodar ninguém. Fora sua atividade matinal, ela passava o resto do dia tricotando no sofá do seu quarto. Não sei por que tricotava tanto, eu penso que as mulheres tricotam quando consideram que essa tarefa é um pretexto para não fazerem nada. Irene não era assim, tricotava coisas sempre necessárias, casacos para o inverno, meias para mim, xales e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete e depois o desfazia num instante porque alguma coisa lhe desagradava; era engraçado ver na cestinha aquele monte de lã encrespada resistindo a perder sua forma anterior. Aos sábados eu ia ao centro para comprar lã; Irene confiava no meu bom gosto, sentia prazer com as cores e jamais tive que devolver as madeixas. Eu aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em vão se havia novidades de literatura francesa. Desde 1939 não chegava nada valioso na Argentina. Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não tenho nenhuma importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem o tricô. A gente pode reler um livro, mas quando um casaco está terminado não se pode repetir sem escândalo. Certo dia encontrei numa gaveta da cômoda xales brancos, verdes, lilases, cobertos de naftalina, empilhados como num armarinho; não tive coragem de lhe perguntar o que pensava fazer com eles. Não precisávamos ganhar a vida, todos os meses chegava dinheiro dos campos que ia sempre aumentando. Mas era só o tricô que distraía Irene, ela mostrava uma destreza maravilhosa e eu passava horas olhando suas mãos como puas prateadas, agulhas indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão onde se agitavam constantemente os novelos. Era muito bonito.
Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de jantar, lima sala com gobelins, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá para a rua Rodríguez Pena. Somente um corredor com sua maciça porta de mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos e o salão central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um corredor de azulejos de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do salão. De forma que as pessoas entravam pelo corredor, abriam a cancela e passavam para o salão; havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava para a parte mais afastada; avançando pelo corredor atravessava-se a porta de mogno e um pouco mais além começava o outro lado da casa, também se podia girar à esquerda justamente antes da porta e seguir pelo corredor mais estreito que levava para a cozinha e para o banheiro. Quando a porta estava aberta, as pessoas percebiam que a casa era muito grande; porque, do contrário, dava a impressão de ser um apartamento dos que agora estão construindo, mal dá para mexer-se; Irene e eu vivíamos sempre nessa parte da casa, quase nunca chegávamos além da porta de mogno, a não ser para fazer a limpeza, pois é incrível como se junta pó nos móveis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa; mas isso é graças aos seus habitantes e não a outra coisa. Há poeira demais no ar, mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e entre os losangos das toalhas de macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador, ele voa e fica suspenso no ar um momento e depois se deposita novamente nos móveis e nos pianos.
Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando no seu quarto, por volta das oito da noite, e de repente tive a ideia de colocar no fogo a chaleira para o chimarrão. Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que levava daqueles quartos até a porta. Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais, fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança.
Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do chimarrão, falei para Irene:
— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.
Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves e cansados olhos.
— Tem certeza?
Assenti.
— Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado. 
Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela demorou um instante para retornar à sua tarefa. Lembro-me de que ela estava tricotando um colete cinza; eu gostava desse colete.
Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de Hesperidina de muitos anos. Freqüentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias) fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos olhávamos com tristeza. 
— Não está aqui.
E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro lado da casa.
Porém também tivemos algumas vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que, embora levantássemos bem mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das onze horas já estávamos de braços cruzados. Irene foi se acostumando a ir junto comigo à cozinha para me ajudar a preparar o almoço. Depois de pensar muito, decidimos isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos para comermos frios à noite. Ficamos felizes, pois era sempre incômodo ter que abandonar os quartos à tardinha para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no quarto de Irene e as travessas de comida fria.
Irene estava contente porque sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco perdido por causa dos livros, mas, para não afligir minha irmã, resolvi rever a coleção de selos do papai, e isso me serviu para matar o tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene que era o mais confortável. Às vezes Irene falava:
— Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um desenho de um trevo?
Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho de papel para que olhasse o mérito de algum selo de Eupen e Malmédy. Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar.
(Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca pude me acostumar a essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta. Irene falava que meus sonhos consistiam em grandes sacudidas que às vezes faziam cair o cobertor ao chão. Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à noite ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouvíamos nossa respiração, a tosse, pressentíamos os gestos que aproximavam a mão do interruptor da lâmpada, as mútuas e freqüentes insônias.
Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas de tricô, um rangido ao passar as folhas do álbum filatélico. A porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na cozinha e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada, falávamos em voz mais alta ou Irene cantava canções de ninar. Numa cozinha há bastante barulho da louça e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos para os quartos e para o salão, a casa ficava calada e com pouca luz, até pisávamos devagar para não incomodar-nos. Creio que era por isso que, à noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono.) 
É quase repetir a mesma coisa menos as conseqüências. Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu disse a Irene que ia até a cozinha pegar um copo d'água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha ou talvez no banheiro, porque a curva do corredor abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha maneira brusca de deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo claramente que eram deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a curva, quase ao nosso lado.
Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta cancela, sem olhar para trás. Os ruídos se ouviam cada vez mais fortes, porém surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor. Agora não se ouvia nada.
— Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até a cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar para ele.
— Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.
— Não, nada.
Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde.
Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a ideia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.


segunda-feira, 21 de julho de 2014

"No hay nada más despreciable que usar el sufrimiento y el martirio para tentar justificar la brutalidade"





“Não gosto de usar as credenciais de judeu filho de pais que estiveram em campos de concentração. Meu falecido pai esteve em Auschwitz, minha falecida mãe esteve  em Majdanek. Todos os membros da minha família, em ambos os lados, foram exterminados. Os meus dois pais estiveram nas revoltas do gueto Polonês. E é exatamente por causa das lições que meus pais ensinaram a mim e aos meus irmãos que eu não vou ficar calado quando Israel cometer seus crimes contra os Palestinos. Considero que não há nada mais desprezível do que usar o sofrimento e a morte deles para tentar justificar a tortura, a brutalidade, a demolição de lares que Israel comete diariamente contra os Palestinos. Me recuso a continuar a ser intimidado por lágrimas  [dos judeus que invocam o Holocausto para atacar os palestinos]. Se vocês tivessem coração estariam chorando pelos palestinos, não pelas metralhadoras israelenses.”


terça-feira, 1 de julho de 2014


“Poesia é voar fora da asa.”

Manoel de Barros