O primeiro canto

O primeiro canto

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

No silêncio dos olhos



Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?

- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Benjamin: "um nostálgico do passado que sonha com o futuro."


A filosofia da história de Walter Benjamin
 Michael Löwy

ESTAMOS habituados a classificar as diferentes filosofias da história em consonância com seu caráter progressista ou conservador, revolucionário ou nostálgico em relação ao passado. Walter Benjamin escapa a tais classificações. Trata-se de um crítico revolucionário da filosofia do progresso, um adversário marxista do "progressismo", um nostálgico do passado que sonha com o futuro.
A recepção de Benjamin, sobretudo na França, interessou-se prioritariamente pela vertente estética de sua obra, com certa propensão a considerá-lo, sobretudo, historiador da cultura ou crítico literário. Ora, sem negligenciar esse aspecto, se faz necessário evidenciar o alcance muito mais vasto de seu pensamento, o qual visa nada menos que uma nova compreensão da história humana. Os escritos sobre arte ou literatura só podem ser compreendidos em relação a essa visão de conjunto a iluminá-los de seu interior.
A filosofia da história de Walter Benjamin bebe em três fontes diferentes: o romantismo alemão, o messianismo judeu e o marxismo. Não é uma combinatória ou "síntese" dessas três perspectivas (aparentemente) incompatíveis, mas a invenção, a partir delas, de uma nova concepção, profundamente original.
A expressão "filosofia da história" pode induzir a erro. Não há, em Benjamin, um sistema filosófico: toda sua reflexão toma a forma do ensaio ou fragmento — quando não se trata da citação pura e simples, com passagens retiradas de contexto e colocadas a serviço de sua própria dinâmica. Qualquer tentativa de sistematização é, portanto, problemática e incerta. As breves notas a seguir são apenas algumas pistas de pesquisa.
* * *
Na literatura sobre Benjamin, deparamo-nos, freqüentemente, com dois erros simétricos, que devem ser evitados a todo custo: o primeiro consiste em dissociar, por meio de uma operação (no sentido clínico do termo) de "corte epistemológico", a obra de juventude "idealista" e teológica da "materialista" e revolucionária da maturidade; o segundo, em contrapartida, encara sua obra como um todo homogêneo e não leva absolutamente em consideração a alteração profunda trazida, por volta dos anos 20, pela descoberta do marxismo. Para compreender o movimento do seu pensamento, é preciso, pois, considerar simultaneamente a continuidade de certos temas essenciais e as diversas curvas e rupturas que pontilham sua trajetória intelectual e política.
Poderíamos tomar como ponto de partida a conferência de 1914 sobre "A Vida dos Estudantes" que apresenta, de chofre, algumas das principais linhas de força de tal trajetória. As observações que abrem esse ensaio contêm uma amostra surpreendente de sua filosofia messiânica da história:
Confiante no infinito do tempo, certa concepção da história discerne apenas o ritmo mais ou menos rápido, segundo o qual homens e épocas avançam no caminho do progresso. Donde o caráter incoerente, impreciso, sem rigor, da exigência dirigida ao presente. Aqui, ao contrário, como sempre têm feito os pensadores, apresentando imagens utópicas, vamos considerar a história à luz de uma situação determinada que a resume em um ponto focal. Os elementos da situação final não se apresentam como tendência progressista informe, mas, a título de criações e idéias em enorme perigo, altamente desacreditadas e ridicularizadas, incorporam-se de maneira profunda a qualquer presente [...] Essa situação [...] só é apreensível na sua estrutura metafísica, como o reino messiânico ou a idéia revolucionária, no sentido de 89 (1).
Imagens utópicas — messiânicas e revolucionárias — contra a "informe tendência progressista": estão aí colocados, em resumo, os termos do debate que Benjamin realizará ao longo de toda a sua obra. Como vai se articular, mais tarde, essa primeira intuição com o materialismo histórico?
É a partir de 1924, quando lê História e consciência de classe, que o marxismo vai gradualmente se tornar um elemento-chave da concepção da história. Em 1929, Benjamin se refere ainda ao ensaio de Lukacs como um dos raros livros que permanecem vivos e atuais: "A obra mais acabada da literatura marxista. Sua singularidade se fundamenta na segurança com a qual apreendeu, de um lado a situação crítica da luta de classes na situação crítica da filosofia e, de outro, a revolução, a partir de agora concretamente madura, como a pré-condição absoluta, ou até mesmo a realização e a conclusão do conhecimento teórico" (2).
Esse texto mostra qual é o aspecto do marxismo que mais interessa a Benjamin e vai aclarar com uma luz nova sua visão do processo histórico: a luta de classes. No entanto, o materialismo histórico não vai substituir suas intuições "anti-progressistas", de inspiração romântica e messiânica; vai se articular com elas, ganhando, dessa maneira, uma qualidade crítica que o distingue radicalmente do marxismo "oficial" dominante na época.
Tal articulação se manifesta pela primeira vez no livro Sens unique, escrito entre 1923 e 1926, onde se encontra, sob o título "Avertisseur d'incendie", essa premonição histórica das ameaças do progresso: se a derrubada da burguesia pelo proletariado "não se realiza antes de um momento quase calculável da evolução técnica e científica (indicado pela inflação e pela guerra química), tudo está perdido. É preciso cortar o pavio que queima antes que a faísca atinja a dinamite" (3).
Contrariamente ao marxismo evolucionista vulgar, Benjamin não concebe a revolução como o resultado "natural" ou "inevitável" do progresso econômico e técnico (ou da "contradição entre forças e relações de produção"), mas como a interrupção de uma evolução histórica que conduz à catástrofe.
É porque percebe esse perigo catastrófico que Benjamin invoca o pessimismo em seu artigo de 1929 sobre o surrealismo, um pessimismo revolucionário que não tem nada a ver com a resignação fatalista e ainda menos com o Kulturpessimismus alemão, conservador, reacionário e pré-fascista (Carl Schmitt, Oswald Spengler, Moeller van der Bruck): o pessimismo aqui está a serviço da emancipação das classes oprimidas. Sua preocupação não é o "declínio" das elites ou da nação, mas as ameaças que o progresso técnico e econômico promovido pelo capitalismo faz pesar sobre a humanidade.
Nada parece mais ridículo aos olhos de Benjamin que o otimismo dos partidos burgueses e da social democracia, cujo programa político não é outra coisa que "um mau poema de primavera". Contra esse "otimismo sem consciência", esse "otimismo de diletantes", inspirado pela ideologia do progresso linear, ele descobre nopessimismo o ponto de convergência efetiva entre surrealismo e comunismo (4). É evidente que não se trata de um sentimento contemplativo, mas de um pessimismo ativo, "organizado", prático, inteiramente dedicado ao objetivo de impedir, por todos os meios possíveis, a chegada do pior.
Perguntamo-nos a que pode se referir o conceito de pessimismo aplicado aos comunistas: sua doutrina em 1928, celebrando os triunfos da construção do socialismo na URSS e a queda iminente do capitalismo, não é precisamente um belo exemplo de ilusão otimista? De fato, Benjamin tomou emprestado o conceito de "organização do pessimismo" de uma obra qualificada por ele como "excelente", La révolution et les intellectuels(1926), do comunista dissidente Pierre Naville. Próximo dos surrealistas (tinha sido um dos redatores da revista La Révolution Surréaliste), Naville fizera naquele momento a opção do engajamento político no partido comunista francês e queria dividi-la com seus amigos.
Ora, para Pierre Naville, o pessimismo, que constitui "a fonte do método revolucionário de Marx", é o único meio de "escapar às nulidades e às desventuras de uma época de compromisso". Recusando o "grosseiro otimismo" de um Herbert Spencer — a quem gratifica com o amável qualificativo de "cérebro monstruosamente diminuído" — ou de um Anatole France, cujas "infames brincadeiras" não suporta, conclui: "é preciso organizar o pessimismo", "a organização do pessimismo" é a única palavra de ordem que nos impede de enfraquecer (5).
Torna-se inútil precisar que tal apologia apaixonada do pessimismo era muito pouco representativa da cultura política do comunismo francês na época. De fato, Pierre Naville seria logo excluído (1928) do partido: a lógica de seu anti-otimismo o conduzirá às fileiras da oposição comunista de esquerda ("trotskista"), da qual se tornará um dos principais dirigentes.
A filosofia pessimista da história de Benjamin se manifesta de maneira particularmente aguda em sua visão do futuro europeu: "Pessimismo em toda a linha. Sim, na verdade, e totalmente. Desconfiança quanto ao destino da literatura, desconfiança quanto ao destino da liberdade, desconfiança quanto ao destino do homem europeu, mas sobretudo desconfiança tripla diante de qualquer acomodação: entre as classes, entre os povos, entre os indivíduos. E confiança ilimitada apenas na I. G. Farben e no aperfeiçoamento pacífico da Luftwaffe" (6).
Essa visão crítica permite a Benjamin perceber — intuitivamente, mas com uma estranha acuidade — as catástrofes que esperavam a Europa, perfeitamente resumidas na frase irônica sobre a "confiança ilimitada". Evidentemente, mesmo ele, o mais pessimista de todos, não podia prever as destruições que a Luftwaffe iria infligir às cidades e populações civis européias; e ainda menos imaginar que a I. G. Farben , passados apenas 12 anos, se destacaria pela fabricação do gás Ziklon B utilizado para "racionalizar" o genocídio, e que suas fábricas empregariam, na casa das centenas de milhares, a mão-de-obra de prisioneiros de campos de concentração. Entretanto, único entre os pensadores e dirigentes marxistas daqueles anos, Benjamin teve a premonição dos monstruosos desastres que podia engendrar a civilização industrial/burguesa em crise.
É sobretudo no Livro das passagens parisienses e nos diferentes textos dos anos 1936-40 que Benjamin vai desenvolver sua visão da história, dissociando-se, de modo mais ou menos radical, das "ilusões de progresso" hegemônicas no seio do pensamento de esquerda alemã e européia. Em um artigo publicado em 1937 na célebreZeitschrift für Sozialforschung, a revista da Escola de Frankfurt (já exilada nos Estados Unidos), dedicado ao historiador e colecionador Eduard Fuchs, ele ataca o marxismo social democrata, mistura de positivismo, evolucionismo darwinista e culto do progresso: "Ele não podia ver na evolução da técnica outra coisa a não ser o progresso das ciências naturais e não a regressão social [...]. As energias que a técnica desenvolve para além desse limite são destrutivas. Colocam em primeira linha a técnica da guerra e sua preparação pela imprensa" (7).
O objetivo de Benjamin é aprofundar e radicalizar a oposição entre o marxismo e as filosofias burguesas da história, aguçar seu potencial revolucionário e elevar-lhe o conteúdo crítico. É nesse espírito que define, de maneira decisiva, a ambição do projeto das Passagens parisienses: "Podemos considerar também como finalidade seguida metodologicamente neste trabalho a possibilidade de um materialismo histórico que tenha aniquilado (annihiliert) em si mesmo a idéia de progresso. É justamente se opondo aos hábitos do pensamento burguês que o materialismo histórico encontra suas fontes" (8). Tal programa não implicava qualquer "revisionismo", mas, ao contrário, como Karl Korsch tentara fazer em seu próprio livro — uma das principais referências de Benjamin — um retorno ao próprio Marx.
Benjamin estava consciente de que essa leitura do marxismo mergulhava suas raízes na crítica romântica da civilização industrial, mas estava convencido de que Marx também tinha se inspirado nessa fonte. Encontra um apoio para tal interpretação heterodoxa das origens do marxismo em Karl Marx (1938) de Korsch: "De modo muito acertado e não sem nos fazer pensar em Maistre e Bonald, Korsch diz o seguinte: 'Assim, na teoria do movimento operário moderno, também, há uma parte da "desilusão" que, depois da grande Revolução francesa, foi proclamada pelos primeiros teóricos da contra-revolução e, em seguida, pelos românticos alemães e que, graças a Hegel, teve forte influência sobre Marx'" (9).
A formulação mais espantosa e radical da nova filosofia da história — marxista e messiânica — de Walter Benjamin se encontra, indubitavelmente, nas Thèses sur le concept d'histoire, de 1940, um dos documentos mais importantes do pensamento revolucionário desde as Teses sobre Feuerbach, de 1845.
A exigência fundamental de Benjamin é escrever a história a contrapelo, ou seja, do ponto de vista dos vencidos— contra a tradição conformista do historicismo alemão cujos partidários entram sempre "em empatia com o vencedor" — Tese VII (10).
É evidente que a palavra "vencedor" não faz referência a batalhas ou guerras habituais, mas à "guerra de classes", na qual um dos campos, a classe dirigente, "não cessou de vencer" (Tese VII) os oprimidos — desde Spartacus, o gladiador rebelde, até o grupo Spartacus de Rosa de Luxemburgo, e desde o Imperium romano até oTertium Imperium nazista.
O historicismo se identifica enfaticamente (Einfühlung) com as classes dominantes. Ele vê a história como uma sucessão gloriosa de altos fatos políticos e militares. Fazendo o elogio dos dirigentes e prestando-lhes homenagem, confere-lhes o estatuto de "herdeiros" da história passada. Em outros termos, participa — como essas pessoas que levantam a coroa de louros acima da cabeça do vencedor — de um "cortejo triunfal em que os senhores de hoje caminham por sobre o corpo dos vencidos" (Tese VII).
A crítica que Benjamin formula contra o historicismo se inspira na filosofia marxista da história, mas tem também origem nietzschiana. Em uma obra de juventude, Da utilidade e da inconveniência da história (citada na Tese XII), Nietzsche ridiculariza a "admiração nua pelo sucesso" dos historicistas, sua "idolatria do factual" (Götzerdienste des Tatsächlichen) e a tendência a se inclinarem diante da "pujança da história". Já que o Diabo é o senhor do sucesso e do progresso, a verdadeira virtude consiste em insurgir-se contra a tirania da realidade e nadar contra a corrente histórica.
Existe uma ligação evidente entre esse panfleto de Nietzsche e a exortação de Benjamin para escrever a históriagegen den Strich. No entanto, as diferenças não são menos importantes: enquanto a crítica nietzschiana ao historicismo se faz em nome da "Vida" ou do "Indivíduo heróico", a de Benjamin fala em nome dos vencidos. Na sua condição de marxista, ele se situa no lado oposto ao elitismo aristocrático de Nietzsche e escolhe identificar-se com os "danados da Terra", os que jazem sob as rodas desses carros majestosos e magníficos chamados Civilização ou Progresso.




 Rejeitando o culto moderno da Deusa Progresso, Benjamin coloca no centro de sua filosofia da história o conceito de catástrofe. Em uma das notas preparatórias às Teses de 1940, observa: "A catástrofe é o progresso, o progresso é a catástrofe. A catástrofe é o contínuo da história" (11). A assimilação de progresso e catástrofe tem, antes de mais nada, uma significação histórica: do ponto de vista dos vencidos, o passado não é senão uma série interminável de derrotas catastróficas. A revolta dos escravos, a guerra dos camponeses, junho de 1848, a Comuna de Paris e o levante berlinense de janeiro de 1919 são exemplos que aparecem freqüentemente nos escritos de Benjamin, para quem "esse inimigo não parou de vencer" (Tese VI). Essa equação, no entanto, tem também uma significação eminentemente atual, porque, "nesta hora, o inimigo ainda não parou de triunfar" (Tese VI, tradução para o francês do próprio Benjamin): a derrota da Espanha republicana, o pacto Molotov-Ribbentrop, a vitoriosa invasão nazista na Europa.
O fascismo ocupa, evidentemente, um lugar central na reflexão histórica de Benjamin nas Teses. Para ele, não é um acidente da história, um "estado de exceção", qualquer coisa impossível no século XX, um absurdo do ponto de vista do progresso: rejeitando tal tipo de ilusão, Benjamin reclama "uma teoria da história a partir da qual o fascismo possa ser percebido" (12), ou seja, uma teoria que compreenda que as irracionalidades do fascismo são apenas o avesso da racionalidade instrumental moderna. O fascismo leva às últimas conseqüências a combinação tipicamente moderna de progresso técnico e regressão social.
Enquanto Marx e Engels tinham tido, segundo Benjamin, "a intuição fulgurante" da barbárie por vir, em seu prognóstico sobre a evolução do capitalismo (13), seus epígonos do século XX foram incapazes de compreender uma barbárie moderna e, portanto, de resistir eficazmente a ela — barbárie industrial, dinâmica, instalada no coração mesmo do progresso técnico e científico.
Procurando as raízes, os fundamentos metodológicos de tal incompreensão catastrófica, que contribuiu para a derrota do movimento operário alemão em 1913, Benjamin ataca a ideologia do progresso em todos os seus componentes: o evolucionismo darwinista, o determinismo de tipo científico-natural, o otimismo cego — dogma da vitória "inevitável" do partido — e a convicção de "nadar no sentido da corrente" (o desenvolvimento técnico). Em uma palavra, a crença confortável em um progresso automático, contínuo, infinito, fundado na acumulação quantitativa, no desenvolvimento das forças produtivas e no crescimento da dominação sobre a natureza. Ele crê descobrir por detrás de tais manifestações múltiplas um fio condutor que submete a uma crítica radical: a concepção homogênea, vazia e mecânica (como um movimento de relojoaria) do tempo histórico.
Contra essa visão linear e quantitativa, Benjamin opõe uma percepção qualitativa da temporalidade, fundada, de um lado, na rememoração, de outro na ruptura messiânica/revolucionária da continuidade. A revolução é o "correspondente" (no sentido baudelairiano da palavra) profano da interrupção messiânica da história, da parada messiânica do devir"(Tese XVII): as classes revolucionárias, escreve na Tese XV, estão conscientes, no momento da ação, de "romper o contínuo da história". A interrupção revolucionária é, portanto, a resposta de Benjamin às ameaças que faz pesar sobre a espécie humana a perseguição da tempestade maléfica chamada "Progresso", uma tempestade que acumula ruínas e prepara catástrofes novas (Tese XII). Corria o ano 1940, um pouco antes de Auschwitz e Hiroshima...
Para Habermas, existe uma contradição entre a filosofia da história de Benjamin e o materialismo histórico. O erro de Benjamin foi, segundo ele, ter querido impor — "como um capuz de monge sobre a cabeça" — ao materialismo histórico de Marx, "que leva em conta progressos não somente no campo das forças produtivas, mas também da dominação", "uma concepção histórica anti-evolucionista" (14).
Na realidade, uma interpretação dialética e não evolucionista da história, levando em conta ao mesmo tempo os progressos e as regressões — como fizeram Benjamin e seus amigos da Escola de Frankfurt — pode fundamentar-se em vários escritos de Marx. No entanto, é verdade que ela entra em conflito com as interpretações dominantes do materialismo histórico, desenvolvidas no curso do século XX. O que Habermas pensa ser um erro é precisamente a fonte do valor singular da filosofia benjaminiana da história e sua capacidade de compreender um século caracterizado pela imbricação estreita entre a modernidade e a barbárie.

Notas
1 Benjamin, W. "La Vie des Étudiantes" (1915), em Mythe et violence (Paris: Lettres Nouvelles, 1971), p. 37.
2 __________ Gesammelte Schriften (Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1980), III, p. 171.
3 __________ Sens unique (Paris: Lettres Nouvelles/Maurice Nadeau, 1978), pp. 205-6.
4 __________ "Le Surréalisme. Le Dernier Instantané de l'Intelligence Européenne", Mythe et violence, p. 312.
5 Naville, Pierre, La révolution et les intellectuels (Paris: Gallimard, 1965), pp. 76-7, 110-17.
6 Benjamin, W., "Le Surréalisme", p. 312.
7 __________ Gesammelte Schriften, III, p. 474.
8 __________ "Passagenwerk" em Gesammelte Schriften, V, p. 574.
9 __________ Ibid., p. 820.
10 As citações das "Thèses sur la Philosophie de l'Histoire" foram, na maioria das vezes, tiradas da tradução de Maurice de Gandillac em Poésie et révolution (Paris: Lettres Nouvelles, 1971).
11 Benjamin, W. Gesammelte Schriften, I, 3, p. 1244 (notas preparatórias para as Teses).
12 __________ Gesammelte Schriften, I, 3, p. 1244 (notas preparatórias).
13 __________ Gesammelte Schriften, II, 2, p. 488.
14 Habermas, J. "L'actualité de W. Benjamin. La critique: Prise de Conscience ou Préservation", Revue d'Esthétique nº 1, p. 121, (1981).

Michael Löwy estudou Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP) e doutorou-se na Sorbonne sob orientação de Lucien Goldmann. Vive em Paris desde 1969 e é autor de vários livros, dentre eles, La théorie de la révolution chez le jeune Marx (Maspero); Método dialético e teoria política (Paz e Terra); Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários (Ciências Humanas); Ideologias e ciência social (Cortez); As aventuras de Karl Marx contra o barão de Münchhausen (Busca Vida). 
Tradução de Gilberto P. Passos. O original em francês — La philosophie de l'histoire de Walter Benjamin — encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta. 
Palestra feita pelo autor em 28 de janeiro de 2002 na sede do Instituto de ESTUDOS AVANÇADOS da USP.


sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Cântico VI - Cecília Meireles

Tu tens um medo: 
Acabar.
Não vês que acaba todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.


Konstantino Kavafis- "Poesías completas"


terça-feira, 19 de dezembro de 2017

LOU ANDREAS -SALOMÉ: A PAIXÃO VIVA





(Do Livro: Os Sentidos da Paixão. Ed. Cia de Letras, 1987, págs. 359-373)
Luzilá Gonçalves Ferreira

Lou Salomé: uma prática de paixão; alguém que viveu a paixão com paixão, e talvez por isso mesmo provocou, até uma idade avançada, o nascimento da paixão nos seres que encontrou em seu caminho: Rilke, Nietzsche, Paul Rée, Tausk e, ao que parece, até mesmo Wagner sucumbiram ao seu encanto e à alegria de viver que transpirava em cada um de seus gestos - e o próprio Freud não parece ter sido indiferente à graça da discípula que ele qualificou de "raio de sol'.
A paixão de Lou pela vida transparecia em seu próprio físico. Freud lhe escreveu um dia: "você tem um olhar como se fosse Natal". E a escritora Helena Klinkberg (citado por Peters): "O sol se levantava quando Lou entrava numa sala". Era um ser luminoso, transparente e lúcido, daquela lucidez talvez de que fala João Cabral de Melo Neto a respeito de Monsieur Teste: "uma lucidez que tudo via, como se à luz ou de dia". Um ser humano para quem a felicidade é condição natural e destino do homem: "dentro da felicidade eu estou em casa". E ainda: "A única perfeição é a alegria".
Essa paixão pela vida, ela a transmitia aos outros, fazendo com que as pessoas ao seu contato desenvolvessem e dessem o melhor delas próprias. O que fez alguém escrever: "Quando Lou se interessa apaixonadamente por um homem, nove meses depois este homem dá à luz um livro. Um interesse pelo outro que o leva a crescer e produzir - mesmo quando esse crescimento e essa produção implicam o sofrimento.
Pois Lou Andreas-Salomé conseguiu realizar, em seus 76 anos de vida, o que nós todos gostaríamos e deveríamos fazer sempre - e não o fazemos por descaso, indolência, medo: tornar a vida o exercício apaixonada de uma busca. Sua exploração em todos os possíveis. Isto que requer a fruição intensa e incessante de coisas e pessoas que nos cercam, de modo que o mundo exterior em nós penetre e a nós se incorpore. Pois a vida, como o dizia Rainer Maria Rilke a propósito de Rodin, "está nas pequenas coisas como nas grandes: no que é apenas visível e no que é imenso".
Antes mesmo do seu encontro com Rilke, Louise von Salomé já intuía essa verdade: desde muito cedo encontramos nela um grande apetite de aprender e de amar - e o objeto de sua atenção podia ser a psicanálise, a curtição de uma paisagem, de uma flor, de um esquilo na floresta ou de um corpo amado.
(.....) Lou escreveu vários ensaios sobre o Erotismo. O primeiro deles data de sua ligação com Rilke. Intitulado reflexões sobre o problema do amor, traz as evidentes marcas da embriaguez física e espiritual que sua autora estava vivendo. Aqui ela assinala, em páginas de um admirável lirismo, a capacidade que tem a paixão amorosa de nos abrir o caminho ao sentimento da totalidade da vida e sua faculdade de nos colocar em estado criativo. O ato amoroso "nos enche a alma inteira (...) de ilusões e de idealizações espirituais, forçando-nos o mesmo tempo a nos chocar brutalmente, sem possibilidade de se esquivar, ao dispensador de uma tal desordem; ao corpo". E Lou escreve:

"Pois, sobretudo, resulta no indivíduo uma espécie de interação ébria e exuberante das mais altas energias criadoras do seu corpo e a exaltação mais alta da alma. Enquanto nossa consciência se interessa vagamente, habitualmente, por nossa vida psíquica, como por um mundo que conhecemos mal e que controlamos ainda pior, que ao que parece forma um com ela, mas com o qual normalmente ela se entende mal - eis que se produz subitamente entre eles uma tal comunhão de enervação que todos os seus desejos, todas as suas aspirações se inflamam ao mesmo tempo."

Por essa exaltação da alma através dos sentidos, por essa impressão que o ato amoroso nos dá de haver ido muito longe, e tocado o indizível, é que ele pode influenciar e favorecer a criação, a "pátria do dizível", como escreveu Rilke. E Lou: "O Mundo da criação e do amor significa: volta ao país natal, entrada no paraíso; o a impossibilidade de criar, ou do amor morto, é, ao contrário, um exílio onde os deuses nos abandonam".
A atividade criadora se apaixona por tudo aquilo que é vida em nós, que é indício do que em nós lateja de mais secreto, e que atinge as raízes do ser. O espírito descobre forças que não possuía ou das quais não se apercebia. Pode voltar àquele estado de inocência primeira que possuiu na infância, redescobre a "novidade" das coisas, com o frescor de uma sensação primitiva: o olhar da criança sobre o mundo que descobre maravilhada; o olhar de Adão diante de Eva recém-saída de si.
Confrontado com os seus longes, o amado vê a si mesmo, e ao mundo exterior, como algo recém-criado. Por isso, às vezes a gente sai do amor como quem saiu de uma catedral, redescobrindo o mundo aqui fora com os olhos renovados. O ato amoroso, vivido em plenitude, obriga os amantes a concentrar em si mesmos tudo aquilo de que são capazes, passível de germinar com a força das plantas na primavera.

"Nesta igualdade original do corpo e do espírito e nesta consciência ingênua de um e de outro - uma criança que acredita em tudo que vê, para quem tudo se renovou, que, cheio de uma fé e de uma confiança sem limites, gostaria de gritar sua alegria ao esplendor inverossímil do mundo, e não saberia saudar de melhor modo a razão senão fazendo cabriolas diante dela... como se balbuciasse em sonho, ele tem algo a dizer sobre estes esplendores ocultos que lhe fizera, ai de nós, esquecer tantas coisas úteis e necessárias."

O ato amoroso transforma o parceiro num "conto estranho e maravilhoso". A Paixão amorosa é uma porta, diferente de todas as outras portas, "em sua arquitetura ornada de elementos ricos de sentido, em virtude de um simbolismo singular". É o caminho por excelência que nos leva a nós mesmos. Por ela "nós não somos um mundo de realidade, somos apenas o espaço e o metteur en scène de um mundo onírico, todo-poderoso, irresistível".
Assim, o amor durará enquanto os amantes forem capazes de oferecer ao outro essa entrega, que dá acesso de modo vital à capacidade de se concentrar neles mesmos, de ser um mundo para si por causa do outro.
A esta altura, a gente poderia se perguntar - não seria esta uma visão demasiado idealizada do amor? Mas Lou não se deixa embalar incondicionalmente pelo êxtase da paixão: esta grande amorosa foi também, segundo a expressão de Freud, uma "compreendedora".
Neste mesmo ensaio, ela nos lembra que no êxtase amoroso, por mais que desejemos nossa fusão com o amado, sempre somos, em última análise, remetidos a nós mesmos. A reconciliação que se fará aqui será sobretudo entre o sujeito e ele próprio, através do outro, mais do que entre o sujeito e o objeto amado.
Num ensaio sobre o erotismo, datado de 1910, e num ensaio posterior, quando Lou já se engajara definitivamente à psicanálise, intitulado Anal e Sexual, ela nos lembra que na união física "a gente não possui um ao outro por meio do corpo, mas apesar do corpo, que, como todo mundo sabe, não se identifica jamais (...) completamente com o todo da pessoa, mas aparece sempre como uma parte dela e resiste à dominação mais viva".
(....) A fusão inteira do nosso ser com o outro, por mais querido que seja, não seria desejável. É preciso que sejamos cada vez mais nós mesmos, para poder ser um mundo para o outro. A relação erótica, remetendo-nos a nós próprios, é uma ocasião de constante renovação: cada vez ela inaugura em nós um ser novo; como um ato de linguagem, cada vez que eu falo a um Tu, é um Eu diferente que fala a um novo Tu: quando digo Eu, já não sou aquela que falava há pouco. A relação erótica é, assim, nela mesma, criação. E o amor um elemento de produção: somos a cada instante outros, encontramos no outro cada vez um elemento novo, diferente, desconhecido, misterioso até - o que dá à relação erótica sua riqueza:
"só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como tal. Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões mútuas... e, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais é funesto de se enxertar um sobre o outro, em nome do amor, de se transformar um em parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em um solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro."

É preciso que a gente seja sempre, um para o outro, duas deliciosas surpresas fecundas. Aquele mundo da fábula de La Fontaine "Os dois pombos", que aconselha aos amantes: "Amantes, felizes amantes, vocês querem viajar? Que seja pelas margens próximas/Sejam um para o outro um mundo sempre belo, sempre diverso, sempre novo./ Sejam um todo um para o outro, contem por nada o resto".
E Lou analisa esta necessidade de renovação e da existência do mistério na relação amorosa:
"Pois, nos seio mesmo da paixão, nunca se deve tratar de "conhecer perfeitamente o outro": por mais que progridam neste conhecimento, a paixão restabelece constantemente entre os dois este contato fecundo que não pode se comparar a nenhuma relação de simpatia e os coloca de novo em sua relação original: a violência do espanto que cada um deles produz sobre o outro e que põe limites a toda tentativa de apreender objetivamente este parceiro. É terrível de dizer, mas , no fundo, o amante não está querendo saber "quem é" em realidade seu parceiro. Estouvado em seu egoísmo, ele se contenta de saber que o outro lhe faz um bem incompreensível... os amantes permanecem um para o outro, em última análise, um mistério."

Assim, o amor não seria um encontro, mas uma busca. Não quer dizer que chegamos, mas que estamos próximos.
Rilke perguntava-se na Primeira elegia de Duíno: "Não é tempo daqueles que amam libertar-se do objeto amado e superá-los, frementes? Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo mais do que ela mesma". E nas cartas a um jovem poeta, em maio de 1904:
"Assim, para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento, cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. (...) O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo por si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser: é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe."

Se o amor é uma busca, se o estudo é uma busca, a arte uma busca, a vida inteira é também busca. E o amor e a paixão são a mola dessa busca.
É preciso buscar com amor, com paixão. Amar a vida, amá-la mesmo e sobretudo quando ela chega ao fim, e o espírito e o corpo vêem limitados seu campo de ação. Nos Cadernos íntimos dos últimos anos, Lou Andreas-Salomé dá um balanço de sua vida. Em fevereiro de 1934, isto é, três anos antes de morrer, ela escreve:

"Distingue-se entre os humanos aqueles que se sentem divididos em um passado e um futuro e aqueles que vivem o presente com cada vez mais densidade, sempre mais plenitude. Os orientais acham natural insistir menos sobre a morte do que se passa do que sobre a perfeição do que se acaba, como aprofundamento da realidade. Nós, ao contrário, começamos a ver aquilo que nos chega, apenas sob o aspecto sempre mais sinistro da morte - como tudo o que se observa de um olhar exterior, logo mortífero."

E um pouco mais adiante:

"Sempre não tive a idéia fixa de que a velhice me traria muito? Em meus jovens anos escrevi em algum lugar: primeiro nós vivemos nossa juventude, em seguida nossa juventude vive em nós. Não sei bem, ainda hoje, o que eu queria dizer com isso outrora. Mas eu tinha realmente medo de não atingir a idade de viver esta experiência; eu o sabia profundamente, uma longa vida, com todas as suas dores, vale ser vivida,. Claro, o valor da vida pode nos ficar escondido pelos desgastes sofridos pela nossa carne, nosso espírito (...) do mesmo modo que a juventude mais empreendedora pode se ver entravada em sua felicidade e em seu sucesso, por um fatal concurso de circunstâncias; mas, por além das perdas, a velhice adquire muito mais que a famosa aptidão à serenidade e à lucidez: ela permite que se chegue a uma plenitude mais acabada."

A velhice pode ser, assim, uma volta àquela espécie de paz inicial e retorno do indivíduo a um estado de não-divisão, de fusão primitiva do eu para consigo mesmo, o corpo parece se acalmar relativizando-se; ...
Num ensaio de 1901, escrito aos 40 anos e intitulado A velhice e a eternidade, Lou afirmava: "O velho está liberto de todos os seus limites pessoais e escrúpulos mesquinhos. Retirado lentamente da vizinhança imediata dos outros seres vivos, ele se vê, progressivamente, reintroduzido no grande encadeamento universal".
É preciso amar a vida em todas as suas fases e amar até mesmo a morte. Aqui Eros e Thanatos se dão as mãos - são forças complementares e não contrárias. A morte é a redenção da vida individual, escreve Lou num artigo sobre o misticismo russo. Nossa morte não nos separa dos seres que amamos; ela nos entrega de modo mais completo a eles:
No dia em que eu estiver no meu leito de morte
Faísca que se apagou -,
Acaricia ainda uma vez meus cabelos
Com tua mão bem-amada
Antes que devolvam à terra
O que deve voltar à terra,
Pousa sobre minha boca que amaste
Ainda um beijo.
Mas não esqueças: no esquife estrangeiro
Eu só repouso em aparência
Porque em ti minha vida se refugiou
E agora sou toda tua [Hino à morte]

A morte desfaz, assim, a distância entre os amantes, que agora vivem um no outro, sem que o individualismo os separe. A morte não é uma partida, umas uma volta: um retorno do indivíduo àquela união primitiva com as cosias. Por isso não a devemos temer.
A grande biografia de Lou Salomé ainda não foi escrita. Mas, pelo que dela nos resta, fica uma lição final de amor pela vida, de paixão pela vida, de totalização da vida. Por isso Lou desejou ser cremada e que suas cinzas fossem jogadas no jardim de sua casa, em Gottingen: para que seu corpo pudesse se incorporar à terra e ser transformado em planta e flor.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Uma nova etapa na vida a partir da leitura de um livro


Somos subeducados, atrasados e analfabetos; e neste particular confesso que não faço grande distinção entre a ignorância do meu concidadão que não sabe absolutamente ler nada, e a ignorância do que apenas aprendeu a ler o que se destina a crianças e inteligências medíocres. Deveríamos estar à altura dos grandes da Antiguidade, mas em parte por saber primacialmente quão grandes eles foram. Somos uma raça de homens-passarinhos; nos nossos voos intelectuais mal nos alçamos um pouco acima das colunas do jornal. 

Nem todos os livros são tão insípidos como os seus leitores. É provável que haja palavras endereçadas exactamente à nossa condição, as quais, se de facto pudéssemos ouvi-las e entendê-las, seriam mais salutares às nossas vidas que a própria manhã ou a Primavera, revelando-nos talvez uma face inédita das coisas. 

Quantos homens não inauguraram uma nova etapa na vida a partir da leitura de um livro! Deve existir para nós o livro capaz de explicar os nossos mistérios e de revelar outros insuspeitados. As coisas que ora nos parecem inexprimíveis, podemos encontrá-las expressas algures. 

As mesmas questões que nos inquietam, intrigam e confundem, foram postas por sua vez a todos os homens sábios; nenhuma foi omitida, e cada um deles respondeu de acordo com a sua capacidade, por meio de palavras ou da própria vida. De mais a mais, juntamente com a sabedoria aprendemos a liberalidade. 

Henry David Thoreau, in 'Walden'