O primeiro canto

O primeiro canto

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O Fantasma de Canterville - Oscar Wilde



O Fantasma de Canterville
I
Quando Mister Hiram B. Otis, o Ministro Americano, adquiriu Canterville Chase, não faltou quem o advertisse de que fazia um péssimo negócio, pois sem dúvida o lugar era mal assombrado.Na verdade, o próprio Lord Canterville, cujo caráter era escrupuloso e da mais absoluta honestidade, julgara seu dever mencionar o fato a Mr Otis, quando chegara o momento de discutirem as condições do contrato.

"Nós mesmos tratamos de não morar mais aqui," disse Lord Canterville " desde que a minha tia-avó, a Duquesa Viúva de Bolton, teve um acesso de terror, (do qual jamais recobrou-se integralmente) quando duas mãos de esqueleto pousaram sobre seus ombros ao vestir-se para o jantar. Sinto-me obrigado a dizer-lhe, Mr Otis, que o fantasma tem sido visto por vários membros ainda vivos da minha família, bem como pelo pároco, o Reverendo Augustus Dampier, membro do King's College, em Cambridge. Após o infortunado incidente sucedido à duquesa, nenhum dos nossos criados mais jovens quis permanecer conosco, e Lady Canterville dificilmente dormia bem à noite, por causa dos misteriosos ruídos vindos do corredor e da biblioteca".

"Milorde", respondeu o Ministro " Vamos incluir o fantasma no preço da mobília. Venho de um país moderno,onde temos tudo quanto o dinheiro pode comprar, e com todos os nossos dinâmicos jovens compatriotas pintando o sete no Velho Mundo, arrebatando seus melhores atores e prima-donnas, concluo que se existisse algo parecido com um fantasma na Europa, certamente já estaria em nosso país, sendo exibido em um dos nossos museus, ou nos espetáculos ambulantes".

"Temo que o fantasma exista", respondeu sorrindo, Lord Canterville, "embora tenha resistido às propostas dos seus arrojados empresários. É bem conhecido há três séculos, precisamente a partir do ano de 1584, e nunca deixa de aparecer na véspera do falecimento de qualquer membro da nossa família".

"Bem, em todas as famílias o médico faz o mesmo, Lord Canterville. Fantasmas não existem, e não creio que as leis da natureza sejam suspensas em favor da aristocracia inglesa."

"Os americanos certamente são bem naturais", comentou Lord Canterville, sem compreender inteiramente a última observação de Mr. Otis, "e se não se incomoda em ter um fantasma em casa, está tudo certo. Mas não deve esquecer-se de que eu o avisei".

Poucas semanas depois o negócio foi concluído, e ao fim da temporada o Ministro e sua família mudaram-se para Canterville Chase.Mrs Otis, que como Miss Lucrécia R. Tappan, da rua West 53, fora célebre em New York por sua beleza, era agora uma elegantíssima mulher de meia-idade, com lindos olhos e soberbo perfil. Muitas damas americanas ao deixarem o país natal afetam um ar de indisposição crônica, que imaginam corresponder ao modelo de refinamento europeu, mas Mrs. Otis jamais caíra em semelhante erro.Possuia magnifica constituição e uma energia espantosa. Na verdade, e sob vários aspectos ela era quase inglesa, e um excelente exemplo de que hoje em dia temos tudo em comum com a América, exceto, naturalmente, o idioma. Seu filho mais velho, a quem os pais deram o nome de Washington num momento de patriotismo que ele jamais deixara de lamentar, era um rapaz de cabelos louros e feições agradáveis, que parecia perfeitamente dotado para entrar na diplomacia americana, pois liderara os alemães no Cassino de Newport por três temporadas seguidas, e mesmo em Londres era conhecido como exímio dançarino.

Gardênias e nobreza eram suas únicas fraquezas.Fora isso,era extremamente ajuizado. Miss Virgínia E. Otis era uma jovenzinha de quinze anos, graciosa e esbelta como uma gazela, e cujos enormes olhos azuis refletiam agradável desembaraço.Era admirável amazona, e uma vez montada em seu potro, apostara uma corrida com o velho Lord Bilton, dando duas voltas no parque e o vencera por corpo e meio, precisamente diante da estátua de Aquiles, para grande enlevo do jovem Duque de Cheshire, que a pediu em casamento ali mesmo, e foi mandado por seus tutores de volta a Eton nesta mesma noite , afogado em lágrimas. Depois de Virgínia, vinham os gêmeos, geralmente chamados de "estrelas e listas", pois eram frequentemente chicoteados.

Eram garotos encantadores e com exceção do digno Ministro, os únicos verdadeiros republicanos da família.

Como Canterville Chase ficava a sete milhas de Ascot, a estação ferroviária mais próxima, Mr. Otis telegrafara pedindo uma carruagem para esperá-los e puseram-se todos a caminho, muito animados. Era um adorável fim de tarde de julho, e o aroma dos pinheiros embalsamava o ar.De quando em quando, ouviam um pombo bravo arrulhar docemente, ou vislumbravam escondido no mato o peito brilhante de um faisão.À sua passagem, pequenos esquilos os espreitavam por entre as faias, e os coelhos fugiam em disparada através dos arbustos ou por sobre os outeiros recobertos de musgo, com suas caudas brancas para o alto. Porém, quando tomaram a alameda de Canterville Chase, o céu nublou-se subitamente, uma estranha calma pareceu envolver a atmosfera, um bando de gralhas passou silenciosamente sobre suas cabeças, e, antes que chegassem até a casa, começaram a cair grandes pingos de chuva.

De pé na escada para recebê-los estava uma mulher idosa, caprichosamente vestida de seda negra, com touca branca e avental. Era Mrs Umney, a governanta, a quem Mrs. Otis, mediante o decidido empenho de Lady Canterville, consentira em conservar na sua antiga posição. Logo que saíram do coche, ela fez uma profunda reverência a cada um deles e disse de um jeito graciosamente antiquado e fora de moda:

"Sejam bem-vindos a Canterville Chase".

Seguiram-na, e depois de atravessarem um belo vestíbulo Tudor, entraram na biblioteca, comprido aposento de teto baixo, apainelado de carvalho negro, tendo ao fundo uma grande janela com vitrais. Ali fora arrumada a mesa do chá, e, após tirarem os abrigos de viagem, sentaram-se olhando em torno, enquanto Mrs. Umney os servia.

De repente Mrs. Otis atentou para uma mancha vermelho escuro no soalho perto da lareira, e inteiramente alheia quanto ao real significado daquilo, disse a Mrs Umney:

"Creio que derramaram alguma coisa ali".
"Sim, minha senhora", respondeu em voz baixa, a velha governanta, "derramaram sangue naquele lugar".

" Mas é horrível", exclamou Mrs. Otis. " Não gosto nada de ver manchas de sangue nos salões. É preciso remove-la imediatamente".
A velhota sorriu e respondeu, na mesma voz baixa e misteriosa:
"É o sangue de Lady Eleanor de Canterville, assassinada exatamente neste local por seu próprio marido, Sir Simon de Canterville, em 1575. Sir Simon sobreviveu-lhe nove anos, e um dia desapareceu misteriosamente. Seu corpo jamais foi encontrado , mas seu espírito culpado ainda assombra esta casa. A mancha de sangue sempre provocou o espanto dos visitantes e turistas e não pode ser removida".

"Que absurdo", exclamou Washington Otis, "O Campeão dos Tira- Manchas Pinkerton e o detergente Paragon, limparão isso num instante".E antes que a apavorada governanta pudesse intervir, Washington, ajoelhou-se e esfregou vigorosamente assoalho com um bastãozinho que lembrava um cosmético negro.Num instante a mancha de sangue sumiu sem deixar traços. "Eu sabia que o Pinkerton resolveria o caso", exclamou triunfante, olhando a família, que o rodeava cheia de admiração, mas mal acabara acabara de pronunciar aquelas palavras, o clarão de um raio iluminou o sombrio aposento, um apavorante trovão ribombou, e Mrs. Umney desmaiou.
"Que clima monstruoso", disse calmamente o Ministro Americano enquanto acendia um longo charuto, "Acho que este velho país está tão super povoado que não há um clima decente que chegue para todo mundo.Fui sempre de opinião que a emigração era a única solução para a Inglaterra".
"Meu caro Hiram", disse Mrs. Otis, " que faremos com uma mulher que desmaia assim ?"

"Desconte-lhe as coisas quebradas do salário", respondeu o Ministro, "ela não tornará a desmaiar depois disso".Mrs. Uniney voltou a si em poucos instantes. Estava, porém, sem dúvida alguma,muito abalada.Com ar grave, preveniu Mrs. Otis de que não tardariam a registrar-se acontecimentos perturbadores na casa. "Tenho visto com os meus próprios olhos, Senhor", disse ela, " coisas que fariam qualquer Cristão ficar com os cabelos em pé, e noite após noite não prego os olhos por causa dos fatos terríveis que se passam aqui".Mr. Otis e sua esposa afirmaram calorosamente à boa mulher que não tinham medo de fantasmas, e depois de invocar as bênçãos da Providência sobre seus novos patrões e procedido de jeito a obter aumento de salário, a velha governanta recolheu-se ao seu quarto,um tanto trôpega.

II
A violenta tempestade desabou com selvageria durante toda aquela noite, mas nada de especial aconteceu. Na manhã seguinte, porém, ao descer para o desjejum, os Otis verificaram que a horrível mancha de sangue reaparecera no assoalho. "Não acho que a culpa seja do Detergente Paragon", disse Washington , " pois já o experimentei num monte de coisas. Isto deve ser o fantasma".Ele conseguiu apagar a mancha pela segunda vez, mas na segunda manhã ela apareceu de novo. Na manhã do terceiro dia também lá estava, embora a biblioteca tivesse sido trancada à noite por Mr. Otis em pessoa, que ainda tomara o cuidado de levar a chave consigo ao subir.Toda a família encontrava-se agora interessadíssima e Mr. Otis começou a suspeitar de que havia sido dogmático demais ao negar a existência de fantasmas, Mrs. Otis manifestou sua intenção de inscrever-se na Sociedade de Estudos Psíquicos, e Washington enviou uma extensa carta aos senhores Myers e Podmore, acerca da Persistência das Manchas Sanguíneas relacionadas aos Crimes de Morte. Nessa noite, todas as dúvidas a respeito da existência objetiva dos fantasmas dissiparam-se para sempre.
0 dia havia sido quente e ensolarado e ao frescor do anoitecer , toda a família saiu para dar uma volta.Não regressaram senão lá pelas nove horas, quando fizeram uma ceia leve.De modo algum, a conversa incluiu qualquer alusão aos fantasmas, de maneira que não se poderiam pôr em causa essas preliminares condições de expectativa e auto-sugestão que tantas vezes precedem a aparição dos fenômenos psíquicos. Como Mr. Otis contou-me mais tarde, a discussão girou em torno de assuntos triviais que constituem a conversação entre americanos cultos da melhor sociedade, como a imensa superioridade de Miss Fanny Davenport, como atriz, sobre Sarah Bernhardt; a dificuldade de obter milho verde, bolos de trigo mouro, mesmo nos melhores estabelecimentos ingleses; a importância de Boston no desenvolvimento da espiritualidade mundial; as vantagens do sistema de registro das bagagens nas estradas de ferro; a suavidade do sotaque nova-iorquino,comparada com a pronúncia arrastada de Londres. Nenhuma menção foi feita às coisas sobrenaturais, ou muito menos a Sir Simon de Canterville.
Às onze horas a família recolheu-se, e às onze e meia todas as luzes já estavam apagadas.
Algum tempo depois, Mr. Otis foi despertado por um ruído singular que vinha do corredor, em frente a porta do seu quarto. Soava como um clangor de metal, e aproximava-se cada cada vez mais.Levantou-se imediatamente, riscou um fósforo e olhou o relógio.Era uma hora em ponto.Razoavelmente calmo, Mr.Otis tomou o próprio pulso e verificou que as pulsações não estavam exageradas, logo, não era febre. O ruído estranho continuava, e dentro em pouco Mr. Otis percebeu distintamente passos. Enfiou os chinelos, tirou do seu estojo de toalete uma garrafinha oblonga e abriu a porta. Bem diante de si, ao pálido luar ele viu um velho de terrível aspecto. Seus olhos, pareciam carvões em brasa e lançavam clarões vermelhos.Os cabelos longos e grisalhos caíam-lhe sobre os ombros em madeixas emaranhadas.O traje, de corte antiquado estava manchado e em farrapos.Pesados grilhões enferrujados pendiam-lhe dos pulsos e dos tornozelos. "Meu caro senhor, disse Mr. Otis, "devo realmente insistir para que lubrifique esses grilhões, e pensando no senhor, trouxe-lhe esta garrafinha do Lubrificante Tammany Sol Levante. Dizem ser inteiramente eficaz logo à primeira aplicação. Na embalagem há vários testemunhos assinados por teólogos eminentes do meu país. Deixarei o frasco aqui, junto dos candelabros, e sentir-me-ei deveras feliz em arranjar-lhe outro, se o senhor assim o desejar". Ao dizer isto, o Ministro dos Estados Unidos colocou o frasco sobre o tampo de mármore de uma mesa e, fechando a porta, voltou a meter-se na cama.

O Fantasma de Canterville ficou uns instantes imóvel, cheio de uma indignação bem natural; depois, arremessando violentamente o frasco ao soalho encerado, sumiu-se ao longo do corredor a soltar grunhidos cavernosos e projetando terrificantes clarões verdes ao redor.Porém, ao atingir o alto da grande escadaria de carvalho, uma porta abriu-se bruscamente, apareceram duas figurinhas vestidas de branco, e um enorme travesseiro passou-lhe, zumbindo, rente à cabeça! Decididamente, não havia tempo a perder e, adotando a Quarta Dimensão como rápido meio de salvação, esgueirou-se através da parede, e casa voltou ao sossego.
Tendo alcançado a pequena câmara secreta situada da ala esquerda, apoiou-se para retomar fôlego, e pôs-se a refletir no que lhe acabara de suceder.Em toda a sua carreira de trezentos anos, brilhante e ininterrupta, nunca havia sido tão grosseiramente insultado. Recordou o paroxismo de terror que infundira na Duquesa Viuva, levando-a a ter um ataque, quando se contemplava no espelho,enfeitada de diamantes e rendas; as quatro criadinhas que haviam tido uma crise de nervos, muito simplesmente porque ele, rindo com escárnio, as espreitara através dos cortinados de um dos quartos de hóspedes; o cura da paróquia, cuja vela apagara com um sopro quando saia tarde da noite da biblioteca, e de como este ficara sob os cuidados de Sir William Gul, desde então um perfeito Mártir dos distúrbios nervosos ; a velha senhora de Tremouillac, a qual tendo acordado de manhã cedinho e visto um esqueleto sentado numa poltrona junto da lareira, imerso na leitura do seu diário, ficara presa ao leito por seis semanas com febre cerebral. Ao convalescer, reconciliara-se com a Igreja, cortando todas as relações com Monsier de Voltaire, esse cético notório Lembrou-se também da terrível noite em que o patife do Lord Carterville fora encontrado no seu quarto de vestir meio sufocado, com o valete de ouros no fundo da garganta;e de como este confessara antes de morrer, ter trapaceado no jogo por meio dessa carta, e roubado de Charles James Fox, em Crockford's, cinqüenta mil libras esterlinas, e jurava que o fantasma obrigara-o a engolir a carta. Rememorou todos estas grandes façanhas e evocou ainda o caso do mordomo que atirara em si mesmo na dispensa, após ter visto uma mão verde bater nos vidros; depois, o da bela Lady Stutfield, que fora obrigada a usar sempre uma fita de veludo negro em volta do pescoço, para ocultar a marca que cinco dedos de fogo haviam impresso na sua pele branca, e que acabara por se matar, afogando-se no lago das carpas, no fim da Alameda do Rei. Com o egoísmo entusiástico do verdadeiro artista, o Fantasma passou em revista as suas realizações mais famosas. E com um sorriso cheio de azedume, recordou-se da sua última aparição como "Red Ruben ou o Bebê Estrangulado", da sua estréia em "O Magro Gibeon ou O Vampiro de Bexley Moor", e da agitação que provocara, numa encantadora tarde de junho, brincando muito simplesmente com a sua própria ossada, em cima da relva do campo de tênis. E ao fim de estes feitos, eis que uns miseráveis americanos modernos lhe vinham oferecer Lubrificantes Sol Levante e arremessar-lhe travesseiros à cabeça! Era verdadeiramente intolerável. Nunca fantasma algum fora tratado daquela maneira. Decidiu que teria sua vingança, e até romper a aurora, permaneceu em atitude de profunda meditação.

III
Na manhã seguinte, quando a família Otis reuniu-se durante o café da manhã, conversou-se um pouco sobre o fantasma, mas o Ministro dos Estados Unidos, estava, como é natural, um pouco aborrecido por ver que sua dádiva não fora aceita.

"De forma alguma eu tive a intenção de infligir ao fantasma qualquer dano pessoal e,sendo certo que ele reside na casa há tanto tempo, vocês devem admitir que é muito pouco delicado atirar-lhe travesseiros à cabeça."
Lamento declarar, que perante esta justa advertência, os gêmeos desataram em gargalhadas.

"Por outro lado", prosseguiu o embaixador, "se ele se recusa, teimosamente, a usar o lubrificante Sol Levante, teremos que confiscar-lhe os grilhões. É impossível dormir comum barulho assim no corredor!"
Mas, durante todo o resto da semana, não foram incomodados de forma alguma, e a única coisa a excitar a atenção era o reaparecimento contínuo da mancha de sangue no soalho da biblioteca. E isso era muito estranho, porque Mr. Otis fechava a porta a chave todas as tardes e mandava trancar bem as janelas. O fato da mancha mudar tantas vezes de cor como se fosse um camaleão, provocava igualmente numerosos comentários.
Em determinadas manhãs, ela aparecia em vermelho escuro (quase indiano), numa outra, em vermelhão francês, em seguida, púrpura, até que uma vez, quando os Otis desceram para as orações familiares, conforme os ritos cheios de simplicidade da Igreja Livre Americana Reformada e Episcopal, eles a encontraram em verde esmeralda resplandecente. Naturalmente, estas mutações caleidoscópicas muito divertiam a família, e todas as noites, estabeleciam-se apostas a seu respeito. A única pessoa que não tomava parte na brincadeira era a pequena Virgínia, que, por qualquer razão ignorada, parecia sempre consternada ao ver a mancha de sangue e esteve perto de desatar a chorar na manhã em que a nódoa apareceu no tom verde-esmeralda.
A segunda aparição do fantasma aconteceu num domingo, à noite. Pouco tempo depois de se haverem recolhido, foram de súbito alarmados por um medonho estrondo vindo do vestíbulo.Descendo precipitadamente as escadas, verificaram que uma grande e antiga armadura fora despregada de seu pedestal e atirada no lajedo, enquanto o Fantasma de Canterville, sentado numa cadeira de espaldar alto e com uma expressão de intensa agonia, esfregava os joelhos.Os gêmeos, que se tinham munido das suas atiradeiras, descarregaram imediatamente dois pequenos projéteis sobre o fantasma, com essa precisão de pontaria que só longos e sérios exercícios, tendo por mestre um professor exímio, podem dar, enquanto o Ministro dos Estados Unidos, mantendo-o sob a ameaça do seu revólver, intimava-o, segundo a etiqueta californiana, a que pusesse as mãos ao alto. O Fantasma levantou-se bruscamente, com um medonho grito de raiva e deslizou por entre eles todos tal qual um nevoeiro, apagando na sua passagem a vela de Washington Otis e deixando-os na completa escuridão. Ao alcançar o cimo da escadaria, o Fantasma recobrou ânimo e decidiu soar o famoso carrilhão de risos demoníacos, cuja utilidade mais de uma vez havia experimentado.
Contava-se que aquilo fizera embranquecer, durante o espaço de uma só noite, a cabeça de Lorde Raker, e fizera com que três governantas francesas de Lady Canterville se despedissem antes do fim do mês. Riu portanto com seu riso mais horripilante fazendo tremer o teto abobadado. Mal porém se extinguira o medonho eco, abriu-se uma porta e Mrs. Otis surgiu trajando um leve roupão azul." Temo que o senhor não esteja se sentindo bem, disse ela," e trouxe-lhe um vidro do Elixir do Dr. Dobell, e se por ventura tratar-se de indigestão, o senhor verá que é um excelente remédio."
O Fantasma olhou-a furioso e começou a fazer preparativos para transformar-se num grande cão negro, proeza pela qual era justamente renomado e que motivara, segundo o médico da família, a permanente idiotia do tio de Lorde Canterville, o Hon.Thomas Horton.O som de passos aproximando-se fê-lo, porém, hesitar. Limitou-se a tornar-se ligeiramente fosforescente e desapareceu com um tétrico gemido, exatamente quando os gêmeos acabavam de chegar.

Entrou em seu quarto inteiramente aniquilado, tomado de violenta agitação.
A vulgaridade dos gêmeos e o crasso materialismo de Mrs Otis eram extremamente desagradáveis, contudo, o que realmente o perturbava era o fato de não ter podido usar a armadura. Tivera a esperança de que mesmo americanos modernos, se emocionassem à vista do Espectro de Armadura, se não por um motivo razoável, pelo menos por respeito ao poeta nacional Longfellow, cuja graciosa e atraente poesia, a ele mesmo entretivera quando os Cantervilles estavam na cidade. Além disso tratava-se de sua própria armadura. Usara-a com êxito no torneio de Kenilworth e fora muito cumprimentado pela Rainha Virgem em pessoa. Todavia, ao vesti-la, sentira-se completamente abatido pelo peso da enorme couraça e do capacete de aço, caindo pesadamente no cão de pedra e ferindo os joelhos e os dedos da mão direita.

Durante alguns dias sentiu-se muito doente e não se afastou do quarto, exceto para manter em ordem a mancha de sangue. Porém, acreditando-se restabelecido resolveu fazer uma terceira tentativa de assustar o Ministro dos Estados Unidos e sua família.

Escolheu sexta-feira, 17 de agosto, para a aparição e gastou a maior parte do dia examinando seu guarda-roupa. Decidiu-se por fim a favor de um grande chapéu de penacho vermelho e um enferrujado punhal. À tarde desabou um violento temporal e o vento era tão forte que fazia estremecer todas as janelas e portas da velha casa. Era exatamente a espécie de tempo que lhe agradava. Seu plano de ação era o seguinte: caminharia sem ruído até o quarto de Washington Otis, gemeria aos pés da cama e se apunhalaria três vezes no pescoço, ao som de música lenta. Nutria por Washington um especial rancor, estando ciente do fato de que era ele o responsável pela remoção da mancha de Canterville com o Detergente Paragon, de Pinkerton. Depois de reduzir o desabrido e tolo jovem à condição de abjeto terror, avançaria pelo quarto ocupado pelo Ministro dos Estados Unidos e sua esposa, colocaria mão pegajosa sobre a testa de Mrs. Otis, ao mesmo tempo que murmuraria aos ouvidos de seu trêmulo marido segredos medonhos de necrotério. Com respeito a Virgínia ainda não tomara uma decisão. Ela jamais o insultara de modo algum, e era bonita e tranquila. Alguns gemidos cavos dentro do armário seriam mais que suficientes ou, se isso não a despertasse, poderia segurar a colcha com os dedos trêmulos. Quanto aos gêmeos estava decidido a dar-lhes uma lição. A primeira coisa a fazer, naturalmente sentar-se sobre o peito deles, de maneira a produzir a sufocante sensação de asfixia e pesadelo. Depois, como suas camas ficassem bem juntas, surgiria de pé entre elas sob a forma de um cadáver verde e gelado, até que os meninos ficassem paralisados de medo. Por último, despojando-se da mortalha, arrastar-se-ia em volta de todo o aposento com a sua ossada embranquecida, fazendo ao mesmo tempo os olhos girarem, numa imitação de "Daniel, o Mudo, ou o Esqueleto do Suicida", papel no qual produzira grande efeito em muitas ocasiões e ao qual atribuía a mesma importância da sua famosa personagem "Martin, o Louco, ou O Mistério Mascarado”.

Às dez e meia, ouviu a família recolher-se. Durante um bocado de tempo foi perturbado pelas selvagens risadas dos gêmeos, os quais, com a descuidada alegria de estudantes, certamente se divertiam antes de se meterem na cama.Todavia, às onze horas e um quarto tudo estava quieto, e ao soar a meia-noite, ele partiu para a sua expedição.O mocho vinha roçar as asas nos vidros das janelas, o corvo crocitava no cimo do velho teto e o vento vagueava em volta da casa, gemendo como alma penada. Mas, a família Otis dormia, inconsciente do seu destino, e o cadenciado ressonar do Ministro dos Estados Unidos cobria o ruído do temporal. O fantasma esgueirou-se para fora da madeira das paredes sem dar sinal de si. Sobre a sua boca murcha e cruel desenhava-se um aflitivo sorriso, e a lua escondeu-se por detrás de uma nuvem, quando ele passou junto da grande janela ogival, ornada de um brasão azul e ouro, que representava as suas próprias armas e as da sua esposa assassinada. Deslizava como uma sombra funesta e até as trevas pareciam odiá-lo. De súbito, supôs ouvir alguém a chamá-lo. Deteve-se; mas apenas o latido de um cão subia da Granja Vermelha. Prosseguiu caminho,resmungando estranhas pragas do século dezesseis e brandindo de quando em quando a adaga cheia de ferrugem.O fantasma atingiu, por fim, o recanto do corredor que conduzia ao quarto do infortunado Washington. Parou um instante. O vento sacudia-lhe as madeixas compridas e cinzentas, fazendo ondular, de maneira grotesca e fantástica, o sudário de morto. O quadro inspirava indizível horror. O relógio soou então o quarto de hora. Compreendeu que chegara o momento. Soltou, baixinho, uma risadinha de escárnio e contornou a esquina do corredor. Mas, mal tinha dado um passo, logo recuou com um lamentoso gemido de terror, ocultando a face macilenta nas mãos ossudas. Diante de si, erguia-se um horrível espectro, tão imóvel como uma figura de pedra, tão monstruoso como o sonho de um louco. A cabeça dele era calva e luzidia, a face redonda, gorda e branca. Um riso ignóbil parecia ter-lhe contorcido as feições numa expressão eterna de zombaria. Dos olhos, escorriam clarões escarlates. A boca era um largo poço de fogo e uma horrenda vestimenta, semelhante à sua, envolvia de longas pregas brancas o vulto titânico.Um letreiro, contendo uma inscrição em caracteres estranhos e antigos, ornava-lhe o peito: sem dúvida, um pergaminho de infâmia, a narrativa de medonhas faltas, uma lista de crimes espantosos. Com a mão direita, brandia um gládio de aço luzidio.

Nunca tendo visto um fantasma antes, sentiu naturalmente um grande pavor.
Relanceou os olhos sobre o outro fantasma uma segunda vez e desatou a fugir para o seu quarto, tropeçando, ao seguir pelo corredor, no longo sudário que trazia. Por último, deixou cair a adaga enferrujada dentro das grossas botas do embaixador, onde o mordomo foi encontrá-la no dia seguinte de manhã. Uma vez no refúgio da sua alcova, atirou-se para cima da estreita enxerga e enterrou o rosto nos lençóis. Porém, transcorrido um pedaço de tempo, a antiga coragem dos Cantervilles recuperou os seus direitos. Decidiu ir falar com o outro fantasma logo que nascesse o dia. E apenas a aurora prateou as colinas, voltou ao local onde havia, visto pela primeira vez o formidável espectro, raciocinando que, no final das contas, dois fantasmas valiam mais do que um e que, com a ajuda do seu novo colega, talvez vencesse melhor os gêmeos. Mas quando ali chegou, no mesmo lugar, um horrível espetáculo feriu seus olhos: Era de todo evidente que acontecera qualquer coisa ao fantasma, porque a luz lhe desaparecera completamente das órbitas, o gládio luzidio escorregara-lhe da mão e o corpo encostava-se à parede numa atitude de constrangimento e incômodo. Precipitou-se para ele e tornou-o nos braços. Mas, com assombro seu, a cabeça do outro rolou para o chão, o corpo foi-se abaixo e ele percebeu que estreitava apenas um cortinado de cama, de fustão branco, ao mesmo tempo que uma escova de cabo, um machado de cozinha e um nabo oco lhe jaziam aos pés. Incapaz de compreender esta curiosa transformação, pegou o letreiro com pressa febril e, à luz fosca da aurora, leu estas palavras abomináveis:
"0 FANTASMA OTIS é o único, autêntico e original espantalho. DESCONFIEM DAS Imitações!..."

Como num relâmpago, compreendeu tudo. Tinham-lhe pregado uma peça! A característica expressão dos Cantervilles perpassou-lhe nos olhos; cerrou as maxilas sem dentes ,levantando muito alto, acima da cabeça, as mãos descamadas, jurou, segundo a fraseologia pitoresca da escola antiga, que, quando Chantecler entoasse seu canto pela segunda vez, dar-se-iam ali acontecimentos sangrentos e a Morte deslizaria por aqueles lugares em passos silenciosos.

Mal formulara este temível juramento, subiu, a distância, do galinheiro coberto de telhas vermelhas, o canto alegre de um galo. O Fantasma soltou um prolongado e amargo riso e esperou. Hora após hora, esteve à espera; mas, por qualquer razão estranha,Chantecler não repetiu o canto. Por fim, às sete horas e meia, a chegada dos criados obrigou-o a abandonar o seu horrível posto de sentinela. Regressou ao quarto a passos lentos, a meditar na sua vã esperança e no seu abortado plano. Consultou, então, muitas obras a que dedicava particular apreço e que tratavam dos antigos tempos da cavalaria. Aí verificou que, em todas as vezes que tal juramento havia sido formulado, sempre o galo cantara uma segunda vez. “Que a perdição recaia sobre esta maldita ave!”, resmungou ele, “ Pena não me encontrar no empo em que, com minha intrépida lança, lhe trespassaria a garganta e em que o teria obrigado a cantar só para mim até perder o sopro!” Depois, estendeu-se num confortável ataúde de chumbo, onde permaneceu até o anoitecer.

IV
No dia seguinte, o Fantasma estava muito fraco e cansadíssimo. Começava a ressentir-se dos efeitos da medonha agitação das quatro últimas semanas. Seus nervos estavam abalados e até o menor ruído o sobressaltava. Não saiu do quarto durante cinco dias e decidiu por fim renunciar à nódoa de sangue no chão da biblioteca. Se a família Otis não queria aquilo, estava claro que, sem sombra de dúvida, não era digna do caso. Era evidente que essas pessoas viviam num plano de existência de baixo materialismo e eram incapazes de apreciar o valor simbólico dos fenômenos sobrenaturais. O assunto das aparições espectrais e o desenvolvimento dos corpos astrais eram, bem entendido, coisas diferentes e alheias à atenção dessa gente. Ele, Fantasma, tinha como missão, missão solene, aparecer no corredor uma vez por semana e ulular através de um janelão ogival na primeira e na terceira quartas-feiras do mês e não via maneira de poder subtrair-se honrosamente às suas ocupações. A sua vida, é certo, fora culposa, mas por outro lado, ele era rigidamente escrupuloso em tudo quanto se relacionava com o sobrenatural.
Portanto, três sábados a fio, o Fantasma atravessou o corredor como de costume, entre a meia-noite e as três horas da manhã, tomando mil precauções para não ser visto, nem ouvido. Tirou os sapatos, pisou tão levemente quanto possível as faixas do assoalho roídas pelo caruncho,enrolou-se no manto de veludo negro e pensou empregar o Lubrificante Sol Levante para untar os seus grilhões. Devo ressaltar que reconheço não ter sido sem dificuldade que veio a adotar este radical meio de proteção, contudo,certa noite na hora em que a família se preparava para o jantar, introduziu-se nos aposentos de Mr. Otis e levou a tal garrafinha. Inicialmente sentiu-se um tanto humilhado, mas logo teve o bom senso de reconhecer que a invenção estava longe de ser má, e até certo ponto, lhe favorecia os planos.

Apesar de tudo, não deixaram de molesta-lo. Constantemente, estendiam barbantes no corredor que o faziam tropeçar no escuro, e uma vez, em que se encontrava vestido para desempenhar o papel de " Isaac Negro ou O Caçador de Hogley Woods", sofreu uma queda muito grave sobre um declive que os gêmeos haviam armado, e que ia da sala das tapeçarias até o cimo da escada de carvalho. Esta última afronta pô-lo em tamanha fúria que resolveu fazer um derradeiro esforço a fim de restabelecer a sua dignidade e a sua posição social. Decidiu, pois, uma visita, na noite seguinte, aos juvenis e insolentes colegiais de Eton, no seu famoso disfarce de "Rupert, o Despreocupado Tudo, ou o Conde-sem-Cabeça". O Fantasma já não fazia aparição alguma mascarado desta maneira há mais de setenta anos, precisamente desde que, assim vestido, aterrorizara a gentil Lady Bárbara Modish, a ponto de ela ter rompido bruscamente as promessas de noivado com o avô do atual Lord Canterville e fugido para Gretna Green com o belo Jack Castleton, declarando que nada neste mundo a faria entrar numa família que deixava um tão horrível fantasma percorrer o terraço, ao crepúsculo. Mais tarde, o pobre Jack foi morto em duelo por Lord Canterville em Wandsworth Common, e Lady Bárbara, com o coração despedaçado, morreu em Tunbridge Wells. E morrera antes de findar aquele mesmo ano, de sorte que, sob todos os aspectos, fora um esplêndido sucesso.
Todavia, tratava-se de uma caracterização extremamente difícil, se me é permitido usar esta expressão de teatro, a propósito de um dos maiores mistérios do sobrenatural, ou, para empregar um termo mais científico, do mundo natural supra-normal. Foram gastas precisamente três horas para executar os preparativos, mas finalmente tudo ficou pronto.Estava muitíssimo satisfeito com sua aparência. As altas botas de montar que condiziam com o traje eram um tanto largas demais para ele, e não tinha podido achar senão uma de suas pistolas. Ainda assim, estava muito contente, e à uma hora e um quarto, deslizou através do forro de madeira e desceu suavemente para o corredor. Chegando ao quarto ocupado pelos os gêmeos,(chamavam-no "Câmara do Leito Azul", por causa de cor de seus cortinados) encontrou a porta entreaberta. Querendo fazer uma entrada de pleno efeito, empurrou bruscamente a porta, mas o conteúdo de um grande jarro entornou-se em cima dele e o próprio jarro, ao cair, roçou-lhe pela espádua esquerda.

No mesmo instante, risadas que alguém procurava reprimir subiram dos leitos de colunas. O abalo nervoso que experimentou foi tamanho que desatou a fugir para o seu esconderijo com a maior rapidez. No dia seguinte, muitíssimo resfriado, teve de conservar-se na cama. A consolação única que lhe restava era a de não ter levado a sua própria cabeça nesta expedição; do contrário, a imprudência poder-lhe-ia ter acarretado as mais graves conseqüências.

O Fantasma abandonou, então, toda a esperança de assustar aquela grosseira família americana e contentou-se, afinal, em percorrer os corredores com chinelos de solas de feltro, o pescoço envolto num espesso cachenê vermelho, em virtude das correntes de ar, e empunhando um bacamarte com receio de ser atacado pelos gêmeos.
Foi a 19 de setembro que ele recebeu o golpe final. Descera ao vasto hall de entrada, certo de que ali ninguém o molestaria, e divertia-se agora alvejando com observações satíricas, as grandes fotografias do Ministro dos Estados Unidos e sua mulher, assinadas por Saroni, que haviam substituído os retratos da família dos Cantervilles. Encontrava-se vestido com uma longa mortalha, muito simples, mas decente, salpicada de manchas de lama vinda do cemitério. Prendera o queixo com uma atadura e segurava uma pequena lanterna e uma enxada de coveiro. Numa palavra, estava disfarçado para o papel de "Jonas, o Morto sem Sepultura, ou o Ladrão de Cadáveres de Chestsey Barn", uma das suas mais notáveis caracterizações, da qual os Cantervilles tinham excelentes razões para se lamentar, porque fora essa a verdadeira origem da desavença com o seu vizinho, Lord Rufford. Eram aproximadamente duas horas e um quarto da manhã e ele poderia afirmar que todos os moradores da casa repousavam, mas ao dirigir-se, calmamente, para a biblioteca, a fim de ver se ainda restava qualquer vestígio da mancha de sangue, saltaram de súbito sobre ele, de um recanto escuro, dois vultos que agitavam ferozmente os braços por cima da cabeça e lhe berravam "BU-u! BU-u!" aos ouvidos.
Tomado de pânico, o que em tais circunstâncias era muitíssimo natural, ele precipitou-se para a escadaria; porém, aí esperava-o Washington com o grande esguicho do jardim.

Cercado de todos os lados pelos inimigos, literalmente encurralado, desapareceu no interior da enorme lareira, que,felizmente para ele, não estava acesa. Teve de abrir caminho através dos canos e das chaminés e alcançou o seu quarto num terrível estado de sujeira, desarranjo e desespero.
Após esta aventura renunciou às expedições noturnas. Os gêmeos muitas vezes se ocultaram à espera dele e, todas as noites, juncavam os corredores de cascas de nozes, coisa que aborrecia bastante os pais e os criados; mas foi tudo inútil. Era manifesto que o Fantasma, ferido nos seus sentimentos, se recusava a aparecer. Em conseqüência, Mr. Otis retomou a sua grande obra sobre a "História do Partido Democrático", em que trabalhava havia uma porção de anos. Mrs. Otis organizou um maravilhoso clambake, prato feito de moluscos de todas as espécies, cozidos entre camadas de algas sobre pedras em brasa.,que surpreendeu toda a região. Os rapazes dedicaram-se ao cross, ao écarté, ao poquer e a outros jogos nacionais americanos. Virgínia percorreu no seu potro todas as alamedas em companhia do jovem Duque de Cheshire, que viera passar a última semana de férias em Canterville Chase.Acreditou-se, naturalmente, que o fantasma desaparecera dali e Mr. Otis escreveu a Lord Canterville para informá-lo do caso. Este respondeu que a notícia lhe dava grande prazer e enviou os seus cumprimentos à digna esposa do embaixador.

Entretanto, os Otis enganavam-se, pois o fantasma permanecia ainda na casa e, embora estivesse agora quase inválido. Não tinha, aliás, de forma alguma a intenção de ficar quieto, sobretudo ao saber que, entre os convidados, se encontrava o jovem Duque de Cheshire, cujo tio-avô, Lord Francis Stilton, apostara um dia cem guinéus em como jogaria dados com o fantasma de Canterville, vindo a ser encontrado, na manhã seguinte, estendido no chão da sala de jogo e completamente paralítico. Não obstante ter vivido até avançada idade, nunca s pôde dizer senão isto: "Duplo-seis!"A história fora bem-conhecida na altura, mas, para poupar os sentimentos de duas famílias nobres, tudo fora tentado para ocultar o fato. Todavia, encontrar-se-á uma narrativa pormenorizada a respeito do caso no terceiro volume da bra de Lord Tattle: "Memórias Relativas ao Príncipe Regente e seus Amigos”. Por isso era mais que natural o desejo do Fantasma de provar que não tinha perdido a influência sobre os Stilton, aos quais estava unido por um parentesco afastado, por conta de uma sua prima-irmã haver se casado em segundas núpcias com o Senhor de Bulkeley, de quem os Duques de Cheshire, como se sabe, descendem em linha direta. Assim, tomou as suas disposições para aparecer ao jovem enamorado de Virgínia na sua célebre criação do "Monge Vampiro, ou o Beneditino Exangue", espetáculo tão horrível que quando a velha Lady Startup o viu, coisa que lhe sucedeu nessa fatal véspera do ano de 1764, desatou nos mais dilacerantes gritos, que terminaram por um ataque de apoplexia. Morreu três dias depois, não sem antes deserdar os parentes, os quais aliás, eram seus parentes mais próximos, deixando todo o dinheiro que possuía ao seu boticário de Londres.

Entretanto, à última hora, o terror que lhe infundiam os gêmeos impediu de abandonar o seu quarto. Assim, na câmara real, o duquezinho pode dormir em paz, no vasto leito de baldaquino ornado de plumas, a sonhar com Virgínia.

V

Alguns dias depois, quando Virgínia e o seu apaixonado de cabelos encaracolados percorriam a cavalo as pradarias de Brockley, jovenzinha prendeu-se numa sebe e rasgou o vestido de amazona tão desastradamente, que ao voltar para casa, decidiu usar a escada dos fundos para que ninguém a visse. Porém, ao passar correndo diante da sala das tapeçarias, cuja porta, precisamente estava aberta, percebeu que havia alguém lá dentro e imaginou que seria a criada de quarto da mãe, a qual, às vezes, levava para lá a costura. Assim, entrou no aposento decidida a pedir à criada que lhe consertasse a saia.

Entretanto, para sua imensa surpresa,Virgínia deparou-se com o Fantasma de Canterville em pessoa! Estava sentado junto da janela,contemplando o ouro das árvores amarelentas e as folhas rubras que rodopiavam como loucas na grande alameda.Tinha a cabeça apoiada na mão e toda a sua atitude traía uma depressão extrema. Na verdade, ele apresentava um ar tão desolado e tão lamentável, que a pequena Virgínia, cuja primeira ideia fora fugir para seu quarto, compadeceu-se e tentou reconfortá-lo. Contudo,os passos de Virgínia eram tão leves e a melancolia do Fantasma tão profunda que este não teve consciência da presença da jovem senão quando ela lhe dirigiu a palavra.

“Sinto muito pelo senhor, disse Virgínia, “mas os meus irmãos voltam amanhã para Eton, e se o senhor se comportar bem, ninguém o atormentará”.
Comportar-me bem? Mas que absurdo! respondeu ele, olhando em volta espantado, à vista daquela gentil jovenzinha que ousava dirigir-se a ele.“Um completo absurdo! É imprescindível que eu faça ranger os meus grilhões e que ulule pelos buracos das fechaduras e que passeie por aí de noite, se é a isto que você se refere. Essa é a minha única razão de existir.”
“Isso não é uma razão de existência, e o senhor bem sabe que tem sido muito mau. Mrs. Urnney contou-nos, no dia da nossa chegada aqui, que o senhor matou a sua mulher.”

“Bem, eu admito,” respondeu ele com petulância, “mas trata-se de um assunto de família, e ninguém tem nada a ver com isso.”

“É muito malfeito matar alguém”, insistiu Virgínia, que, às vezes, mostrava uma encantadora expressão de gravidade puritana, herdada de algum antepassado da Nova Inglaterra.

“Oh, eu odeio a severidade barata da ética abstrata!, respondeu ele, “ Minha mulher era feia, nunca engomava convenientemente a minha gola de pregas e não conhecia nada de cozinha. Olhe, eu tinha matado um gamo nos bosques de Hogley, um animal magnífico.

Quer saber como ela mandou prepara-lo? Mas que importa este caso agora!?
Tudo isso acabou. Não creio, porém, que fosse muito bonito da parte de seus irmãos fazerem-me morrer de fome, embora eu a tenha matado.”
“Fazê-lo morrer de fome? Oh, senhor Fantasma, quero dizer, Sir Simon, o senhor tem fome? Tenho um sanduíche na minha bolsa. Quer?”
“Não, obrigado, já não como agora. Mas apesar de tudo, é muita amabilidade da sua parte. A senhorita é muito mais gentil do que o resto daquela sua família horrível, grosseira, indigna!”

“Pare!”- exclamou Virgínia, batendo com o pé no chão. “Quem é grosseiro, horrível e vulgar, é o senhor; e, quanto à indignidade, sabe perfeitamente que foi o senhor quem roubou os tubos de tinta da minha caixa de pintura para tentar avivar essa ridícula mancha de sangue na biblioteca.Primeiro pegou todos os meus vermelhos, sem esquecer o vermelhão, e eu tive de deixar de pintar o pôr do sol. Depois, arrebatou o verde e o amarelo cromado, e por fim só havia o índigo e o branco da China, de modo que eu só podia pintar paisagens à luz do luar, que deprimem tanto quando a gente as olha e são tão pouco fáceis de fazer. Eu nunca disse nada contra o senhor; ainda assim estava muito aborrecida, e tudo aquilo era bastante ridículo.Onde já se viu sangue verde esmeralda?”

“Bem,” disse o Fantasma um tanto embaraçado, “ o que posso fazer? Nestes nossos dias, é muito difícil encontrar sangue verdadeiro e como foi o seu irmão a começar tudo isso com a história do Pargon, não vejo razão para não lançar mão dos seus tubos tubos de tinta. Quanto à cor, isso é simples questão de gosto: os Cantervilles, por exemplo,têm sangue azul, o mais azul da Inglaterra, mas sei que vocês, os americanos, zombam de tudo isto.”
“O senhor não sabe nada a esse respeito, e o melhor que tem a fazer é emigrar, para cultivar o espírito. Meu pai não deixará de sentir-se muitíssimo feliz em lhe conseguir uma passagem gratuita. O senhor não encontrará dificuldade alguma, na alfândega, onde todos os funcionários são democratas. Uma, vez em Nova Iorque, o senhor alcançará o maior dos êxitos. Conheço uma porção de gente que daria cem mil dólares para ter um antepassado, e ainda mais para ter um fantasma na família.”
“Estou convicto de que não gostaria da América.”

“Porque, suponho, não temos lá ruínas, nem curiosidades” disse Virgínia ironicamente.
“Nem ruínas! Nem curiosidades!” - replicou o fantasma. “Mas vocês têm a sua Marinha e as boas maneiras americana!”

“Tenha uma boa noite”, disse Virginia, “pedirei ao meu pai que conceda aos gêmeos uma semana suplementar de férias”.

“Por favor, não se vá, Miss Virgínia!” exclamou o Fantasma. “Estou tão só e tão desgraçado que não sei verdadeiramente o que fazer. Quero dormir e não posso”

- Mas isso é absurdo! Basta deitar-se e soprar a vela. Às vezes, é difícil a gente se manter acordada, principalmente na igreja, mas a coisa mais fácil do mundo é dormir. Até os próprios bebês sabem disso,e nem ao menos são tão inteligentes”

“Há trezentos anos que não durmo”,disse ele com tristeza, enquanto Virginia arregalava os belos olhos azuis,” Há trezentos anos que não durmo, e estou tão cansado!”

O rosto de Virgínia tornou-se grave e seus lábios puseram-se a tremer como pétalas de rosa. Aproximou-se do espectro e, ajoelhando-se junto dele, ergueu os olhos para a velha face enrugada.

“Pobre, pobre Fantasma!”, murmurou, “ Não há então local onde possa dormir?”
“Lá embaixo, para lá do pinheiral”, respondeu ele numa voz lenta e sonhadora,“há um jardinzinho. A erva ali é espessa e alta, salpicada por grandes estrelas brancas de cicuta, e o rouxinol canta lá toda noite..Por toda a noite ele canta, a fria lua de cristal olha para baixo e o teixo estende seus braços gigantescos sobre aqueles que dormem.”

Os olhos de Virgínia velaram-se de lágrimas e ela escondeu o rosto nas mãos.
“Fala do Jardim da Morte”, murmurou.

“Sim, da Morte! A Morte deve ser tão bela! Repousar na terra doce e escura, tendo as ervas a ondular por cima de nós, e escutar o silêncio! Não ter ontem, nem amanhã!

Esquecer o tempo! Esquecer a vida, estar em paz! Pode ajudar-me e abrir para mim os Portas da Morte, porque traz o Amor consigo, e o Amor é mais forte do que a Morte”.

Virgínia estremeceu e um frêmito percorreu-a. Durante alguns momentos, fez-se silêncio. Tinha a impressão de estar mergulhada num terrível sonho.
Então, o Fantasma voltou a falar e sua voz ressoava um suspiro do vento.
“Alguma vez leu a velha profecia inscrita nos vitrais da biblioteca?”
“Oh, muitas vezes! - exclamou a mocinha, erguendo a cabeça. “Conheço-a muito bem. Está pintada em curiosas letras negras e é difícil de ler-se. São apenas seis versos”
Quando uma menina loura de coração puro conseguir
Tirar dos lábios pecaminosos uma prece,
Quando a estéril amendoeira florescer,
Quando dos olhos inocentes brotar uma lágrima,
Esta casa ficará para todo o sempre tranquila,
E a Graça voltará a Canterville.

“Mas não sei o que isto quer dizer..”

“Isto quer dizer”, respondeu ele tristemente, “que você deve chorar por mim os meus pecados, porque eu já não tenho lágrimas, e rezar comigo pela minha alma, pois nada me resta de fé. Então, se tiver sido sempre meiga e boa, o Anjo da Morte terá piedade de mim.” Verá na escuridão”, continuou ele, “vultos horríveis, e vozes maldosas falarão no seu ouvido, mas não há de sofrer mal algum, pois o inferno nada pode contra a pureza de uma criança.”

Virgínia não respondeu e o Fantasma torceu as mãos com desespero, baixando o olhar sobre a cabeça coroada de cabelos de ouro reclinada perto dele. A jovem ergueu-se de súbito, muito pálida. Um estranho clarão perpassou pelo seu olhar.

“Não tenho medo,” disse ela com firmeza., e rogarei ao Anjo que tenha piedade.
O Fantasma aprumou-se emitindo um débil grito de alegria. Então, inclinando-se, com uma gentileza já há muito fora de moda, pegou na mão dela e beijou-a. Os dedos de Sir Simon tinham a frieza do gelo e os seus lábios queimavam como fogo, mas Virgínia não sentiu o menor desfalecimento, enquanto ele a fazia atravessar o aposento cheio de sombras.
Bordadas nas tapeçarias, cujo verde já se desbotara, viam-se figurinhas de caçadores. Estes sopraram nas suas trompas enfeitadas de glandes e, com as minúsculas mãos, fizeram-lhe sinal para que fugisse.

“Volte, pequena Virgínia”, gritavam eles, “vá embora!”

Mas o fantasma apertava-lhe a mão com mais força e Virgínia fechou os olhos.
Horrorosos animais de caudas semelhantes às dos lagartos e olhos salientes, pestanejaram-lhe repetidamente, de cima da chaminé esculpida, e murmuravam:
“Tome cuidado, Virginiazinha, tome cuidado, talvez jamais tornemos a vê-la”
Mas, o fantasma deslizou mais depressa e Virgínia não lhes deu ouvidos. Ao atingirem a extremidade da sala, o fantasma parou e murmurou umas palavras que Virgínia não podia compreender. Ela abriu os olhos e viu a parede desaparecer lentamente como um nevoeiro, após o que se encontrou diante de uma grande caverna negra. Envolveu-os um vento áspero e frio e a jovem sentiu que a puxavam pela saia.
“Depressa! Depressa! “ gritou o fantasma. “Senão será demasiadamente tarde.”
Num instante, o forro de madeira tomou a cerrar-se por detrás deles. A sala das tapeçarias ficara vazia.


VI
Dez minutos mais tarde, a sineta tocou para o chá e, como Virgínia não descesse, Mrs. Otis mandou um dos criados chamá-la. Passado um momento, este voltou para dizer que não tinha encontrado Miss Virgínia em parte alguma. Como a menina adquirira o costume de todas as tardes colher flores para o jantar, Mrs. Otis não se inquietou; mas ao soarem as seis horas, sem que a filha houvesse reaparecido, começou a alarmar-se e mandou os rapazes à sua procura, ao mesmo tempo em que ela própria e Mr. Otis percorriam a casa. Aposento por aposento.
As seis e meia, os meninos voltaram , mas sem qualquer notícia irmã. Agora estavam todos na maior ansiedade e não sabiam o que fazer, quando Mr. Otis lembrou-se de repente, que dias antes, havia dado licença a um bando de ciganos para acamparem no parque. Imediatamente, ele partiu para Blackfell Hollow, onde imaginava que os ciganos pudessem estar, acompanhado pelo filho mais velho e dois empregados.
O pequeno Duque de Cheshire, louco de ansiedade, insistira veementemente em juntar-se a eles. Mr. Otis. entretanto, opusera-se terminantemente , temendo alguma escaramuça por parte dos ciganos. Lá chegando, porém, descobriu que estes haviam desaparecido. Contudo, o fogo ainda aceso, e alguns pratos dispersos pelo chão, denunciavam claramente uma retirada repentina.Depois de ter ordenado a Washington e aos dois homens que explorassem a vizinhança, Mr. Otis regressou a toda pressa e expediu telegramas para todos os inspetores de polícia do condado, pedindo-lhes que procurassem uma menina que fora raptada por vagabundos ou ciganos. Em seguida, mandou que lhe selassem o cavalo, recomendou à família e ao hóspede que não deixassem de jantar, e acompanhado de um lacaio, dirigiu-se a Ascot. Porém, mal percorrera duas milhas, ouviu atrás de si um galope. Voltando-se, avistou o o jovem Duque , que vinha montado no seu potro, com o rosto afogueado e os cabelos ao vento.“Lamento muito, Mr. Otis”, disse o rapazinho ofegante, “mas não poderei jantar enquanto Virgínia não for encontrada. Peço-lhe que não se zangue, mas se o senhor houvesse permitido nosso noivado, ano passado, nada disto teria acontecido. Não me fará voltar, não é verdade?! Eu não quero ir . E não irei!”
O Ministro não pôde evitar um sorriso ante o arroubo juvenil e encantador, mas sentiu-se muito comovido com sua devoção por Virgínia. Inclinando-se sobre o cavalo, deu uma palmada no ombro do rapaz e disse: Bem, Cecil, se você não quer ir para casa, suponho ter que levá-lo comigo, mas devo comprar-lhe um chapéu em Ascot.”

“Ora, dane-se o chapéu, preciso é de Virgínia !”, exclamou, rindo, o Duquezinho.
Galoparam até a estação da estrada de ferro, onde Mr.Otis perguntou se não havia sido vista ali, na plataforma, qualquer pessoa correspondendo aos sinais de Virgínia, mas não pôde obter qualquer indicação. Contudo, o chefe da estação telegrafou para todas as outras estações da linha e prometeu severa vigilância. Depois de ter comprado um chapéu para o Duque de um comerciante de novidades, que ia precisamente naquele momento fechar a loja, Mr. Otis dirigiu-se para Brockley, aldeia a quatro milhas dali, a qual, segundo lhe haviam dito, era local de encontro dos ciganos, por lá haver uma comunidade deles. Lá chegando, Mr. Otis e o seu companheiro acordaram o guarda rural, mas não puderam extrair dele a menor informação e, após terem percorrido o prado inteiro, retomaram o caminho de casa. Alcançaram Canterville Chase por volta das onze horas da noite, completamente esgotados e desesperados. Washington e os gêmeos esperavam por eles no portão da propriedade, com lanternas, pois a alameda estava muito escura.

Não se conseguira descobrir a mais leve pista de Virgínia.Os ciganos haviam se concentrado nas pradarias de Brockley, mas a menina não se encontrava entre eles.

Uma confusão de datas explicava sua brusca partida: a feira de Chorton, que se realizava mais cedo do que eles pensavam, obrigara-os a se mover a toda pressa.

Na verdade eles ficaram consternados ao saber do desaparecimento de Virgínia, porque tinham grande reconhecimento a Mr.Otis pela permissão de acampar no seu parque. Por isso, quatro deles ficaram para trás a fim de colaborar nas pesquisas. O tanque das carpas fora esvaziado, e toda a propriedade vasculhada de ponta a ponta sem qualquer resultado. Era forçoso renderem-se à evidência de que pelo menos, naquela noite, Virgínia estava perdida para eles. Profundamente abatidos, Mr. Otis e os rapazes dirigiram-se para casa seguidos do lacaio, o qual conduzia pelas rédeas, os dois cavalos e o potro.

Encontraram no vestíbulo um grupo de criados cheios de medo. A pobre Mrs. Otis estava estendida num divã da biblioteca, semi louca de inquietação e pavor. A velha governanta banhava-lhe a fronte com água-de-colônia, Mr. Otis insistiu imediatamente com ela para que comesse alguma coisa e mandou servir o jantar para todos.

Foi uma refeição bem triste, em que quase não se proferiu palavra. Os próprios gêmeos estavam aterrados, chocados, porque adoravam a irmã. No fim do jantar, Mr. Otis, não obstante as súplicas do pequeno Duque, ordenou que todos se deitassem, dizendo que nenhuma outra coisa poderia ser feita naquela noite, e no dia seguinte de manhã, telegrafaria à Scotland Yard para que enviassem imediatamente alguns agentes.

Precisamente no instante em que saíam da sala de jantar, soava a meia-noite no relógio da torre e ao bater a décima segunda badalada, todos ouviram um enorme estrondo, seguido de um grito penetrante. Um formidável trovão abalou a casa, os acordes de uma harmonia irreal flutuaram no espaço, uma das almofadas da parede abriu-se no alto da escadaria, e Virgínia, apareceu muito pálida, trazendo um pequeno cofre nas mãos. Numa fração de segundo todos se precipitaram sobre ela. Mrs. Otis abraçou-a apaixonadamente, o Duque afagou-a com a violência dos seus beijos, e os gêmeos executaram envolta do grupo uma dança guerreira.
“Santo Deus, de onde vem você? “, perguntou Mr. Otis numa voz bastante irritada, ao pensar que a filha lhes tinha pregado uma peça insensata.“Cecil e eu cavalgamos toda a região à sua procura e sua mãe esteve prestes a morrer de angústia. Aconselho-a a não voltar entregar-se a farsas tão estúpidas como esta”.

“Exceto contra o fantasma! Exceto contra o fantasma!”, bradaram os gêmeos entre mil piruetas.

“Minha querida, graças a Deus você foi encontrada! É preciso que nunca mais me deixe,” murmurou Mrs. Otis, enlaçando a criança que tremia, tremia, e alisando seus cachos dourados, agora emaranhados.
“Papai”, disse Virgínia num tom calmo, “eu estava com o Fantasma. Ele morreu e você deve ir vê-lo. Era muito mau, mas arrependeu-se verdadeiramente do que fez, e antes de morrer, deu-me este cofrezinho com lindas jóias.”

Toda a família a fitava, tomada de assombro, mas ela permanecia grave e séria.Desviando-se, guiou-os através de uma abertura na parede, por um estreito corredor secreto.

Washington seguia-os empunhando uma vela que havia tirado de cima da mesa.
Chegaram, por fim, a uma grande porta de carvalho trabalhada com pregos, já enferrujados. Quando Virgínia a tocou, esta girou sobre os pesados gonzos e abriu-se.

Encontraram-se todos numa salinha baixa, de teto abobadado, onde a ventilação era garantida apenas por uma minúscula janela gradeada.
Uma enorme argola de ferro estava chumbada na parede e, preso a ela via-se um grande esqueleto estendido de comprido no chão de pedra, parecendo tentar agarrar com seus dedos descarnados um prato antigo e uma bilha colocada fora do seu alcance. A bilha devia ter contido outrora água, pois mostrava-se embolorada por dentro, no velho prato, contudo, não havia senão uma camada de pó. Virgínia ajoelhou-se junto do esqueleto e, juntando as delicadas mãos, pôs-se a rezar em silêncio, enquanto o resto da família contemplava com espanto a horrível tragédia, cujo segredo lhes era assim revelado.

“Olhem!” gritou de repente um dos gêmeos, o qual se dependurara na janela para observar em que ala da mansão situava-se aquele quarto.
“Olhem! A velha amendoeira toda sequinha está em florida. Vêem-se muito bem as flores, ao luar”.

“Deus perdoou-o” disse gravemente Virgínia, erguendo-se, e uma luz maravilhosa parecia banhar-lhe o rosto.

“Você é um anjo!” exclamou o jovem Duque, passando os braços em torno dos ombros dela e beijando-a.

VII
Quatro dias após estes curiosos acontecimentos, um cortejo fúnebre deixava Canterville Chase por volta das onze horas da noite. Oito cavalos negros puxavam o carro morro acima e sobre suas cabeças agitavam-se grandes penachos de plumas de avestruz. Um suntuoso tecido cor de púrpura, com as armas dos Cantervilles, bordadas em ouro cobria o caixão de chumbo. Junto do carro, marchavam os criados empunhando tochas, e todo o séquito assumia singular imponência. Lord Canterville dirigia o funeral. Tinha vindo expressamente do País de Gales para assistir à cerimônia e ocupava a primeira carruagem, acompanhado da jovem Virgínia. A seguir iam o Ministro dos Estados Unidos e a esposa, depois Washington e os três rapazes, e, por fim, na carruagem da cauda, Mrs. Uniney. Partiu-se da convicção que a governanta, apoquentada durante mais de cinqüenta anos pelo fantasma, tinha todo o direito de vê-lo desaparecer para sempre.

Fora escavada num canto do cemitério uma profunda sepultura, precisamente sob o galho do velho teixo, e o Reverendo Augustus Dampier proferiu as preces da maneira mais impressionante.Ao término da cerimônia, os criados, conforme um costume tradicional na família Canterville, apagaram as suas tochas e, no momento de se fazer descer o caixão à sepultura, Virgínia avançou e depôs sobre ele uma grande cruz tecida de rosas e flores de amendoeira. Simultaneamente, a lua surgiu de trás de uma nuvem e inundou o pequeno cemitério com sua luz prateada. De uma moita, à distância, subiu o canto de um rouxinol. A jovem recordou a descrição que o fantasma fizera do Jardim da Morte. Lágrimas velaram-lhe os olhos e mal articulou palavra durante o caminho de volta.
No dia seguinte de manhã, antes que Lord Canterville partisse para Londres, Mr. Otis conferenciou com ele a respeito das jóias dadas a Virgínia pelo fantasma. Era de notável magnificência, em especial certo colar de rubis com um engaste veneziano, admirável trabalho do século dezesseis, e o valor delas todas era tal que Mr. Otis sentia grandes escrúpulos em consentir que a filha as aceitasse.

“Milorde”, disse o Ministro, “eu sei que o regime de heranças, chamado de “alienação de bens”, é aplicável neste país tanto às jóias como às terras, e está claro que estas jóias de família lhe pertencem. Portanto, devo pedir-lhe que as leve consigo para Londres, as considere simplesmente como uma parte da sua herança, agora restituída em inesperadas circunstâncias.Quanto à minha filha, ela é ainda uma criança e ,sinto-me feliz em dize-lo, tem pouco interesse por estes acessórios de luxo. Além disso, Mrs. Otis (embora isso não signifique que ela seja uma autoridade no assunto) que teve o privilégio de passar muitos invernos em Boston quando solteira, avisou-me que essas jóias são extremamente valiosas e se postas a venda, atingiriam um altíssimo preço. Nestas condições, Lord Canterville, estou certo de que compreenderá que não posso permitir a nenhum membro da minha família conservá-las em poder. E a bem da verdade, por mais necessários e convenientes que estes frívolos adornos sejam à aristocracia inglesa, ficariam deslocados entre pessoas educadas nos severos e, suponho, imortais princípios da simplicidade republicana. Talvez me seja lícito acrescentar que Virgínia deseja vivamente que o senhor a autorize aguardar para cofrezinho, como lembrança dos desvarios e dos infortúnios desse seu antepassado.

Visto que o cofre se acha muito velho e muito estragado, talvez o senhor julgue razoável deferir este pedido. Da minha parte, confesso estar bastante surpreso ao ver um dos meus filhos exprimir simpatia por medievalismos, seja sob qual aspecto for, e não posso explicar isto a mim próprio, senão pelo fato de Virgínia haver nascido num subúrbio de Londres pouco tempo depois Mrs Otis regressar de Atenas.”
Lord Canterville escutou com muita gravidade o discurso do digno Embaixador, repuxando de quando em quando as pontas do seu bigode grisalho para dissimular um sorriso involuntário. Quando Mr. Otis acabou de falar, apertou-lhe a mão cordialmente e respondeu:“Meu caro senhor, a sua encantadora filhinha prestou a Sir Simon, meu infeliz antepassado,um serviço de grande importância. Minha família e eu devemos muito à maravilhosa coragem dela, e está claro que as jóias lhe pertencem e se eu fosse mesquinho o bastante para as tirar dela, estou certo de em duas semanas o malvado velho sairia do seu túmulo e causar-me-ia uma vida infernal. Quanto ao fato de serem jóias de família, tal só seria possível provar, se figurassem num testamento ou em algum documento legal. Asseguro-lhe que a existência dessas jóias me era completamente desconhecida, e que não possuo mais direitos sobre elas do que, por exemplo, seu mordomo. Ouso dizer-lhe ainda,que quando Miss Virgínia for crescida ficará encantada em usar estes lindos objetos. Por outro lado, Mr. Otis, o senhor se esquece que comprou em conjunto a propriedade e o Fantasma ,e assim sendo, tudo o que pertencia a ele passou, implícita e imediatamente, para a sua posse. Afinal, por maior atividade de que Sir Simon tenha dado sinal durante a noite, pelos corredores da casa, sob o ponto de vista jurídico, ele estava verdadeiramente morto, e a compra feita pelo senhor tornou-o possuidor dos bens dele.

Mr. Otis, muito perturbado com a recusa de Lord Canterville, suplicou-lhe que reconsiderasse a sua decisão, mas o nobre par do Reino,permaneceu firme e acabou por persuadir o embaixador de que consentisse à filha guardar o presente do Fantasma.E quando na primavera de 1890 a jovem Duquesa de Cheshire foi, por ocasião do seu casamento, foi apresentada pela primeira vez numa recepção da Rainha, as jóias que ostentava tornaram-se tema de admiração geral. Virgínia recebeu a coroa, que é a recompensa de todas as boas meninas americanas, e desposou aquele que a amava desde a infância, logo que ele atingiu a idade conveniente. Eram ambos tão sedutores e amavam-se tanto que esta união encantava todo mundo, salvo a velha Marquesa de Dumbleton, que havia tentado apoderar-se do duque para uma das suas sete filhas ainda solteiras e que, com esse desígnio, dera nada menos do que três dispendiosos jantares, se bem que isto possa parecer estranho. Pessoalmente o Ministro nutria pelo jovem Duque uma grande afeição,mas em teoria, não era partidário de títulos de nobreza. Usando suas próprias palavras, “temia que sob a influência deletéria de uma aristocracia amante dos prazeres mundanos, fossem esquecidos os verdadeiros princípios da simplicidade republicana.
Contudo, suas observações foram inteiramente rejeitadas, e creio bem que, ao avançar, com a filha pelo braço, ao longo da nave da Igreja de S. Jorge, não houve, nesse instante, homem mais orgulhoso do que ele em toda a Inglaterra.
Após a sua lua-de-mel, o Duque e a Duquesa voltaram a Canterville Chase, e na tarde do dia seguinte, foram a passeio até o cemitério solitário, ao lado do pinheiral.

A escolha da inscrição para a lápide de Sir Simon havia encontrado muitas dificuldades, mas fora finalmente decidido mandar-se gravar nela as simples iniciais do velho aristocrata e os versos existentes na biblioteca. A Duquesa havia levado consigo umas rosas adoráveis, que espalhou sobre a sepultura, e depois de se conservarem em recolhimento algum tempo, os jovens dirigiram-se, sempre passeando, até o santuário em ruínas da velha abadia. Sentou-se, então, a Duquesa numa pilastra mutilada do templo, enquanto o marido, estendido a seus pés, fumava um cigarro, tendo o olhar fixo nos belos olhos da jovem. De súbito, arremessando para longe o cigarro, pegou-lhe na mão e disse: “Virgínia, uma mulher não deve ter segredos para seu marido”.

“Querido Cecil, não tenho segredos para você”.

“Tem sim,” replicou ele sorrindo, “nunca me disse o que aconteceu quando esteve sozinha com o fantasma.”

“ Nunca o disse a ninguém”, respondeu Virgínia com ar grave.
“Sei disso, mas podia dize-lo a mim.”

“Não me peça tal coisa, Cecil, eu não posso dizer-lhe.Pobre Sir Simon! Devo-lhe muito. É verdade; não ria, Cecil. Mostrou-me o que é a vida, o que significa a morte e porque razão o amor é mais forte do que a vida e a morte.”
O Duque, pondo-se de pé, abraçou com ternura sua mulher.

“Pode preservar o seu segredo por tanto tempo, quanto eu guardarei o seu coração” murmurou.

“Ele sempre lhe pertenceu, Cecil.”

“E dirá um dia aos nossos filhos, não é verdade?”

As faces de Virgínia cobriram-se de rubor.


quinta-feira, 23 de novembro de 2017

"Sobre um Poema" - Herberto Helder

Dizem que ninguém morre enquanto continuar nas lembranças... Posto assim, Herberto Helder continua vivaz. E hoje comemora-se 87 anos de seu nascimento. Viva à toda poesia que nos faz mergulhar. 



Sobre um Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

"Starry Night"

Algumas estações antes de por fim a todo sofrimento que a loucura causava, Van Gog pintou uma noite estrelada. Um registro de sua memória. “Starry Night” é qualquer coisa de excepcional - o jogo das cores, movimento, romantismo, é de deixar qualquer um às voltas com o silêncio. Essa pintura inspirou o músico estadunidense Don McLean a compor “Vincente”, mais conhecida como “Starry Night”.  Uma belezura!  

The Starry Night  - (1889) Vincent Van Gogh




Deleuze: O que é Filosofia?



Não há pergunta mais exigente para uma filosofia da diferença do que esta: “que sou eu?”. Em 1991, Gilles Deleuze escreveu, em conjunto com Félix Guattari, seu último livro. Um livro develhice, um livro despojado de estilo, preocupado em falar concretamente. “Mas o que é isso que eu fiz toda a minha vida?”, pergunta ele. O que é a Filosofia é o livro em que Deleuze pretende, tal qual máquina, combinar todas as suas peças “para enviar ao porvir um traço que atravesse as eras…”. Dada a grandeza da questão, não pretendo senão esboçar uma interpretação da resposta de Deleuze, uma leitura sustentada por quatro pilares: singularidade, multiplicidade, alteridade e mobilidade.
O que é um filósofo? É um conceito em potência, diz Deleuze. E a filosofia? É a disciplina que consiste em criar conceitos. O filósofo é o artesão a quem compete a criação dos conceitos e a filosofia é a sua profissão, seu métier. Esta é, em suma, a resposta deleuziana: “a questão da filosofia é o ponto singular onde o conceito e a criação se remetem um ao outro”. Esta conclusão não é nada mais que um princípio, uma faísca que faz acender uma série de outras questões. Que é um conceito? O que ele supõe? De que tipo de criação falamos aqui? Qual é o seu lugar?
O conceito é questão de articulação; é um complexo de componentes representados por um nome. Todo conceito remete a um problema e só se criam conceitos em função de problemas. Saber colocar-se problemas, eis um sinal de maturidade. Ser filósofo é também trabalho de papel, cola e tesoura: é preciso saber cortar, ligar, desconectar ideias nos conceitos para fazê-los responder aos problemas. Conceituar é “conectar compononentes interiores até a saturação ou o fechamento”, de tal modo que mudar suas conexões, mudaria sua natureza.
Toda criação é singular e o conceito, como criação propriamente filosófica, é sempre uma singularidade. O primeiro princípio da filosofia é que os Universais não explicam nada, eles próprios devem ser explicados” p.13
A oposição entre singularidade e universalidade é então a primeira característica da noção deleuziana de filosofia. Onde há apenas contemplação, reflexão e comunicação, não há filosofia, pois essas faculdades são máquinas de construir Universais. O fato de ter de ser criado impede ao conceito a universalidade. “Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos. Não há céu para os conceitos”. Resta saber: que unidade resta à filosofia? Pouca ou nenhuma.
O conceito tem singularidade, não unidade. Ele é único apenas na medida em que é singular e esta singularidade, que lhe é própria, o faz ser conceito apenas no que concerne sua aplicação particular, na sua relação com um problema. Mas onde fica então a Verdade? “O conceito tem sempre a verdade que lhe advém em função da sua criação”. Ou seja, o conceito não possui nem diz verdades a não ser num sentido muito específico em que se pode falar em verdade. Há alguma veracidade quando o conceito se relaciona com nossa história e, sobretudo com nossos devires. Todo filosofo tem a árdua tarefa de criar conceitos para problemas que mudam necessariamente. É por isso que não se deve discutir filosofia, não há ganho nenhum. Estudar a história da filosofia é, antes, mergulhar nos conceitos, trazer suas pertinências à tona num novo contexto.
Se não discutimos filosofia, como medir a grandeza de uma filosofia? Não é a precisão do conceito, uma espécie de adequação do pensamento ao verdadeiro, que o faz ser grande, mas sua pertinência, seu interesse. É pela natureza dos acontecimentos aos quais um conceito nos convoca que medimos seu interesse, sua grandeza.
Destacar sempre um acontecimento das coisas e dos seres é a tarefa da filosofia quando cria conceitos, entidades. Erigir o novo evento das coisas e dos seres, dar-lhes sempre um novo acontecimento: o espaço, o tempo, a matéria, o pensamento, o possível como acontecimentos…” p.42
O acontecimento é como o sorriso sem gato de Lewis Carrol em Alice, é aquilo que há de novo na repetição, no evento. O conceito é a constelação de um acontecimento por vir, é o que permite conhecer o novo se fazendo. Essa dinâmica do conceito exige por sua vez um horizonte de eventos, um solo múltiplo, um plano de imanência. A filosofia é ao mesmo tempo criação de conceitos e instauração de plano.
Aqui nos deparamos com a multiplicidade irredutível à qual o pensamento se depara quando se estende sobre o caos. O caos é precisamente isso: um perpétuo movimento de determinações se fazendo e se desfazendo. O pensamento pede só um pouco de ordem para suportar o caos. “Arte, ciência e filosofia querem que rasguemos o firmamento e mergulhemos no caos, só o venceremos a este preço”. Como o filósofo enfrenta o caos? Traçando um plano.
O plano de imanência é como um corte do caos e age como um crivo. O caos caotiza, diz Deleuze. Isto significa que ele desfaz no infinito toda a consistência. Se coloca então o desafio supremo da filosofia: “dar consistência sem nada perder do infinito”. O plano de imanência é o olhar do filósofo dirigido para um horizonte aberto. No topo de uma montanha, ele observa atento o plano instaurado, criando conceitos para traçar ordenadas intensivas, para inscrever a velocidade infinita do múltiplo na singularidade finita do conceito. O plano faz um apelo à criação de conceitos, ele é o solo deserto dos acontecimentos, ele precisa dos conceitos para adquirir consistência, para que suas questões e seus problemas sejam habitados.
A transcendência é o risco derradeiro da filosofia. Há religião, e não filosofia, cada vez que se decide construir um Império celeste no plano, permitindo que o pensamento opere por figuras, que nada mais fazem do que projetar sombras por sobre o solo. “A parte da imanência, ou a parte do fogo, é por ela que se reconhece o filósofo”. Vem daí a admiração a Espinosa, nas palavras de Deleuze: “o príncipe dos filósofos”, “o tornar-se filósofo infinito”.
Cada plano não pretende ser o único. Ao assumir o caos que recorta, ao assumir que é um pequeno pedaço do quadro infinito, ele se revela imanente. Assim, temos a escolha entre a transcendência e o caos: refugiar-se no conforto da verticalidade imperativa da universalidade ou assumir o risco caótico da singularidade permeada pela multiplicidade. O gesto supremo da filosofia está exatamente no encontro entre a singularidade do conceito e a multiplicidade do plano de imanência, que se esforça sempre por mostrar o não pensando, isto é, o alcance de seus territórios.
Criar um conceito é construir uma região no plano, juntar uma região às precedentes, explorar uma nova região, preencher a falta. O conceito é um composto, um consolidado de linhas, de curvas”
Os conceitos não se criam sozinhos, eles dependem do filósofo para vir ao mundo, mas este não os cria senão com alguma ajuda. Todo filósofo fala na terceira pessoa e, quando escreve, “faz com que algum outro fale”. É sempre um personagem conceitual que percorre o plano. É um Zaratustra, como nômade no deserto; é um Sócrates, como vagante na ágora; é o Proletário, como portador da revolução, é um Esquizofrênico, como andarilho do ser; é a Razão, como adequadação ou inadequação, mas é sempreoutro, que não o filósofo. Inventar personagens representa a insistência do filosófo em recusar a identidade em favor da alteridade.
O personificação do pensamento em um outro, este devir conceitual do sujeito, não se faz senão com muita hesitação. O filósofo acompanha de longe seu personagem percorrer o plano até encontrar uma terra fértil: o temor acompanha a decisão de tentar territorializá-la: “os personagens conceituas têm este papel, manifestar os territórios, desterritorializações e reterritorializações absolutas do pensamento” (p.84). Aproximar-se de um território, enxergar os movimentos infinitos que o percorrem, a relação de forças que ali se encontram, perceber os acontecimentos do pensamento sobre o plano e ali assentar um conceito, tão móvel e dinâmico quanto as condições de sua criação.
Não há conquista, há ocupação. O conceito toma de assalto um território e o povoa de questões e, dessa forma, ele conhece. Conhece o quê? Ora, a si mesmo. Não há o que conhecer senão a sua própria relação singular com o problema, com o acontecimento, com o território. O conhecimento em filosofia não passa disso, estabelecer relações de vizinhança, continguidade, antagonia entre conceitos num determinado horizonte de questões, num plano de imanência.
Pensar é experimentar, mas a experimentação é sempre o que se está fazendo – o novo, o notável, o interessante, que substituem a aparência de verdade e que são mais exigentes que ela. [...] A história não é experimentação, ela é somente o conjunto das condições quase negativas que tornam possível a experimentação de algo que escapa à história. Sem história, a experimentação permaneceria indeterminada, incondicionada, mas a experimentação não é histórica, ela é filosófica” p.133
Uma inversão permanece necessária à filosofia de nosso tempo: trocar a história pela geografia, a genealogia pela geologia, pensar uma geofilosofia. Enquanto pesquisadores, é preciso que deixemos o tempo histórico de lado em nome de um tempo estratigráfico, que se volte aos estratos, aos vários planos de imanência instaurados uns sobre os outros: se os conceitos promovem variações nos planos, precisamos nos ater ao relevo da filosofia. Perceber que o devir não é história e que o movimento, a mobilidade é própria ao conceito e nos impede de alcançar paradigmas, referentes tais quais a Razão Comunicativa ou os Imperativos Categóricos. Arrancar a filosofia de um culto das origens em favor de um meio, aí está uma receita para tornar o filósofo um criador. Traçar um plano de imanência, inventar personagens insistentes e criar conceitos consistentes é, por fim, filosofar.

sábado, 18 de novembro de 2017

"O Sonho de um Homem Ridículo"




Curta (animação): O Sonho de um Homem Ridículo [‘Сон смешного человека’ | ‘Son Smeshnogo Cheloveka’]
Direção: Aleksandr Petrov
Roteiro: Fiódor Dostoiévski (conto) e Aleksandr Petrov (adaptação)
Trilha: Alexander Raskatov
Ano/país: 1992 | Rússia
Duração: 20 min.

"Manuscrito Encontrado numa Garrafa" Allan Poe



“Qui n’a plus qu’un moment à vivre, n’a plus rien à dissimuler.”
Quinault, Atys


Da minha terra e da minha família pouco tenho a dizer. Os maus costumes e o acumular dos anos afastaram-me da primeira e alhearam-me da segunda. O meu patrimônio proporcionou-me uma educação pouco comum e uma disposição de espírito contemplativa permitiu-me ordenar metodicamente as aquisições diligentemente reunidas pelo estudo precoce. O estudo dos filósofos alemães fez particularmente as minhas delícias: não por qualquer mal-avisada admiração pela sua eloqüente loucura, mas antes pela facilidade com que os meus hábitos de raciocínio rigoroso me facultavam a detecção dos seus erros. Fui muitas vezes admoestado pela aridez do meu gênio; imputavam-me, como se de um crime se tratasse, falta de imaginação, e o pirronismo das minhas opiniões sempre me tornou notado. De fato, receio bem que uma forte atração pela filosofia física me tenha impregnado o espírito de um defeito muito comum nesta época: refiro-me ao hábito de reportar os acontecimentos, mesmo os menos susceptíveis de o serem, aos princípios de tal ciência. Em suma, ninguém seria menos dado que eu a deixar-se desviar das estritas fronteiras da verdade pelos ignes fatui da superstição. Achei que se justificaria esta introdução, sob pena de o incrível relato que se segue ser tomado mais pelo delírio de uma imaginação desenfreada do que pela experiência positiva de um espírito para o qual os devaneios da fantasia sempre foram letra morta e coisa de nulo valor.
Após muitos anos passados em deslocações pelo estrangeiro, larguei no ano de 18… do porto de Batávia, na rica e populosa ilha de Java, em viagem ao arquipélago de Sunda. Embarquei como passageiro, sem outro estímulo que não fosse uma qualquer nervosa irrequietude que me obcecava como espírito maléfico.
O nosso navio era um belo veleiro de umas quatrocentas toneladas, construído de teca do Malabar em Bombaim. Levava um carregamento de algodão em rama e azeite, proveniente das ilhas Lacadivas. Transportávamos ainda fibra de coco, açúcar mascavado, manteiga, cocos e algumas caixas de ópio. A estiva tinha sido feita de modo descuidado, pelo que o navio ia adornado.
Largamos sob um tênue bafejo de vento e mantivemo-nos durante vários dias ao longo da costa oriental de Java, sem mais incidentes que iludissem a monotonia da nossa singradura para além do encontro ocasional com alguns grabs (1) do arquipélago a que nos mantínhamos confinados.
Uma tarde, debruçado à balaustrada da popa, observei uma nuvem isolada muito estranha, a noroeste. Era singular, quer pela cor, quer por ser a primeira com que deparávamos desde a largada de Batávia. Contemplei-a atentamente até ao sol-pôr, altura em que alastrou repentinamente para leste e oeste, cercando o horizonte de uma estreita faixa de vapor e assemelhando-se a uma baixa linha de costa. Não tardou que a minha atenção fosse subseqüentemente atraída pelo aspecto vermelho-escuro da Lua e pelo invulgar estado do mar. Este sofreu uma rápida alteração e a água parecia mais transparente do que o habitual. Embora conseguisse ver distintamente o fundo, ao lançar a sonda verifiquei que a profundidade local era de vinte braças. O ar tornara-se agora intoleravelmente quente e estava carregado de exalações espirais semelhantes às que se desprendem do ferro quando aquecido. Com o tombar da noite, o vento caiu totalmente, sendo impossível conceber calmaria mais completa. A chama da lanterna sobre a popa ardia sem o menor movimento perceptível, e um cabelo comprido, seguro entre o polegar e o indicador, pendia sem que pudesse observar-se a mais pequena ondulação. No entanto, como o comandante dissesse que não se apercebia de qualquer indício de perigo, e uma vez que estávamos a abater totalmente para terra, mandou ferrar as velas e fundear. Não se passou a regime de quartos e a tripulação, constituída principalmente por malaios, veio deitar-se deliberadamente no convés. Desci aos alojamentos – não sem um forte pressentimento de desastre. De facto, todas as aparências me levavam a suspeitar da aproximação do simum. Dei parte dos meus temores ao comandante, mas este não prestou a menor atenção às minhas palavras e deixou-me sem ao menos se dignar de responder. Todavia, a inquietação não me deixou dormir e, perto da meia-noite, subi ao convés. Ao colocar o pé no último degrau da escada, fui surpreendido por um forte ruído sussurrante como produzido por rápida rotação de moinho e, antes que pudesse averiguar o seu significado, apercebi-me de que o navio estremecia na direção do seu centro. No instante imediato, um cachão de espuma fez-nos adornar subitamente e, passando sobre nós, varreu todo o convés de popa a proa.
A extrema violência do choque veio, em grande parte, a ser a salvação do navio. Embora completamente inundado, quando os mastros foram pela borda fora, ergueu-se pesadamente das águas um minuto depois e, vacilando um instante sob a intensa pressão da tempestade, endireitou-se finalmente.
Não sei dizer por que milagre escapei à destruição. Atordoado pelo embate de água, dei por mim, uma vez refeito, entalado entre o cadaste e o leme. com grande dificuldade, pus-me de pé e, olhando confusamente ao redor, fui inicialmente assaltado pela idéia de que estivéssemos no meio de recifes, de tal modo terrível e inimaginável era o turbilhão do oceano alteroso e espumejante em que estávamos mergulhados. Passados algum tempo ouvi a voz de um velho sueco, que embarcara conosco no momento em que largávamos do porto. Gritei-lhe com todas as forças e ele acabou por dirigir-se, a cambalear, para a popa. Depressa descobrimos que éramos os únicos sobreviventes do acidente. Todos os que estavam no convés, exceto nós, tinham sido varridos pela borda fora; o comandante e os oficiais deviam ter perecido durante o sono, visto que os camarotes se encontravam totalmente alagados. Sem auxílio, pouco poderíamos contar fazer pela segurança do navio e os nossos esforços foram de princípio paralisados pela perspectiva momentânea de irmos a pique. Era evidente que a amarra se quebrara como se fosse uma guita ao primeiro sopro do furacão, pois de contrário teríamos sido instantaneamente esmagados. Corríamos com o furacão a uma velocidade assustadora e as águas abriam brechas visíveis à nossa frente. A estrutura da popa tinha sofrido enormes danos e, praticamente sob todos os aspectos, fôramos objeto de consideráveis avarias; mas para nossa extrema alegria, descobrimos que as bombas não tinham ficado obstruídas e que o lastro não sofrera grande deslocação. A maior fúria da tempestade tinha já amainado e a violência do vento não parecia oferecer grande perigo: contudo, ansiávamos, consternados, por que ele cessasse completamente, pois estávamos em crer que, com tais estragos, inevitavelmente pereceríamos na ondulação tremenda que sobreviria. Contudo, esta justíssima apreensão não parecia de modo algum em vias de concretizar-se. Durante cinco dias e cinco noites – no decurso dos quais tivemos por único alimento uma pequena porção de açúcar mascavado, obtido com grande dificuldade no castelo da proa – o calhambeque correu a uma velocidade que desafiava qualquer cálculo, impulsionado por rajadas de vento que se sucediam rapidamente, as quais, sem contudo se compararem à violência inicial do simum, eram ainda mais terríveis do que qualquer tempestade que até então eu tivesse presenciado. O nosso rumo durante os primeiros quatro dias foi, com insignificantes variações, sueste quarta a sul, e deveríamos ir parar às costas da Nova Holanda. No quinto dia começou a fazer-se sentir um frio extremo, embora o vento tivesse rondado mais uma quarta para norte. O Sol despontou com um fulgor amarelo doentio e ergueu-se apenas alguns graus acima do horizonte – sem emitir uma luz definida. Não havia nuvens à vista, mas o vento continuava a refrescar e soprava com uma violência irregular e instável. Cerca do meio-dia, tanto quanto nos era possível estimar, a nossa atenção foi novamente desperta pela aparência do Sol. Não emitia luz propriamente dita, mas antes um clarão mortiço e soturno sem reverberação, como se todos os seus raios estivessem polarizados. Imediatamente antes de mergulhar no mar túrgido, a sua chama central extinguiu-se de súbito, como que pressurosamente apagada por algum inexplicável poder. Era apenas um arco esbatido e quase prateado ao precipitar-se no oceano insondável.
Aguardamos em vão a chegada do sexto dia: esse dia para mim não chegou: para o sueco, não existiu sequer. De então em diante, vimo-nos amortalhados numa escuridão de breu, de tal modo que não conseguiríamos ver um objeto a vinte passo do navio. A noite eterna começou a envolver-nos, nem sequer mitigada pela fosforescência das águas a que nos habituáramos nos trópicos. Observamos igualmente que, embora a tempestade continuasse a bramir com inquebrantável violência, já não conseguia descortinar-se o habitual aparecimento de rebentação ou espuma, que até então nos havia acompanhado. À nossa volta tudo era horror, trevas profundas e um negro e abrasador deserto de ébano. Um terror supersticioso começou a invadir progressivamente o cérebro do velho sueco, e meu próprio espírito estava mergulhado em profundo espanto. Abandonáramos todos os cuidados do navio, mais do que inúteis, e, amarrando-nos o melhor que pudemos ao mastro da mezena, observávamos amargamente a imensidão do oceano. Não tínhamos maneira de calcular o tempo nem fazíamos a menor idéia de qual a nossa posição. Contudo, estávamos perfeitamente cientes de que havíamos navegado mais para sul do que qualquer outro mareante e experimentamos grande admiração por se não nos depararem os habituais obstáculos de gelo. Entrementes, cada instante ameaçava ser o último da nossa vida: não havia vaga alterosa que não se precipitasse para nos esmagar. A ondulação ultrapassava tudo o que eu imaginara possível e o fato de o mar não nos ter sepultado instantaneamente constituía um milagre. O meu companheiro referiu-se ao pouco peso da carga que transportávamos e recordou-me as excelentes qualidades do navio; fosse como fosse, eu não conseguia deixar de sentir o extremo desespero da própria esperança e preparei-me melancolicamente para a morte que acreditava nada poder adiar por mais que uma hora, visto que, a cada nó que o navio avançava, a agitação das prodigiosas águas negras se tornava cada vez mais lugubremente aterradora. Por vezes, ao elevarmo-nos mais ainda que um albatroz, perdíamos a respiração; outras ficávamos atordoados com a velocidade com que o navio se afundava em qualquer inferno aquático, onde o ar estagnava e nenhum som perturbava o sono dokraken (2).
Encontrávamo-nos no fundo de um desses abismos quando um súbito grito do meu companheiro rompeu temerosamente na noite:
- Olhe! Olhe! – gritou angustiadamente aos meus ouvidos. – Deus todo-poderoso! Olhe! Olhe!
Enquanto ele falava, apercebi-me do clarão mortiço e sombrio de uma luz vermelha que se escoava de um e outro lado do abismo em que estávamos mergulhados, e lançava um brilho incerto sobre o nosso convés. Erguendo a vista, observei um espetáculo que me fez gelar o sangue nas veias. A uma altura descomunal acima de nós, e precisamente na orla precipício das águas, pairava um gigantesco navio de umas quatro mil toneladas. Apesar de alcandorado na crista de uma vaga que tinha mais de cem vezes a sua altura, as suas dimensões aparentes ainda assim excediam as de qualquer navio de linha ou da Companhia das Índias. O seu casco enorme era de um negro profundo, nem sequer atenuado por qualquer dos habituais ornatos que os navios ostentam. Uma fileira única de peças de artilharia de bronze emergia das escotilhas abertas e as suas superfícies polidas refletiam os clarões das inúmeras lanternas de combate que balouçavam de um lado para outro na mastreação. Todavia, o que fundamentalmente nos encheu de horror e espanto foi que ele navegava a todo o pano, a despeito daquele mar sobrenatural e do incontrolável furacão. Quando o avistamos a primeira vez, apenas se lhe via a proa, ao erguer-se lentamente do sombrio e horrível fosso que ia deixando para trás. Por um instante de intenso terror, deteve-se sobre o cume vertiginoso, como que imerso na contemplação da sua própria magnificência, após o que estremeceu, vacilou e… iniciou a queda.
Nesse instante, não sei que súbita serenidade me invadiu o espírito. Avançando a cambalear para a popa o mais que me foi possível, aguardei sem receio a catástrofe que certamente nos iria esmagar. O nosso próprio navio começava a abandonar a luta e a mergulhar a proa nas águas. O choque daquela mole que se abatia atingiu-o, por conseguinte, naquele porção da estrutura que estava já sob a água, e o resultado inevitável foi precipitar-me, com irresistível violência, de encontro ao cordame do intruso.
Quando caí, o navio aproou ao vento e virou de bordo; foi à confusão que se seguiu que atribuí o fato de ter passado despercebido aos olhos da tripulação. Não encontrei dificuldade em abrir caminho sem ser detectado até à escotilha principal, que estava parcialmente aberta, e pouco tardou que se me deparasse uma ocasião propícia para me ocultar no porão. Não sei exatamente por que razão o fiz. Talvez uma indefinida sensação de temor, que desde a primeira visão dos tripulantes do navio se me apoderara do espírito, estivesse na origem desta tentativa de buscar esconderijo. Não me sentia inclinado a confiar numa raça de gente que havia revelado, perante o olhar apressado que lhes deitara, tantos motivos de vaga estranheza, dúvida e apreensão. Julguei, pois, acertado arranjar um lugar no porão onde pudesse ocultar-me. Fi-lo deslocando uma porção de pranchas, de modo a obter um abrigo adequado entre o cavername enorme do navio.
Mal terminara ainda a tarefa, quando o som de passos no porão me obrigou a utilizá-lo. Um homem de andar débil e incerto passou junto ao meu esconderijo. Não pude ver-lhe o rosto, mas tive ocasião de observar-lhe o aspecto geral. Apresentava indícios de idade avançada e de doença. Os joelhos vacilavam ao peso dos anos e todo o corpo estremecia sob o seu fardo. Murmurava de si para si, em tom grave e entrecortado, quaisquer palavras numa língua que não logrei distinguir e tateou a um canto entre uma pilha de instrumentos de aspecto invulgar e de cartas de navegação apodrecidas. O seu comportamento era uma estranha mistura de rabugice da segunda infância e da solene dignidade de um deus. Acabou por regressar ao convés e não voltei a vê-lo.
* * *
Um sentimento que não sei designar apossou-se-me do espírito: uma sensação que não admite análise, para a qual os ensinamentos do passado de nada servem e, receio, nem o porvir me fornecerá a chave. Para um espírito da estrutura do meu, esta última consideração é uma tortura. Nunca hei de ser esclarecido – sei que nunca o serei – relativamente à natureza das minhas concepções. E contudo não será de estranhar que tais concepções sejam mal definidas, posto que têm a sua origem em causas tão inteiramente inéditas. Um novo sentido – uma nova entidade – foi acrescentada à minha alma.
Faz já muito que pisei pela primeira vez o convés deste terrível navio e julgo que os raios do meu destino convergem para um foco. Homens incompreensíveis! Imersos em meditações cuja natureza não logro adivinhar, passam por mim sem darem pela minha presença. O fato de me esconder é puro disparate da minha parte, pois esta gente não quer ver. Ainda há instantes passei diretamente pela frente do imediato; não faz muito tempo que me aventurei a penetrar mesmo no camarote individual do comandante e de lá tirei o material com o qual escrevo e tenho vindo a escrever. Continuarei este diário de quando em quando. É certo que posso não ter ocasião de transmiti-lo ao mundo, mas não deixarei de o tentar. No último momento meterei o manuscrito numa garrafa e lançá-la-ei ao mar.
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Deu-se um incidente que me forneceu novos motivos de reflexão. Será tudo isto obra de um desordenado Acaso? Tinha-me aventurado a sair ao convés e estendi-me, sem despertar a menor atenção, no meio de um amontoado de cabos de enxárcias e de velas usadas, no fundo do escaler. Enquanto meditava sobre a singularidade do meu destino, rabisquei inconscientemente com uma brocha de alcatrão as orlas de um cutelo cuidadosamente dobrado que tinha perto de mim sobre uma barrica. O cutelo está agora envergado no navio e as pinceladas irrefletidas da brocha, com a vela esticada, formam a palavra DESCOBERTA.
Ultimamente fiz várias observações sobre a estrutura do navio. Embora bem armado, creio que não se trata de um navio de guerra. Quer o cordame, quer a construção, quer o equipamento em geral levam a por de lado tal hipótese. O que ele não é posso eu facilmente compreender; receio é que seja impossível dizer o que é. Não sei como, mas, ao perscrutar o seu estranho modelo e a forma singular da mastreação, o seu enorme tamanho, o exagerado número de jogos de velas, a sua proa austeramente simples e a popa antiquada, acontece vir uma ou outra vez ao meu espírito uma sensação de coisas familiares, e a essas sombras indistintas da memória mistura-se sempre uma inexplicável reminiscência de velhas crônicas estrangeiras e de épocas remotas.
Estive a observar o madeiramento do navio. O material de que é feito é-me desconhecido. Há uma característica peculiar da madeira que me choca como se a tornasse inadequada para o fim ao qual foi destinada: refiro-me à sua extrema porosidade, considerada independentemente do fato dos estragos que os parasitas provocam nestes mares e para além da podridão concomitante com a idade. Isto poderá porventura parecer uma observação algo sutil, mas esta madeira teria todas as características do carvalho espanhol se este tivesse sido distendido por quaisquer meios não naturais.
Ao reler a frase anterior, ocorre-me intacto à memória o curioso adágio de um velho marinheiro holandês forjado nas intempéries: “É tão verdade”, costumava dizer quando alguém albergava qualquer dúvida sobre a veracidade do que contava, “como é verdade existir um mar onde o próprio navio aumenta de volume como o corpo vivo de um marinheiro”.
Há cerca de uma hora, ousei introduzir-me num grupo de tripulantes. Não me deram a menor atenção e, embora estivesse mesmo no meio de todos eles, pareceram completamente alheios à minha presença. Tal como o que tinha visto antes no porão, qualquer deles apresentava indícios de encanecida velhice. Os joelhos tremiam-lhes de doença; tinham os ombros duplamente abaulados devido à decrepitude; os seus rostos ressequidos abanavam ao vento; as vozes eram baixas, trêmulas e entrecortadas; os olhos cintilavam-lhes com a reuma dos anos e os cabelos grisalhos tremulavam espantosamente na tempestade. Em redor deles, por todo o convés, estavam espalhados instrumentos matemáticos da mais singular e obsoleta estrutura.
Referi um pouco atrás o envergar de um cutelo. Desde essa altura o navio, correndo com o vento, continuou a sua assustadora carreira para sul, com todo pano largado, dos topos dos mastros aos botalós dos cutelos baixos, e balançando a cada instante as vergas do joanete no mais aterrador inferno marinho que a imaginação humana possa conceber. Acabo de abandonar o convés, onde concluí ser impossível manter-me, embora a tripulação não pareça experimentar grande incomodidade. Afigura-se-me o milagre dos milagres o fato de a massa enorme de nosso navio não ser tragada de uma vez por todas. Estamos certamente condenados a pairar continuamente sobre a orla da Eternidade, sem dar um mergulho final no abismo. Deslizamos entre vagas mil mais tremendas do que alguma vez vi, com a facilidade da sagitada gaivota; e as ondas colossais erguem as cristas sobre nós como demônios das profundezas, mas como demônios limitados a meras ameaças e impedidos de destruir. Sinto-me tentado a atribuir esta repetida salvação à unica causa natural que pode explicar tal efeito: devo supor que o navio está sob a influência de uma forte corrente, de uma impetuosa ressaca.
Vi o comandante cara a cara, e no seu próprio camarote; mas, como esperava, não me prestou atenção. Embora nada haja no seu aspecto, para um observador pouco atento, que possa sugerir ser ele alguma coisa mais ou menos do que humano, misturaram-se-me uma irreprimível reverência e temor à sensação de espanto com que o observei. A estatura dele é quase a mesma que a minha, isto é, certa de um metro e setenta. É de compleição proporcionada e compacta, sem ser robusto nem quanto ao resto digno de nota. É, porém, a singularidade da expressão que lhe anima o rosto, é o intenso, maravilhoso e empolgante testemunho de velhice, de uma tão extrema velhice que suscita no meu espírito um sentimento, uma sensação inefável. A sua fronte, conquanto pouco enrugada, parece transportar a marca de uma miríade de anos. Os seus cabelos grisalhos são registros do passado e os olhos ainda mais cinzentos são sibilas do futuro. O pavimento do camarote estava densamente juncado de in-fólios com fivelas de ferro, de esboroados instrumentos científicos e de cartas obsoletas e há muito abandonadas. Tinha a cabeça inclinada sobre as mãos e lia atentamente, com um ardente olhar inquieto, um papel que tomei por uma carta de comando e que, em qualquer caso, apresentava a assinatura de um monarca. Murmurava de si para si, em voz baixa e rabugenta, como fazia o primeiro marinheiro que eu vira no porão, quaisquer sílabas de uma língua estrangeira, e, embora falasse mesmo junto de mim, a sua voz parecia chegar-me aos ouvidos vinda de uma milha de distância.
O navio e todos os que nele seguem estão imbuídos do espírito de Antanho. A tripulação desliza para um lado e para outro como fantasmas de séculos enterrados; os seus olhares têm uma expressão ansiosa e intranqüila; e quando os seus dedos, à minha passagem, caem sob o brilho cru das lanternas de combate, sinto o que nunca antes senti, embora toda a vida tenha negociado em antiguidades e me tenha impregnado das sombras das colunas caídas de Balbec, Tadmor, e Persépolis, até a minha própria alma se converter numa ruína.
Quando olho em redor envergonho-me das minhas apreensões iniciais. Se tremi ante a tempestade que até agora nos acompanhou, não deveria ficar horrorizado perante a adversidade do vendo e do oceano, que as palavras tornado e simum se tornam banais e ineficazes para descrever? Tudo o que se encontra na imediata proximidade do navio é a escuridão da noite eterna e um caos de água sem espuma; mas, cerca de uma légua para um e outro bordo, podem ver-se, indistintamente e de quando em quando, enormes baluartes de gelo, que se erguem ao longe contra o céu desolado, semelhantes às muralhas do universo.
Conforme imaginei, prova-se que o navio está sob a ação de uma corrente, se é que assim se pode apelidar uma maré que, gemendo e uivando através da brancura do gelo, troveja para o sul com uma velocidade semelhante à impetuosa precipitação de uma catarata.
Creio ser totalmente impossível transmitir o horror das minhas sensações; porém, a curiosidade de penetrar os mistérios destas horríveis regiões prevalece mesmo sobre o meu desespero e reconcilia-me com o aspecto mais hediondo da morte. Torna-se evidente que corremos ao encontro de qualquer revelação emocionante: algum segredo que nunca será transmitido, descoberta é o termo da vida. Talvez esta corrente nos leve ao próprio Pólo Sul. Devo considerar que esta suposição, aparentemente tão estranha, tem todas as probabilidades de estar correta.
A tripulação percorre o convés com passo inquieto e trêmulo; mas há na sua atitude uma expressão que é mais da ânsia da esperança do que da apatia do desespero.
Entretanto, temos ainda o vento na popa e, como navegamos com imenso pano, o navio é por vezes erguido do mar em peso. Oh, horror sobre horror! O gelo abre-se simultaneamente à direita e à esquerda e começamos a rodopiar vertiginosamente em imensos círculos concêntricos, em torno de um gigantesco anfiteatro, de paredes cuja altura se perde na escuridão e na distância. Mas pouco tempo me restará para ponderar sobre o meu destino: os círculos estreitam rapidamente… mergulhamos loucamente nas garras do turbilhão… e, por entre o rugir, o bramir e o ribombar do oceano e da tempestade, o navio começa a estremecer e – meu Deus! – e… a afundar. (3)
Edgar Allan Poe

Notas:
1. Embarcação oriental armada de velas latinas e normalmente de dois mastros. (N. do T.)
2. Monstro marinho lendário das costas escandinavas. (N. do T.)
3. O Manuscrito encontrado numa garrafa foi publicado pela primeira vez em 1831, e só muitos anos mais tarde tomei conhecimento das cartas de Mercator, nas quais o oceano é representado a precipitar-se, por quatro embocaduras, no Abismo Polar (do Norte), para ser absorvido pelas entranhas da terra, sendo o próprio pólo representado por um rochedo negro que se ergue a uma altura prodigiosa. (N. do A.)