O primeiro canto

O primeiro canto

domingo, 12 de novembro de 2017

A aposta de Fausto e o processo da Modernidade


Imagem do filme Fausto. Direção: F.W. Murnau

A aposta de Fausto e o processo da Modernidade: figurações da sociedade e da metrópole contemporâneas na tragédia de Goethe
  
Michael Jaeger


"OH, PÁRA!" – nessa única exclamação de Fausto reverbera todo o potencial de felicidade e infelicidade da tragédia goethiana. Desvinculada de seu contexto, poder-se-ia pensar que se trata do suspiro de um ser esgotado ou do anelo de um solitário; nesse caso, a exclamação "Oh, pára!" seria um sinal de vida, palavras de alguém que, imerso no torvelinho ininterrupto da existência, suplica por uma trégua para respirar. Se complementarmos o semiverso no texto de Goethe, poderá resultar daí até mesmo uma expressão de ânsia amorosa: "Oh, pára! és tão formoso!".1 Tais significados podem muito bem estar presentes no discurso de Fausto, mas são desviados para uma dimensão subconsciente, pois o verso "Oh, pára! és tão formoso!" representa, antes de mais nada, o componente decisivo daquela aposta diabólica que Fausto fecha com Mefistófeles:

Se vier um dia em que ao momento 
Disser: Oh, pára! és tão formoso! 
Então algema-me a contento, 
Então pereço venturoso! 
Repique o sino derradeiro, 
A teu serviço ponhas fim, 
Pare a hora então, caia o ponteiro, 
O Tempo acabe para mim! (v.1.699-1.706)2

Aos olhos de Fausto, aquele "Oh, pára!" não constitui nenhuma manifestação de vida ou de amor, mas sim um sinal de morte. Pois o momento em que ele desejasse parar, quisesse deter-se porque a existência se lhe afigurasse bela e ele se mostrasse satisfeito com a realidade presente, esse momento deveria ser ao mesmo tempo o de sua morte – o instante, portanto, em que Mefisto, zeloso servo de Fausto durante o seu tempo de vida, assumiria domínio irrestrito sobre sua alma.
O texto de Goethe conhece diversas variações daquela proibição de paz e repouso em face do belo, proibição essa que resulta do pacto entre Fausto e Mefisto. Para citar apenas alguns exemplos: "E mais maldita ainda, a paciência!" (v.1.606), ou "De qualquer forma sou escravo" (v.1.710), ou "Saciemo-nos no efêmero momento, / No giro rápido do evento!" (v.1.754-1.755), ou "Entrego-me ao delírio, ao mais cruciante gozo" (v.1.766) e, finalmente, "Este aqui maldito!" (v.11.233). Todo "aqui", todo existir consciente no aqui e no agora é sem valor, árido, morto. Somente aquilo que não está dado, que não se encontra à disposição, apenas o ainda-não-existente é o que atrai e promete a verdadeira vida. Torna-se evidente que dessa proibição do deter-se resulta um culto da velocidade, da inovação desenfreada, da tropelia permanente de imagens e sensações.
Quem de nós, vivendo nos dias de hoje, poderia furtar-se à consciência de que a fórmula fáustica do pacto e da aposta, introjetada já desde muito tempo, determina o nosso comportamento cotidiano? Abre-se diante de nós a possibilidade de enxergar no processo de negação permanente de toda reflexão serena e detida, voltada ao existente, a lei estrutural da moderna sensação de tempo. Inúmeros exemplos do mundo atual das comunicações, do consumo, da economia e da política poderiam ser arrolados aqui para ilustrar a desvalorização de todo momento presente, de todo real efetivo, assim como para demonstrar a atração do não-existente.
Na atual sociedade dominada pela informação e pela mídia, a negação de todos os dados presentes é intensificada até o extremo. Mal ganham forma as imagens e notícias, e de imediato já se vêem desvalorizadas, descartadas pelo seu mero existir. O fluxo permanente, cada vez mais veloz, de imagens, sons, dados e notícias voa sem interrupção, de maneira sempre renovada, rumo à próxima sensação. No mundo das vertiginosas alternâncias de imagens e dos ritmos acelerados que as acompanham, todo deter-se por parte da consciência contemplativa e reflexiva tornou-se, de fato, impossível; não há mais nenhum momento que possa subtrair-se ao furor dinâmico impulsionado pela negação incessante do presente. O pacto de Fausto com Mefisto parece, portanto, exprimir em versão literária e, ao mesmo tempo, de modo preciso e concreto, a lei estrutural da modernidade e, por conseguinte, também do nosso mundo atual.
A Fausto não é possível e nem permitido contentar-se – primeiramente em seu ímpeto por conhecimento e, depois, em sua desesperada obsessão de entretenimento (ou, antes, atordoamento). Ele quer saber tudo, em primeiro lugar coisas novas, possuir continuamente outras coisas, ver imagens inéditas, cada vez mais espetaculares. Em sua vontade de exercer poder sobre a Vida, ele cobiça manipular incondicionalmente os seus elementos – e, em virtude dessa exigência desmedida, fica à mercê do diabo. A proibição fáustica do deter-se, a negação de tudo o que existe no aqui e agora, da realidade momentânea, e o seu almejo insaciável pelo ainda-não-existente, por aquilo que ele não possui, essa disposição de consciência é representada por Mefistófeles. Ao fazer do demônio, na figura de Mefisto, uma valência psíquica de Fausto, Goethe moderniza uma tradição antiqüíssima, proveniente do século XVI, isto é, a história daquele doutor Fausto que, em seu frenético ímpeto por conhecimento e domínio, acaba fazendo um pacto com o demônio.3
Acompanhado pelo ominoso poodle, Fausto retorna do passeio de Páscoa para o seu solitário gabinete de estudos, onde então Mefisto, sob intensa liberação de fumaça, desentranha-se do cão e apresenta-se como um princípio espiritual, no sentido daquela psicologização:

O Gênio sou que sempre nega! 
E com razão; tudo o que vem a ser 
É digno só de perecer; 
Seria, pois, melhor, nada vir a ser mais. 
Por isso, tudo a que chamais 
De destruição, pecado, o mal, 
Meu elemento é, integral. (v.1.338-1.344)

Esse auto-apresentar-se do espírito da negação tem conseqüências, já que pouco depois Fausto sucumbe à tentação de negar tudo. Pois na aposta, ou no pacto que fecha com o espírito da negação, Fausto converte-se por sua vez em espírito que nega todo existir no presente, nega em si todo momento e todo deter-se consciente e reflexivo, porque de antemão nada do que existe pode satisfazer as suas exigências, e, em conseqüência, revela-se digno de perecer. Se todo deter-se no presente está ameaçado de morte, a angústia perante essa ameaça mortal dá origem a um furor voltado ao consumo da realidade, à demanda de mundo – poder-se-ia falar até mesmo de uma embriaguez de consumo impelida de maneira fóbica. Margarida é a primeira vítima real dessa compulsão de devorar todo o existente, e é também ela que tem a percepção de Fausto e Mefisto como os dois lados de uma mesma medalha. Palavras de Margarida no cárcere, ao perceber Mefisto atrás de Fausto que, a bem da verdade, veio com a intenção de libertá-la:

Que surge do solo lá fora? 
Ele! é ele! Vem repeli-lo! 
Que busca no sagrado asilo? 
Busca-me a mim! (v.4.601-4.604)

Fausto não pode absolutamente repelir Mefisto, mandá-lo embora, uma vez que o tem sempre junto a si em sua angústia em relação ao deter-se e em sua obsessão de consumir pela negação tudo o que existe. E esse Fausto mefistofélico quer efetivamente Margarida, ele a quer devorar, sob o domínio do "apetite" pelo seu corpo (v.2.603). Por isso, exclama Margarida: "Henrique! aterro-me contigo!" (v.4.610).
O horror infundido por Fausto deriva, contudo, de sua angústia, da disposição mefistofélica que o compele a devorar todo ser presente, como deve portar-se um espírito que nega continuamente o real, para que não pereça no primeiro momento de comunhão com a realidade do ser, no primeiro gesto do demorar-se e admirar, quando então viesse a exclamar: "Oh, pára! és tão formoso!". Tudo o que acontece na tragédia – e as exceções confirmam a regra – está a serviço das tentativas de Fausto para, por meio da negação do momentaneamente existente, recalcar o seu medo mórbido perante o deter-se, o demorar-se no instante.
E para essa atitude ininterrupta de recalcamento fica valendo a constatação de caráter histórico: Goethe converte o Fausto mefistofélico em arquétipo da disposição de consciência característica de uma Modernidade que principia na segunda metade do século XVIII e alcança o seu apogeu, ou possivelmente a sua fase final, nos dias que hoje vivemos. Essa época moderna encontra-se sob o signo de dois específicos fenômenos revolucionários, a saber, o permanente revolucionamento político na Europa, que se inicia com a Revolução Francesa, e a permanente revolução econômica nas condições e relações de vida, encetada pela maquinaria do industrialismo no início do século XIX. O texto completo do Fausto goethiano surge entre 1770 e 1831, exatamente sob esse pano de fundo político-econômico.4 Em Fausto. Um fragmento, publicado em 1790 e assinalando o início da história editorial do texto goethiano, são inequívocas as alusões à incipiente Revolução Francesa. E quarenta anos depois, sob o impacto da Revolução Parisiense de julho de 1830, Goethe conclui o trabalho de sua vida no manuscrito fáustico, mas não sem depositar nos lábios do seu herói dramático as posições mais atuais, mais "modernas" dessa era das revoluções.5 Tanto para a revolução política como para a revolução econômica dessa época, o princípio da negação é constitutivo. Isso se torna particularmente evidente no âmbito da política revolucionária, a qual nega continuamente o estado de coisas vigente, reconhecido como corrupto e, portanto, como inimigo mortal. Na consciência dos revolucionários, o processo movido pela revolução é idêntico ao processo do movimento histórico. As sentenças proferidas pelos tribunais da Revolução, assim o quer a autoconsciência revolucionária, estão integradas à lógica processual da história e, como negação permanente do respectivo presente político e social, promovem e executam o progresso.
Ao mesmo tempo, porém, o princípio da negação vigora para a revolução econômica da Modernidade, que concebe tudo o que existe no presente como mercadoria, como produto, e surge perante este como espírito que sempre nega, pois tudo que é produzido e lançado no mercado é igualmente digno de logo perecer, de modo a que o processo do desenvolvimento econômico não caia na imobilidade. Assim como o diabo teme a água benta, assim tanto o revolucionário político como o revolucionário econômico, industrial, temem o deter-se. Jamais dirão a um momento, a um estado de coisas, a um produto, aquelas palavras de plenitude e satisfação – "Oh, pára! és tão formoso!" –, pois sempre têm em mira a atração do outro, do não existente, do futuro.6
O espírito desse Fausto-Mefisto, espírito que sempre nega, é a imagem literária de Goethe para o pensamento processual que caracteriza a Modernidade, o qual nega todo o existente com vistas ao novo, o ainda-não-existente, o melhor, e tão logo este surja e esteja dado, é por seu turno condenado como insuficiente em nome de um inatingível estado de felicidade localizado sempre no futuro, de modo a logo ser obrigado a "perecer". Esse processo dinâmico da revolução política e econômica, que reúne em si os momentos da negação e inovação, caminha ad infinitum. Por tal motivo, pode Mefisto dizer de Fausto, este arquétipo da revolução moderna:

E já te prendo em meu enlace. 
Deu-lhe o destino um gênio ardente 
Que, invicto, aspira para a frente 
E, em precipitação fugace, 
Da terra o Bom transpõe, fremente. (v.1.855-1.859)

"Sempre para a frente" – assim se formula a palavra de ordem progressista típica da época.7 A despeito das notas críticas que ressoam no texto goethiano, em consonância com as quais a aspiração de Fausto se mostra sempre frenética e desgostosa, uma vez que ele jamais consegue deter-se no "Bom", nas alegrias presentes, mas salta imediatamente sobre essas no anseio por prazeres novos, melhores, futuros – a despeito de tais notas críticas subliminares, Fausto foi considerado até recentemente como representante do modelo de progresso da Modernidade e de suas esperanças profanas de redenção. No acervo de citações dessa tendência exegética, entraram versos do ativismo fáustico: "Patenteia-se o homem na incessante ação" (v.1.759), "Ao homem apto, este mundo acomoda" (v.11.446), "No avanço, encontre ele êxtase ou tormento, / Insatisfeito embora, hoje e a qualquer momento!" (v.11.451-11.452).8
E, de fato, Goethe mostra a aspiração fáustica, sobretudo na segunda parte do drama, nos mais importantes estádios do moderno revolucionamento das condições e relações de vida. Mostra-a no Palatinado Imperial, onde Fausto e Mefisto introduzem o papel-moeda e deflagram o fluxo de capital que varre do mapa o velho mundo do feudalismo e financia os gigantescos projetos técnicos, industriais e de transportes da Modernidade. É-nos dado olhar dentro do laboratório do Dr. Wagner, o antigo fâmulo de Fausto, onde um homem está sendo criado nas retortas. Essa produção técnico-industrial de um ser humano (clonagem, como se diria hoje) configura-se como verdadeira meta daquele projeto da Modernidade de negar a primeira criação, a existência que deriva da Natureza, e substituí-la pela segunda criação, que é um produto do moderno processo de produção.
No final do drama, Fausto nos dá um exemplo dessa revolução moderna e, portanto, da inversão de todas as relações naturais e de produção. Nós o vemos primeiramente na orla marítima, onde ele manifesta o desejo de lutar contra as ondas, lutar contra os elementos e submetê-los ao princípio industrial de produtividade e desempenho (ver v.10.198 e seguintes); e nas últimas cenas terrenas da tragédia nós o vemos numa nova terra, que ele conquistou ao mar por intermédio de colossais construções de diques e canais. Nesse mundo novo, artificialmente produzido, ouvimo-lo por fim pronunciar os famosos versos:

Sim! da razão isto é a suprema luz, 
A esse sentido, enfim, me entrego ardente: 
À liberdade e à vida só faz jus, 
Quem tem de conquistá-las diariamente. 
E assim, passam em luta e em destemor, 
Criança, adulto e ancião, seus anos de labor. 
Quisera eu ver tal povoamento novo, 
E em solo livre ver-me em meio a um livre povo. (v.11.573-11.580)

No final, a aposta fáustica, a negação da permanência, passa a vigorar por toda parte. Contemplamos então a imensa história de sucesso do moderno ideal de movimentação, ao qual obedece agora toda a sociedade – "criança, adulto e ancião" – e esta é uma história de êxito não apenas no enredo dramático. Pois no Fausto de Goethe, em especial na sua segunda parte, podemos reconhecer também a expressão literária de nossa sociedade moderna, a prefiguração do ritmo vertiginoso das metrópoles contemporâneas, uma Brasília, por exemplo, erigida num esforço titânico em pouquíssimo tempo. Essa capital, aliás, poderia ter sido construída por Fausto, uma vez que não está distante de seu ideal desenvolvimentista, não seria estranha ao seu projeto colonizatório, que Goethe configura, porém, de modo irônico como espécie de utopia de uma modernidade que viria a ter o seu símbolo mais ostensivo justamente na arquitetura. Como na colônia de Fausto, também nas metrópoles atuais impera a vontade construtivista do homem moderno, e não seria surpreendente se, em meio a anotações do arquiteto da capital brasileira, por exemplo, se encontrassem pensamentos de inspiração genuinamente fáustica.
Seria lícito sustentar assim que a utopia de dinamismo que na tragédia goethiana deriva do pacto – "Quisera eu ver tal povoamento novo" – tenha se convertido nesse meio tempo em realidade: hoje não há nenhuma região da consciência, nenhum lugar, mesmo entre os mais isolados da Terra, que não tenha sido alcançado pela moderna negação do deter-se, já que o mundo todo se assemelha àquele "povoamento novo" que fervilha em movimentos cada vez mais acelerados de imagens, dados, finanças, consumo e transportes.
A uma utopia, contudo, não pode acontecer nada pior do que ser colocada em prática, uma vez que ela perde assim a fascinante aura da promessa redentora. Ao longo de 150 anos, Fausto foi festejado como personagem de identificação; mas, desde que sua utopia daquele povoamento fervilhante tornou-se realidade, vivenciamos uma mudança de paradigma na exegese do drama, uma vez que descobrimos o seu potencial crítico e, desse modo, passamos a nos perguntar o que seria assim tão pernicioso no deter-se, no demorar-se no presente. Por que tudo o que existe precisa ser permanentemente desvalorizado, por que todo espaço de repouso e serenidade tem de ser colonizado no sentido da moderna lei do dinamismo e arrastado para aquele fervilhar generalizado? Quais são os custos reais – assim nos perguntamos hoje em dia – do princípio moderno da intensificação incessante do movimento; quem e o que é atropelado pela mobilização geral a serviço da permanente negação do presente? Na tragédia goethiana são, ao lado de Margarida e de um Peregrino – possivelmente o próprio Goethe –, os dois anciãos, Filemon e Baucis, que vão parar debaixo das rodas, pois não podem integrar-se tão depressa assim ao novo ritmo, e tampouco querem integrar-se porque representam uma cultura inteiramente diferente, isto é, a cultura do deter-se calmo, da serenidade, e, por conseqüência, atraem sobre si o furor fáustico da negação.
No nosso mundo determinado por ritmos dinâmicos inescapáveis e de validade global, em que a exclamação "Oh, pára!", agora de maneira inteiramente não-fáustica, não mais nos surge como sinal de morte, mas sim de vida, nessa situação atual nós nos perguntamos se a famosa aspiração de Fausto por aquele povoamento final não representa antes um desnorteamento, a rota para um beco sem saída, para o "eterno-vazio", o qual se nos escancara então como Horror vacui, uma vez que nos foi negado e suprimido todo ponto de repouso e, de modo geral, tudo o que existe no presente.
Paradoxalmente são tais questões atuais e candentes que a tradição da história fáustica traz de volta à nossa lembrança. Desde o século XVI, a história de Fausto vem se configurando como um tema popular com variações específicas de cada época, não apenas na literatura, mas também na música e, sobretudo, nas artes plásticas, âmbito este ao qual será lançado um breve olhar à guisa de conclusão.
O drama goethiano sempre ofereceu às diferentes épocas o modelo literária para a elucidação da respectiva auto-imagem mediante um questionamento tipicamente fáustico: quão longe podemos ir na satisfação de nossas necessidades? Haveria um limite à nossa aspiração por felicidade, riqueza e domínio? Caso haja esse limite, onde começaria o pacto demoníaco? Tais questões encerram o problema antropológico fundamental de determinar a relação entre Eu e mundo, subjetividade e objetividade – e a esse problema Goethe confere forma literária concreta em sua nova modulação do tema fáustico na primeira parte da tragédia, mais precisamente por meio da contundente pergunta que Gretchen dirige a Fausto: "Dize-me, pois, como é com a religião?" (v.3.415). Já no final da segunda parte da tragédia, parece ser o próprio Goethe que, no gesto típico do iluminista que exorta à auto-reflexão crítica, dirige à Modernidade, num sentido mais amplo, aquela pergunta de Gretchen: Seria possível uma vida inteiramente desprovida de religião? Na perspectiva da velhice, religião não deve ser entendida num sentido ortodoxo, mas sim na chave geral de uma espiritualidade sincrética, pós-crítica e pós-iluminista, tal como caracteriza as paragens venturosas de Filemon e Baucis sob o signo do "eterno Deus" (v.11.142) – paragens, contudo, que serão extintas pelo moderno projeto colonizador de Fausto. Esse mesmo sincretismo espiritual irá caracterizar depois os enigmáticos versos "celestiais" no final da tragédia. No horizonte aberto da obra de velhice Fausto II e na consciência da ruptura revolucionária com a tradição, a atualização goethiana da pergunta de Gretchen se formula em relação à possibilidade de uma vida desprovida de todo e qualquer pensamento de transcendência, tal como se expressa nas palavras de Fausto: "Que importam do outro mundo os embaraços?" (v.1.660), "À nossa vista cerra-se o outro mundo; / Parvo quem para lá o olhar alteia" (v.11.442-11.443). Haveria ainda algo sagrado para nós, para a nossa cultura – assim se coloca hoje a pergunta de Gretchen –, sagrado, porém, numa concepção mais geral; haveria algo de valor insofismável e insubstituível, perante o qual é imperioso deter-se, sobre o qual o fervilhamento generalizado e global não deveria passar exercendo o recalque e a negação? Hoje, portanto, a pergunta de Gretchen que nos é dirigida, à aspiração fáustica em nosso íntimo, diz: "Haveria ainda um tabu?".
A pergunta que Margarida dirige a Fausto é atemporal, uma vez que cada época define a sua auto-imagem por intermédio dessa pergunta, passando primeiramente pela determinação da relação entre religiosidade e profanidade – uma relação, contudo, que no horizonte literário da tragédia de Goethe deve ser compreendida como expressão concreta e ao mesmo tempo simbólica dos liames mais gerais e profundos entre o "deter-se" e o "aspirar", entre repouso e movimento, reflexão e ação, contemplação mundana e revolução mundial.
Como, porém, se formula a resposta goethiana à pergunta de Gretchen? Goethe nunca foi particularmente pio, pelo menos não em sentido confessional, motivo pelo qual sempre foi hostilizado pela ortodoxia teológica e seus partidos radicais, que o consideravam representante típico de uma civilização moderna iluminista-liberal e alheia à religião ("ateísta"). Mas, apesar dessa imagem hostil, na perspectiva de uma história das idéias se haverá de constatar: religioso de um modo mais amplo, isso Goethe certamente foi, ou seja, naquela acepção original e literal da religio como veneração espiritual perante o que é indisponível e inacessível à vontade humana de poder, perante aquilo a que Goethe pôde dar o nome decididamente não-ortodoxo de "Eterno-feminino" e que ele encontrava sobretudo na contemplação da Natureza, "in herbis et lapidibus" – muito ao contrário da impulsiva e obcecada vontade fáustica de arrancar a Ísis o seu véu, de agarrar-se ao seio da Natureza (v.455 e seguintes) e submetê-la ao seu projeto de colonização e progresso. E é no sentido dessa espiritualidade livre, interpretável tanto em chave religiosa como na filosófica, que se há de compreender aquele fundamental verso místico no final da tragédia: "Tudo o que é efêmero / É apenas pré-existência".
Aquém da mística não-convencional e da contemplação espiritual da Natureza, a resposta de Goethe à pergunta de Gretchen pela relação entre "deter-se" e "aspirar" – pergunta tão virulenta em tempos de crises e rupturas – pode ser percebida na Arte, e de maneira particularmente nítida em seu Fausto. Pois a concreta resposta goethiana ao moderno furor de negação, colonização e movimento foi a própria Arte, e em especial uma arte inteiramente alheia ao ideal moderno de dinamicidade e progresso, mas que, em vez disso, reverencia o ideal do Classicismo, precisamente aquele momento do deter-se contemplativo-reflexivo, ou mesmo espiritual, em face do Belo, o qual Fausto amaldiçoa em sua angústia mórbida. É o próprio Kairós da filosofia antiga e de suas doutrinas eudemonistas, o momento pleno do reconhecimento do verdadeiramente existente – um ideal, portanto, que não pode ser superado por nada, por nenhum progresso e por nenhuma das deslumbrantes promessas do futuro. Esse ideal de consciência, vida, felicidade e beleza porta, na tragédia goethiana, o nome de Helena. A Fausto é dado contemplar Helena, a mais bela mulher, vê-la na Grécia, em um lugar por assim dizer extraterritorial, num interlúdio do drama. E na Arcádia, ao lado de Helena, vigora a sentença: "Somente o presente é a nossa felicidade". É esse o ideal de vida goethiano.9 É a inversão exata do pacto, da regra fáustica segundo a qual se deveria dizer: "Somente o presente é a nossa infelicidade", motivo pelo qual nós, contemporâneos modernos no espírito de Fausto, não podemos nos deter nem por um instante sequer e temos de marchar para o ainda-não-existente como que sobre um chão em brasas, sempre acossados pelos ritmos inexoráveis de uma dinâmica onipresente, sempre insatisfeitos, em permanente inquietação, em meio a uma caçada infindável pela riqueza e felicidade presumivelmente sempre maiores, que jamais se oferecem no presente, pois se evadindo sem cessar para o futuro. 
Essa dimensão frenética e vertiginosa que Goethe, movido por inequívoca intenção crítica, imprimiu à tragédia fáustica foi captada com grande sensibilidade por alguns de seus ilustradores, e cumpriria mencionar aqui, em primeiro lugar, o pintor francês Eugène Delacroix (1798-1863). Com efeito, a disposição para a inquietude, a obsessão impulsiva por agitação, a embriaguez de velocidade como marca característica da existência tipicamente moderna de Fausto – tudo isso foi convertido em imagem, com extrema intensidade e pregnância, no ciclo de dezessete litografias que Delacroix concluiu em 1828 e que originalmente ilustraram a tradução francesa de Frédéric Stapfer, publicada nesse mesmo ano.10
Quanto ao Fausto II, destacam-se certamente as ilustrações realizadas por Max Beckmann (143 desenhos a bico-de-pena) entre 15 de abril de 1943 e 15 de fevereiro de 1944 em Amsterdã, cidade de seu exílio entre 1937 e 1947. Pouco mais de um século após a publicação da segunda parte da tragédia, Beckmann, um dos mais relevantes artistas do século XX, retoma o olhar crítico que Goethe lançou sobre os inícios da nova era e o traduz, em suas ilustrações do Fausto, na auto-reflexão crítica do artista moderno e, indo mais além, na auto-reflexão crítica da Modernidade como tal. Os desenhos de Beckmann, não raro com traços de auto-retrato, mostram Fausto como personalidade dilacerada, exemplarmente moderna, cujo estado de consciência corresponde à crítica situação do mundo contemporâneo. Dificilmente se poderia conceber antinomia mais expressiva às interpretações otimistas (e "perfectibilistas") do Fausto do que esses retratos de Beckmann que lançam o homem moderno num universo de insegurança, angústia e apreensão. De modo conseqüente, o artista baniu essa atmosfera sombria apenas dos desenhos da clássica natureza arcádica, repetindo de maneira exata a frágil, possivelmente resignada reflexividade na constelação criada por Goethe. E, no sentido dessa correspondência congenial entre literatura e artes plásticas, valeria observar, por fim: do mesmo modo como os místicos versos finais de Goethe, também as imagens finais, e não menos místicas, de Beckmann são inteiramente inacessíveis à lógica processual da moderna ideologia do progresso e às suas promessas secularizadas de felicidade e redenção.11

Notas
1 As citações seguem a edição Faust. Eine Tragödie preparada por Albrecht Schöne (Frankfurt, 1994). A versão em português dos versos citados corresponde à tradução de Jenny Klabin Segall publicada em 2004 (Fausto. Uma tragédia – Primeira Parte) e 2007 (Fausto. Uma tragédia – Segunda Parte).
2 A proibição do "parar", do "deter-se", é precedida pelo fechamento da aposta entre Fausto e Mefistófeles: "FAUSTO: Se eu me estirar jamais num leito de lazer, / Acabe-se comigo, já! / Se me lograres com deleite / E adulação falsa e sonora, / Para que o próprio Eu preze e aceite, / Seja-me aquela a última hora! Aposto, e tu? MEFISTÓFELES: Topo!" (v.1.692-1.698). A aposta, por seu turno, decorre da conjectura de Fausto acerca de um possível pacto que o vincularia a Mefisto: "FAUSTO: O inferno, até, tem leis? mas, bravos! / Podemos, pois, firmar convosco algum contrato, / Sem medo de anular-se o pacto?" (v.1.413-1.415).
3 Quanto à proveniência da figura de Fausto a partir do ambiente teológico e protestante do século XVI, e ainda quanto à tradição dos livros históricos sobre o Doutor Fausto, ver o estudo de Jochen Schmidt Goethes Faust. Erster und Zweiter Teil. Grundlagen. Werk. Wirkung [O Fausto de Goethe.Primeira e segunda partes. Fundamentos. Obra. Efeito] (Munique, 2001, p.11-33). Ver também, à p.122 e seguintes, a elucidação que faz Schmidt, com fundamentos históricos, da modernização da arcaica figura do diabo, levada a cabo por Goethe ao fazer de Mefisto uma valência psíquica de Fausto. Na perspectiva dessa psicologização, as conversas entre Fausto e Mefisto podem ser entendidas como monólogos daquele.
4 Sobre esse período revolucionário na Europa como pano de fundo da tragédia e, de um modo geral, sobre a fenomenologia goethiana da incipiente Modernidade, ver o meu estudo Fausts Kolonie – Goethes kritische Phänomenologie der Moderne [A colônia de Fausto – A fenomenologia crítica da modernidade empreendida por Goethe] (Würzburg, 2004).
5 Isso foi demonstrado de maneira particularmente expressiva no caso das doutrinas pré-socialistas e industrialistas de Saint-Simon e dos sant-simonistas, que Goethe incorporou, por vezes em citações literais, em cenas do Fausto redigidas em 1831. Quem primeiro apontou para esse aspecto foi Gottlieb C. L. Schuchard: "Julirevolution, St. Simonismus und die Faustpartien von 1831" ["Revolução de julho, saint-simonismo e as partes do Fausto de 1831"], in: Zeitschrift für deutsche Philologie 60 (1935). Ver também, a esse respeito, o ensaio de Nicholas Boyle "The politics of Faust II. Another look at the stratum of 1831", in: Publications of the English Goethe Society, v.52 (1981/1982), p.4-43.
6 A respeito do princípio da negação que caracteriza o pensamento processual da revolução política e econômica na Modernidade, e, ainda, a respeito da reflexão crítica que Goethe empreende em seu Fausto sobre tais fenômenos processuais de negação, ver o meu ensaio "Fausts Revolution" ["A revolução de Fausto"], in: Verweile doch. Goethes Faust heute [Oh, pára! o Fausto de Goethe hoje] (organizado por Michael Jaeger; Blätter des Deutschen Theaters, 2006, p.103-14).
7 Sintomaticamente, Goethe insere tais versos no manuscrito da tragédia somente após o seu retorno da Itália e sob o impacto da fase inicial da Revolução Francesa. A versão mais antiga, o assim chamado Urfaust (Fausto original), ainda não contém esses versos típicos e representativos da época da Revolução. A gênese textual, cujo conhecimento possibilita ilações sobre o crescente potencial histórico e crítico da tragédia redigida ao longo de décadas, pode ser acompanhada à luz da edição sinóptica do Fausto I organizada por Werner Keller: Urfaust; Faust. Ein Fragment; Faust. Eine Tragödie.Paralleldruck der drei Fassungen [Fausto original; Fausto. Um Fragmento; Fausto. Uma Tragédia. Impressão paralela das três versões] (Frankfurt a.M., 1985).
8 Foi a recepção "socialista" (em seu sentido mais amplo) da tragédia goethiana que construiu a exegese "perfectibilista" mais conseqüente, mais bem elaborada filosoficamente, tomando o seu ponto de partida nas especulações teóricas de Hegel sobre o Fausto: Georg Lukács, na chave de um marxismo mais rigoroso, e Ernst Bloch, numa perspectiva utópica e não-ortodoxa, para citar apenas dois proeminentes exemplos do século XX.
9 Pierre Hadot, em seu grandioso estudo sobre a tradição do exercitium spirituale, discute o caráter eudemonista da espiritualidade clássica de Goethe, seus antigos textos de referência e a tradição desses na história da filosofia e da religião (P. Hadot. Exercices spirituels et philosophie antique [Paris, 1987] – ver, em especial, o capítulo sobre Goethe, p.101-22, intitulado justamente "Somente o presente é a nossa felicidade").
10 Essa constatação pode ser atualizada com a edição bilíngüe do Fausto I publicada pela Editora 34 (2004), em tradução de Jenny Klabin Segall, com notas e comentários de Marcus V. Mazzari e ilustrações de Delacroix.
11 A recente edição brasileira da segunda parte da tragédia, novamente em tradução de J. K. Segall (Editora 34, 2007), propicia ao leitor a possibilidade de colocar à prova essas observações sobre a relação entre os desenhos de Beckmann e o substrato crítico do Fausto II.

Michael Jaeger é docente na Universidade Livre de Berlim. Publicou, entre outros, o estudo Fausts Kolonie – Goethes kritische Phänomenologie der Moderne [A colônia de Fausto – A fenomenologia crítica da modernidade empreendida por Goethe] (Würzburg, 2004). Mais recentemente, organizou o volume Verweile doch. Goethes Faust heute [Oh, pára! o Fausto de Goethe hoje] (Blätter des Deutschen Theaters, 2006). @ –Asmljaeger@aol.com 
Tradução de Marcus Vinicius Mazzari. O original em alemão – "Fausts Wette und der Prozeß der Moderne" – encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta.


Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142007000100025&script=sci_arttext

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Thomas Mann e um grito de alerta antifascista

Thomas Mann, autor de “Dr. Fausto”, romance que espelha uma visão amadurecida de todo o processo em que as liberdades foram destroçadas pelas forças nazifascistas | Foto: Carl van Vechten

Carlos Russo Jr.
Especial para o Jornal Opção


Em 1933, os nazistas chegam ao poder na Ale­manha por meio do voto democrático. Imediata­mente devotam-se à destruição da democracia e à implantação do regime totalitário mais odioso da História da humanidade. O mesmo já ocorrera na Itália alguns anos antes, com o ex-socialista e fascista Benito Mussolini.
Logo após o incêndio do Par­lamento Alemão pelas claques de “cho­que” de Hitler, Mann, o maior dos escritores alemães do século 20, decidiu exilar-se de seu País.
Compreendendo os perigos que a ordem nazifascista representava para a Alemanha, assim como para o restante do mun­do, o engajamento do autor de “A Montanha Mágica” na luta democrática não tardaria. Em 1937, Thomas Mann publicou uma crônica sob o título: “Advertência à Europa!”
A Advertência era dirigida muito particularmente aos intelectuais, aos escritores, aos artistas, cientistas e a outros depositários do patrimônio cultural da humanidade. Firmemente Mann assinala a responsabilidade dos intelectuais que se omitem e se alheiam do combate aos inimigos da inteligência e da cultura, a pretexto de resguardarem a “integridade” e a “pureza” do espírito de qualquer contaminação de “caráter político”. Isto insistia Mann, resultava efetivamente em servir de um modo ou de outro ao “partido do interesse”, ou seja, os interesses de uma ordem política decadente, reacionária e por isso mesmo temerosa da cultura e do espírito. “Em nosso tempo, a torre de marfim é apenas uma tolice, e é quase impossível alguém furtar-se a compreendê-lo.”
“A democracia se realiza efetivamente em cada um de nós, visto que a política se tornou um negócio de todas as gentes. Ninguém pode afastar-se dela; a pressão imediata que ela exerce sobre cada um é demasiado forte. O fato é que aquele que nos declara “eu não me importo com a política”, parece-nos um homem superado, caduco. Tal ponto de vista revela não somente egoísmo e irrealidade, mas ainda embuste e estupidez. Mais que ignorância do espírito, o que há nisso é indiferença moral.”
A ordem política e social faz parte da totalidade, um aspecto da problemática humana, não se podendo menosprezá-la sem com isso se pecar contra a própria humanidade. Portanto como poderia o poeta ou o intelectual esquivar-se, omitir-se, quando sabemos que a sua natureza e o seu destino o colocaram na posição mais exposta da “polis”? “O poeta que se omite em face do problema humano, porque esse aparece sob a forma política, não é somente um traidor da causa do espírito em proveito do partido do interesse, mas é também um homem perdido, que perderá a força criadora, o talento e nada fará que apresente condições de durabilidade.”
O espiritual, para Mann, considerado sob o ângulo político e social, é a aspiração dos povos a uma vida em melhores condições, mais justas e mais felizes, adequadas à dignidade humana. Expressando a essência do pensamento democrático ele diz “o bom e o nobre é o que qualificamos de humano”. Aquilo por cuja causa os homens tem lutado e têm tomado Bastilhas de assalto, os acólitos do autoritarismo proclamam jubilosamente “aquilo não deve existir, que seja revogado, revogue-se até mesmo a ‘Nona Sinfonia’, de Beethoven!”
Uma das mais importantes obras primas do grande mestre foi, sem dúvida, o romance “Dr. Fausto”. Escrito em 1956 espelha uma visão amadurecida de todo o processo em que as liberdades foram destroçadas pelas forças nazifascistas. As peripécias do grande livro se desenvolvem num período histórico de aproximadamente 25 anos, entre 1920 e 1945, quando ocorre o esmagamento da Alemanha nazista.
O personagem-narrador nos diz: “Certa gente não deveria falar em liberdade, razão e humanidade, melhor que se abstivesse disso por motivos de decência. O dogmatismo também é uma forma intelectual do farisaísmo. Onde quer que haja Teologia, o Diabo também deve entrar no quadro, preservando sua autenticidade complementar à de Deus. O Inferno é tão simbólico quanto o Céu”.
Para Mann, “o adepto das luzes, o termo e o conceito ‘povo’ sempre conserva qualquer traço de arcaico, inspirador de apreensões e ele sabe que basta apostrofar a multidão de povo para induzi-la à maldade reacionária”. “Falo do povo, porém daqueles impulsos populares de natureza arcaica, que existem em todos nós, e para dizê-lo bem claramente, assim como penso, não considero a religião o meio mais adequado para reprimi-los com segurança. Isso se consegue, a meu ver, unicamente por meio da literatura, da ciência humanística, do ideal do homem livre e belo.”
Pessoas como o escritor alemão têm, afinal de contas, suas dúvidas a respeito do acerto dos “pensamentos do rebanho”, como ele mesmo os denomina. Sabe, entretanto, perfeitamente diferenciar o povo trabalhador da escória social, que com aquele não se confunde. “A supremacia das classes ditas inferiores se afigura a mim, como cidadão alemão, um estado ideal, quando a comparo com o domínio da escória. Ao contrário que eu saiba jamais o bolchevismo destruiu obras de arte. A revolução russa emocionou-me profundamente e a superioridade histórica de seus princípios em confronto com os das potências que dobravam nossa nuca aos seus pés, era evidente. Verdade é que certas camadas da democracia burguesa parecem merecer o que acabo de denominar de domínio da escória a fim de conservarem por mais tempo seus privilégios.”
No nazismo a violência opunha-se à verdade! Pregava-se um abismo entre a verdade e a força, a verdade e a vida, a verdade e a coletividade. Um grito de horror surge em “Dr. Fausto” sob a forma de uma composição musical do maestro dodecafônico Leverkun: “Nesse momento só uma única música pode servir-nos, somente ela corresponderá a nossas almas: a lamentação do filho do Inferno, a lamentação humana e divina, que, partindo do indivíduo, mas ampliando-se cada vez mais, e, em certo sentido, apoderando-se do Cosmo, há de ser a mais horrenda que jamais tenha sido entoada na Terra. Uma lamentação, um ‘De produndis’!”
O mundo criado pelo nazifascismo era ao mesmo tempo antigo e novo, “revolucionário” e retrógrado. Nele os valores ligados à ideia do indivíduo, verdade, liberdade, direito, razão, ficariam inteiramente debilitados e rejeitados, assumindo um significado totalmente diferente do que tiveram nos séculos precedentes. “Desarraigados da pálida teoria, seriam relativizados, abastecidos de sangue e em seguida submetidos a uma instância muito superior, à da força, da autoridade, da ditadura da fé, de uma forma que igualaria uma regressão muito inovadora da Humanidade em direção a estados e condições teocráticos- medievais.”
A imparcialidade da pesquisa, o pensamento livre, longe de representarem o progresso, o antigo e o novo, o passado e o futuro tornar-se-iam a mesma coisa. Isso ocorreria ao mesmo tempo em que se concedia ao pensamento a licença de legitimar a força, “assim como uns seiscentos anos antes, a razão tivera liberdade para discutir a fé e demonstrar o dogma”, numa referência à Reforma Luterana.
O pedagogo, por exemplo, sabia que, sob o nazifascismo já existia a tendência para distanciar-se do sistema de aprender letras e soletrar. Em vez disso preferia-se o método de ensinar palavras inteiras e de ligar a escrita à visão concreta das coisas. Isso representava, em certo sentido, a abolição da escrita abstrata, universal, não associada a nenhuma língua e, de alguma forma, a volta à ideografia dos povos primitivos. A disposição era de sacrificar sem mais as assim chamadas conquistas culturais em pró de uma simplificação reputada indispensável, assim como os tempos o exigiam, e que eventualmente pudesse ser qualificada de volta intencional à barbárie.
O narrador de “Dr. Fausto”, Serenus, prevê no início da ação dos nazistas no poder que “chegaria o dia em que se legitimasse, por razão de higiene nacional e racial, a não conservação dos elementos mórbidos, a eliminação em grande escala dos ineptos para a vida e dos débeis mentais”. “Enfatizava-se a intenção da rejeição de qualquer efeminação humana, produto da era burguesa, um esforço intensivo por tornar a humanidade capaz de enfrentar tempos sombrios, desdenhosa de sentimentos humanitários, mais próximos daquela fase obscura que precede a origem da Idade Média.”
Mann, pela boca de Serenus expressará seu ódio ao nazismo nas últimas páginas do portentoso livro: “Malditos, malditos os corruptores, que mandaram à escola do Diabo uma parcela do gênero humano, originalmente honrada, bem-intencionada, apenas excessivamente dócil e demasiado propensa a organizar sua vida à base de teorias! Mas um patriotismo que ousasse afirmar que o Estado sanguinário, cuja agonia atualmente presenciamos, que para citar uma expressão de Lutero, ‘pendurou em seu pescoço’ o peso de crimes incomensuráveis, e que, com seus apelos berrados, com suas proclamações aniquiladoras dos direitos do Homem, provocou nas multidões arroubos de imensa felicidade, esse Estado sob cujas bandeiras vistosas marchava nossa juventude, de olhos chispantes, altiva, radiante, firme na fé, um patriotismo, repito, que ousasse afirmar que esse regime tinha sido algo totalmente alheio à natureza de nosso povo, imposto a ela, desprovido de raízes em seu íntimo, ia se afigurar-me mais magnânimo que consciencioso. Não foi esse despotismo, em suas palavras e em seus atos, apenas a realização distorcida, oclocrática, aviltada de mentalidades e filosofias cujo caráter autêntico cumpre reconhecer e que o cristão, o humanista constatam, não sem certo susto, nos traços dos grandes homens, nas encarnações mais imponentes da humanidade?”
O professor Serenus, que se abstivera de combater o nazismo quando ele surgira, ao final do romance “Dr. Fausto” realizará um “mea culpa” de sua omissão, retroagindo à advertência de 1937: “Será que voltarei a inculcar nos cérebros dos alunos a ideia de uma cultura na qual a reverência às divindades das profundezas se une ao culto ético de olímpica razão e lucidez, formando uma só piedade? Mas ai de mim, receio que nessa década selvagem se haja criado uma geração que entenda a minha linguagem tão pouco como eu a sua; a mocidade de meu país se me tornou por demais estranha para que eu possa novamente ser seu mestre. A própria Alemanha, esse país desventurado, tornou-se-me estranha, justamente em virtude do fato de eu ter-me abstido de seus crimes, e, seguro do fim pavoroso, haver-me abrigado na solidão”.



Sobre Jane Austen

Uma escritora perspicaz, ímpar na arte de escrever romances "açucarados" (e não vejam nesse comentário qualquer coisa que se aproxime de pejorativo!), conhecida por escrever "Razão e Sentimento" (é assim o título da edição que tenho), "Orgulho e Preconceito", "Emma", entre outros. Os dois últimos, muito bem adaptados para o cinema. Abaixo, segue um texto a respeito do talento dessa inglesa que escreve bem. Vale a pena ler. 



Por NELSON SHUCHMACHER ENDEBO


Jane Austen é possivelmente a mais amada das escritoras inglesas. Inúmeras são as adaptações de seus romances para o teatro, televisão e cinema; ainda mais numerosas são as edições de suas obras, revisitadas e entusiasticamente glosadas geração após geração. Assim como William Shakespeare, uma de suas leituras preferidas, a autora de Orgulho e preconceito, Razão e sensibilidade, Emma e Persuasão é uma verdadeira indústria em 2014. Podemos descrever algumas de suas qualidades para compreender a persistência do fenômeno Austen: a mão leve para escrever personagens amplamente realizáveis na mente do leitor; a delicadeza com que apresenta os dilemas emergentes na tensão entre as normas sociais e a ética do indivíduo; a maestria no emprego da ironia, que faz rir e faz pensar; a técnica “teatral”, que concentra e agiliza os fios das narrativas nos diálogos — tamanha é a realização da arte de Austen que nem mesmo suas preocupações perenes, como a busca de uma conduta harmônica mediante a autodisciplina e o autoconhecimento e, como julgaríamos hoje, a supervalorização do papel moral e social do casamento, foram suficientes para diminuir o fascínio do público contemporâneo, certamente menos disposto aos ditames e receituários do agir decoroso.
Isso porque, em Austen, o que não passaria de moralismo em autores ineptos resulta de sustentada meditação sobre o tema da boa natureza diante da grande vertigem do tempo, e aí está uma razão para a dificuldade em estimá-la: se raramente lida com acontecimentos históricos, é por deliberadamente alhear-se deles, e não por desinteresse; se propõe valores dir-se-ia cristãos, não propõe necessariamente o cristianismo; se compreende que o novo século abre uma maior independência às mulheres, dando-lhes voz para protestarem o casamento arranjado segundo os interesses de classe, também não ignora que esse alvedrio possa dissimular como aparênciavalores que considera genuinamente bons; se defende sem alarde a liberdade da mulher de casarpor amor, contestando um certo patriarcalismo instituído, não despreza que a mulher também possa enganar-se na estimativa de seus próprios sentimentos. É preciso relativizar a modernidade de Austen.
Na juventude, firmaram-lhe o gosto literário autores imersos no que poderíamos vagamente chamar de mundo da experiência, como Henry Fielding, o já citado Shakespeare e o singular Samuel Johnson, o qual diagnosticara, em 1750, uma literatura contemporânea formada pelos acidentes e eventualidades da vida moderna, registrados em periódicos e folhetins. Não é por acaso que Fanny Price, a heroína de Mansfield Park, sobre o qual terei mais a dizer em seguida, descobre uma das principais guinadas do enredo em uma notícia de jornal. A influência de Fielding, grande escritor cômico que compreendera que é na experiência, e não no receituário, que aprendemos o bem, se faz sentir sobretudo no volume Juvenília, reunindo textos de uma Jane Austen mal saída da adolescência (1787-1793), que a Penguin corajosamente lança no Brasil, em edição e tradução em tudo recomendáveis. Nas primeiras tentativas de ficção, compreensivelmente incoerentes, Austen mostra não apenas um talento cômico, como também um domínio superficial das convenções burlescas, que certamente aprendera com Fielding. Sobravam-lhe as intervenções do narrador no relato, as observações e as críticas; faltavam-lhe entretanto as intuições psicológicas que conferem ao burlesco o seu potencial ético, ao levar certos tipos humanos ao paroxismo justamente para desarmá-los e expô-los como fraude ou engodo. Essas intuições, é provável, Austen aprenderia a desenvolver com as filigranas técnicas dos romances epistolares de Samuel Richardson, como o popularíssimo Pamela, um verdadeiro best-seller europeu, adorado por figuras como Diderot, e o sofisticado Clarissa, que representa com enorme habilidade, em uma multiplicidade de vozes e registros, os jogos emocionais e conflitos de interesse na Inglaterra do século 18, na trágica história de uma moça que rejeita o noivado com um tipo detestável.
Sentimental
Nesses escritos de juventude percebe-se ainda uma franca predileção pelo sentimental, como era o caso da obra de Richardson e de outras figuras menores, mas populares à época, como Henry Mackenzie. Eventualmente Austen aprenderá a zombar do culto ao bom gosto, tão em voga no século 18, que tinha a função de educar a sensibilidade. A sua obra madura, parcialmente publicada na última década de sua breve vida — Austen morreria aos 42 anos —, substitui o sentimentalismo reativo típico de uma era emancipada, sob certos aspectos, pela valorização da razão, mas incapaz de realisticamente lidar com as mudanças em curso, por um estilo sóbrio, comedido, psicologicamente elegante e sagaz, que acusa também a leitura ponderada de um poeta austero como George Crabbe: econômico nas descrições de paisagens, ambiências e vestimentas; magnânimo, mas concentrado, na caracterização de estados emocionais; sutil ao resumir as impressões sobre as personagens, sem entretanto “entregar” o uso da ironia nos diálogos, dos quais Austen é um dos grandes mestres na língua.
Na grande tradição britânica, poucos autores conseguem representar uma consciência tão convincentemente quanto Jane Austen: suas personagens estão o tempo inteiro cientes de que são vistas e ouvidas pelos outros. Por isso, o cálculo se apresenta como antecipação natural, e tem lá seus efeitos cômicos. A desmesura parece não somente uma aviltação, uma falta de bons modos e sensibilidade, mas, acima de tudo, denota uma ausência de autoconsciência, falta grave. É, enfim, um estilo clássico, que toma os conselhos morais sobre continência e aplica-os à forma do texto. É curioso notar que um dos autores que Austen mais gostava fosse logo Laurence Sterne, autor deTristram Shandy, um romance deveras cultuado quando redescoberto pelo modernismo mas que, no que diz respeito às experimentações formais, não parece tê-la influenciado significativamente. O teor de sua prosa é reflexivo, não digressivo; os trechos narrados são distribuídos em proporção junto aos diálogos, ainda que Austen faça, como na terceira parte deMansfield Park, uma eventual concessão ao gênero epistolar, que interpola a condução da narrativa.
Charlotte Brontë, a autora romântica de Jane Eyre, e que divide com Austen esse intrigante volume de Juvenília, acusava-a incapaz de escrever diálogos em que os participantes não falassem como ladies e gentlemen. Muito já foi dito pela crítica a esse respeito, e há alguma verdade nessa contenção: Austen não escreve sobre tudo e todos. No fundo, ela escreve sobre o mundo queconhece, algo inteiramente condizente com o senso de proporção e sensatez que propõe em seus romances. Mas o que diria Brontë sobre o grosseirão Tenente Price, o pai biológico da protagonista de Mansfield Park, perfeitamente caracterizado em sua ignóbil incivilidade? E sobre o mordomo em Mansfield Park, que inesperadamente confirma-nos, em apenas uma breve intervenção, que a tia Norris é de fato tão desagradável quanto a imaginamos?
Senso da confusão
Brontë, espírito menos recolhido que Austen, congenitamente não se adequaria às restrições auto-impostas por esta, nas quais sua arte novelística se circunscreve tanto geográfica quanto demográfica e historicamente. Austen, contemporânea de Edmund Burke, William Blake, William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge, adentraria a vida adulta nos anos seguintes à Revolução Francesa, que tanto marcará as reflexões daqueles autores, mas ela não trata do evento diretamente. Tal atitude ela manterá mesmo quando, posteriormente, o temor de que Napoleão invadisse a Inglaterra torna-se um tópico caloroso de debate. Austen trata esses assuntos de maneira oblíqua. Não vejo aí demérito. Ora, se um dos impactos óbvios da Revolução fora a intensificação das inquietações e discussões sobre bem-estar social, privilégios e o papel do clero, podemos localizar, na pedagogia instalada no centro de seus romances, reações e respostas àquelas ansiedades. Em Mansfield Park, alguns dos melhores diálogos se dão entre o ponderado e calmo Edmund Bertram, prestes a ser recebido na ordem eclesiástica, e a moderníssima e assanhada Mary Crawford, de Londres, que desdenha, duvidosa, dos méritos de uma carreira no clero, cuja função social ela já não reconhece. Fica claro que, para Austen, a vida no clero é, de certo modo, um modelo para a vida em geral; não um modelo institucional, mas existencial, pois demanda de nós um esforço irrevogável para cultivar o bem, o senso de comprometimento, de sacrifício e de recompensa. Na casa em Mansfield, o patriarca Sir Thomas, autoritário e interesseiro, embora não desprovido de notáveis qualidades, aos poucos aprende a temperança: o bom governo já começa em casa, mas sofre a influência de seus membros; não é, portanto, unilateral, embora a hierarquia seja indispensável. Ao mesmo tempo, Edmund reconhece que o próprio clero comporta membros que parecem ter há muito abandonado tal missão, enquanto Crawford é forçada a admitir que sua experiência com clérigos advém mais do disse-me-disse do que da prática imediata. Há em Austen um senso da confusão; daí sua constância.
Fica claro aí que, se Austen apresenta os diálogos de maneira fluida e realisticamente convincente, ela também busca no leitor uma resposta ética enviesada, mas de maneira plurivalente. Seu virtuosismo com o diálogo é utilizado não para forçar ou incitar o leitor, mas para provocá-lo. Desde o início estamos dispostos a simpatizar com o arrazoado Edmund, que, entretanto, é apaixonado pela materialista e — do ponto de vista da caracterização — irresistível Mary Crawford. Esperamos logo que Mary mude de conduta, algo que Austen resolveria não por meio de um argumento pontuado, mas de um evento vivido; ou que Edmund perceba a sua tolice. Essa tensão permanece em aberto porque Edmund, afinal, é o amor secreto de sua prima, a heroína Fanny, que em tudo difere de Mary Crawford. A trama do livro é um affaire de família: o orgulhoso e impulsivo galanteador Henry Crawford, irmão de Mary, resolve se apaixonar por Fanny. Outra tensão se abrirá: embora prontamente rejeitado por Fanny, será que Henry se tornará uma pessoa melhor, merecendo assim o coração da protagonista? Um mérito do livro é dar espaço o suficiente para o leitor querer que os irmãos Crawford se tornem mais discernentes e menos egoístas, não por fazê-lo adotar piamente os valores representados por Fanny e Edmund, e sim porque estabelece com êxito uma relação de empatia entre os irmãos e o leitor. Se o leitor mais puritano compreensivelmente “torcerá” para Fanny e Edmund constituírem um casal ao final da história, os demais leitores, sobretudo os contemporâneos, desejarão acompanhar a transformação dos irmãos humanos, demasiadamente humanos, tendo razão Lionel Trilling, ao sugerir que nenhum leitor moderno admiraria Fanny Price, a despeito de suas qualidades eminentemente admiráveis: há um aspecto de constância que a experiência moderna, sob certo aspecto profundamente hostil ao idealismo, não consegue tanger. A metamorfose, cremos, afirma o tempo e, portanto, a vida; ao contrário da estagnação do eterno, essa dita nêmese do vivo. Fanny parece-nos desumanamente piedosa e caridosa. Mary Crawford tem mais em comum com as outras heroínas de Austen do que Fanny Price, que é a verdadeira protagonista de Mansfield Park.
Aqui podemos vislumbrar o veio utópico da visão de Jane Austen. De todas as suas obras acabadas,Mansfield Park talvez seja a menos popular. Nos últimos 50 anos, entretanto, esse romance de 1814 mereceu a atenção considerada de grandes críticos literários, como Q. D. Leavis e o próprio Trilling; desde a década de 90, de forças dos estudos culturais, como Edward Said e Geoffrey Hartman. Hoje o estudam com renovado interesse os scholars do pós-colonialismo e da narratologia. O livro é eminentemente legível e entretém tanto quanto os demais trabalhos de Austen, mas oferece alguns desafios técnicos ao intérprete da autora. Uma delas é a cena do teatro improvisado pelos moradores de Mansfield, que se desdobra no primeiro interstício do livro e que lembra, na maneira como revela as predisposições e inclinações das personagens, da famosa cena da ópera em Guerra e paz, de Tolstói. Com perícia Austen lida com os conflitos locais gerados pela montagem da peça “vulgar” Juras de amor, adaptação inglesa de uma obra de August von Kotzebue, o dramaturgo alemão favorito de Nietzsche, e cujo enredo prenuncia a própria ação do romance. Sir Thomas está em Antígua, cuidando dos negócios; Edmund, sabendo que o pai desaprovaria com veemência a representação de tanto despautério no próprio lar, luta para impedi-la. Fanny não tem objeções à peça em si, mas teme falhar no palco por “não saber representar”. Para os demais, trata-se apenas de um divertimento inconsequente.
Pedagogia cristalizada
As ressalvas contra a representação têm uma dupla face, e aqueles que pensarem em Platão não estarão delirando: em Edmund e Sir Thomas, há uma relação perigosa entre o conteúdo moral da representação e aquele que representa; em Fanny, a falta de talento para representar surge como grande qualidade normativa. Ela é sincera demais para representar, e é justamente por sê-lo que, em meio aos fingimentos, dissimulações e mentiras da trama, ela termina feliz e honrada pela família, pela sociedade e também pela autora. Por isso, o que era uma dialética da experiência nas obras anteriores de Austen, uma dança de pontos de vista, de oscilações entre resignação e fortidão, humilhação e coragem, aqui se assemelha mais a uma pedagogia cristalizada pelo método previamente empregado. Mansfield, idílica e isolada de Londres, por fim dá a impressão de uma sociedade ideal, onde reina a paz exterior e interior por meio da disciplina, da constância e do autoconhecimento. Em Mansfield, Fanny é uma boa sobrinha, mas em Portsmouth não é uma filha especialmente carinhosa e diligente; e é uma amiga sincera até sentir-se ameaçada. Não é tola, apesar da simplicidade, nem demasiado humilde, pois excessivamente consciente das próprias virtudes. Em última análise, um racionalismo contemplativo e psicologicamente arguto disputa com uma utopia conservadora a primazia na visão de Austen.
Mansfield Park é um trabalho clássico que merece ser lido e discutido. No caso de Charlotte Brontë, a publicação de sua Juvenília pede uma leitura à luz de suas obras da maturidade, sobretudo do soberbo Jane Eyre, que não encontra ocasião aqui. Mas cabe um comentário pertinente. Brontë, outro clássico inglês que goza de grande popularidade ainda hoje, compartilha com Austen a busca pela boa conduta, pela retidão em um mundo declaradamente estranho, mas o faz sem reprimir as lições do coração; seu idealismo é, portanto, de outra estirpe. Brontë já tinha o espírito do romantismo, ao contrário de Austen, que somente o adumbraria: a leitura de Byron e de clássicos orientais como As mil e uma noites, traduzidos e avidamente apreciados em inglês já no século 18, inspiraram-lhe o espírito aventureiro. Frances Beer, em sua excelente introdução àJuvenília, observa perspicazmente que a criatividade da jovem Brontë se manifestara na imaginação expansiva, mas profundamente solitária, ansiosa por encontrar mundos distantes, enquanto a de Austen se concentrara na ridicularização de tipos hipócritas, entediantes e desagradáveis. Mas seus gênios foram dificilmente compatíveis. A justeza dos arranjos humanos requer um compromisso que Brontë, à parte do pessimismo social e escapismo que nunca deixou de externar, só aceita com uma resignação filtrada por uma imaginação feroz, que distorce a proporção do real com uma abundância de sentimento. Para ela, o amor em Austen era um amor desapaixonado, estereotípico dos ingleses. Buscara representar o amor “com coração”. Por isso não pudera aceitar que Austen fosse chamada, como fora, de uma escritora realista, pois faltava nela justamente o coração, essa realidade inalienável. Em cada uma há, à sua maneira, na feliz formulação de Beer, a busca por uma “transgressão que não transgride”. São escritoras eminentemente inglesas nesse sentido.
A Juvenília deverá encontrar um público menor do que Mansfield Park e demais obras das duas autoras. Mas é uma publicação corajosa, que possibilita ao leitor zeloso uma visão privilegiada do desenvolvimento criativo de duas das maiores romancistas do século 19. A editora merece todos os lauréis por ter apostado nesse título, editado com rigor e critério. Cursos universitários de Letras e estudantes da língua inglesa terão incentivo para encomendar e estudar a edição de luxo da Landmark, em capa dura e bilíngue, oferecendo o texto em páginas espelhadas. Naturalmente, dada a extensão do romance, que soma quase 600 páginas na edição da Penguin, a versão bilíngue usa uma fonte consideravelmente menor, com espaçamento mínimo entre as linhas, e um formato de livro maior, o que dificulta o manuseio e a leitura, embora esse não seja um pormenor incontornável. Quanto à tradução nessa edição, embora ela de fato siga o texto original corretamente, peca ocasionalmente por fazê-lo de maneira rigorosamente fiel: a sintaxe às vezes parece artificial e, sobretudo nos diálogos, prejudica a fluidez do texto. Ademais, a revisão técnica poderia ter impedido certos erros de digitação, facilmente justificáveis e, portanto, perdoáveis no processo de tradução, mas incompreensíveis em uma edição de luxo. Nesse sentido, a edição da Penguin é preferível, apresentando uma tradução fluente e idiomática, e um texto limpo com notas elucidativas e bom aparato crítico. A publicação bilíngue é parte de uma louvável iniciativa da Landmark de disponibilizar clássicos da literatura nesse formato, um projeto de grande valor educacional, e torcemos para que seja executado com o esmero que demanda e que o leitor, carente de publicações acessíveis desse tipo, merece.



Jane Austen nasceu em 1775, em Steventon. É uma das escritoras inglesas mais conceituadas da história. Autora de Razão e sensibilidade (1811), Orgulho e preconceito (1813) e Emma (1816), entre outros. Modesta em relação ao seu talento, só teve a identidade como autora revelada postumamente. Morreu em 1817, em Winchester. Charlotte Brontë nasceu em 1816. Passou a maior parte da vida em Haworth, nos pântanos de Yorkshire. É autora de quatro romances: Jane Eyre (1847), Shirley (1849), Villette (1853) e The professor (o primeiro deles, publicado postumamente em 1857). Emma, um fragmento, foi publicado em 1860. Morreu em 1855.

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