O primeiro canto

O primeiro canto

domingo, 13 de maio de 2018

"A Sutileza da Vida" - Maria José Bulhões Maldonado


Minha voz não encontra eco
no que me supus.
E procuro ver-me na distância
a que ficou minha alegria.
Resquícios do sol de amor
ou substância risível do sonho?

Impossível é esse estar na vida
ouvindo os passos da morte.
É este vácuo de não ser.
Este poente a esvair-se.
Este grotesco envelhecimento
Da matéria.
Este cansaço do pensamento
em término de linha...

- A sutileza da vida
na advertência do fim-

Mas há dias ensolarados
em que a procura da nova identidade
persiste através de todos os desvios;
de todos os desânimos;
de todas as mortes da alma.
A poesia é a mensagem da esperança.
Substância essencial que me dá vida.

"Maio maduro Maio" - José Afonso




Da série: Devaneios, o negócio é devanear

"Não sou nada.
 Nunca serei nada. 
Não posso querer ser nada. 
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo". 
Fernando Pessoa


Seis meses que estou neste lugar. Hoje o médico perguntou se eu poderia escrever alguma coisa e apresentar. Claro que não! O desgraçado não poderia suspeitar que ando a escrever. Acho que deram com a língua nos dentes.
Todas as noites, antes das luzes apagarem, escrevo nestas folhas de caderno velho. Mas não vou mostrar nada pra ninguém. NUNCA. NADA. Eles que fiquem longe de mim. Não faço mal se me deixarem caminhar pela minha solidão. E que não tentem me tirar do meu mundo. Aqui, todos são péssimos. Acham que estou doente. Que preciso me curar. Ser feliz. Feliz?! Que piada de mal gosto. Tudo mentira. E se for verdade, mais um motivo para se afastarem de mim. Nunca simpatizei com as pessoas felizes. As perfeitas, 'completas', 'bem resolvidas'. Àquelas que não se arrependem do que fazem. Oh deuses! Arrependo-me de tantas coisas. O que posso fazer? Há momentos em que penso: “Ah se pudesse voltar no tempo!” Mas, que coisa!, o tempo não volta. E nessas horas tento lembrar do contexto, imaginar se naquela estação haveria um modo de agir distinto. Apesar do gosto pesado do pesar, acabo por me compreender e seguir. Às vezes prometo um nunca mais. Às vezes, nada. O que sei mesmo é que não gosto das pessoas que sempre acertam, que chatas que são! Apresentam-se como "donas da verdade". Com gente assim: Sinal Vermelho! Particularmente, gosto das pessoas que são imperfeitas e não têm problemas em admitir; das que nem sempre conseguem o que querem; daquelas que se perdem no meio do caminho. Adoro as pessoas que não me poupam; das que não medem as palavras e me falam tudo o que quero saber. Do contrário, distância! Não aceito ser poupada. Quero beber até o último trago. Só assim consigo me manter na corda bamba da vida. Quero a tempestade. Mas é só dá tempo, que conquisto a calma.
Sinto-me atraída pelas pessoas que se apaixonam. Sou uma apaixonada. Exaltada. Amo quem me deixa livre. Mesmo sem saber quem realmente sou, quero ser eu. E preciso de solidão para ser. Preciso de tempo para desabrochar. De segurança para confiar. Acho que gosto mesmo de quem é temperado com uma dose de loucura, os “sem lenço e sem documento”. São esses os que me seduzem. Os que gostam e não têm medo de aventuras. Sei que não sou nada perfeita! Por isso me acompanho dos imperfeitos. Sou complicada. Complexa. Dramática. Ando nos extremos. Mas também sou simples. Sou de rir por besteira; choro quando quero e não quero. Volto atrás quando voltam atrás. No entanto, sou de seguir em frente quando sinto que preciso.
Falar de quem sou é um desafio. Pois nem sempre me compreendem, e preciso fazer uso de um plural de palavras. Às vezes canso! Eu sei que não consigo me relacionar bem. Dá uma reviravolta na alma e a distância vem como soro para o meu veneno. Há quem compreenda, mas compreendo que é difícil. Sigo aos tropeções. Viver! São tantos os desejos, as inquietações. Já pensei anestesiar as angústias. Não adianta! Preciso sentir tudo na carne. Mergulhar. Tocar no fundo do poço. Ter nada e querer tudo. Tento seguir as curvas do tempo, ser afável. O que não é fácil. São muitos os labirintos. Tem dias que acordo e sinto que fui vestida com o humor do amado Álvaro de Campos, e nestas alturas a acidez extrapola a cordialidade. Para não detonar, o remédio é transferir para o deserto das caminhadas toda perturbação. Já nos últimos tempos, caminhar não me basta. Preciso correr. Cansar o corpo – a exaustão, a fazer par com uma boa música, deixa-me bem.
Por fim, preciso dessas palavras num papel. Desaguar nessas folhas o que não tenho coragem de gritar. Vou continuar assim até não poder mais. O meu mundo é dos loucos, mas a minha alma é de lugar nenhum!

quinta-feira, 10 de maio de 2018

sábado, 5 de maio de 2018

The Boatman's Call - Nick Cave




O Direito à Literatura



[...] a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade.


CÂNDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: Vários Escritos. Duas cidades: Ouro sobre azul. São Paulo; Rio de Janeiro. 4. ed. 2004. p.186 


quinta-feira, 3 de maio de 2018

A independência do jornalismo, por Noam Chomsky



Mark Twain disse que “é pela bondade de Deus que, no nosso país, temos estas três coisas indescritíveis e preciosas: liberdade de expressão, liberdade de consciência e a prudência de nunca pôr em prática nenhuma delas".

Na sua introdução inédita ao “Triunfo dos Portos”, dedicado à "censura literária" na Inglaterra livre, George Orwell acrescentou uma razão para esta prudência: há, escreveu, um "acordo tácito de que ‘não cairia bem’ mencionar este facto em particular". O acordo tácito impõe uma "censura velada" baseada "numa ortodoxia, um conjunto de ideias supostamente aceites sem serem questionadas por todas as pessoas razoáveis", e "quem desafiar a ortodoxia predominante será silenciado de forma surpreendentemente eficaz" mesmo sem "qualquer veto oficial".

Assistimos constantemente ao exercício desta prudência nas sociedades livres. Veja-se a invasão anglo-americana do Iraque, um caso didático de agressão sem pretexto cabível, o "supremo crime internacional” definido no julgamento de Nuremberga. É legítimo dizer que foi uma "guerra burra", um "erro estratégico", até "o maior erro estratégico na história recente da política externa americana" nas palavras do presidente Obama, imensamente admirado pela opinião pública liberal. Mas "não cairia bem" dizer o que foi, o crime do século, embora tal hesitação não existisse se algum inimigo oficial tivesse cometido até mesmo um crime bem menor.

A ortodoxia predominante não acomoda facilmente figuras como o general e presidente Ulysses S. Grant, que achava nunca ter havido "guerra mais perversa do que a travada pelos Estados Unidos contra o México", apropriando-se do que é hoje o sudoeste dos EUA e a Califórnia, e expressou a sua vergonha por não ter "a coragem moral de renunciar" em vez de participar do crime.

A subordinação à ortodoxia predominante tem consequências. A mensagem nem-tão-tácita é que só devemos lutar nas guerras inteligentes, que não forrem erros, guerras que alcancem os seus objetivos – justos e corretos por definição, de acordo com a ortodoxia predominante, mesmo sendo na realidade "guerras perversas", crimes graves. Há mais exemplos do que é possível enumerar aqui. Em alguns casos, como no crime do século, a prática é quase unânime nos círculos respeitáveis.

Outro aspeto familiar da subordinação à ortodoxia predominante é a apropriação casual da demonização ortodoxa dos inimigos oficiais. Para tomar um exemplo quase aleatório, extraído do exemplar do New York Times que, por acaso, está na minha frente agora, um jornalista económico muito competente adverte sobre o populismo do demónio oficial Hugo Chávez, que, uma vez eleito no fim da década de 1990, “combatia qualquer instituição democrática que aparecesse no seu caminho".

Voltando ao mundo real, foi o governo dos EUA, com o apoio entusiasmado do New York Times, que (no mínimo) apoiou amplamente o golpe militar que derrubou o governo de Chávez – brevemente, até ser revertido por uma revolta popular. Quanto a Chávez, independentemente do que se pense dele, ele ganhou repetidas eleições atestadas como livres e justas por observadores internacionais, incluindo a Fundação Carter, cujo fundador, o ex-presidente Jimmy Carter, disse que "das 92 eleições que monitorizamos, diria que o processo eleitoral na Venezuela é o melhor do mundo". E a Venezuela sob Chávez frequentemente obteve boas colocações nas sondagens internacionais sobre o apoio popular ao governo e à democracia (Latinobarómetro, com sede no Chile).

Existiram, sem dúvida, deficits democráticos durante os anos Chávez, como a repressão ao canal RCTV, que provocou enorme condenação – da qual participei, concordando que isso não poderia acontecer numa sociedade livre. Se um canal de TV proeminente dos EUA tivesse apoiado um golpe militar, como fez o RCTV, não seria reprimido alguns anos depois, porque simplesmente não existiria: os seus executivos, se ainda estivessem vivos, estariam presos.

Mas a ortodoxia ganha dos factos com facilidade.

A incapacidade de fornecer informações pertinentes também tem consequências. Talvez os americanos devam saber que sondagens realizadas pela principal agência de opinião dos EUA revelaram que, uma década após o crime do século, a opinião pública mundial considerava os Estados Unidos como a maior ameaça à paz mundial, muito à frente dos outros concorrentes; e não o Irão, que carrega esse título apenas entre os analistas americanos. Talvez, em vez de esconder esse facto, a imprensa pudesse ter cumprido o seu dever de divulgá-lo, além de provocar algum debate sobre os seus significados e que lições o resultado pode trazer para a política externa do país. Negligência que tem consequências.

Sobram exemplos suficientemente graves como esses, mas existem outros ainda mais importantes. Tomemos a campanha eleitoral de 2016 no país mais poderoso da história mundial. A cobertura era gigantesca e instrutiva. Os grandes problemas foram quase inteiramente evitados pelos candidatos e praticamente ignorados pelos comentadores políticos, de acordo com o princípio jornalístico em que "objetividade" significa relatar com precisão o que os poderosos fazem e dizem, não o que eles ignoram. O princípio vale mesmo quando o destino da espécie está em jogo – tanto pelo perigo crescente de uma guerra nuclear quanto pela iminência de uma catástrofe ambiental.

A negligência atingiu um pico dramático no dia 8 de novembro, um dia realmente histórico. Naquele dia, Donald Trump obteve duas vitórias. A menos importante delas recebeu cobertura extraordinária da comunicação social: a sua vitória eleitoral, com quase três milhões de votos a menos do que a sua oponente, graças a características regressivas do sistema eleitoral dos EUA. A vitória muito mais importante passou em silêncio quase total: a vitória de Trump em Marraquexe, em Marrocos, onde cerca 200 nações se reuniram para colocar um conteúdo sério no Acordo de Paris sobre mudanças climáticas, do ano anterior. No dia 8 de novembro, o processo parou. O restante da conferência foi dedicado em grande parte a tentar manter viva alguma esperança, com os EUA não apenas a retirem-se do acordo, mas decidido a sabotá-lo aumentando brutalmente o uso de combustíveis fósseis, desmantelando a regulação existente e rejeitando o compromisso de investir em energia renovável nos países em desenvolvimento.

Na vitória mais importante de Trump, estavam em jogo as perspetivas para a vida humana organizada da forma como conhecemos. A cobertura foi praticamente zero, seguindo o mesmo conceito de "objetividade" determinado pelas práticas e doutrinas do poder.

Uma imprensa verdadeiramente independente rejeita o papel de subordinação ao poder e à autoridade. Manda a ortodoxia às favas, questiona o que "as pessoas bem pensantes aceitam sem questionar", rasga o véu da censura tácita, disponibiliza ao público a informação e um leque de opiniões e ideias que são o pré-requisito para uma participação significativa na vida social e política, e além disso, oferece aos cidadãos uma plataforma para o debate e a discussão das questões que lhes dizem respeito. Serve, assim, de base para uma sociedade verdadeiramente livre e democrática.

Artigo publicado em Chomsky.info. Tradução de Clarisse Meireles, Carta Maior.