O primeiro canto

O primeiro canto

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Amor e ciúme na contemporaneidade: reflexões psicossociológicas



"O ciúme lançou sua flecha preta
E acertou no meio exato da garganta
Quem nem alegre nem triste nem poeta" 

Caetano Veloso



Lauane Baroncelli

O ciúme é um tema antigo e recorrente nos discursos sobre os relacionamentos humanos. No escopo artístico, o amor e os dilemas do ciúme foram muitas vezes capturados e em seguida revelados ao mundo nos mitos, tragédias, dramas, bem como em obras de literatura, dança e pintura, algumas das quais se tornaram célebres e imortais. É o caso, por exemplo, de Otelo, de Shakespeare, em que o ciúme é metaforizado pelo autor na imagem de um monstro de olhos verdes que cega o personagem do título e causa a morte da doce Desdêmona, sua esposa. Também no Brasil, na literatura do final do século XIX, o ciúme aparece em uma das obras mais conhecidas de nosso imortal escritor, Machado de Assis, o romance Dom Casmurro. Poderíamos citar muitos outros exemplos literários que giram em torno do tema, não apenas em textos clássicos do passado, que permanecem no imaginário cultural até os dias de hoje, como também em obras mais recentes.
Parece, assim, que o ciúme não é uma experiência contemporânea. Ao contrário, ele é um sentimento antigo, atemporal, que atravessa diferentes épocas e contextos. Os registros históricos que retratam a forma pela qual o amor e o ciúme foram concebidos ao longo do tempo constatam sua inserção histórica e seu caráter mutável de acordo com o contexto ao qual estão referidos (Ariès & Bejin, 1986; Del Priore, 2005; Lázaro, 1996, entre outros).
Um aspecto revelador da condição histórica do ciúme se expressa nos diversos códigos e prerrogativas sociais que atuam sobre a infidelidade do homem e da mulher de acordo com as desigualdades de gênero inerentes a cada época. Conforme diversos autores observam (Branden, 1998; Foucault, 1993; Freyre, 1977; Lázaro, 1996; Yalom, 2002), em vários períodos da história a infidelidade do homem deveria ser aceita ou ao menos tolerada pela mulher, ao passo que uma traição feminina podia levar, em alguns contextos, à perseguição, abandono ou até à morte. Com isso, a manifestação de ciúme, sua aceitação social e a própria experiência de ciúmes no interior das relações amorosas entre o homem e a mulher foi, ao longo do tempo, necessariamente marcada pelas especificidades de cada contorno sociocultural no que diz respeito à fidelidade.
Neste artigo, aborda-se o ciúme diante das interferências do contexto contemporâneo, discutindo o modo como as transformações históricas que caracterizam a nossa época podem atravessar essa experiência, dotando-a de significados particulares.
Pelo fato de o nosso interesse se dirigir, aqui, ao campo psicossociológico, não nos preocuparemos em aprofundar a discussão conceitual sobre o ciúme. Essa discussão já tem sido largamente realizada na literatura existente sobre a questão (Cavalcante, 1997; Ferreira-Santos, 1996; Pines, 1992; White & Mullen, 1989). Mas, para introduzir o debate, precisamos esclarecer que operamos nossas análises sobre aquela espécie de ciúme que gera, de forma significativa, algum grau de sofrimento pessoal e interpessoal para o indivíduo e seu parceiro amoroso. Esse sofrimento está vinculado a uma rígida desconfiança de infidelidade do parceiro, nem sempre relacionado a situações reais de ameaça.

O flexível amor na contemporaneidade
A partir de meados do século XX, a "civilização moderna industrial", assentada na produção e em máquinas cada vez mais sofisticadas, começa a se transformar, progressivamente, numa sociedade pós-industrial, mobilizada pelo consumo e pela informação (Santos, 1996). Neste contexto de transformação capitalista, a cultura também foi afetada e, com ela, o domínio da experiência social contemporânea materializada na vida cotidiana.
Conforme a análise de autores como Bauman (2003), Giddens (2002) e Hall (2003), com o aparecimento e a propagação dos meios eletrônicos de comunicação e a consequente articulação entre partes do mundo geograficamente distantes, os aspectos locais e globais da existência passam a interagir, e às certezas tradicionais são acrescentadas influências advindas de diversas direções.
Com essa afirmação, não pretendemos ignorar que aquilo que denominamos de "experiência social contemporânea" encontra exceções e, até mesmo, tendências contrárias em alguns grupos culturais específicos. Entretanto, vamos tratar aqui daqueles grupos e sociedades que estão mais distintamente sob o domínio e a égide dessas mudanças globais que caracterizam a contemporaneidade, algo que ocorre, prioritariamente, nas camadas urbanas industrializadas das sociedades ocidentais, principalmente a partir de meados do séc. XX.
Após os conturbados anos de 1960, tendo a humanidade vivido a experiência de duas grandes guerras, ideias que tinham a pretensão de universalidade começam a perder a consistência e a credibilidade que tinham na modernidade, tornando-se relativizáveis (Hall, 2003; Vaitsman, 1994).
Segundo Hall (2003), num universo marcado por tal questionamento de normativos universais, as antigas identidade fixas e essenciais diluem-se. O sujeito assume, portanto, identidades móveis e fragmentadas, muitas vezes contraditórias (Hall, 2003, p. 12). Tal processo seria decorrente, segundo Hall, da emergência de novas identidades trazidas na esteira dos movimentos raciais, feministas e de libertação nacional, trazidos na esteira dos movimentos de contracultura na década de 1960 (Hall, 2003, p. 21).
Conforme Vaitsman (1994), tais movimentos atacavam, por diversas frentes, atributos que consideravam o mundo elitista e autocrático da Modernidade. Na luta contra formas variadas de opressão - raciais, sexuais, étnicas -, a dominação subjacente à ideia de razão universal do mundo moderno era fortemente denunciada. Ou seja, se a Modernidade promulgava um indivíduo livre e igual, dotado de razão e capacidade para apropriar-se das coisas da natureza, tais movimentos denunciavam, por detrás dessa pretensa universalidade, a dominância, por vezes opressiva, de determinados segmentos e categorias sociais particulares sobre outros (Rocha-Coutinho, 1996; Vaitsman, 1994). No plano das relações amorosas e da família, por exemplo, certezas relativas aos papéis de gênero eram baseadas, durante o período moderno, numa visão essencial dos sexos. Tradicionalmente, a individualidade feminina era tomada como valor determinado, devendo manifestar sua essência como mãe e esposa. Somente a partir da ruptura da dicotomia entre público e privado, materializada na participação das mulheres no mundo do trabalho, é que tais normas tradicionais sobre os papéis sexuais no casamento e na família são, finalmente, questionadas (Vaitsman, 1994).
A chamada "incredulidade em relação às metanarrativas", expressão cunhada por Lyotard (1979), é bastante reveladora da nova circunstância cultural em que todas as teorias que pretendiam dar conta, de maneira definitiva e totalizadora, do entendimento sobre a humanidade, são questionadas. Lyotard (1979) sustenta que a pós-modernidade dilui narrativas totalizadoras, enquanto narrativas múltiplas e alheias a qualquer legitimização universalizante passam a se impor, desafiando a segurança das sólidas regras nas quais a modernidade se pautava e que ajudavam a conformar a vida social (Pedro & Nobre, 2002-2003). No lugar da visão Iluminista que promulgava a substituição das superstições e dogmas da tradição pela certeza racional da ciência, o que se desenvolveu de fato, pelos próprios trâmites inerentes ao método científico, foi o impositivo da dúvida.  A partir dele, todo conhecimento e conduta social recebem o status de hipótese (Lyotard, 1979).
Em campos os mais diversos, que vão da ciência à arte, à filosofia, à economia e à política, bem como nos relacionamentos amorosos entre homens e mulheres, a heterogeneidade, a abertura, a pluralidade, a flexibilidade, a instabilidade e a incerteza marcam a experiência humana (Vaitsman, 1994).
Refletindo, portanto, a perspectiva contemporânea, os diferentes modelos e padrões de relacionamentos amorosos convivem lado a lado, sem que haja um modelo dominante que, de maneira consistente, se sobreponha aos demais. Ao contrário, também no amor, diferentes códigos e modelos tendem a se misturar e coexistir, como casais casados e descasados, famílias adotivas, uniões liberais, uniões homossexuais, entre outros (Giddens, 2002). Além disso, o relacionamento amoroso torna-se uma experiência passível de repetição, mudança e de dissolução ao longo do tempo (Bauman, 2004). Torna-se cada vez mais comum as pessoas afirmarem terem tido vários amores ao longo da vida e, dificilmente, na contemporaneidade, alguém declara sem hesitação a crença na eternidade do vínculo amoroso.
Analisando a conformação histórica da nova condição do relacionamento a dois, diversos autores (Beck & Beck-Gernsheim, 1995; Giddens, 2003; Rocha-Coutinho, 1996; Vaitsman, 1994) observam que, com o mencionado questionamento da divisão sexual do trabalho começam a se estabelecer as condições para o surgimento de um relacionamento amoroso tal como ele é concebido na contemporaneidade. Nele, dois indivíduos livres e com direitos iguais vão se confrontar com expectativas e projetos pessoais que podem divergir (Vaitsman, 1994).
Além disso, a partir da década de 1960, critérios relativos à classe social, raça e etnia começaram a ter importância cada vez menor na escolha do parceiro amoroso. Surgiu a possibilidade de casais coabitarem e o tabu da virgindade também começou, pouco a pouco, a se dissolver (Del Priore, 2005; Yalom, 2002).
Como analisam Beck & Beck-Gernsheim (1995), num tempo em que o antigo absolutismo das regras tradicionais sobre a vida amorosa - materializado nas apriorísticas e predeterminadas fases de namoro, noivado, casamento, sexo, filhos e morte - é questionado, a intimidade amorosa passa a se desenrolar num terreno muito mais aberto e, por isso, desafiador.
Cria-se um cenário propício para o estabelecimento daquilo que Giddens denominou "relação pura" (Giddens, 2002, p. 86). Homens e mulheres são vistos agora em bases iguais e devem, com a maior liberdade possível, escolher com quem irão se envolver amorosamente, bem como definir a forma do relacionamento, sua manutenção ou dissolução. Rompe-se definitivamente com a antiga ideia de relacionamento em que ficava estabelecida sua organização e garantida sua durabilidade ao longo do tempo. Ao contrário, uma característica fundamental do relacionamento puro, postulado por Giddens (2002), é que ele admite qualquer organização - casais casados, co-habitação, relações "livres" etc. -, podendo também ser terminado, sem maiores restrições, em qualquer momento e por qualquer um dos parceiros.
Sem as antigas garantias da tradição que propiciavam previsibilidade e a manutenção do relacionamento no tempo, os parceiros de uma união amorosa precisam agora gerenciar a nova condição na qual o relacionamento a dois se torna, nas palavras de Giddens (2003, p. 87), "internamente referido". Isso quer dizer que, agora, o suporte do casal advém, prioritariamente, das características da parceria amorosa que eles próprios constroem, e não das antigas balizas da tradição que estabeleciam regras previsíveis para o relacionamento.
Dá-se, assim, a substituição dos relacionamentos apriorísticos do passado - praticamente isentos de projetos e escolhas pessoais, e recheados de sociabilidade comunitária - pelo domínio da opção pessoal, palco privilegiado das relações na contemporaneidade (Nolasco, 2001; Wittel, 2002). Isso não significa dizer que o momento atual esteja isento de elementos de sociabilidade comunitária. Na realidade, aspectos tradicionais persistem no domínio da intimidade amorosa, com mais importância, é verdade, em certos contextos que em outros. No entanto, a tendência contemporânea parece caminhar, explicitamente, para uma flexibilização desses condicionantes externos preexistentes ao relacionamento amoroso, que passa a sustentar-se, fundamentalmente, em si próprio.
Um casal que decide estabelecer um compromisso amoroso na atualidade ingressa, portanto, no campo da escolha, trazendo consigo todos os ganhos e riscos inerentes a esta nova posição. Sendo assim, praticamente não há mais a possibilidade de se permanecer numa experiência amorosa porque "assim se espera e deve ser". Ao permanecer nela, o casal o faz por ter assim decidido, e não mais em decorrência de leis de convivência social que estabeleciam, no passado, uma rota quase inabalável de conduta.
Como analisam Beck & Beck-Gernsheim (1995), na contemporaneidade, o relacionamento deve conferir felicidade e realização para o casal, o que conforma a experiência amorosa como um campo do qual se exige e se espera muito mais nos dias de hoje.
Longe do antigo, e por vezes entediante, conforto de ir seguindo o "rio da vida" e da relação, o casal precisa, agora, num rio de correntezas misturadas e concorrentes, determinar o curso que deseja seguir. Giddens (2003) analisa como, nesse contexto, habilidades emocionais como as concernentes aos domínios do diálogo, da negociação democrática, da expressão de sentimentos, da revelação de si e da capacidade de perceber o outro, dentre outras, passam a entrar definitivamente em questão.
Diversos teóricos (Bauman, 2004; Giddens, 2003; Plastino, 1996; Vaitsman, 1994) têm analisado, ainda, o modo pelo qual o amor contemporâneo passa a refletir, de forma ambígua, a lógica capitalista de mercado que se torna o centro da vida social.
Tais análises sugerem que, de maneira subjacente à liberdade promulgada pelo novo modo de produção capitalista e o individualismo que lhe é correlato, fins religiosos e tradicionais passaram a ter poder de influência diluído na cena social, ao mesmo tempo em que as leis do mercado tornaram-se o novo objetivo a ser alcançado. Por consequência, os indivíduos e suas relações interpessoais tornam-se potencialmente atravessadas e conformadas por tais leis. Nas palavras de Giddens (2002):
Os mercados operam sem consideração a formas preestabelecidas de comportamento, que em sua maior parte representam obstáculos à criação da livre troca ... Em maior ou menor grau o projeto do eu vai assim se traduzindo como a posse de bens desejados e a perseguição de estilos de vida artificialmente criados ... O consumo de bens sempre renovados torna-se em parte um substituto do desenvolvimento genuíno do eu. A aparência substitui a essência à medida que os signos visíveis do consumo de sucesso passam a superar na realidade os valores de uso dos próprios bens e serviços em questão (p. 183).
Diversos autores vêm analisando o processo pelo qual o mencionado "projeto do eu" torna-se permeado pelo consumo, de modo que os sujeitos, bem como seus relacionamentos, correm o risco de confundirem-se, em alguns aspectos, com a lógica das mercadorias (Bauman, 2004; Costa, 1998).
No campo das relações amorosas contemporâneas, Miller (1995) associa tal processo ao que ele denomina "terrorismo íntimo" (p. 74). A partir dessa metáfora, o autor explica como, frequentemente, casais contemporâneos, ao invés de estabelecerem um encontro com o outro, no qual a afirmação mútua retroalimente os envolvidos, constroem um padrão baseado na disputa pelo controle da relação e prevalência das ideias e desejos de cada um. Nesse sentido, ao invés de uma relação ou parceria, o que acaba se desenvolvendo é algo semelhante a uma "guerra a dois" em que, nos moldes da cultura capitalista de mercado, cada um luta por seus próprios interesses, sem conseguir efetivamente se comunicar com o outro.
O princípio de instantaneidade inerente à lógica consumista é então reencenado na experiência a dois e, na ausência de satisfação imediata, é provável que o descarte do relacionamento seja a atitude em vista (Bauman, 2004; Costa, 1998).
Segundo Harvie Ferguson (1996, citado por Bauman, 2001), o desejo deixa de ser, na fase atual do capitalismo avançado, o critério em torno do qual as práticas de consumo se organizam. Em seu lugar, impõe-se a pura vontade de consumir, um impulso mecânico que, ao invés de dirigir-se ao desejo de status, vaidade ou inveja é apoiado, sobretudo, em si mesmo.
Nessa lógica, satisfação e prazer não estão necessariamente pautados num desejo efetivo que, estando finalmente livre das repressões do passado, pode ser assumido e se desenvolver. Segundo Bauman (2004):
Dizer "desejo" talvez seja demais. É como num shopping: os consumidores hoje não compram para satisfazer um desejo, como observou Harvie Ferguson – compram por impulso. Semear, cultivar e alimentar o desejo leva tempo (um tempo insuportavelmente prolongado para os padrões de uma cultura que tem pavor em postergar, preferindo a satisfação instantânea). Guiada pelo impulso ("seus olhos se cruzam na sala lotada"), a parceria sexual segue o padrão do shopping e não exige mais do que as habilidades de um consumidor médio, moderadamente experiente. Tal como outros bens de consumo, ela deve ser consumida instantaneamente (não requer maiores treinamentos nem uma preparação prolongada) e usada uma só vez, "sem preconceito". É, antes de mais nada, eminentemente descartável (pp. 26 -27).
A força e a aparente radicalidade das palavras e dos sentidos do texto de Bauman, longe de representarem, em nossa opinião, uma análise retórica daquilo que se desenvolve hoje no contexto das parcerias afetivo-sexuais, retratam aquilo que vivemos e presenciamos na cultura em nossos dias. Paradoxalmente, os indivíduos contemporâneos, ao mesmo tempo ávidos por buscarem companhia e se vincularem amorosamente, parecem viciados na velocidade e nos signos do consumo, sendo, por vezes, maquinalmente levados pelas regras, modelos e padrões mercadológicos, coisificando a si mesmos e aos outros sem se darem conta disso.
Nessa lógica, enquanto a sexualidade "usada uma só vez, sem preconceito" é uma expressão natural da liberdade tão valorizada na contemporaneidade, experiências duradouras, que envolvem um investimento situado para além da ordem do impulso, tornam-se marcadas por um misto contraditório de anseio e descrença.
Revelando tais contradições, a ênfase contemporânea na intimidade como espaço privilegiado para a realização individual transforma o amor numa espécie de método para o alcance da felicidade (Beck & Beck-Gernsheim, 1995; Giddens, 2003). Lázaro (1996) acrescenta que, entretanto, quando tal experiência não oferece soluções tão imediatas quanto o sexo, implicando, ao invés disso, uma necessidade de riqueza interior que possibilite o controle emocional da vida a dois, o relacionamento amoroso corre o rico de transformar-se num projeto que está eternamente recomeçando, numa eterna busca pela felicidade prometida.

Abertura, pluralidade e extremismo da paixão: em busca de uma compreensão do ciúme na contemporaneidade
Um contexto cultural que, como vimos até aqui, questiona referências tradicionais, penetra ambiguamente na experiência social. Por um lado, libera o indivíduo de uma vinculação engessada com o coletivo, potencializando posturas mais autônomas e criativas; por outro, o distancia da segurança das regras culturais generalizantes, forçando-o - algumas vezes, sem que possua condições para tal - a se guiar sozinho. Diante desta nova exigência de autonomia e autofundação, não raro, a depender das vicissitudes de cada experiência particular, sofrimentos e ambiguidades podem ser desencadeados (Beck & Beck- Gernsheim, 1995; Dufour, 2001), como é o caso do ciúme.
Giddens (2002) aponta que, em circunstâncias de abertura dos autossustentados relacionamentos amorosos contemporâneos, a confiança possui um papel fundamental: é ela que possibilita para os sujeitos o sentimento de proteção necessário para o envolvimento numa relação amorosa que não segue mais um curso predeterminado pelas obrigações tradicionais. Sem o sentimento de confiança, o indivíduo tende a se sentir vulnerável diante da realidade cotidiana de um compromisso amoroso, amedrontado com a possibilidade, sempre presente, de dissolução do mesmo e, ainda, com a responsabilidade que possui em sua manutenção e desenvolvimento. Munido desse sentimento, adquire um sentido de segurança ontológica que permite "pôr entre parêntesis" (Giddens, 2002, p. 52) possíveis contingências que possam afetar seu relacionamento amoroso no futuro, conseguindo envolver-se numa experiência em que as características de abertura e flexibilidade são os princípios fundamentais.
Esta espécie de fé pode parecer, contudo, uma exigência alta demais para alguns indivíduos que, aos serem liberados das referências que outrora os ajudavam a definir os relacionamentos amorosos, e entregues a relacionamentos abertos e dinâmicos como os que caracterizam a contemporaneidade, podem encontrar-se mais inseguros do que liberados para uma intimidade amorosa enriquecedora (Bauman, 2004).
De maneira menos otimista que Giddens, Bauman (2004) mostra-se pouco propenso a acreditar que a confiança possa desenvolver-se de modo a sustentar os "relacionamentos puros" dos indivíduos na contemporaneidade. A vida amorosa contemporânea, segundo o autor, além da pureza, no sentido atribuído por Giddens, reflete os valores de uma lógica consumista de mercado, na qual o descarte da relação em busca de outra que prometa mais satisfação, prazer e menos esforço é uma possibilidade cada vez mais presente na experiência dos casais.
Bauman (2004) argumenta, ainda, que a confiança precisa ser construída pelo casal no interior de um relacionamento que envolve dedicação, compromisso mútuo e saúde psicológica de cada parceiro, de maneira que o sentido da relação seja construído e reafirmado cotidianamente. Porém, ainda segundo o autor, no interior de uma lógica cultural do consumo, a dedicação necessária à construção da confiança pode representar um preço demasiado, que nem todos estariam dispostos e nem mesmo em condições de pagar.
Independentemente do ponto de vista adotado, para relacionar-se amorosamente na contemporaneidade, os indivíduos precisam, de algum modo, conviver com a autonomia e a leveza de uma relação que se torna um "contrato somente até nova ordem" (Giddens, 2002, p. 23), marcada pelas dimensões do risco e da incerteza.
Nesse ponto, podemos pensar que o ciúme das relações amorosas contemporâneas pode representar a circunstância na qual a insegurança toma a cena a dois e o relacionamento se transforma numa empresa conflitiva e arriscada na qual a confiança é justamente uma das questões mais difíceis de serem resolvidas. Assim, num mundo tão aberto em que a continuidade do relacionamento amoroso é somente uma possibilidade dentre outras, a desconfiança do ciumento pode ser uma estratégia de esquiva diante da ansiedade despertada por um mundo lançado ao arriscado reino da opção. Considerando-se ainda o fato de que tais indivíduos se constituem num cenário cultural onde os propósitos pessoais refletem os fugazes princípios do consumo, o contato genuíno com o outro, base fundamental para uma relação baseada em confiança, é posto em cheque.
O próprio Giddens (2002), apesar de apostar na construção de um compromisso pautado em confiança nos tempos atuais, analisa que a intimidade, condição principal da estabilidade contemporânea nos relacionamentos, só é alcançada pelo esforço pessoal de indivíduos seguros de suas próprias autoidentidades. A intimidade e, consequentemente, a confiança, supõem a capacidade de uma abertura e de um contato mais profundo com o outro, num "equilíbrio de autonomia e revelação mútua necessárias para sustentar trocas íntimas" (Giddens, 2002, p. 93), o que, por sua vez, depende de "um trabalho psicológico" (Giddens, 2002, p. 92) que não é necessariamente fácil de ser realizado por todas as pessoas.
No ciúme, a problemática se revela através de um comportamento em que, num contexto de múltiplas possibilidades, o relacionamento passa a ser sentido, simultaneamente, como a tábua de salvação e como um agravante do medo e da ansiedade.
Dessa forma, diante da falta de proteção e do risco envolvidos numa "relação pura", se o imaginário social indica que, no lugar do amor eterno do passado, hoje qualquer coisa pode acontecer, principalmente o fim do amor, é compreensível que alguns indivíduos busquem num controle ciumento da relação uma resposta possível. Com isso, polariza-se: deixa de haver individualidade, liberdade e diferença na relação, ou, pelo menos, tenta-se ignorar que haja, na medida em que se tenta fazer de si uma sombra do outro. Para tanto, busca-se saber onde o parceiro está, com quem e como, conhecer tudo sobre seu passado, investigar o seu presente e controlar o seu futuro. Constrói-se, dessa forma, uma relação em que não se é mais ninguém sozinho, em que se é dependente e indissoluvelmente ligado ao outro, numa oposição clara à liberdade e fluidez que marcam a experiência amorosa contemporânea.
De modo congruente com essas reflexões, Bauman (2004), assinala que:
Quando a insegurança sobe a bordo, perde-se a confiança, a ponderação e a estabilidade da navegação. À deriva, a frágil balsa do relacionamento oscila entre as duas rochas nas quais muitas parcerias se esbarram: a submissão e o poder absolutos, a aceitação humilde e a conquista arrogante, destruindo a própria autonomia e sufocando a do parceiro. Chocar-se contra uma dessas rochas afundaria até mesmo uma boa embarcação com tripulação qualificada. O que dizer de uma balsa com um marinheiro inexperiente que, criado na era dos acessórios, nunca teve a oportunidade de aprender a arte dos reparos? Nenhum marinheiro atualizado perderia tempo consertando uma peça sem condições para a navegação, preferindo trocá-la por outra sobressalente. Mas na balsa do relacionamento não há peças sobressalentes (p. 31).
A partir dessa apreciação da situação das relações amorosas na atualidade, podemos pensar que as conquistas históricas de liberdade e abertura nos relacionamentos contemporâneos, como vínhamos descrevendo, geram novos desafios. Assim, na contemporaneidade, o indivíduo corre o risco de não saber muito bem o que fazer com a liberdade conquistada e, sem referências sociais consistentes para além da lógica imediatista do consumo, pode acabar desbancando para um individualismo extremo que acabe se chocando frontalmente com os anseios, igualmente presentes, de cumplicidade, proteção e compromisso. Diante disso, soluções que mesclam "a submissão e o poder absolutos, a aceitação humilde e a conquista arrogante" (Bauman, 2004, p. 31) podem emergir em uma resposta extrema que, no caso do ciúme, frequentemente se baseia numa fantasia de dominação e controle do outro que tente fazer frente à situação ambígua e aberta que se enfrenta.
Num contexto de abertura, a relação amorosa contemporânea necessitará, segundo Bauman (2004), de vigilância e defesa para que se mantenha. No ciúme, porém, tal vigilância e defesa não se expressam no necessário monitoramento emocional da relação amorosa, sendo materializada no sentido mais escravizante do termo: o de eterna e minuciosa vigília e autoprotecão diante de uma situação tão aberta quanto ameaçadora.
Giddens (2002) vai sublinhar, na mesma direção da análise de Bauman, que a busca por um estilo de vida tradicional na contemporaneidade oferece sempre e, tão somente, uma segurança limitada. De fato, a tranquilidade que o ciumento adquire através de seu comportamento de busca por controle e domínio do outro e da relação possui um valor fugaz impossível de ser apreciado. Logo, antes mesmo de usufruir as respostas e confirmações para as suas duvidas e exigências, o indivíduo contemporâneo já está novamente ciente das condições flexíveis do amor em nosso tempo, o que pode ajudar a manter a ansiedade que se tenta tão dolorosamente evitar por meio do ciúme.
Além disso, num contexto em que, segundo a lógica cultural do capitalismo atual, acentua-se a volatilidade e efemeridade da moda, dos produtos, das informações, das ideias, serviços, valores e práticas estabelecidas, as pessoas passam a se descartar, de modo muito mais natural, não apenas de bens e produtos, mas também de estilos de vida e relações estáveis (Araújo, 2002; Bauman, 2004; Vaitsman, 1994).
Não é surpreendente, portanto, que um indivíduo que decida se envolver, atualmente, num relacionamento amoroso possa se sentir vulnerável, alguém que teme transformar-se no próximo produto antigo a ser posto em desuso. Nesse processo, pode sentir-se ameaçado tanto pelo prestígio de uma valorização explícita de um presente transitório quanto por um futuro posto em dúvida, reagindo através de cobranças e escravizações na dolorosa e inócua tentativa de produzir previsibilidade e controle.
Além de uma postura reativa à nova condição da experiência amorosa, o ciumento acaba materializando, vale sublinhar, uma postura que reproduz os princípios veiculados no contexto contemporâneo.
Segundo Lázaro (1996), a valorização da estética, signo privilegiado da cultura na contemporaneidade, é propagada de forma penetrante via mídia e outros dispositivos dos meios de comunicação em massa. Sendo conformada dentro dos modelos padronizados e preestabelecidos pelo mercado, passa então a repercutir, não raro, nas problemáticas amorosas através de um culto à imagem que se sobrepõe aos critérios espirituais e morais que também legitimam o desejo.
Tais virtudes da beleza em padrões massivos podem ser passivamente captadas e reproduzidas pelo ciumento que, na busca insaciável, e provavelmente inatingível, para atingir tais padrões, acaba mitigando a sua já frágil autoestima. Nesse caso, a competição - valor mercadológico que dá contorno às experiências sociais em nossa época - passa, não raro, a ser um princípio reproduzido no comportamento de ciúme, quando o individuo, numa busca minuciosa e comparativa de beleza, tenta superar nesse aspecto a si mesmo e aos outros.
A própria lógica do consumo é também materializada na conduta ciumenta em que o outro é tomado, frequentemente, como mais um objeto para posse, controle e uso exclusivistas. Com isso, a troca genuína na qual o outro é considerado em sua diferença e liberdade torna-se impraticável. Ao invés disso, no caminho da coisificação mercadológica do outro, a cada insatisfação (como quando, por exemplo, o parceiro retorna mais tarde do trabalho), o "consumidor" se sente no direito de exigir, sem demora e tolerância, total ressarcimento, desculpas e novas garantias.
Se o interesse daquele que sente ciúmes é manter o outro sob um jugo ordenado de acordo com seus "direitos de consumidor", não existe espaço para injustificáveis momentos e movimentos solitários, que se tornam munição certeira para mais ciúme e exigências confinantes. Em consequência, aquele que é alvo do ciúme, num movimento de contra-ataque e defesa, posiciona-se frequentemente no lado oposto, na luta pela própria individualidade, independência e discriminação de si. Nesse caso, longe de uma vida em comum, seus interesses são opostos: se um lado vence, o outro sai derrotado, o que torna impossível, a não ser num movimento de fusão que anularia irremediavelmente a diferença, vencerem juntos.

Considerações finais
As ambiguidades da vida contemporânea, enraizadas num contexto de incertezas, potencializam, como defendido por diversos autores (Bauman, 2004; Beck & Beck-Gernsheim, 1995; Dufour, 2001; Giddens, 2002; Lebrun, 2004), a abertura de um espaço propício aos extremismos. Assim, como vimos ao longo do artigo, diante de um mundo com possibilidades tão plurais e com tão frágeis e fugazes referências nas quais o indivíduo possa se assentar, comportamentos extremados - tal como o consumo de drogas, ligações com bandos e seitas as mais diversas, entre outros, como é o caso do ciúme de caráter mais extremo - podem parecer a melhor defesa, ou, pelo menos, a mais viável delas. 
Nesse sentido, se tudo se move e se desloca, os indivíduos buscam, como bem aponta Bauman (2003), comunidades imaginadas a que possam pertencer com segurança. Nesse processo, os indivíduos acabam, algumas vezes, perdendo em liberdade. É o que pode ser observado, segundo o autor, no surgimento de guetos habitacionais criados artificialmente para se ter segurança; ou, utilizando os guetos como metáfora, nos guetos de um relacionamento marcado pelo ciúme, onde se tenta, também de modo artificial, construir uma unidade com o outro, uma homogeneidade que solape as incertezas da diferença e da liberdade dos relacionamentos amorosos contemporâneos.
Entretanto, na contemporaneidade, a "comunidade realmente existente" (Bauman, 2003, p.19), ou seja, qualquer tentativa de acordo com regras fechadas e bem delimitadas, nunca estará, ainda assim, imune à reflexão e à mudança. Com isso, ao invés de ajudar a minorar a insegurança, a comunidade – e, da mesma forma, a união amorosa - pode, paradoxalmente, vir a sublinhar os temores. Resume Bauman (2000, p. 30): "Numa relação (na contemporaneidade), você pode sentir-se tão inseguro quanto sem ela, ou até pior. Só mudam os nomes que você dá à ansiedade".
Nesse cenário, alguns se tornam vulneráveis à mordida do monstro de olhos verdes, e a ciosa tentativa de controle da vida em comum torna-se a saída dolorosamente buscada para o gerenciamento da nova condição da experiência amorosa em nossos dias.

Referências
Araújo, M. F. (2002). Amor, casamento e sexualidade: velhas e novas configurações. Psicologia: Ciência e Profissão, 2, 70-77.    
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Bauman, Z. (2001). Consuming Life. Journal of Consumer Culture, 1(1), 9-29.        
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Lauane Baroncelli é Psicóloga, Mestre em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS – UFRJ); membro do corpo docente do Núcleo Dialógico de Gestalt-terapia; Atualmente cursa o Doutorado na University College Cork (Irlanda). Endereço: 8, Barr Aille. Tuam Road. Galway, Ireland. Email: lauaneb@ig.com.br

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domingo, 20 de maio de 2018

terça-feira, 15 de maio de 2018

A Filosofia e seu ensino como phármakon

Sobre a importância de considerar a filosofia enquanto phármakon - em três sentidos: enquanto remédio, veneno e cosmético.
Para quem já leu o Fedro, parece-me, a leitura apresenta um significado mais amplo. Entretanto, é indicada para todos os níveis de conhecimento formal da matéria - além de servir como base para o debate do sentido/ensino da Filosofia. De toda forma, vale a leitura.


A Filosofia e seu ensino como phármakon
 Walter Omar Kohan


RESUMO
O presente texto busca problematizar o valor e o sentido de ensinar filosofia a partir de sua caracterização comophármakon a partir das figuras de Sócrates e Platão. Numa primeira parte, destaca a forma em que Sócrates apresenta a Filosofia, as suas condições e a ele próprio como filósofo no Fedro e em passagens de outrosdiálogos de Platão; num segundo momento, detalha a condenação de Platão à escrita no Fedro, levando em consideração aportes críticos de J. Derrida e G. Deleuze para estabelecer o que está em jogo nessa condenação; numa terceira seção, apresenta os efeitos pedagógicos e políticos dessa condenação e como ela coloca Platão numa posição surpreendentemente oposta em relação ao seu próprio mestre, Sócrates. Finalmente, são extraídas algumas conclusões dessa disputa e do valor que ela pode ter para o que hoje pensamos sobre o ensino de Filosofia no Brasil.
Palavras-chave: ensino de Filosofia; Sócrates; J. Derrida; pharmakon.


Este texto é um ensaio sobre o sentido político de ensinar Filosofia no Brasil dos dias de hoje. Fá-lo em diálogo com duas figuras antigas, mas também contemporâneas da Filosofia, Sócrates e Platão, essa dupla enigmática que constitui decisivamente a tradição posterior. Estabelece para isso o seguinte percurso: numa primeira parte, destaca a forma em que é apresentada a Filosofia, e suas condições, a partir de algumas passagens de diálogosde Platão. Ênfase particular dessa primeira seção recebe um dos autorretratos que Platão escreve no nome da personagem Sócrates no Fedro. Dessa forma, o leitor pode encontrar sentidos para uma vida filosófica como a de Sócrates, na qual viver e ensinar não se dissociam facilmente, e ser filósofo ou professor de Filosofia também são formas inseparáveis de uma mesma vida. Numa segunda seção, a condenação de Platão à escrita no Fedro é apresentada com certo detalhe, acompanhada da leitura crítica de J. Derrida e G. Deleuze sobre a importância dessa condenação; numa terceira seção, os efeitos pedagógicos e políticos da disputa mostram Platão numa posição surpreendentemente oposta em relação ao seu próprio mestre, Sócrates, no que diz respeito ao papel do filósofo/professor de Filosofia na educação dos jovens. Finalmente, são apresentados os desdobramentos dessa disputa para pensar o sentido atual do ensino de Filosofia no Brasil.

A apresentação do filósofo e da Filosofia
A vida de Sócrates, e sua morte, estão marcadas por uma relação muito próxima com o phármakon, traduzido como remédio, veneno, droga, medicina. No Fédon, depois de conversar com seus amigos, Sócrates bebe ophármakon que, cumprindo a condenação, leva seu corpo à morte, mas - ele quer convencer seus amigos - também sua alma a uma nova vida. Não há razões para se entristecer, insiste: a morte é a forma de uma nova vida, mais livre, pura, profunda. No Fedro, o phármakon é um discurso em papiros que leva Sócrates até os confins da pólis para ouvir, do Fedro, o discurso que Lísias proferiu sobre o amor. Ali afirma que o phármakon é uma das únicas coisas que faz perder a Sócrates o controle de si mesmo, tanto que seguiria Fedro a qualquer lugar com o objetivo de ouvir o que tem para lhe dizer.
Uma maior proximidade da vida de Sócrates com o phármakon é manifesta em outros diálogos. Em uma passagem do Mênon, Mênon acusa Sócrates de tê-lo enfeitiçado e drogado (geoteúeis me kaì pharmátteis, 80a). Sócrates o reconhece sem problemas, apenas coloca uma condição: que se leve todos os outros ao phármakon da aporía,porque ele está mais em aporía do que ninguém. No Cármides, Sócrates é apresentado por Crítias como conhecedor da droga (ho tò phármakon epistámenos, 155c) que poderá curar a dor de cabeça de Cármides ("cuidar da alma com algumas poções", epoidaîs tisin, 157a).
De uma forma próxima a como ele é retratado por outros e por si mesmo, Sócrates retrata Eros no Banquete(203ss.): daímon, ser intermédio que passa a vida inteira filosofando (philosophôn dià pantòs toû bíou, 203d), nem mortal (ser humano), nem imortal (deus), feiticeiro terrível, bruxo e sofista (deinòs góes kaì pharmakeús kaì sophistés, 203d-e). Parece sem dúvidas um autorretrato: em muitas passagens dos diálogos, Sócrates recebe essas características, inclusive de Agatão no próprio Banquete (194a).
No Teeteto, Sócrates diz ter a mesma arte da sua mãe, a parteira Fenareta, e também afirma que as parteiras, por meio de drogas (pharmakía, 149c) e poções, são capazes de provocar ou aliviar dores de parto, parir ou abortar partos difíceis. As parteiras são mulheres que pariram - não poderiam ajudar a realizar algo que nunca experimentaram - mas já não podem mais parir, tornaram-se estéreis. O mesmo vale, diz Sócrates, para a sua arte de dar à luz: ele mesmo já é estéril, com a diferença de que faz os homens e não as mulheres dar à luz, examinando as almas, mas não os corpos que engendram conhecimentos (150b). O mais importante da arte de Sócrates é sua capacidade, potência, para ser, de qualquer forma, uma pedra de toque (basanízein dynatòn eînai pantì trópoi, 150c). Embora a forma com que Platão descreve esse trabalho sobre o pensamento do jovem seja muito próxima à do Fedro (Sócrates ponderaria se o jovem dá à luz uma imagem - ou simulacro - e uma mentira ou algo fecundo e verdadeiro, eídolon kaì pseudos... gónimon te kaì alethés, 150c), ele o faz inspirado pela familiaridade com o phármakon, vinda de sua mãe. Essa familiaridade, herdada de sua mãe parteira, é a condição que permite a Sócrates desenvolver essa capacidade.
Como Derrida o assinalara, não há unicidade no phármakon (DERRIDA, 1991, p. 41 ss.). Ao contrário, ele é contraditório; seu sentido é impossível de ser fixado num dos contrários sem a presença do outro. Enquanto substância, é a antissubstância: o veneno é sempre remédio; a droga, sempre medicina; a vida, sempre morte... Platão o confirma apresentando, no mesmo Fedro, o remédio (a dialética) como veneno (escrita, graphé). De modo que a proximidade de Sócrates com o phármakon está também afetada por esse caráter contraditório dophármakon, que lhe outorga tanto a possibilidade quanto a impossibilidade de ser o que é. Essa proximidade parece também contagiar o próprio Sócrates, impossível de ser fixo numa identidade sem contradições. Contudo, o phármakon exige um andar mais atento. Vamos mais devagar.
Abrimos o Fedro desde o início. O que encontramos? Sócrates e, com ele, um enigma infinito, o da Filosofia, ou melhor, o de qualquer professor de Filosofia, de todo educador filosofante: o que fazer em nome de uma vida filosófica? Como, por que e com quais sentidos convidar outros a essa vida? Com que direito? Com quais sentidos? O enigma se mostra também sob a forma de uma ausência: encontramos Sócrates e não encontramos Platão. Platão escreve, mas não se escreve. A ausência não é ocasional: como sabemos, Platão só se menciona umas poucas vezes, na Apologia, para contar-se como um dos que contribuiria a pagar uma eventual multa a favor de Sócrates, e no Fédon, para dizer que estava doente e, portanto, ausente, na despedida do mestre. Fora delas, sequer aparece mencionado nos diálogos que ele próprio escreveu. Essa ausência marcou decisivamente a Filosofia. O mestre, o primeiro a inscrever a Filosofia como exercício da palavra com outros na pólis, não escreve. Um discípulo o escreve se escondendo, por escrito, na máscara do mestre.
Essa ausência mostra também o insuportável não-lugar de todo aprendiz de Filosofia. Como se aprende a pensar? Qual relação estabelecer com o mestre? O que aprender dele? O mestre infinito fala sem escrever e o discípulo desobediente escreve essa ausência. O mestre não escreve e é escrito por um discípulo que condena a escrita e, por escrito, escreve sua Filosofia a partir da Filosofia do mestre. Repetição e diferença indecifráveis. Assim é a Filosofia, uma dupla insuportável, como J. Derrida sugere (DERRIDA, 1980, p. 56).
Abrimos o Fedro então e, já no início, encontramos esse enigma da Filosofia, um pensamento a ser elaborado e reelaborado até o infinito, um diálogo inverossímil, um mistério perene, o do próprio pensamento em diálogo consigo mesmo, impossível de elucidar, mas também de iludir. Encontramos uma virtualidade que exige ser sempre desdobrada, atualizada, estendida nas mais diversas dimensões, inesgotável, irresolúvel, louca.
Lendo o Fedro nos dispomos a iniciar mais uma dobra desse movimento, da infinita abertura do pensamento inaugurado por Sócrates e Platão, essa dupla inseparável. Repetimos o gesto de tantos. Não sabemos a intensidade de nossa marca antes de escrevê-la. No momento atual desse movimento, o phármakon da escrita está dentro da própria Filosofia.
Mais uma vez, é preciso atenuar a velocidade. Voltamos a olhar para o início do Fedro. O que encontramos? Sócrates encontra Fedro, que está vindo da casa de Lísias, o mais hábil em escrever discursos entre os atenienses. Ele leva consigo um phármakon, discursos en papiro sob o manto e, com ele, como um ímã, arrasta Sócrates até os confins da pólis. Fedro e Sócrates andam, caminham, estão em pé, em movimento. Já o afirmamos: a Filosofia é uma conversa infinita. Buscam, conversando, um lugar mais propício para sentir o discurso de Lísias. Sócrates está perdido. Descoberto o phármakon, faria qualquer coisa para ouvi-lo. O que encontramos no início, então, é o desejo do filósofo de escutar de alguém o que um terceiro, afamado conhecedor, manifesta saber sobre certo saber.
Lísias tem discursado diante de Fedro e outros em relação ao amor (erotikòs) de uma forma que o próprio Fedro não sabe muito bem como explicar. O tema não é pouco significativo: acerca das coisas do amor, é a única das quais Sócrates reconhece saber nos diálogos ("nada diferente afirmo saber que as coisas do amor" (oudén phemi állo epístàsthai è tà erotiká, Banquete, 177d). Também diz de quem aprendeu o que sabe do amor nesse mesmodiálogo: de uma mulher, sacerdotisa, estrangeira, Diotima de Mantinéia (Banquete, 201d). O filósofo só sabe o que sabe de uma dupla forma de exterioridade, e sabe um saber de relação, de afeto, de paixão.
De modo que o mais valioso dos escritores proferiu um discurso sobre o único saber que o filósofo admite saber, o saber que lhe é mais próprio, um saber que o leva à loucura. É aí a força do phármakon. Frente a ele, Sócrates se perde a si mesmo: não pode não querer ouvi-lo. Está tão fora de si que seria capaz de fazer qualquer coisa se Fedro não aceitasse contar-lhe o que ouviu de Lísias. Assim, começa então o filósofo: buscando, com outros, um lugar para ouvir o que outros dizem saber sobre o saber que lhe é mais próprio, sobre esse saber sem o qual ninguém que vive segundo a Filosofia poderia viver: o amor, um saber de relação, de sensação, de paixão, de encontro com outros corpos e outras almas. Assim, começa então a busca de um filósofo: com um desejo, um saber e um caminho a ser percorrido com outro sobre o que lhe é mais vital e, ao mesmo tempo, coloca sua vida em questão.
O filósofo não conversa com qualquer um. O interlocutor não é um desconhecido. Ao contrário, Sócrates manifesta conhecer Fedro de uma forma tão íntima que não conhecê-lo significaria também esquecer-se de si mesmo (Fedro, 228a). Não é um detalhe para quem, como Sócrates, se mostra sempre obsessivamente preocupado em conhecer-se a si mesmo. A relação entre conhecimento e esquecimento de si também aparece fortemente num momento crucial, no início da Apologia de Sócrates (17a), quando, estando sua vida em jogo e depois de ter ouvido a apresentação das acusações contra ele, Sócrates manifesta que eles foram tão convincentes que, mesmo afastados da verdade, quase conseguiram que ele se esquecera de si mesmo. O "quase" marca o risco de uma morte talvez mais vital para o filósofo que aquela que está sendo processada. Nos dois casos, o risco de se esquecer de si próprio aparece perante o poder da palavra proferida pelo outro da Filosofia, o retórico. Contudo, no início do Fedro, se conhecer a si próprio supõe conhecer o outro amigo da Filosofia com quem se conversa, ambos os conhecimentos são a condição para ouvir o discurso perigoso do outro da Filosofia. Não é apenas Sócrates quem conhece Fedro. Também Fedro conhece Sócrates, tanto que ele vai dizer palavras muito semelhantes (236c) a Sócrates logo depois de ler o discurso de Lísias, quando aquele ameaça não querer dizer o que pensa a respeito. A Filosofia é uma conversa entre amigos.
Ainda estamos no início do Fedro e não estão dadas todas as condições para começar a filosofar. Não são poucas. É preciso considerar muitas outras coisas: a temperatura externa e a do corpo, o ar que se respira, a tranquilidade do ambiente para não serem interrompidos, um som de ambiente agradável, música para os ouvidos. E, sobretudo, é necessário tempo. Há que se dispor de tempo para filosofar. Tempo livre, daquele que não pode ser medido pelos cronômetros ou pelos relógios, tempo de inícios sem fim, sem pressas, sem condições mais do que as emanadas da própria conversa. Tempo para conversar sobre o que não é urgente e produtivo, tempo compartilhado, comum, tempo de amizade, tempo de verdade. Fedro e Sócrates dispõem desse tempo e encontram também um lugar apropriado para conversar.
Uma vez estabelecidas essas condições, o filosofar começa quando Sócrates afirma um saber paradoxal sobre si. Manifesta-se incapaz de se conhecer a si próprio apenas algumas linhas depois de ter afirmado que não conhecer a Fedro significaria se esquecer de si próprio. Porém, como é possível que se esqueça do que não se conhece? Só resulta possível para alguém tão próximo do phármakon como Sócrates. Ele parece enfrentar exigências opostas: por um lado, se reconhecesse se conhecer a si mesmo, então já não poderia dedicar sua vida a se investigar a si próprio, como afirma no Fedro e em tantos outros lugares, pois para que iria investigar o que já conhece? Por outro, se não se conhecesse, também não poderia se dedicar a essa vida, pois é esse conhecimento que justifica e outorga sentido a uma vida de busca de si. De modo que Sócrates parece embaraçado: conhecer-se e desconhecer-se são ambos impossíveis e necessários. Como o phármakon, como a Filosofia na pólis, como a única vida que faz sentido de ser vivida por Sócrates, a que o leva à morte... Talvez por isso Fedro descreve Sócrates como o mais extraordinário, sem lugar e estranho (atopótatós, 230c) de todos os atenienses, alguém que, embora nunca extrapole os limites da cidade, parece mais um estrangeiro sendo guiado (xenagouménoi, 230c) do que alguém natural de Atenas. Sócrates complementa esta apresentação: reivindica-se como alguém amante de aprender, mais interessado em aprender dos homens da cidade do que das árvores e dos campos.

A condenação à escrita
A seguir, Fedro lê apaixonadamente o discurso de Lísias. Sócrates se volta contra ele em diversos sentidos: na forma; afirma que ele é repetitivo, dizendo as mesmas coisas de uma e outra maneira, como uma criança (235a); no conteúdo, Sócrates cita poetas (Safo e Anacreonte) como possíveis fontes de inspiração para falar melhor sobre o mesmo assunto. Contudo, antes de criticar o discurso de Lísias, volta a falar sobre si: amante como é das palavras (philológoi, 236e), fala primeiro com a cabeça coberta para evitar a vergonha no olhar de Fedro. A imagem é muito forte: falar sem olhar para o amigo um discurso que não resiste às exigências de um cara a cara. Em qualquer caso, Sócrates muda a perspectiva de análise porque, para saber o que Lísias afirma saber, qual seja, se é preciso amar mais a quem não corresponde do que a quem ama, trata-se de deliberar primeiro sobre a essência do amor, sobre o que é o amor.
Segue-se um relato do qual depois o próprio Sócrates se desculpa e emenda a cara descoberta com outro muito mais poético que acaba com um exultante elogio a Éros. Assim, a Filosofia se mostra como um saber de e sobre o amor. Em seguida, Lísias é criticado, mas a questão não é apenas Lísias, senão todos os autores de discursos escritos, os logógrafos. Sócrates o diz claramente: não é vergonhoso escrever, mas sim escrever mal e sem beleza (258d). É preciso então examinar o que significa escrever bem. Antes, Sócrates contará o mito das cigarras, discutirá a relação entre retórica e verdade e analisará em detalhe o discurso de Lísias, através de outros relatos. Também falará outra vez de si: apresenta-se como amante das divisões e das reuniões, que lhe permitem falar e pensar. Chama-se indiretamente de "dialético, capaz de olhar para o uno e o múltiplo" (266b).
No final do diálogo, quando já se considerou o suficiente sobre a arte e a falta arte nos discursos, Sócrates propõe a Fedro considerar se é conveniente ou não conveniente escrever (274b). Narra então um relato que diz ter ouvido dos antigos e deixa a eles saber sobre sua verdade. O relato conta que uma divindade egípcia, Theuth, inventor de coisas tais como os números, a aritmética, a geometria e a astronomia, o jogo do gamão e os dados, apresentou ao Rei Thamuz os caracteres da escrita (grámmata, 274d) como um aprendizado que tornaria os egípcios mais sábios e com mais memória e, por isso, deveria ser repassado a todos eles. Ele afirma ter descoberto uma droga (phármakon, 274e) para a memória e o saber.
Contudo, o rei questiona a descoberta da divindade. Ele afirma que a escrita teria o efeito contrário, provocando o esquecimento nas almas dos que a aprendem, pois, por confiarem em caracteres externos, descuidariam da sua memória. Segundo Thamuz, Theuth teria descoberto uma droga (phármakon, 275a) para a rememoração (hipomnéseos) e não para a memória (mnéme). A escrita oferece aparência de saber e não verdadeiro saber.
Eis a tremenda invenção platônica, seu mito primordial, a divisão do ser em ser em si e ser derivado, em modelo e simulacro, original e cópia. Uma série de duplicações acompanha o movimento inicial no saber, na moral, na política... Em todas elas, a inferioridade do segundo termo diante do primeiro é categórica, fundadora, radical. As consequências são impressionantes: há que conhecer, proteger, admirar as primeiras tanto quanto desapreciar, controlar e combater as segundas.
Contudo, o filósofo, querendo ou não, deixa uma deixa para a escrita, por escrito. Com efeito, Platão apresenta uma brecha ainda quando sinaliza sua aparente negatividade da escrita. Por um lado, faz notar várias fraquezas, além da já apontada. Dentre elas, sua dependência: quando é ofendida, a escrita precisa da ajuda de seu pai, pois ela é incapaz de defender-se a si mesma por si mesma (275e). Além disso, ela se oferece indiscriminadamente aos seus leitores sem diferenciar entre os que são capazes de entendê-la e os que não. Finalmente, a escrita parece viva, mas quando é interrogada permanece em silêncio (275d), dizendo sempre uma e a mesma coisa.
Assim, curiosamente, o questionado phármakon não é pura imperfeição. Platão afirma que ele é sempre um e o mesmo, uma das notas mais destacadas das realidades supremas, em si e por si mesmas, marca de superioridade e perfeição, pois elas não mudam; a diferença das coisas que se geram e se corrompem. Deixa entrever, dessa forma, sua natureza ambivalente, incontrolável, o caráter titânico e provavelmente infrutuoso da luta por extirpá-lo do ser.
Mais ainda, o problema é de família e a dialética não terá um trabalho fácil com sua meia irmã ilegítima (276a). Efetivamente, a escrita não é apenas exterioridade. Pelo menos como metáfora, sua irmã legítima recebe dela seu nome, ela é também chamada de escrita. Vingança da escrita, contragolpe do phármakon. Platão parece ter caído em sua própria loucura: a dialética é chamada de escrita da alma: o modelo, original, toma seu nome emprestado da cópia, do simulacro (eídolon, 276a)! Não é isso, pelo menos não só: a cópia está encarnada no original, em seu nome. Como assinala Deleuze, a duplicação está seguida de um julgamento moral: as imagens dividem-se em bem fundadas e bastardas; os pretendentes, em legítimos e ilegítimos (DELEUZE, 2000, p. 262-264). Há que se diferenciar moralmente o mundo surgido da diferença. Com esse gesto, a batalha parece ganha antes de começar pelo inferior, pois desse modo confirma-se a antecedência da diferença em relação à unidade. O ser é diferença, mal que pesa a Platão.
Platão sonharia, afirma Derrida, com uma memória sem suporte, sem signo, sem suplemento (DERRIDA, 1991, p. 56), absolutamente dona de suas recordações e da sua atividade de recordar. Na perspectiva platônica, a escrita, o suplemento, o apoio à memória, introduz uma fissura no ser; a de um ser híbrido, uma cópia, que não pode ser pensado segundo a lógica binária do ser ou não-ser, pois ela é e não é ao mesmo tempo. A escrita introduz uma rachadura na inteligibilidade do que é, um desdobramento desnecessário e perigoso da voz, um sintoma externo e debilitado da vitalidade da alma, uma droga (phármakon) sedutora que debilita a fortaleza e a integridade da memória e os significados que nela habitam. O lógos, como ser vivo, sofre a invasão externa de um parasita, de um meio-irmão órfão, de uma sobra, de um acréscimo que não faz outra coisa senão corroê-lo. É preciso expulsar este suplemento indesejável, devolvê-lo ao seu lugar, extirpar o parasita, o filho ilegítimo, para limpar a família. A dialética é o caminho platônico da cura. Discurso vivo e animado que se escreve na alma de quem aprende, é capaz de defender-se a si mesma e sabe falar ou calar quando necessário. Frente à dialética, a escrita é tal como uma criança órfã: sofre os efeitos do abandono quando seu pai-escritor não está próximo.
Por que Platão critica tão ferozmente a escrita por escrito? Derrida tem sua hipótese: a escrita deve servir para expurgar-se a si mesma; o lógos deve ser curado do parasita da escrita... por escrito. Esta é a ousadia e o risco de Platão, ousadia filosófica, pedagógica e epistemológica, pois não há ciência, epistéme, do phármakon, sua essência é não ter uma essência estável, mas é "o movimento, o lugar e o jogo (a produção) da diferença" (DERRIDA, 1991, p. 74). O phármakon é, por um lado, uma reserva inescrutável - "fundo sem fundo" - da diferença que "produz" todas as diferenças, o diferir da diferença.
Assim, Platão bebe do seu próprio veneno: as oposições do platonismo são derivadas de uma escrita - phármakonanterior, primeira ("arquiescrita"). A escrita é o "jogo do outro no ser" (DERRIDA, 1991, p. 118). Platão escreve porque o ser não pode ser uno, porque o ser não é presença plena e absoluta. Escreve porque o ser só pode ser se desdobrando, se repetindo no que não é, no simulacro, inscrevendo-se na estrutura da repetição suplementar de uma unidade impossível. Só há ser - e verdade - porque há diferença e repetição.

A escrita e o aprender (pela Filosofia)
A condenação platônica é uma condenação a algumas formas de exercer a escrita. Eis um dos problemas principais de Platão: existem rivais que se apresentam como mestres, educando os jovens numa certa virtude cidadã. Pressupõem que aprender a virtude é possível e a ensinam. Usam a escrita para seus próprios fins: a colocam num dispositivo de transmissão, que expressa formas do bem comum muito distantes das que Platão quer para a pólis.
Os efeitos da escrita praticada pelos rivais políticos parecem terríveis ao educador Platão: ela debilitaria a memória que é nada menos do que a fonte do aprender. Assim a apresenta no Mênon, onde conta uma história segundo a qual aprender é lembrar. Lembremos antes a primeira pergunta, essencial, do diálogo: é possível ensinar a areté (virtude; excelência)? Muitos afirmam que sim e se apresentam como capazes de fazê-lo. Contudo, Platão coloca Sócrates para pôr em questão essa pretensão. Como sempre, Sócrates coloca condições para responder essa pergunta: há que se saber o que é a areté. Mênon, experto em discursos sobre a areté,pensa que o sabe, mas depois de algumas perguntas de Sócrates não sabe mais o que dizer. Mênon está como quem sofre uma descarga elétrica e fica impossibilitado de qualquer movimento. Considera acertado que Sócrates não tenha viajado fora de Atenas, porque, sendo estrangeiro, o teriam julgado como feiticeiro.
Sócrates aceita a posição de Mênon com uma condição: "Pois não é por estar eu mesmo no bom caminho (euporôn) que deixo os outros sem saída (aporêin), senão por estar eu mesmo mais que ninguém sem saída (aporôn), assim também deixo os outros sem saída (aporêin)" (Mênon, 80c-d). As duas sentenças estão unidas por uma partícula adversativa (senão). Em ambas as frases, repete-se a parte final: produzir a aporia nos outros; o que muda é a causa colocada para esse efeito. A contraposição é entre duas eventuais posições de Sócrates, dadas respectivamente pelos prefixos eu (bem, bom) e (ausência, carência, negatividade) perante a mesma forma póros, que indica movimento, caminho, deslocamento. Sócrates afirma que aturde os outros só porque ele está mais aturdido que ninguém, porque seu saber nada vale, assim como nada valem os saberes dos outros.
É possível ensinar a virtude ou a excelência? O educador Sócrates responderia de forma paradoxal: sim e não, porque ensinar a virtude ou excelência é ensinar que não se sabe o que ela é; não há virtude ou excelência a ensinar, a não ser uma relação inquieta em relação ao saber, uma perturbação com o que se sabe, uma mania erótica por buscar saber sem nunca de fato saber nada a não ser esse não saber. Só a partir de estar problematizado um educador pode ajudar os outros a se problematizarem. Só um virtuoso pode provocar a virtude. Virtuoso é aquele que não sabe e não se ilude quanto ao seu não saber, alguém que não sabe o bom caminho, mas que está sempre à busca do bom caminho, sem jamais possuí-lo. Assim, na perspectiva socrática, só é possível aprender a virtude pelo filosofar. Só alguém muito aturdido pelo perguntar filosofante, que coloque em questão por que vivemos a vida que vivemos, pode provocar, nos outros, esse aturdimento. Por isso Sócrates nada escreveu, porque não tinha para ensinar nada fixo que pudesse ser escrito. Como escrever uma paixão, uma relação ao saber, um estar sempre incerto em relação ao caminho a andar, uma forma de se examinar a si mesmo como modo de viver a própria vida?
Porém, pôr em questão o que se pensa pode imobilizar o pensamento. Isso acontece com o paradoxo do aprender compartilhado por Sócrates e seus rivais. Aprender parece impossível, pois não se poderia aprender se já se sabe, mas também se não se sabe. Ninguém aprenderia o que já sabe, pois se já o sabe, não há nada a aprender; mas também não poderia aprender o que não sabe, pois como reconhecê-lo se não o sabe? Mênon quer saber como sair da aporia. Sócrates o ajuda, mas não o ajuda como um leitor da Apologia esperaria, com seu saber de não saber. Nesse caso, Platão coloca na boca de Sócrates uma teoria tomada de Píndaro e de outros religiosos, segundo a qual a alma é imortal, e investigar e aprender são totalmente uma reminiscência (Mênon, 81d). Outra vez o mistério de Sócrates e Platão, a dupla impossível.
Mênon pede a Sócrates que lhe ensine como é essa teoria. Platão se diverte e faz Sócrates responder como o Sócrates da Apologia não responderia: "Agora, tu me perguntas se eu te posso ensinar, a mim que afirmo que o ensino não é senão reminiscência" (82a). Sócrates pede a Mênon que traga um servente (um escravo não adquirido, mas criado na própria casa desde o seu nascimento) que fale grego para mostrar como de fato ele nada ensina. No transcorrer da conversa, o escravo passa de estar certo de um falso saber a uma perplexidade que o leva a querer aprender aquilo que reconheceu como problema; como resultado, aprende um conteúdo novo, matemático, um saber diferente que, na hipótese de Sócrates, ele já sabia, mas não recordava. A conclusão de Sócrates é: "Assim, pois, sem que ninguém lhe tenha ensinado, mas porque lhe perguntaram o que ele sabe, ele mesmo, por si mesmo, recobrou o saber" (Mênon, 85d).
Poderíamos questionar várias coisas: se a conclusão é legítima ou não; se de fato ninguém lhe ensinou e se o servidor aprende o que ele sabe ou o que Sócrates sabe; que outras coisas ele aprende com Sócrates, além do saber matemático. Porém, o que nos interessa aqui é mostrar que Platão faz Sócrates resolver a aporia do lado do saber com ajuda da memória: só se pode aprender o que já se sabe porque esse saber está esquecido. Só se pode ensinar o saber que o outro já sabe fazendo-o lembrar do que já sabe. Eis a saída platônica do paradoxo: aprender é reencontrar-se por intermédio de um mestre com um saber que, esquecido, já se possuía. Assim, no estado deteriorado das coisas da pólis, para Platão, aprender se torna não apenas possível, mas necessário, imprescindível para encontrar o saber perdido que ajuda o que é a se tornar o que deve ser.
No exercício com Mênon, Sócrates não escreve, mas desenha uma figura no chão, da qual pede ao servidor uma proporção. É interessante que ele, que não escreve, precise de uma imagem sensível inscrita na terra para ajudar o outro a lembrar de seu saber. Talvez esteja sinalizando um limite, uma condição, um risco. Em qualquer caso, se é verdade que a escrita debilita a memória, então o aprender está em risco, pois sem memória não há aprendizagem. Sem aprendizagem não há possibilidade de sair do que se é e encontrar o que se deve ser, o que verdadeiramente se é, de transformar o modo em que se vive para viver uma vida justa, bela, boa. A escrita compromete a memória e com ela a aprendizagem necessária para as aspirações platônicas de formar a infância para uma pólis mais justa, bela e verdadeira.
A desqualificação da escrita no Fedro ganha novas dimensões. O embate é vital. A crítica à escrita pressupõe um campo de batalha pedagógico e político na formação dos atenienses. Curiosamente, o adversário de Platão é também seu mestre que, vimos, ocupa uma posição que contém não só a diferença, mas também a tensão, o paradoxo, a contradição. Assim, Platão embate contra não apenas os que afirmam saber o que é virtude e como ensiná-la, mas contra o próprio mestre, que afirma não saber o que é a virtude e não poder ensiná-la.
Derrida sugere algo interessante: é verdade que Platão, condenando a escrita, estaria condenando os que acusaram Sócrates por escrito. Porém, estaria também condenando a própria posição de Sócrates (DERRIDA, 1991, p. 95 ss.), seu modo de exercer uma vida filosófica em relação com a vida política, uma relação passiva e estéril na pólis, como a que ele mesmo relata na citada passagem do Teeteto e que, veremos, outros personagens também criticam nos diálogos, como Calicles no Górgias (484c) e Adimanto na República (VI 487c-d). A condenação à escrita teria o duplo sentido de condenar não só os acusadores, mas também seu mestre como filósofo educador, alguém que educa em nome da Filosofia, sem ensinar aprendizagens de consequências políticas desaprovadas pelo discípulo que o escreveu.
Afinal, é uma disputa sobre o valor político de aprender pela Filosofia, de uma vida filosófica. Há duas Filosofias enfrentadas: uma coloca em questão os saberes; outra é um saber afirmativo imprescindível para uma vida bela, justa e verdadeira. A Filosofia como questionamento da política instituída frente à Filosofia como afirmação do saber normativo para a pólis. A posição estrangeira e atópica do filósofo seria impotente, na visão platônica, para encontrar a positividade política que transforme o estado de coisas. Platão parece não estar disposto a aceitar essa posição e por isso a escrita (?!) dos diálogos, a fundação da Academia, as viagens à Sicília.

Os sentidos políticos do ensino de Filosofia
Contudo, a batalha está perdida antes de ser começada. A Filosofia, como phármakon, resiste a toda captura. A pretensão política de afirmar um pensamento unitário fracassa. A diferença não é apenas primeira no ser, mas também na política e no próprio pensamento. Existe um Sócrates escondido em cada educador platônico. Como um estrangeiro, sorri perante as pretensões formativas da instituição pedagógica da Filosofia. Oferece ophármakon da pergunta, do phílos, da diferença. Não sabe o que significam aprender, ensinar, escrever. Não ensina, mas provoca aprenderes. Não escreve, mas gera escritas. Não sabe outra coisa a não ser o valor do não saber, da diferença, para uma vida que mereça a pena de ser vivida.
No Górgias, a crítica à posição socrática do filósofo/professor de Filosofia está associada a uma desvalorização da infância. Cálicles pede a Sócrates que não seja infantil e se afaste da Filosofia para se dedicar a coisas mais importantes (Górgias, 484c). Ele diz que a Filosofia corrompe os homens quando permanecem nela mais tempo que o devido, porque torna as pessoas inexperientes (apeíron) para a vida pública da pólis: os que filosofam em excesso desconhecem as leis, não sabem tratar os outros cidadãos, não são esclarecidos nem bem considerados ou experientes (émpeiron). Eles são ridículos nos assuntos públicos e privados (Górgias, 484c-d), nos quais se comportam como crianças. É isto que sucede a Sócrates. O filósofo é tão ridículo e infantil nos assuntos públicos como os políticos nas conversas filosóficas. Cálicles avança na comparação:
É belo o estudo da Filosofia até onde for auxiliar da educação, não sendo essa atividade desdouro para os jovens. Mas, perseverar nesse estudo até idade avançada, é coisa supinamente ridícula, Sócrates, reagindo eu à vista de quem assim procede como diante de quem se põe a balbuciar e brincar como criança. Quando vejo uma criança na idade de falar dessa maneira, balbuciando e brincando, alegro-me e acho encantador o espetáculo, digno de uma criatura livre e muito de acordo com aquela fase da existência; porém, se ouço uma criaturinha articular com correção as palavras, doem-me os ouvidos e acho por demais forçada essa maneira de falar, que se me afigura linguajar de escravos. (485a-b, trad. Carlos Alberto Nunes. In: PLATÃO, 2003, p. 184).
É belo dedicar-se à Filosofia na medida em que serve para a educação (paideías), afirma Cálicles. Não há valoração de ambas: elas podem estar juntas porque ambas são, por natureza, sem importância ou, na melhor das hipóteses, uma propedêutica para o que realmente importa: a vida política dos adultos. Note-se como, na visão de Cálicles, a educação diz respeito a um mundo anterior à entrada na política. Não há política na educação; por isso a Filosofia pode estar nela junto à infância.
Na República, Adimanto argumenta numa linha bastante próxima: os que não abandonam a Filosofia depois de abraçá-la como parte de sua educação enquanto crianças (néoi) tornam-se, quando adultos, pessoas estranhas (allokótuous) ou perversas (A República, VI 487c-d). A Filosofia pode ser praticada enquanto se é novo, mas a política é o mundo dos velhos e ali ela é completamente estrangeira. Não há política na infância ou na Filosofia. Quando na mesma República a Filosofia é colocada em idade bem avançada no currículo formativo dos aspirantes a governar a pólis, é um conhecimento teórico, muito diferente da praticada por Sócrates.
O filósofo, infante, é também estrangeiro. Já o vimos no Fedro. Mostrar-se como estrangeiro é o jogo de Sócrates, afirma Derrida (1997, p. 19) e o ilustra com uma passagem da Apologia de Sócrates. É o começo. Sócrates no tribunal se declara completamente estrangeiro ao léxico do lugar (atechnôs oûn xénos écho tês entháde léxeos, 17e). E, como tal, afirma que vai falar como costuma fazê-lo na ágora, junto aos vendedores, com as mesmas palavras (dià tôn autôn lógon, 17c) com que os seus juízes ali já lhe ouviram. Solicita, então, que lhe permitam falar com a voz (phoné) e da maneira como foi criado, como se ele realmente fosse um estrangeiro. Sócrates fala como sempre, como um filósofo, com a voz e o tom de um menino. A voz do filósofo é uma voz infantil, estrangeira. De um estrangeiro, menino e filósofo, os juízes democráticos de Atenas não escutarão nada mais do que a verdade. Não há língua comum entre Sócrates e os juízes. A pólis é insensível à língua infantil e estrangeira do filósofo.
A lição poderia ser aprendida pelos que trabalhamos hoje no campo do ensino de Filosofia. Para que fazê-lo? Para que levar a Filosofia às instituições educacionais? O discurso dominante da contribuição da Filosofia à formação cidadã tem os riscos do platonismo, de falar pelo outro, de já saber o justo, o belo, o bom por vir. Ao contrário, a figura paradoxal de Sócrates afirma a força política da alteridade, da diferença. Justamente, a força política de sua Filosofia (em Sócrates não há como separar o filósofo do professor de Filosofia) está no seu caráter infantil: ela não sabe, não ensina, não forma. Estrangeira e estranha aos modos de afirmar a palavra na comunidade, ela mostra o valor de buscar saber sobre si antes que sobre as outras coisas, de problematizar e desaprender o que se sabe e afirmar o valor do não saber, de tentar responder, com todas as forças, aquelas perguntas que não podem ser respondidas. Essa Filosofia não é um saber, mas uma relação ao saber. Ela é inútil para construir um projeto político-pedagógico. Ela ajuda a questionar os projetos político-pedagógicos existentes. Eis sua força filosófica, pedagógica e política. Por isso, na visão de Platão, não é apenas inútil: é também perigosa. Por isso deve ser expurgada da pólis, porque não pode dar lugar a nenhum currículo, a nenhum edifício pedagógico que possa fazer da pólis um lugar mais belo, bom e justo. Mas a diferença resiste na escrita condenada e o Sócrates dos diálogos deixa ver outros mundos na Filosofia, na educação e na política. Quem sabe o presente texto tenha ajudado o leitor a problematizar o sentido de seu fazer. Terá assim recriado a vida e o enigma infinito da Filosofia: para que ensiná-la? Para que Filosofia? Para quê?

REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles. Platon te le simulacre. In: ______. Logic du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1995. Trad. Port.:Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2000.        
DERRIDA, Jacques. La pharmacie de Platon. En: PLATON. Phèdre. Traduction L. Brisson. Paris: GF-Flammarion, 1968/2000, p. 255-403. Trad. port.: A Farmácia de Platão. Trad. Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991.   
______. La carte postale. Paris: Flammarion, 1980.     
______. De l'hospitalité. Anne Dufourmantelle invite Jacques Derrida à répondre. Paris: Calmann-Lévy, 1997.      
KOHAN, Walter Omar. Sócrates & a educação. O enigma da Filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.  
LIDDELL, Henry; SCOTT, Robert. A Greek English Lexicon. Oxford: Clarendon Press, 1966.         
PLATÃO. Diálogos. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 2003.      


domingo, 13 de maio de 2018

"A Sutileza da Vida" - Maria José Bulhões Maldonado


Minha voz não encontra eco
no que me supus.
E procuro ver-me na distância
a que ficou minha alegria.
Resquícios do sol de amor
ou substância risível do sonho?

Impossível é esse estar na vida
ouvindo os passos da morte.
É este vácuo de não ser.
Este poente a esvair-se.
Este grotesco envelhecimento
Da matéria.
Este cansaço do pensamento
em término de linha...

- A sutileza da vida
na advertência do fim-

Mas há dias ensolarados
em que a procura da nova identidade
persiste através de todos os desvios;
de todos os desânimos;
de todas as mortes da alma.
A poesia é a mensagem da esperança.
Substância essencial que me dá vida.

"Maio maduro Maio" - José Afonso




Da série: Devaneios, o negócio é devanear

"Não sou nada.
 Nunca serei nada. 
Não posso querer ser nada. 
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo". 
Fernando Pessoa


Seis meses que estou neste lugar. Hoje o médico perguntou se eu poderia escrever alguma coisa e apresentar. Claro que não! O desgraçado não poderia suspeitar que ando a escrever. Acho que deram com a língua nos dentes.
Todas as noites, antes das luzes apagarem, escrevo nestas folhas de caderno velho. Mas não vou mostrar nada pra ninguém. NUNCA. NADA. Eles que fiquem longe de mim. Não faço mal se me deixarem caminhar pela minha solidão. E que não tentem me tirar do meu mundo. Aqui, todos são péssimos. Acham que estou doente. Que preciso me curar. Ser feliz. Feliz?! Que piada de mal gosto. Tudo mentira. E se for verdade, mais um motivo para se afastarem de mim. Nunca simpatizei com as pessoas felizes. As perfeitas, 'completas', 'bem resolvidas'. Àquelas que não se arrependem do que fazem. Oh deuses! Arrependo-me de tantas coisas. O que posso fazer? Há momentos em que penso: “Ah se pudesse voltar no tempo!” Mas, que coisa!, o tempo não volta. E nessas horas tento lembrar do contexto, imaginar se naquela estação haveria um modo de agir distinto. Apesar do gosto pesado do pesar, acabo por me compreender e seguir. Às vezes prometo um nunca mais. Às vezes, nada. O que sei mesmo é que não gosto das pessoas que sempre acertam, que chatas que são! Apresentam-se como "donas da verdade". Com gente assim: Sinal Vermelho! Particularmente, gosto das pessoas que são imperfeitas e não têm problemas em admitir; das que nem sempre conseguem o que querem; daquelas que se perdem no meio do caminho. Adoro as pessoas que não me poupam; das que não medem as palavras e me falam tudo o que quero saber. Do contrário, distância! Não aceito ser poupada. Quero beber até o último trago. Só assim consigo me manter na corda bamba da vida. Quero a tempestade. Mas é só dá tempo, que conquisto a calma.
Sinto-me atraída pelas pessoas que se apaixonam. Sou uma apaixonada. Exaltada. Amo quem me deixa livre. Mesmo sem saber quem realmente sou, quero ser eu. E preciso de solidão para ser. Preciso de tempo para desabrochar. De segurança para confiar. Acho que gosto mesmo de quem é temperado com uma dose de loucura, os “sem lenço e sem documento”. São esses os que me seduzem. Os que gostam e não têm medo de aventuras. Sei que não sou nada perfeita! Por isso me acompanho dos imperfeitos. Sou complicada. Complexa. Dramática. Ando nos extremos. Mas também sou simples. Sou de rir por besteira; choro quando quero e não quero. Volto atrás quando voltam atrás. No entanto, sou de seguir em frente quando sinto que preciso.
Falar de quem sou é um desafio. Pois nem sempre me compreendem, e preciso fazer uso de um plural de palavras. Às vezes canso! Eu sei que não consigo me relacionar bem. Dá uma reviravolta na alma e a distância vem como soro para o meu veneno. Há quem compreenda, mas compreendo que é difícil. Sigo aos tropeções. Viver! São tantos os desejos, as inquietações. Já pensei anestesiar as angústias. Não adianta! Preciso sentir tudo na carne. Mergulhar. Tocar no fundo do poço. Ter nada e querer tudo. Tento seguir as curvas do tempo, ser afável. O que não é fácil. São muitos os labirintos. Tem dias que acordo e sinto que fui vestida com o humor do amado Álvaro de Campos, e nestas alturas a acidez extrapola a cordialidade. Para não detonar, o remédio é transferir para o deserto das caminhadas toda perturbação. Já nos últimos tempos, caminhar não me basta. Preciso correr. Cansar o corpo – a exaustão, a fazer par com uma boa música, deixa-me bem.
Por fim, preciso dessas palavras num papel. Desaguar nessas folhas o que não tenho coragem de gritar. Vou continuar assim até não poder mais. O meu mundo é dos loucos, mas a minha alma é de lugar nenhum!