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Imagem do filme Fausto. Direção: F.W.
Murnau |
A
aposta de Fausto e o processo da Modernidade: figurações da sociedade e da
metrópole contemporâneas na tragédia de Goethe
Michael
Jaeger
"OH,
PÁRA!" – nessa única exclamação de Fausto reverbera todo o potencial de
felicidade e infelicidade da tragédia goethiana. Desvinculada de seu contexto,
poder-se-ia pensar que se trata do suspiro de um ser esgotado ou do anelo de um
solitário; nesse caso, a exclamação "Oh, pára!" seria um sinal de
vida, palavras de alguém que, imerso no torvelinho ininterrupto da existência,
suplica por uma trégua para respirar. Se complementarmos o semiverso no texto
de Goethe, poderá resultar daí até mesmo uma expressão de ânsia amorosa:
"Oh, pára! és tão formoso!".1 Tais significados podem muito bem
estar presentes no discurso de Fausto, mas são desviados para uma dimensão
subconsciente, pois o verso "Oh, pára! és tão formoso!" representa,
antes de mais nada, o componente decisivo daquela aposta diabólica que Fausto
fecha com Mefistófeles:
Se vier um dia em que ao
momento
Disser: Oh, pára! és tão formoso!
Então algema-me a contento,
Então pereço venturoso!
Repique o sino derradeiro,
A teu serviço ponhas fim,
Pare a hora então, caia o ponteiro,
O Tempo acabe para mim! (v.1.699-1.706)2
Disser: Oh, pára! és tão formoso!
Então algema-me a contento,
Então pereço venturoso!
Repique o sino derradeiro,
A teu serviço ponhas fim,
Pare a hora então, caia o ponteiro,
O Tempo acabe para mim! (v.1.699-1.706)2
Aos
olhos de Fausto, aquele "Oh, pára!" não constitui nenhuma
manifestação de vida ou de amor, mas sim um sinal de morte. Pois o momento em
que ele desejasse parar, quisesse deter-se porque a existência se lhe
afigurasse bela e ele se mostrasse satisfeito com a realidade presente, esse
momento deveria ser ao mesmo tempo o de sua morte – o instante, portanto, em
que Mefisto, zeloso servo de Fausto durante o seu tempo de vida, assumiria
domínio irrestrito sobre sua alma.
O
texto de Goethe conhece diversas variações daquela proibição de paz e repouso
em face do belo, proibição essa que resulta do pacto entre Fausto e Mefisto.
Para citar apenas alguns exemplos: "E mais maldita ainda, a
paciência!" (v.1.606), ou "De qualquer forma sou escravo"
(v.1.710), ou "Saciemo-nos no efêmero momento, / No giro rápido do
evento!" (v.1.754-1.755), ou "Entrego-me ao delírio, ao mais
cruciante gozo" (v.1.766) e, finalmente, "Este aqui maldito!"
(v.11.233). Todo "aqui", todo existir consciente no aqui e no agora é
sem valor, árido, morto. Somente aquilo que não está dado, que não se encontra
à disposição, apenas o ainda-não-existente é o que atrai e promete a verdadeira
vida. Torna-se evidente que dessa proibição do deter-se resulta um culto da
velocidade, da inovação desenfreada, da tropelia permanente de imagens e
sensações.
Quem
de nós, vivendo nos dias de hoje, poderia furtar-se à consciência de que a
fórmula fáustica do pacto e da aposta, introjetada já desde muito tempo,
determina o nosso comportamento cotidiano? Abre-se diante de nós a
possibilidade de enxergar no processo de negação permanente de toda reflexão
serena e detida, voltada ao existente, a lei estrutural da moderna sensação de
tempo. Inúmeros exemplos do mundo atual das comunicações, do consumo, da
economia e da política poderiam ser arrolados aqui para ilustrar a
desvalorização de todo momento presente, de todo real efetivo, assim como para
demonstrar a atração do não-existente.
Na
atual sociedade dominada pela informação e pela mídia, a negação de todos os
dados presentes é intensificada até o extremo. Mal ganham forma as imagens e
notícias, e de imediato já se vêem desvalorizadas, descartadas pelo seu mero
existir. O fluxo permanente, cada vez mais veloz, de imagens, sons, dados e
notícias voa sem interrupção, de maneira sempre renovada, rumo à próxima
sensação. No mundo das vertiginosas alternâncias de imagens e dos ritmos
acelerados que as acompanham, todo deter-se por parte da consciência
contemplativa e reflexiva tornou-se, de fato, impossível; não há mais nenhum
momento que possa subtrair-se ao furor dinâmico impulsionado pela negação
incessante do presente. O pacto de Fausto com Mefisto parece, portanto,
exprimir em versão literária e, ao mesmo tempo, de modo preciso e concreto, a lei
estrutural da modernidade e, por conseguinte, também do nosso mundo atual.
A
Fausto não é possível e nem permitido contentar-se – primeiramente em seu
ímpeto por conhecimento e, depois, em sua desesperada obsessão de
entretenimento (ou, antes, atordoamento). Ele quer saber tudo, em primeiro
lugar coisas novas, possuir continuamente outras coisas, ver imagens inéditas,
cada vez mais espetaculares. Em sua vontade de exercer poder sobre a Vida, ele
cobiça manipular incondicionalmente os seus elementos – e, em virtude dessa
exigência desmedida, fica à mercê do diabo. A proibição fáustica do deter-se, a
negação de tudo o que existe no aqui e agora, da realidade momentânea, e o seu
almejo insaciável pelo ainda-não-existente, por aquilo que ele não possui, essa
disposição de consciência é representada por Mefistófeles. Ao fazer do demônio,
na figura de Mefisto, uma valência psíquica de Fausto, Goethe moderniza uma
tradição antiqüíssima, proveniente do século XVI, isto é, a história daquele
doutor Fausto que, em seu frenético ímpeto por conhecimento e domínio, acaba
fazendo um pacto com o demônio.3
Acompanhado
pelo ominoso poodle,
Fausto retorna do passeio de Páscoa para o seu solitário gabinete de estudos,
onde então Mefisto, sob intensa liberação de fumaça, desentranha-se do cão e
apresenta-se como um princípio espiritual, no sentido daquela psicologização:
O Gênio sou que sempre
nega!
E com razão; tudo o que vem a ser
É digno só de perecer;
Seria, pois, melhor, nada vir a ser mais.
Por isso, tudo a que chamais
De destruição, pecado, o mal,
Meu elemento é, integral. (v.1.338-1.344)
E com razão; tudo o que vem a ser
É digno só de perecer;
Seria, pois, melhor, nada vir a ser mais.
Por isso, tudo a que chamais
De destruição, pecado, o mal,
Meu elemento é, integral. (v.1.338-1.344)
Esse
auto-apresentar-se do espírito da negação tem conseqüências, já que pouco
depois Fausto sucumbe à tentação de negar tudo. Pois na aposta, ou no pacto que
fecha com o espírito da negação, Fausto converte-se por sua vez em espírito que
nega todo existir no presente, nega em si todo momento e todo deter-se
consciente e reflexivo, porque de antemão nada do que existe pode satisfazer as
suas exigências, e, em conseqüência, revela-se digno de perecer. Se todo
deter-se no presente está ameaçado de morte, a angústia perante essa ameaça
mortal dá origem a um furor voltado ao consumo da realidade, à demanda de mundo
– poder-se-ia falar até mesmo de uma embriaguez de consumo impelida de maneira
fóbica. Margarida é a primeira vítima real dessa compulsão de devorar todo o
existente, e é também ela que tem a percepção de Fausto e Mefisto como os dois
lados de uma mesma medalha. Palavras de Margarida no cárcere, ao perceber
Mefisto atrás de Fausto que, a bem da verdade, veio com a intenção de
libertá-la:
Que surge do solo lá
fora?
Ele! é ele! Vem repeli-lo!
Que busca no sagrado asilo?
Busca-me a mim! (v.4.601-4.604)
Ele! é ele! Vem repeli-lo!
Que busca no sagrado asilo?
Busca-me a mim! (v.4.601-4.604)
Fausto
não pode absolutamente repelir Mefisto, mandá-lo embora, uma vez que o tem
sempre junto a si em sua angústia em relação ao deter-se e em sua obsessão de
consumir pela negação tudo o que existe. E esse Fausto mefistofélico quer
efetivamente Margarida, ele a quer devorar, sob o domínio do
"apetite" pelo seu corpo (v.2.603). Por isso, exclama Margarida:
"Henrique! aterro-me contigo!" (v.4.610).
O
horror infundido por Fausto deriva, contudo, de sua angústia, da disposição
mefistofélica que o compele a devorar todo ser presente, como deve portar-se um
espírito que nega continuamente o real, para que não pereça no primeiro momento
de comunhão com a realidade do ser, no primeiro gesto do demorar-se e admirar,
quando então viesse a exclamar: "Oh, pára! és tão formoso!". Tudo o
que acontece na tragédia – e as exceções confirmam a regra – está a serviço das
tentativas de Fausto para, por meio da negação do momentaneamente existente,
recalcar o seu medo mórbido perante o deter-se, o demorar-se no instante.
E
para essa atitude ininterrupta de recalcamento fica valendo a constatação de
caráter histórico: Goethe converte o Fausto mefistofélico em arquétipo da
disposição de consciência característica de uma Modernidade que principia na
segunda metade do século XVIII e alcança o seu apogeu, ou possivelmente a sua
fase final, nos dias que hoje vivemos. Essa época moderna encontra-se sob o
signo de dois específicos fenômenos revolucionários, a saber, o permanente
revolucionamento político na Europa, que se inicia com a Revolução Francesa, e
a permanente revolução econômica nas condições e relações de vida, encetada
pela maquinaria do industrialismo no início do século XIX. O texto completo do Fausto goethiano surge entre 1770 e 1831,
exatamente sob esse pano de fundo político-econômico.4 Em Fausto.
Um fragmento, publicado em 1790 e assinalando o início da história
editorial do texto goethiano, são inequívocas as alusões à incipiente Revolução
Francesa. E quarenta anos depois, sob o impacto da Revolução Parisiense de
julho de 1830, Goethe conclui o trabalho de sua vida no manuscrito fáustico,
mas não sem depositar nos lábios do seu herói dramático as posições mais
atuais, mais "modernas" dessa era das revoluções.5 Tanto para a revolução política como
para a revolução econômica dessa época, o princípio da negação é constitutivo.
Isso se torna particularmente evidente no âmbito da política revolucionária, a
qual nega continuamente o estado de coisas vigente, reconhecido como corrupto
e, portanto, como inimigo mortal. Na consciência dos revolucionários, o
processo movido pela revolução é idêntico ao processo do movimento histórico.
As sentenças proferidas pelos tribunais da Revolução, assim o quer a
autoconsciência revolucionária, estão integradas à lógica processual da
história e, como negação permanente do respectivo presente político e social,
promovem e executam o progresso.
Ao
mesmo tempo, porém, o princípio da negação vigora para a revolução econômica da
Modernidade, que concebe tudo o que existe no presente como mercadoria, como
produto, e surge perante este como espírito que sempre nega, pois tudo que é
produzido e lançado no mercado é igualmente digno de logo perecer, de modo a
que o processo do desenvolvimento econômico não caia na imobilidade. Assim como
o diabo teme a água benta, assim tanto o revolucionário político como o
revolucionário econômico, industrial, temem o deter-se. Jamais dirão a um
momento, a um estado de coisas, a um produto, aquelas palavras de plenitude e
satisfação – "Oh, pára! és tão formoso!" –, pois sempre têm em mira a
atração do outro, do não existente, do futuro.6
O
espírito desse Fausto-Mefisto, espírito que sempre nega, é a imagem literária
de Goethe para o pensamento processual que caracteriza a Modernidade, o qual
nega todo o existente com vistas ao novo, o ainda-não-existente, o melhor, e
tão logo este surja e esteja dado, é por seu turno condenado como insuficiente
em nome de um inatingível estado de felicidade localizado sempre no futuro, de
modo a logo ser obrigado a "perecer". Esse processo dinâmico da
revolução política e econômica, que reúne em si os momentos da negação e
inovação, caminha ad infinitum.
Por tal motivo, pode Mefisto dizer de Fausto, este arquétipo da revolução
moderna:
E já te prendo em meu
enlace.
Deu-lhe o destino um gênio ardente
Que, invicto, aspira para a frente
E, em precipitação fugace,
Da terra o Bom transpõe, fremente. (v.1.855-1.859)
Deu-lhe o destino um gênio ardente
Que, invicto, aspira para a frente
E, em precipitação fugace,
Da terra o Bom transpõe, fremente. (v.1.855-1.859)
"Sempre
para a frente" – assim se formula a palavra de ordem progressista típica
da época.7 A despeito das notas críticas que
ressoam no texto goethiano, em consonância com as quais a aspiração de Fausto
se mostra sempre frenética e desgostosa, uma vez que ele jamais consegue
deter-se no "Bom", nas alegrias presentes, mas salta imediatamente
sobre essas no anseio por prazeres novos, melhores, futuros – a despeito de
tais notas críticas subliminares, Fausto foi considerado até recentemente como
representante do modelo de progresso da Modernidade e de suas esperanças
profanas de redenção. No acervo de citações dessa tendência exegética, entraram
versos do ativismo fáustico: "Patenteia-se o homem na incessante
ação" (v.1.759), "Ao homem apto, este mundo acomoda" (v.11.446),
"No avanço, encontre ele êxtase ou tormento, / Insatisfeito embora, hoje e
a qualquer momento!" (v.11.451-11.452).8
E,
de fato, Goethe mostra a aspiração fáustica, sobretudo na segunda parte do
drama, nos mais importantes estádios do moderno revolucionamento das condições
e relações de vida. Mostra-a no Palatinado Imperial, onde Fausto e Mefisto
introduzem o papel-moeda e deflagram o fluxo de capital que varre do mapa o
velho mundo do feudalismo e financia os gigantescos projetos técnicos, industriais
e de transportes da Modernidade. É-nos dado olhar dentro do laboratório do Dr.
Wagner, o antigo fâmulo de Fausto, onde um homem está sendo criado nas
retortas. Essa produção técnico-industrial de um ser humano (clonagem, como se
diria hoje) configura-se como verdadeira meta daquele projeto da Modernidade de
negar a primeira criação, a existência que deriva da Natureza, e substituí-la
pela segunda criação, que é um produto do moderno processo de produção.
No
final do drama, Fausto nos dá um exemplo dessa revolução moderna e, portanto,
da inversão de todas as relações naturais e de produção. Nós o vemos
primeiramente na orla marítima, onde ele manifesta o desejo de lutar contra as
ondas, lutar contra os elementos e submetê-los ao princípio industrial de produtividade
e desempenho (ver v.10.198 e seguintes); e nas últimas cenas terrenas da
tragédia nós o vemos numa nova terra, que ele conquistou ao mar por intermédio
de colossais construções de diques e canais. Nesse mundo novo, artificialmente
produzido, ouvimo-lo por fim pronunciar os famosos versos:
Sim! da razão isto é a
suprema luz,
A esse sentido, enfim, me entrego ardente:
À liberdade e à vida só faz jus,
Quem tem de conquistá-las diariamente.
E assim, passam em luta e em destemor,
Criança, adulto e ancião, seus anos de labor.
Quisera eu ver tal povoamento novo,
E em solo livre ver-me em meio a um livre povo. (v.11.573-11.580)
A esse sentido, enfim, me entrego ardente:
À liberdade e à vida só faz jus,
Quem tem de conquistá-las diariamente.
E assim, passam em luta e em destemor,
Criança, adulto e ancião, seus anos de labor.
Quisera eu ver tal povoamento novo,
E em solo livre ver-me em meio a um livre povo. (v.11.573-11.580)
No
final, a aposta fáustica, a negação da permanência, passa a vigorar por toda
parte. Contemplamos então a imensa história de sucesso do moderno ideal de
movimentação, ao qual obedece agora toda a sociedade – "criança, adulto e
ancião" – e esta é uma história de êxito não apenas no enredo dramático.
Pois no Fausto de Goethe, em especial na sua segunda parte, podemos reconhecer
também a expressão literária de nossa sociedade moderna, a prefiguração do
ritmo vertiginoso das metrópoles contemporâneas, uma Brasília, por exemplo,
erigida num esforço titânico em pouquíssimo tempo. Essa capital, aliás, poderia
ter sido construída por Fausto, uma vez que não está distante de seu ideal
desenvolvimentista, não seria estranha ao seu projeto colonizatório, que Goethe
configura, porém, de modo irônico como espécie de utopia de uma modernidade que
viria a ter o seu símbolo mais ostensivo justamente na arquitetura. Como na
colônia de Fausto, também nas metrópoles atuais impera a vontade construtivista
do homem moderno, e não seria surpreendente se, em meio a anotações do
arquiteto da capital brasileira, por exemplo, se encontrassem pensamentos de
inspiração genuinamente fáustica.
Seria
lícito sustentar assim que a utopia de dinamismo que na tragédia goethiana
deriva do pacto – "Quisera eu ver tal povoamento novo" – tenha se
convertido nesse meio tempo em realidade: hoje não há nenhuma região da
consciência, nenhum lugar, mesmo entre os mais isolados da Terra, que não tenha
sido alcançado pela moderna negação do deter-se, já que o mundo todo se
assemelha àquele "povoamento novo" que fervilha em movimentos cada
vez mais acelerados de imagens, dados, finanças, consumo e transportes.
A
uma utopia, contudo, não pode acontecer nada pior do que ser colocada em
prática, uma vez que ela perde assim a fascinante aura da promessa redentora.
Ao longo de 150 anos, Fausto foi festejado como personagem de identificação;
mas, desde que sua utopia daquele povoamento fervilhante tornou-se realidade,
vivenciamos uma mudança de paradigma na exegese do drama, uma vez que
descobrimos o seu potencial crítico e, desse modo, passamos a nos perguntar o
que seria assim tão pernicioso no deter-se, no demorar-se no presente. Por que
tudo o que existe precisa ser permanentemente desvalorizado, por que todo
espaço de repouso e serenidade tem de ser colonizado no sentido da moderna lei
do dinamismo e arrastado para aquele fervilhar generalizado? Quais são os custos
reais – assim nos perguntamos hoje em dia – do princípio moderno da
intensificação incessante do movimento; quem e o que é atropelado pela
mobilização geral a serviço da permanente negação do presente? Na tragédia
goethiana são, ao lado de Margarida e de um Peregrino – possivelmente o próprio
Goethe –, os dois anciãos, Filemon e Baucis, que vão parar debaixo das rodas,
pois não podem integrar-se tão depressa assim ao novo ritmo, e tampouco querem
integrar-se porque representam uma cultura inteiramente diferente, isto é, a
cultura do deter-se calmo, da serenidade, e, por conseqüência, atraem sobre si
o furor fáustico da negação.
No
nosso mundo determinado por ritmos dinâmicos inescapáveis e de validade global,
em que a exclamação "Oh, pára!", agora de maneira inteiramente
não-fáustica, não mais nos surge como sinal de morte, mas sim de vida, nessa
situação atual nós nos perguntamos se a famosa aspiração de Fausto por aquele
povoamento final não representa antes um desnorteamento, a rota para um beco
sem saída, para o "eterno-vazio", o qual se nos escancara então como Horror vacui, uma vez que nos
foi negado e suprimido todo ponto de repouso e, de modo geral, tudo o que
existe no presente.
Paradoxalmente
são tais questões atuais e candentes que a tradição da história fáustica traz
de volta à nossa lembrança. Desde o século XVI, a história de Fausto vem se
configurando como um tema popular com variações específicas de cada época, não
apenas na literatura, mas também na música e, sobretudo, nas artes plásticas,
âmbito este ao qual será lançado um breve olhar à guisa de conclusão.
O
drama goethiano sempre ofereceu às diferentes épocas o modelo literária para a
elucidação da respectiva auto-imagem mediante um questionamento tipicamente
fáustico: quão longe podemos ir na satisfação de nossas necessidades? Haveria
um limite à nossa aspiração por felicidade, riqueza e domínio? Caso haja esse
limite, onde começaria o pacto demoníaco? Tais questões encerram o problema
antropológico fundamental de determinar a relação entre Eu e mundo,
subjetividade e objetividade – e a esse problema Goethe confere forma literária
concreta em sua nova modulação do tema fáustico na primeira parte da tragédia,
mais precisamente por meio da contundente pergunta que Gretchen dirige a
Fausto: "Dize-me, pois, como é com a religião?" (v.3.415). Já no
final da segunda parte da tragédia, parece ser o próprio Goethe que, no gesto
típico do iluminista que exorta à auto-reflexão crítica, dirige à Modernidade,
num sentido mais amplo, aquela pergunta de Gretchen: Seria possível uma vida
inteiramente desprovida de religião? Na perspectiva da velhice, religião não
deve ser entendida num sentido ortodoxo, mas sim na chave geral de uma
espiritualidade sincrética, pós-crítica e pós-iluminista, tal como caracteriza
as paragens venturosas de Filemon e Baucis sob o signo do "eterno
Deus" (v.11.142) – paragens, contudo, que serão extintas pelo moderno
projeto colonizador de Fausto. Esse mesmo sincretismo espiritual irá
caracterizar depois os enigmáticos versos "celestiais" no final da
tragédia. No horizonte aberto da obra de velhice Fausto II e na consciência da ruptura
revolucionária com a tradição, a atualização goethiana da pergunta de Gretchen
se formula em relação à possibilidade de uma vida desprovida de todo e qualquer
pensamento de transcendência, tal como se expressa nas palavras de Fausto:
"Que importam do outro mundo os embaraços?" (v.1.660), "À nossa
vista cerra-se o outro mundo; / Parvo quem para lá o olhar alteia"
(v.11.442-11.443). Haveria ainda algo sagrado para nós, para a nossa cultura –
assim se coloca hoje a pergunta de Gretchen –, sagrado, porém, numa concepção
mais geral; haveria algo de valor insofismável e insubstituível, perante o qual
é imperioso deter-se, sobre o qual o fervilhamento generalizado e global não
deveria passar exercendo o recalque e a negação? Hoje, portanto, a pergunta de
Gretchen que nos é dirigida, à aspiração fáustica em nosso íntimo, diz:
"Haveria ainda um tabu?".
A
pergunta que Margarida dirige a Fausto é atemporal, uma vez que cada época
define a sua auto-imagem por intermédio dessa pergunta, passando primeiramente
pela determinação da relação entre religiosidade e profanidade – uma relação,
contudo, que no horizonte literário da tragédia de Goethe deve ser compreendida
como expressão concreta e ao mesmo tempo simbólica dos liames mais gerais e
profundos entre o "deter-se" e o "aspirar", entre repouso e
movimento, reflexão e ação, contemplação mundana e revolução mundial.
Como,
porém, se formula a resposta goethiana à pergunta de Gretchen? Goethe nunca foi
particularmente pio, pelo menos não em sentido confessional, motivo pelo qual
sempre foi hostilizado pela ortodoxia teológica e seus partidos radicais, que o
consideravam representante típico de uma civilização moderna iluminista-liberal
e alheia à religião ("ateísta"). Mas, apesar dessa imagem hostil, na
perspectiva de uma história das idéias se haverá de constatar: religioso de um
modo mais amplo, isso Goethe certamente foi, ou seja, naquela acepção original
e literal da religio como veneração espiritual perante o
que é indisponível e inacessível à vontade humana de poder, perante aquilo a
que Goethe pôde dar o nome decididamente não-ortodoxo de
"Eterno-feminino" e que ele encontrava sobretudo na contemplação da
Natureza, "in herbis et lapidibus" – muito ao contrário da
impulsiva e obcecada vontade fáustica de arrancar a Ísis o seu véu, de
agarrar-se ao seio da Natureza (v.455 e seguintes) e submetê-la ao seu projeto
de colonização e progresso. E é no sentido dessa espiritualidade livre,
interpretável tanto em chave religiosa como na filosófica, que se há de
compreender aquele fundamental verso místico no final da tragédia: "Tudo o
que é efêmero / É apenas pré-existência".
Aquém
da mística não-convencional e da contemplação espiritual da Natureza, a
resposta de Goethe à pergunta de Gretchen pela relação entre
"deter-se" e "aspirar" – pergunta tão virulenta em tempos
de crises e rupturas – pode ser percebida na Arte, e de maneira particularmente
nítida em seu Fausto. Pois
a concreta resposta goethiana ao moderno furor de negação, colonização e
movimento foi a própria Arte, e em especial uma arte inteiramente alheia ao
ideal moderno de dinamicidade e progresso, mas que, em vez disso, reverencia o
ideal do Classicismo, precisamente aquele momento do deter-se
contemplativo-reflexivo, ou mesmo espiritual, em face do Belo, o qual Fausto
amaldiçoa em sua angústia mórbida. É o próprio Kairós da filosofia antiga e de suas
doutrinas eudemonistas, o momento pleno do reconhecimento do verdadeiramente
existente – um ideal, portanto, que não pode ser superado por nada, por nenhum
progresso e por nenhuma das deslumbrantes promessas do futuro. Esse ideal de
consciência, vida, felicidade e beleza porta, na tragédia goethiana, o nome de
Helena. A Fausto é dado contemplar Helena, a mais bela mulher, vê-la na Grécia,
em um lugar por assim dizer extraterritorial, num interlúdio do drama. E na
Arcádia, ao lado de Helena, vigora a sentença: "Somente o presente é a
nossa felicidade". É esse o ideal de vida goethiano.9 É a inversão exata do pacto, da regra
fáustica segundo a qual se deveria dizer: "Somente o presente é a nossa
infelicidade", motivo pelo qual nós, contemporâneos modernos no espírito
de Fausto, não podemos nos deter nem por um instante sequer e temos de marchar
para o ainda-não-existente como que sobre um chão em brasas, sempre acossados
pelos ritmos inexoráveis de uma dinâmica onipresente, sempre insatisfeitos, em
permanente inquietação, em meio a uma caçada infindável pela riqueza e
felicidade presumivelmente sempre maiores, que jamais se oferecem no presente,
pois se evadindo sem cessar para o futuro.
Essa
dimensão frenética e vertiginosa que Goethe, movido por inequívoca intenção
crítica, imprimiu à tragédia fáustica foi captada com grande sensibilidade por
alguns de seus ilustradores, e cumpriria mencionar aqui, em primeiro lugar, o
pintor francês Eugène Delacroix (1798-1863). Com efeito, a disposição para a
inquietude, a obsessão impulsiva por agitação, a embriaguez de velocidade como
marca característica da existência tipicamente moderna de Fausto – tudo isso
foi convertido em imagem, com extrema intensidade e pregnância, no ciclo de
dezessete litografias que Delacroix concluiu em 1828 e que originalmente
ilustraram a tradução francesa de Frédéric Stapfer, publicada nesse mesmo ano.10
Quanto
ao Fausto II, destacam-se
certamente as ilustrações realizadas por Max Beckmann (143 desenhos a
bico-de-pena) entre 15 de abril de 1943 e 15 de fevereiro de 1944 em Amsterdã,
cidade de seu exílio entre 1937 e 1947. Pouco mais de um século após a
publicação da segunda parte da tragédia, Beckmann, um dos mais relevantes
artistas do século XX, retoma o olhar crítico que Goethe lançou sobre os
inícios da nova era e o traduz, em suas ilustrações do Fausto, na auto-reflexão
crítica do artista moderno e, indo mais além, na auto-reflexão crítica da
Modernidade como tal. Os desenhos de Beckmann, não raro com traços de
auto-retrato, mostram Fausto como personalidade dilacerada, exemplarmente
moderna, cujo estado de consciência corresponde à crítica situação do mundo
contemporâneo. Dificilmente se poderia conceber antinomia mais expressiva às
interpretações otimistas (e "perfectibilistas") do Fausto do que esses retratos de Beckmann que
lançam o homem moderno num universo de insegurança, angústia e apreensão. De
modo conseqüente, o artista baniu essa atmosfera sombria apenas dos desenhos da
clássica natureza arcádica, repetindo de maneira exata a frágil, possivelmente
resignada reflexividade na constelação criada por Goethe. E, no sentido dessa
correspondência congenial entre literatura e artes plásticas, valeria observar,
por fim: do mesmo modo como os místicos versos finais de Goethe, também as
imagens finais, e não menos místicas, de Beckmann são inteiramente inacessíveis
à lógica processual da moderna ideologia do progresso e às suas promessas
secularizadas de felicidade e redenção.11
Notas
1 As citações seguem a edição Faust. Eine Tragödie preparada por Albrecht Schöne
(Frankfurt, 1994). A versão em português dos versos citados corresponde à
tradução de Jenny Klabin Segall publicada em 2004 (Fausto. Uma tragédia –
Primeira Parte) e 2007 (Fausto. Uma tragédia – Segunda Parte).
2 A proibição do "parar", do
"deter-se", é precedida pelo fechamento da aposta entre Fausto e Mefistófeles:
"FAUSTO: Se eu me estirar jamais num leito de lazer, / Acabe-se comigo,
já! / Se me lograres com deleite / E adulação falsa e sonora, / Para que o
próprio Eu preze e aceite, / Seja-me aquela a última hora! Aposto, e tu?
MEFISTÓFELES: Topo!" (v.1.692-1.698). A aposta, por seu turno, decorre da
conjectura de Fausto acerca de um possível pacto que o vincularia a Mefisto:
"FAUSTO: O inferno, até, tem leis? mas, bravos! / Podemos, pois, firmar
convosco algum contrato, / Sem medo de anular-se o pacto?"
(v.1.413-1.415).
3 Quanto à proveniência da figura de
Fausto a partir do ambiente teológico e protestante do século XVI, e ainda
quanto à tradição dos livros históricos sobre o Doutor Fausto, ver o estudo de
Jochen Schmidt Goethes Faust.
Erster und Zweiter Teil. Grundlagen. Werk. Wirkung [O Fausto de Goethe.Primeira e
segunda partes. Fundamentos. Obra. Efeito] (Munique, 2001, p.11-33). Ver
também, à p.122 e seguintes, a elucidação que faz Schmidt, com fundamentos
históricos, da modernização da arcaica figura do diabo, levada a cabo por
Goethe ao fazer de Mefisto uma valência psíquica de Fausto. Na perspectiva
dessa psicologização, as conversas entre Fausto e Mefisto podem ser entendidas
como monólogos daquele.
4 Sobre esse período revolucionário na
Europa como pano de fundo da tragédia e, de um modo geral, sobre a
fenomenologia goethiana da incipiente Modernidade, ver o meu estudo Fausts Kolonie – Goethes kritische
Phänomenologie der Moderne [A
colônia de Fausto – A fenomenologia crítica da modernidade empreendida por
Goethe] (Würzburg, 2004).
5 Isso foi demonstrado de maneira
particularmente expressiva no caso das doutrinas pré-socialistas e
industrialistas de Saint-Simon e dos sant-simonistas, que Goethe incorporou,
por vezes em citações literais, em cenas do Fausto redigidas em 1831. Quem primeiro
apontou para esse aspecto foi Gottlieb C. L. Schuchard: "Julirevolution,
St. Simonismus und die Faustpartien von 1831" ["Revolução de julho,
saint-simonismo e as partes do Fausto de 1831"], in: Zeitschrift für deutsche Philologie 60 (1935). Ver também, a esse
respeito, o ensaio de Nicholas Boyle "The politics of Faust
II.
Another look at the stratum of 1831", in: Publications of the English Goethe
Society, v.52 (1981/1982), p.4-43.
6 A respeito do princípio da negação que
caracteriza o pensamento processual da revolução política e econômica na Modernidade,
e, ainda, a respeito da reflexão crítica que Goethe empreende em seu Fausto sobre tais fenômenos processuais de
negação, ver o meu ensaio "Fausts Revolution" ["A revolução de
Fausto"], in: Verweile
doch. Goethes Faust heute [Oh, pára! o Fausto de Goethe hoje]
(organizado por Michael Jaeger; Blätter des Deutschen Theaters, 2006,
p.103-14).
7 Sintomaticamente, Goethe insere tais
versos no manuscrito da tragédia somente após o seu retorno da Itália e sob o
impacto da fase inicial da Revolução Francesa. A versão mais antiga, o assim
chamado Urfaust (Fausto original), ainda não contém
esses versos típicos e representativos da época da Revolução. A gênese textual,
cujo conhecimento possibilita ilações sobre o crescente potencial histórico e
crítico da tragédia redigida ao longo de décadas, pode ser acompanhada à luz da
edição sinóptica do Fausto I organizada por Werner Keller: Urfaust; Faust. Ein Fragment;
Faust. Eine Tragödie.Paralleldruck der drei Fassungen [Fausto original; Fausto. Um
Fragmento; Fausto. Uma Tragédia. Impressão paralela das três versões]
(Frankfurt a.M., 1985).
8 Foi a recepção "socialista"
(em seu sentido mais amplo) da tragédia goethiana que construiu a exegese
"perfectibilista" mais conseqüente, mais bem elaborada
filosoficamente, tomando o seu ponto de partida nas especulações teóricas de
Hegel sobre o Fausto:
Georg Lukács, na chave de um marxismo mais rigoroso, e Ernst Bloch, numa
perspectiva utópica e não-ortodoxa, para citar apenas dois proeminentes
exemplos do século XX.
9 Pierre Hadot, em seu grandioso estudo
sobre a tradição do exercitium
spirituale, discute o caráter eudemonista da espiritualidade clássica de
Goethe, seus antigos textos de referência e a tradição desses na história da
filosofia e da religião (P. Hadot. Exercices
spirituels et philosophie antique [Paris,
1987] – ver, em especial, o capítulo sobre Goethe, p.101-22, intitulado
justamente "Somente o presente é a nossa felicidade").
10 Essa constatação pode ser atualizada
com a edição bilíngüe do Fausto
I publicada pela Editora 34
(2004), em tradução de Jenny Klabin Segall, com notas e comentários de Marcus
V. Mazzari e ilustrações de Delacroix.
11 A recente edição brasileira da segunda
parte da tragédia, novamente em tradução de J. K. Segall (Editora 34, 2007),
propicia ao leitor a possibilidade de colocar à prova essas observações sobre a
relação entre os desenhos de Beckmann e o substrato crítico do Fausto II.
Michael
Jaeger é docente na Universidade Livre de Berlim.
Publicou, entre outros, o estudo Fausts
Kolonie – Goethes kritische Phänomenologie der Moderne [A colônia de Fausto – A
fenomenologia crítica da modernidade empreendida por Goethe] (Würzburg,
2004). Mais recentemente, organizou o volume Verweile
doch. Goethes Faust heute [Oh,
pára! o Fausto de Goethe hoje] (Blätter des Deutschen Theaters, 2006). @ –Asmljaeger@aol.com
Tradução de Marcus Vinicius Mazzari. O original em alemão – "Fausts Wette und der Prozeß der Moderne" – encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta.
Tradução de Marcus Vinicius Mazzari. O original em alemão – "Fausts Wette und der Prozeß der Moderne" – encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta.
Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142007000100025&script=sci_arttext