O primeiro canto

terça-feira, 9 de janeiro de 2018
quinta-feira, 4 de janeiro de 2018
No silêncio dos olhos
Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?
- José Saramago, em "Os poemas
possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.
quarta-feira, 3 de janeiro de 2018
Benjamin: "um nostálgico do passado que sonha com o futuro."
A filosofia da história de Walter Benjamin
Michael Löwy
ESTAMOS habituados a
classificar as diferentes filosofias da história em consonância com seu caráter
progressista ou conservador, revolucionário ou nostálgico em relação ao
passado. Walter Benjamin escapa a tais classificações. Trata-se de um crítico
revolucionário da filosofia do progresso, um adversário marxista do
"progressismo", um nostálgico do passado que sonha com o futuro.
A recepção de
Benjamin, sobretudo na França, interessou-se prioritariamente pela vertente
estética de sua obra, com certa propensão a considerá-lo, sobretudo,
historiador da cultura ou crítico literário. Ora, sem negligenciar esse
aspecto, se faz necessário evidenciar o alcance muito mais vasto de seu
pensamento, o qual visa nada menos que uma nova compreensão da história humana.
Os escritos sobre arte ou literatura só podem ser compreendidos em relação a
essa visão de conjunto a iluminá-los de seu interior.
A filosofia da
história de Walter Benjamin bebe em três fontes diferentes: o romantismo
alemão, o messianismo judeu e o marxismo. Não é uma combinatória ou
"síntese" dessas três perspectivas (aparentemente) incompatíveis, mas
a invenção, a partir delas, de uma nova concepção,
profundamente original.
A expressão
"filosofia da história" pode induzir a erro. Não há, em Benjamin, um sistema
filosófico: toda sua reflexão toma a forma do ensaio ou fragmento —
quando não se trata da citação pura e simples, com passagens
retiradas de contexto e colocadas a serviço de sua própria dinâmica. Qualquer
tentativa de sistematização é, portanto, problemática e incerta. As breves
notas a seguir são apenas algumas pistas de pesquisa.
* * *
Na literatura sobre
Benjamin, deparamo-nos, freqüentemente, com dois erros simétricos, que devem
ser evitados a todo custo: o primeiro consiste em dissociar, por meio de uma
operação (no sentido clínico do termo) de "corte epistemológico", a
obra de juventude "idealista" e teológica da "materialista"
e revolucionária da maturidade; o segundo, em contrapartida, encara sua obra
como um todo homogêneo e não leva absolutamente em consideração a alteração
profunda trazida, por volta dos anos 20, pela descoberta do marxismo. Para
compreender o movimento do seu pensamento, é preciso, pois,
considerar simultaneamente a continuidade de certos temas essenciais e as
diversas curvas e rupturas que pontilham sua trajetória intelectual e política.
Poderíamos tomar como
ponto de partida a conferência de 1914 sobre "A Vida dos Estudantes"
que apresenta, de chofre, algumas das principais linhas de força de tal
trajetória. As observações que abrem esse ensaio contêm uma amostra
surpreendente de sua filosofia messiânica da história:
Confiante no infinito
do tempo, certa concepção da história discerne apenas o ritmo mais ou menos
rápido, segundo o qual homens e épocas avançam no caminho do progresso. Donde o
caráter incoerente, impreciso, sem rigor, da exigência dirigida ao presente.
Aqui, ao contrário, como sempre têm feito os pensadores, apresentando imagens
utópicas, vamos considerar a história à luz de uma situação determinada que a resume
em um ponto focal. Os elementos da situação final não se apresentam como
tendência progressista informe, mas, a título de criações e idéias em enorme
perigo, altamente desacreditadas e ridicularizadas, incorporam-se de maneira
profunda a qualquer presente [...] Essa situação [...] só é apreensível na sua
estrutura metafísica, como o reino messiânico ou a idéia revolucionária, no
sentido de 89 (1).
Imagens utópicas —
messiânicas e revolucionárias — contra a "informe tendência
progressista": estão aí colocados, em resumo, os termos do debate que
Benjamin realizará ao longo de toda a sua obra. Como vai se articular, mais
tarde, essa primeira intuição com o materialismo histórico?
É a partir de 1924,
quando lê História e consciência de classe, que o marxismo vai
gradualmente se tornar um elemento-chave da concepção da história. Em 1929,
Benjamin se refere ainda ao ensaio de Lukacs como um dos raros livros que
permanecem vivos e atuais: "A obra mais acabada da literatura marxista.
Sua singularidade se fundamenta na segurança com a qual apreendeu, de um lado a
situação crítica da luta de classes na situação crítica da filosofia e, de
outro, a revolução, a partir de agora concretamente madura, como a pré-condição
absoluta, ou até mesmo a realização e a conclusão do conhecimento teórico"
(2).
Esse texto mostra
qual é o aspecto do marxismo que mais interessa a Benjamin e vai aclarar com
uma luz nova sua visão do processo histórico: a luta de classes. No
entanto, o materialismo histórico não vai substituir suas intuições
"anti-progressistas", de inspiração romântica e messiânica; vai se articular com
elas, ganhando, dessa maneira, uma qualidade crítica que o distingue
radicalmente do marxismo "oficial" dominante na época.
Tal articulação se
manifesta pela primeira vez no livro Sens unique, escrito entre
1923 e 1926, onde se encontra, sob o título "Avertisseur d'incendie",
essa premonição histórica das ameaças do progresso: se a derrubada da burguesia
pelo proletariado "não se realiza antes de um momento quase calculável da
evolução técnica e científica (indicado pela inflação e pela guerra química),
tudo está perdido. É preciso cortar o pavio que queima antes que a faísca
atinja a dinamite" (3).
Contrariamente ao
marxismo evolucionista vulgar, Benjamin não concebe a revolução como o
resultado "natural" ou "inevitável" do progresso econômico
e técnico (ou da "contradição entre forças e relações de produção"),
mas como a interrupção de uma evolução histórica que conduz à
catástrofe.
É porque percebe esse
perigo catastrófico que Benjamin invoca o pessimismo em seu
artigo de 1929 sobre o surrealismo, um pessimismo revolucionário que não tem
nada a ver com a resignação fatalista e ainda menos com o Kulturpessimismus alemão,
conservador, reacionário e pré-fascista (Carl Schmitt, Oswald Spengler, Moeller
van der Bruck): o pessimismo aqui está a serviço da emancipação das classes
oprimidas. Sua preocupação não é o "declínio" das elites ou da nação,
mas as ameaças que o progresso técnico e econômico promovido pelo capitalismo
faz pesar sobre a humanidade.
Nada parece mais
ridículo aos olhos de Benjamin que o otimismo dos partidos
burgueses e da social democracia, cujo programa político não é outra coisa que
"um mau poema de primavera". Contra esse "otimismo sem
consciência", esse "otimismo de diletantes", inspirado pela
ideologia do progresso linear, ele descobre nopessimismo o ponto de
convergência efetiva entre surrealismo e comunismo (4). É evidente que não se trata de um sentimento
contemplativo, mas de um pessimismo ativo, "organizado",
prático, inteiramente dedicado ao objetivo de impedir, por todos os meios
possíveis, a chegada do pior.
Perguntamo-nos a que
pode se referir o conceito de pessimismo aplicado aos comunistas: sua doutrina
em 1928, celebrando os triunfos da construção do socialismo na URSS e a queda
iminente do capitalismo, não é precisamente um belo exemplo de ilusão otimista?
De fato, Benjamin tomou emprestado o conceito de "organização do
pessimismo" de uma obra qualificada por ele como "excelente", La
révolution et les intellectuels(1926), do comunista dissidente Pierre Naville.
Próximo dos surrealistas (tinha sido um dos redatores da revista La
Révolution Surréaliste), Naville fizera naquele momento a opção do
engajamento político no partido comunista francês e queria dividi-la com seus
amigos.
Ora, para Pierre
Naville, o pessimismo, que constitui "a fonte do método revolucionário de
Marx", é o único meio de "escapar às nulidades e às desventuras de
uma época de compromisso". Recusando o "grosseiro otimismo" de
um Herbert Spencer — a quem gratifica com o amável qualificativo de
"cérebro monstruosamente diminuído" — ou de um Anatole France, cujas
"infames brincadeiras" não suporta, conclui: "é preciso
organizar o pessimismo", "a organização do pessimismo" é a única
palavra de ordem que nos impede de enfraquecer (5).
Torna-se inútil
precisar que tal apologia apaixonada do pessimismo era muito pouco
representativa da cultura política do comunismo francês na época. De fato, Pierre
Naville seria logo excluído (1928) do partido: a lógica de seu anti-otimismo o
conduzirá às fileiras da oposição comunista de esquerda
("trotskista"), da qual se tornará um dos principais dirigentes.
A filosofia
pessimista da história de Benjamin se manifesta de maneira particularmente
aguda em sua visão do futuro europeu: "Pessimismo em toda a linha. Sim, na
verdade, e totalmente. Desconfiança quanto ao destino da literatura,
desconfiança quanto ao destino da liberdade, desconfiança quanto ao destino do
homem europeu, mas sobretudo desconfiança tripla diante de qualquer acomodação:
entre as classes, entre os povos, entre os indivíduos. E confiança ilimitada
apenas na I. G. Farben e no aperfeiçoamento pacífico da Luftwaffe" (6).
Essa visão crítica
permite a Benjamin perceber — intuitivamente, mas com uma estranha acuidade —
as catástrofes que esperavam a Europa, perfeitamente resumidas na frase irônica
sobre a "confiança ilimitada". Evidentemente, mesmo ele, o mais
pessimista de todos, não podia prever as destruições que a Luftwaffe iria
infligir às cidades e populações civis européias; e ainda menos imaginar que a
I. G. Farben , passados apenas 12 anos, se destacaria pela fabricação do gás
Ziklon B utilizado para "racionalizar" o genocídio, e que suas
fábricas empregariam, na casa das centenas de milhares, a mão-de-obra de
prisioneiros de campos de concentração. Entretanto, único entre os pensadores e
dirigentes marxistas daqueles anos, Benjamin teve a premonição dos monstruosos
desastres que podia engendrar a civilização industrial/burguesa em crise.
É sobretudo no Livro
das passagens parisienses e nos diferentes textos dos anos 1936-40 que
Benjamin vai desenvolver sua visão da história, dissociando-se, de modo mais ou
menos radical, das "ilusões de progresso" hegemônicas no seio do
pensamento de esquerda alemã e européia. Em um artigo publicado em 1937 na
célebreZeitschrift für Sozialforschung, a revista da Escola de Frankfurt
(já exilada nos Estados Unidos), dedicado ao historiador e colecionador Eduard
Fuchs, ele ataca o marxismo social democrata, mistura de positivismo,
evolucionismo darwinista e culto do progresso: "Ele não podia ver na evolução
da técnica outra coisa a não ser o progresso das ciências naturais e não a
regressão social [...]. As energias que a técnica desenvolve para além desse
limite são destrutivas. Colocam em primeira linha a técnica da guerra e sua
preparação pela imprensa" (7).
O objetivo de
Benjamin é aprofundar e radicalizar a oposição entre o marxismo e as filosofias
burguesas da história, aguçar seu potencial revolucionário e elevar-lhe o
conteúdo crítico. É nesse espírito que define, de maneira decisiva, a ambição
do projeto das Passagens parisienses: "Podemos considerar
também como finalidade seguida metodologicamente neste trabalho a possibilidade
de um materialismo histórico que tenha aniquilado (annihiliert) em si
mesmo a idéia de progresso. É justamente se opondo aos hábitos do pensamento
burguês que o materialismo histórico encontra suas fontes" (8). Tal programa não implicava qualquer
"revisionismo", mas, ao contrário, como Karl Korsch tentara fazer em
seu próprio livro — uma das principais referências de Benjamin — um retorno ao
próprio Marx.
Benjamin estava
consciente de que essa leitura do marxismo mergulhava suas raízes na crítica
romântica da civilização industrial, mas estava convencido de que Marx também
tinha se inspirado nessa fonte. Encontra um apoio para tal interpretação
heterodoxa das origens do marxismo em Karl Marx (1938) de
Korsch: "De modo muito acertado e não sem nos fazer pensar em Maistre e
Bonald, Korsch diz o seguinte: 'Assim, na teoria do movimento operário moderno,
também, há uma parte da "desilusão" que, depois da grande Revolução
francesa, foi proclamada pelos primeiros teóricos da contra-revolução e, em
seguida, pelos românticos alemães e que, graças a Hegel, teve forte influência
sobre Marx'" (9).
A formulação mais
espantosa e radical da nova filosofia da história — marxista e messiânica — de
Walter Benjamin se encontra, indubitavelmente, nas Thèses sur
le concept d'histoire, de 1940, um dos documentos mais importantes do
pensamento revolucionário desde as Teses sobre Feuerbach, de 1845.
A exigência
fundamental de Benjamin é escrever a história a contrapelo, ou seja, do
ponto de vista dos vencidos— contra a tradição conformista do historicismo
alemão cujos partidários entram sempre "em empatia com o vencedor" —
Tese VII (10).
É evidente que a
palavra "vencedor" não faz referência a batalhas ou guerras
habituais, mas à "guerra de classes", na qual um dos campos, a classe
dirigente, "não cessou de vencer" (Tese VII) os oprimidos — desde
Spartacus, o gladiador rebelde, até o grupo Spartacus de Rosa de Luxemburgo, e
desde o Imperium romano até oTertium Imperium nazista.
O historicismo se
identifica enfaticamente (Einfühlung) com as classes dominantes. Ele vê
a história como uma sucessão gloriosa de altos fatos políticos e militares.
Fazendo o elogio dos dirigentes e prestando-lhes homenagem, confere-lhes o
estatuto de "herdeiros" da história passada. Em outros termos,
participa — como essas pessoas que levantam a coroa de louros acima da cabeça
do vencedor — de um "cortejo triunfal em que os senhores de hoje caminham
por sobre o corpo dos vencidos" (Tese VII).
A crítica que
Benjamin formula contra o historicismo se inspira na filosofia marxista da
história, mas tem também origem nietzschiana. Em uma obra de juventude, Da
utilidade e da inconveniência da história (citada na Tese XII),
Nietzsche ridiculariza a "admiração nua pelo sucesso" dos
historicistas, sua "idolatria do factual" (Götzerdienste des
Tatsächlichen) e a tendência a se inclinarem diante da "pujança da
história". Já que o Diabo é o senhor do sucesso e do progresso, a verdadeira
virtude consiste em insurgir-se contra a tirania da realidade e nadar contra a
corrente histórica.
Existe uma ligação
evidente entre esse panfleto de Nietzsche e a exortação de Benjamin para
escrever a históriagegen den Strich. No entanto, as diferenças não são
menos importantes: enquanto a crítica nietzschiana ao historicismo se faz em
nome da "Vida" ou do "Indivíduo heróico", a de Benjamin
fala em nome dos vencidos. Na sua condição de marxista, ele se situa no lado
oposto ao elitismo aristocrático de Nietzsche e escolhe identificar-se com os
"danados da Terra", os que jazem sob as rodas desses carros
majestosos e magníficos chamados Civilização ou Progresso.
Rejeitando o culto
moderno da Deusa Progresso, Benjamin coloca no centro de sua filosofia da
história o conceito de catástrofe. Em uma das notas preparatórias
às Teses de 1940, observa: "A catástrofe é o progresso, o
progresso é a catástrofe. A catástrofe é o contínuo da história" (11). A assimilação de progresso e catástrofe tem,
antes de mais nada, uma significação histórica: do ponto de vista
dos vencidos, o passado não é senão uma série interminável de derrotas
catastróficas. A revolta dos escravos, a guerra dos camponeses, junho de
1848, a Comuna de Paris e o levante berlinense de janeiro de 1919 são exemplos
que aparecem freqüentemente nos escritos de Benjamin, para quem "esse
inimigo não parou de vencer" (Tese VI). Essa equação, no entanto, tem
também uma significação eminentemente atual, porque, "nesta
hora, o inimigo ainda não parou de triunfar" (Tese VI, tradução para o
francês do próprio Benjamin): a derrota da Espanha republicana, o pacto
Molotov-Ribbentrop, a vitoriosa invasão nazista na Europa.
O fascismo ocupa,
evidentemente, um lugar central na reflexão histórica de Benjamin nas Teses.
Para ele, não é um acidente da história, um "estado de exceção",
qualquer coisa impossível no século XX, um absurdo do ponto de vista do
progresso: rejeitando tal tipo de ilusão, Benjamin reclama "uma teoria da
história a partir da qual o fascismo possa ser percebido" (12), ou seja, uma teoria que compreenda que as
irracionalidades do fascismo são apenas o avesso da racionalidade instrumental
moderna. O fascismo leva às últimas conseqüências a combinação tipicamente
moderna de progresso técnico e regressão social.
Enquanto Marx e
Engels tinham tido, segundo Benjamin, "a intuição fulgurante" da
barbárie por vir, em seu prognóstico sobre a evolução do capitalismo (13), seus epígonos do século XX foram incapazes
de compreender uma barbárie moderna e, portanto, de resistir
eficazmente a ela — barbárie industrial, dinâmica, instalada no coração mesmo
do progresso técnico e científico.
Procurando as raízes,
os fundamentos metodológicos de tal incompreensão catastrófica, que contribuiu
para a derrota do movimento operário alemão em 1913, Benjamin ataca a ideologia
do progresso em todos os seus componentes: o evolucionismo darwinista, o
determinismo de tipo científico-natural, o otimismo cego — dogma da vitória
"inevitável" do partido — e a convicção de "nadar no sentido da
corrente" (o desenvolvimento técnico). Em uma palavra, a crença
confortável em um progresso automático, contínuo, infinito, fundado na acumulação
quantitativa, no desenvolvimento das forças produtivas e no crescimento da
dominação sobre a natureza. Ele crê descobrir por detrás de tais manifestações
múltiplas um fio condutor que submete a uma crítica radical: a concepção
homogênea, vazia e mecânica (como um movimento de relojoaria) do tempo
histórico.
Contra essa visão
linear e quantitativa, Benjamin opõe uma percepção qualitativa da
temporalidade, fundada, de um lado, na rememoração, de outro na ruptura
messiânica/revolucionária da continuidade. A revolução é o "correspondente"
(no sentido baudelairiano da palavra) profano da interrupção messiânica da
história, da parada messiânica do devir"(Tese XVII): as classes
revolucionárias, escreve na Tese XV, estão conscientes, no momento da ação, de
"romper o contínuo da história". A interrupção revolucionária é,
portanto, a resposta de Benjamin às ameaças que faz pesar sobre a espécie
humana a perseguição da tempestade maléfica chamada "Progresso", uma
tempestade que acumula ruínas e prepara catástrofes novas (Tese XII). Corria o
ano 1940, um pouco antes de Auschwitz e Hiroshima...
Para Habermas, existe
uma contradição entre a filosofia da história de Benjamin e o materialismo
histórico. O erro de Benjamin foi, segundo ele, ter querido impor — "como
um capuz de monge sobre a cabeça" — ao materialismo histórico de Marx,
"que leva em conta progressos não somente no campo das forças produtivas,
mas também da dominação", "uma concepção histórica
anti-evolucionista" (14).
Na realidade, uma
interpretação dialética e não evolucionista da história, levando em conta ao
mesmo tempo os progressos e as regressões — como fizeram Benjamin e seus amigos
da Escola de Frankfurt — pode fundamentar-se em vários escritos de Marx. No
entanto, é verdade que ela entra em conflito com as interpretações dominantes
do materialismo histórico, desenvolvidas no curso do século XX. O que Habermas
pensa ser um erro é precisamente a fonte do valor singular da filosofia
benjaminiana da história e sua capacidade de compreender um século
caracterizado pela imbricação estreita entre a modernidade e a barbárie.
Notas
1 Benjamin, W. "La Vie des
Étudiantes" (1915), em Mythe et violence (Paris: Lettres
Nouvelles, 1971), p. 37.
2 __________ Gesammelte Schriften (Frankfurt:
Suhrkamp Verlag, 1980), III, p. 171.
3 __________ Sens unique (Paris:
Lettres Nouvelles/Maurice Nadeau, 1978), pp. 205-6.
4 __________ "Le Surréalisme. Le
Dernier Instantané de l'Intelligence Européenne", Mythe et
violence, p. 312.
5 Naville, Pierre, La révolution et
les intellectuels (Paris: Gallimard, 1965), pp. 76-7, 110-17.
6 Benjamin, W., "Le Surréalisme",
p. 312.
7 __________ Gesammelte Schriften,
III, p. 474.
8 __________ "Passagenwerk" em Gesammelte
Schriften, V, p. 574.
9 __________ Ibid., p. 820.
10 As citações das "Thèses sur la
Philosophie de l'Histoire" foram, na maioria das vezes, tiradas da
tradução de Maurice de Gandillac em Poésie et révolution (Paris:
Lettres Nouvelles, 1971).
11 Benjamin, W. Gesammelte Schriften,
I, 3, p. 1244 (notas preparatórias para as Teses).
12 __________ Gesammelte Schriften,
I, 3, p. 1244 (notas preparatórias).
13 __________ Gesammelte Schriften,
II, 2, p. 488.
14 Habermas, J. "L'actualité de W.
Benjamin. La critique: Prise de Conscience ou Préservation", Revue
d'Esthétique nº 1, p. 121, (1981).
Michael Löwy estudou
Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP) e doutorou-se na Sorbonne
sob orientação de Lucien Goldmann. Vive em Paris desde 1969 e é autor de vários
livros, dentre eles, La théorie de la révolution chez le jeune Marx (Maspero); Método
dialético e teoria política (Paz e Terra); Para uma sociologia
dos intelectuais revolucionários (Ciências Humanas); Ideologias
e ciência social (Cortez); As aventuras de Karl Marx contra o
barão de Münchhausen (Busca Vida).
Tradução de Gilberto
P. Passos. O original em francês — La philosophie de l'histoire de
Walter Benjamin — encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para
eventual consulta.
Palestra feita pelo
autor em 28 de janeiro de 2002 na sede do Instituto de ESTUDOS AVANÇADOS da
USP.
sexta-feira, 22 de dezembro de 2017
Cântico VI - Cecília Meireles
Tu
tens um medo:
Acabar.
Não vês que acaba todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
Não vês que acaba todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E
então serás eterno.
terça-feira, 19 de dezembro de 2017
LOU ANDREAS -SALOMÉ: A PAIXÃO VIVA
(Do Livro: Os Sentidos da Paixão. Ed. Cia de
Letras, 1987, págs. 359-373)
Luzilá Gonçalves Ferreira
Lou Salomé: uma prática de paixão; alguém que
viveu a paixão com paixão, e talvez por isso mesmo provocou, até uma idade
avançada, o nascimento da paixão nos seres que encontrou em seu caminho: Rilke,
Nietzsche, Paul Rée, Tausk e, ao que parece, até mesmo Wagner sucumbiram ao seu
encanto e à alegria de viver que transpirava em cada um de seus gestos - e o
próprio Freud não parece ter sido indiferente à graça da discípula que ele
qualificou de "raio de sol'.
A paixão de Lou pela vida transparecia em seu
próprio físico. Freud lhe escreveu um dia: "você tem um olhar como se
fosse Natal". E a escritora Helena Klinkberg (citado por Peters): "O
sol se levantava quando Lou entrava numa sala". Era um ser luminoso,
transparente e lúcido, daquela lucidez talvez de que fala João Cabral de Melo
Neto a respeito de Monsieur Teste: "uma lucidez que tudo via, como se à
luz ou de dia". Um ser humano para quem a felicidade é condição natural e
destino do homem: "dentro da felicidade eu estou em casa". E ainda:
"A única perfeição é a alegria".
Essa paixão pela vida, ela a transmitia aos
outros, fazendo com que as pessoas ao seu contato desenvolvessem e dessem o
melhor delas próprias. O que fez alguém escrever: "Quando Lou se interessa
apaixonadamente por um homem, nove meses depois este homem dá à luz um livro.
Um interesse pelo outro que o leva a crescer e produzir - mesmo quando esse
crescimento e essa produção implicam o sofrimento.
Pois Lou Andreas-Salomé conseguiu realizar, em
seus 76 anos de vida, o que nós todos gostaríamos e deveríamos fazer sempre - e
não o fazemos por descaso, indolência, medo: tornar a vida o exercício
apaixonada de uma busca. Sua exploração em todos os possíveis. Isto que requer
a fruição intensa e incessante de coisas e pessoas que nos cercam, de modo que
o mundo exterior em nós penetre e a nós se incorpore. Pois a vida, como o dizia
Rainer Maria Rilke a propósito de Rodin, "está nas pequenas coisas como
nas grandes: no que é apenas visível e no que é imenso".
Antes mesmo do seu encontro com Rilke, Louise von
Salomé já intuía essa verdade: desde muito cedo encontramos nela um grande
apetite de aprender e de amar - e o objeto de sua atenção podia ser a
psicanálise, a curtição de uma paisagem, de uma flor, de um esquilo na floresta
ou de um corpo amado.
(.....) Lou escreveu vários ensaios sobre o
Erotismo. O primeiro deles data de sua ligação com Rilke. Intitulado reflexões
sobre o problema do amor, traz as evidentes marcas da embriaguez física e
espiritual que sua autora estava vivendo. Aqui ela assinala, em páginas de um
admirável lirismo, a capacidade que tem a paixão amorosa de nos abrir o caminho
ao sentimento da totalidade da vida e sua faculdade de nos colocar em estado
criativo. O ato amoroso "nos enche a alma inteira (...) de ilusões e de idealizações
espirituais, forçando-nos o mesmo tempo a nos chocar brutalmente, sem
possibilidade de se esquivar, ao dispensador de uma tal desordem; ao
corpo". E Lou escreve:
"Pois, sobretudo,
resulta no indivíduo uma espécie de interação ébria e exuberante das mais altas
energias criadoras do seu corpo e a exaltação mais alta da alma. Enquanto nossa
consciência se interessa vagamente, habitualmente, por nossa vida psíquica,
como por um mundo que conhecemos mal e que controlamos ainda pior, que ao que
parece forma um com ela, mas com o qual normalmente ela se entende mal - eis
que se produz subitamente entre eles uma tal comunhão de enervação que todos os
seus desejos, todas as suas aspirações se inflamam ao mesmo tempo."
Por essa exaltação da alma através dos sentidos,
por essa impressão que o ato amoroso nos dá de haver ido muito longe, e tocado
o indizível, é que ele pode influenciar e favorecer a criação, a "pátria
do dizível", como escreveu Rilke. E Lou: "O Mundo da criação e do
amor significa: volta ao país natal, entrada no paraíso; o a impossibilidade de
criar, ou do amor morto, é, ao contrário, um exílio onde os deuses nos
abandonam".
A atividade criadora se apaixona por tudo aquilo
que é vida em nós, que é indício do que em nós lateja de mais secreto, e que atinge
as raízes do ser. O espírito descobre forças que não possuía ou das quais não
se apercebia. Pode voltar àquele estado de inocência primeira que possuiu na
infância, redescobre a "novidade" das coisas, com o frescor de uma
sensação primitiva: o olhar da criança sobre o mundo que descobre maravilhada;
o olhar de Adão diante de Eva recém-saída de si.
Confrontado com os seus longes, o amado vê a si
mesmo, e ao mundo exterior, como algo recém-criado. Por isso, às vezes a gente
sai do amor como quem saiu de uma catedral, redescobrindo o mundo aqui fora com
os olhos renovados. O ato amoroso, vivido em plenitude, obriga os amantes a
concentrar em si mesmos tudo aquilo de que são capazes, passível de germinar
com a força das plantas na primavera.
"Nesta igualdade
original do corpo e do espírito e nesta consciência ingênua de um e de outro -
uma criança que acredita em tudo que vê, para quem tudo se renovou, que, cheio
de uma fé e de uma confiança sem limites, gostaria de gritar sua alegria ao
esplendor inverossímil do mundo, e não saberia saudar de melhor modo a razão
senão fazendo cabriolas diante dela... como se balbuciasse em sonho, ele tem
algo a dizer sobre estes esplendores ocultos que lhe fizera, ai de nós,
esquecer tantas coisas úteis e necessárias."
O ato amoroso transforma o parceiro num
"conto estranho e maravilhoso". A Paixão amorosa é uma porta,
diferente de todas as outras portas, "em sua arquitetura ornada de
elementos ricos de sentido, em virtude de um simbolismo singular". É o
caminho por excelência que nos leva a nós mesmos. Por ela "nós não somos
um mundo de realidade, somos apenas o espaço e o metteur en scène de um mundo onírico, todo-poderoso,
irresistível".
Assim, o amor durará enquanto os amantes forem
capazes de oferecer ao outro essa entrega, que dá acesso de modo vital à
capacidade de se concentrar neles mesmos, de ser um mundo para si por causa do
outro.
A esta altura, a gente poderia se perguntar - não
seria esta uma visão demasiado idealizada do amor? Mas Lou não se deixa embalar
incondicionalmente pelo êxtase da paixão: esta grande amorosa foi também,
segundo a expressão de Freud, uma "compreendedora".
Neste mesmo ensaio, ela nos lembra que no êxtase
amoroso, por mais que desejemos nossa fusão com o amado, sempre somos, em
última análise, remetidos a nós mesmos. A reconciliação que se fará aqui será
sobretudo entre o sujeito e ele próprio, através do outro, mais do que entre o
sujeito e o objeto amado.
Num ensaio sobre o erotismo, datado de 1910, e
num ensaio posterior, quando Lou já se engajara definitivamente à psicanálise,
intitulado Anal e Sexual,
ela nos lembra que na união física "a gente não possui um ao outro por
meio do corpo, mas apesar do corpo, que, como todo mundo sabe, não se
identifica jamais (...) completamente com o todo da pessoa, mas aparece sempre
como uma parte dela e resiste à dominação mais viva".
(....) A fusão inteira do nosso ser com o outro,
por mais querido que seja, não seria desejável. É preciso que sejamos cada vez
mais nós mesmos, para poder ser um mundo para o outro. A relação erótica,
remetendo-nos a nós próprios, é uma ocasião de constante renovação: cada vez
ela inaugura em nós um ser novo; como um ato de linguagem, cada vez que eu falo
a um Tu, é um Eu diferente que fala a um novo Tu: quando digo Eu, já não sou
aquela que falava há pouco. A relação erótica é, assim, nela mesma, criação. E
o amor um elemento de produção: somos a cada instante outros, encontramos no
outro cada vez um elemento novo, diferente, desconhecido, misterioso até - o
que dá à relação erótica sua riqueza:
"só aquele que
permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do
amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como
tal. Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se
polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões
mútuas... e, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais
é funesto de se enxertar um sobre o outro, em nome do amor, de se transformar
um em parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em
um solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro."
É preciso que a gente seja sempre, um para o
outro, duas deliciosas surpresas fecundas. Aquele mundo da fábula de La Fontaine
"Os dois pombos", que aconselha aos amantes: "Amantes,
felizes amantes, vocês querem viajar? Que seja pelas margens próximas/Sejam um
para o outro um mundo sempre belo, sempre diverso, sempre novo./ Sejam um todo
um para o outro, contem por nada o resto".
E Lou analisa esta necessidade de renovação e da
existência do mistério na relação amorosa:
"Pois, nos seio
mesmo da paixão, nunca se deve tratar de "conhecer perfeitamente o
outro": por mais que progridam neste conhecimento, a paixão restabelece constantemente
entre os dois este contato fecundo que não pode se comparar a nenhuma relação
de simpatia e os coloca de novo em sua relação original: a violência do espanto
que cada um deles produz sobre o outro e que põe limites a toda tentativa de
apreender objetivamente este parceiro. É terrível de dizer, mas , no fundo, o
amante não está querendo saber "quem é" em realidade seu parceiro.
Estouvado em seu egoísmo, ele se contenta de saber que o outro lhe faz um bem
incompreensível... os amantes permanecem um para o outro, em última análise, um
mistério."
Assim, o amor não seria um encontro, mas uma
busca. Não quer dizer que chegamos, mas que estamos próximos.
Rilke perguntava-se na Primeira elegia de Duíno:
"Não é tempo daqueles que amam libertar-se do objeto amado e superá-los,
frementes? Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo mais do que ela
mesma". E nas cartas a um jovem poeta, em maio de 1904:
"Assim, para quem
ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento, cada vez
mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama
entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. (...) O amor é uma ocasião
sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo por si mesmo, tornar-se um
mundo para si, por causa de um outro ser: é uma grande e ilimitada exigência
que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe."
Se o amor é uma busca, se o estudo é uma busca, a
arte uma busca, a vida inteira é também busca. E o amor e a paixão são a mola
dessa busca.
É preciso buscar com amor, com paixão. Amar a
vida, amá-la mesmo e sobretudo quando ela chega ao fim, e o espírito e o corpo
vêem limitados seu campo de ação. Nos Cadernos
íntimos dos últimos anos,
Lou Andreas-Salomé dá um balanço de sua vida. Em fevereiro de 1934, isto é,
três anos antes de morrer, ela escreve:
"Distingue-se entre
os humanos aqueles que se sentem divididos em um passado e um futuro e aqueles
que vivem o presente com cada vez mais densidade, sempre mais plenitude. Os
orientais acham natural insistir menos sobre a morte do que se passa do que
sobre a perfeição do que se acaba, como aprofundamento da realidade. Nós, ao
contrário, começamos a ver aquilo que nos chega, apenas sob o aspecto sempre
mais sinistro da morte - como tudo o que se observa de um olhar exterior, logo
mortífero."
E um pouco mais adiante:
"Sempre não tive a
idéia fixa de que a velhice me traria muito? Em meus jovens anos escrevi em
algum lugar: primeiro nós vivemos nossa juventude, em seguida nossa juventude
vive em nós. Não sei bem, ainda hoje, o que eu queria dizer com isso outrora.
Mas eu tinha realmente medo de não atingir a idade de viver esta experiência;
eu o sabia profundamente, uma longa vida, com todas as suas dores, vale ser
vivida,. Claro, o valor da vida pode nos ficar escondido pelos desgastes
sofridos pela nossa carne, nosso espírito (...) do mesmo modo que a juventude
mais empreendedora pode se ver entravada em sua felicidade e em seu sucesso,
por um fatal concurso de circunstâncias; mas, por além das perdas, a velhice
adquire muito mais que a famosa aptidão à serenidade e à lucidez: ela permite
que se chegue a uma plenitude mais acabada."
A velhice pode ser, assim, uma volta àquela
espécie de paz inicial e retorno do indivíduo a um estado de não-divisão, de
fusão primitiva do eu para consigo mesmo, o corpo parece se acalmar
relativizando-se; ...
Num ensaio de 1901, escrito aos 40 anos e
intitulado A velhice e a eternidade, Lou afirmava: "O velho está liberto
de todos os seus limites pessoais e escrúpulos mesquinhos. Retirado lentamente
da vizinhança imediata dos outros seres vivos, ele se vê, progressivamente,
reintroduzido no grande encadeamento universal".
É preciso amar a vida em todas as suas fases e
amar até mesmo a morte. Aqui Eros e Thanatos se dão as mãos - são forças
complementares e não contrárias. A morte é a redenção da vida individual,
escreve Lou num artigo sobre o misticismo russo. Nossa morte não nos separa dos
seres que amamos; ela nos entrega de modo mais completo a eles:
No dia em que eu estiver
no meu leito de morte
Faísca que se apagou -,
Acaricia ainda uma vez
meus cabelos
Com tua mão bem-amada
Antes que devolvam à
terra
O que deve voltar à
terra,
Pousa sobre minha boca
que amaste
Ainda um beijo.
Mas não esqueças: no
esquife estrangeiro
Eu só repouso em
aparência
Porque em ti minha vida
se refugiou
E agora sou toda tua
[Hino à morte]
A morte desfaz, assim, a distância entre os
amantes, que agora vivem um no outro, sem que o individualismo os separe. A
morte não é uma partida, umas uma volta: um retorno do indivíduo àquela união
primitiva com as cosias. Por isso não a devemos temer.
A grande biografia de Lou Salomé ainda não foi
escrita. Mas, pelo que dela nos resta, fica uma lição final de amor pela vida,
de paixão pela vida, de totalização da vida. Por isso Lou desejou ser cremada e
que suas cinzas fossem jogadas no jardim de sua casa, em Gottingen: para que seu corpo pudesse se
incorporar à terra e ser transformado em planta e flor.
terça-feira, 12 de dezembro de 2017
Uma nova etapa na vida a partir da leitura de um livro
Somos subeducados, atrasados e analfabetos; e neste particular confesso que não faço grande distinção entre a ignorância do meu concidadão que não sabe absolutamente ler nada, e a ignorância do que apenas aprendeu a ler o que se destina a crianças e inteligências medíocres. Deveríamos estar à altura dos grandes da Antiguidade, mas em parte por saber primacialmente quão grandes eles foram. Somos uma raça de homens-passarinhos; nos nossos voos intelectuais mal nos alçamos um pouco acima das colunas do jornal.
Nem todos os livros são tão insípidos como os seus leitores. É provável que haja palavras endereçadas exactamente à nossa condição, as quais, se de facto pudéssemos ouvi-las e entendê-las, seriam mais salutares às nossas vidas que a própria manhã ou a Primavera, revelando-nos talvez uma face inédita das coisas.
Quantos homens não inauguraram uma nova etapa na vida a partir da leitura de um livro! Deve existir para nós o livro capaz de explicar os nossos mistérios e de revelar outros insuspeitados. As coisas que ora nos parecem inexprimíveis, podemos encontrá-las expressas algures.
As mesmas questões que nos inquietam, intrigam e confundem, foram postas por sua vez a todos os homens sábios; nenhuma foi omitida, e cada um deles respondeu de acordo com a sua capacidade, por meio de palavras ou da própria vida. De mais a mais, juntamente com a sabedoria aprendemos a liberalidade.
Henry David Thoreau, in 'Walden'
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