O primeiro canto

O primeiro canto

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Como sair do ódio? | Uma entrevista com Jacques Rancière


"O amor afirma, o ódio nega. Mas por cada afirmação há milhentas de negação. Assim o amor é pequeno em face do que se odeia. Vê se consegues que isso seja mentira. E terás chegado à verdade." - Vergílio Ferreira


Uma reflexão que não embota com o passar das estações. Sobretudo num tempo de cultivo intenso do ódio. 




Eric Aeschimann entrevista Jacques Rancière.



Guerra ou política? Segundo Jacques Rancière, a política passa longe das artimanhas jurídicas e institucionais da política de gabinete. É uma forma de ação e de subjetivação coletiva que constrói um mundo em comum, no qual se inclui também o inimigo. A ação política cria identidades não-identitárias, um “nós” aberto e inclusivo que reconhece e fala de igual para igual com o adversário. A guerra, pelo contrário, tem como protagonista fundamental formações identitárias fechadas e agressivas (sejam elas éticas, religiosas ou ideológicas) que negam e excluem o outro do mundo partilhado. Entre o outro e o eu, nada em comum.

A verdadeira alternativa, segundo Rancière, não está na polarização que o discurso hegemônico nos apresenta: “populistas contra democratas”. Para ele, o melhor remédio possível neste momento é a própria ação política, autônoma em relação aos lugares, aos tempos e à agenda estatal. Só elaborando o mal-estar (o “ódio” diz Rancière) em chaves políticas de emancipação (coletivas, igualitárias, abertas e inclusivas) se poderá, por exemplo, disputar terreno com esta “lógica da guerra”. A politização do mal-estar é o melhor antídoto contra a sua instrumentalização por parte daqueles que querem encontrar bodes expiatórios entre os outros. Refletindo sobre o cenário francês após os atentados ao Charlie Hebdo e ao Bataclan, cujo grande beneficiado tem sido o Front National, de Le Pen, Rancière retoma temas centrais de seu recente O ódio à democracia e fornece subsídios para pensarmos a conturbada conjuntura brasileira de hoje.

Esta entrevista realizada por Eric Aeschimann foi publicada originalmente no Le Nouvel Observateur, em 7.2.2016. Publicamos aqui a entrevista com autorização de Jacques Rancière a partir da versão francesa e da versão espanhola (tradução de Pablo La Parra Pérez) publicada no El Diário, e da versão portuguesa, publicada na Revista Punkto. 

* * *

Um ano depois dos atentados ao Charlie Hebdo, dois meses depois do ataque ao Bataclan, como vê o estado da sociedade francesa? Estamos em guerra?

O discurso oficial diz que estamos em guerra porque uma potência hostil ameaça nos atacar. Os atentados realizados na França são interpretados como operações de células encarregadas pelo inimigo de executar entre nós atos de guerra. A questão é saber quem é esse inimigo.

O governo optou por uma lógica a la bush: declarar uma guerra que é, ao mesmo tempo, total (persegue-se a destruição do inimigo) e circunscrita a um objetivo preciso (o Estado islâmico). Contudo, de acordo com uma outra versão apresentada por certos intelectuais, foi o Islã quem nos declarou guerra e quem está levando a cabo um plano mundial para impor a sua lei sobre o planeta.

Estas duas lógicas misturam-se na medida em que o governo, no seu combate contra o Daesh, deve mobilizar um sentimento nacional que, no final de contas, é um sentimento anti-muçulmano e anti-imigrante. A palavra “guerra” nomeia essa conjunção.

O que é o Daesh? Um Estado? Uma organização terrorista? Em qualquer um dos casos, não é legítimo combatê-la?

O Daesh exerce a sua autoridade sobre um território, dispõe de recursos econômicos e militares e, portanto, conta com um certo número de atributos estatais. Mas, no final de contas, a sua lógica é a de um grupo armado. A formação da sua força militar a partir do exército de Saddam Hussein é um efeito da invasão americana. Mas a sua capacidade de recrutar, no nosso próprio solo, voluntários que se reconhecem no seu combate é algo que nos diz respeito diretamente: inscreve-se na tendência da lógica global atual onde há apenas Estados e grupos criminosos.

Antes existiam “grandes subjetivações coletivas” (por exemplo, o movimento operário) que permitiam aos excluídos incluir-se no mesmo mundo daqueles que combatiam. A ofensiva dita neoliberal desmantelou essas forças e criminaliza agora a luta de classes, como vimos no caso Goodyear [no passado dia 12 de Janeiro de 2016, oito empregados da Goodyear que participaram em ações de reivindicação foram condenados a penas de prisão em França]. Os excluídos são expulsos para subjetivações identitárias de tipo religioso e para formas de ações criminosas ou guerreiras.

O que temos de combater aqui é essa deriva identitária e cheia de ódio. Se os crimes devem ser tratados pela polícia, o ódio deve ser tratado pela política. Dizer que estamos em guerra com o Islã apenas consegue misturar, numa mesma lógica, crime e ódio, repressão policial e ação política (e, por isso, contribuindo para preservar o ódio). É o caso da proposta absurda de retirar a nacionalidade francesa: uma medida incapaz de prevenir os crimes, mas eficaz em alimentar o ódio que os desencadeia.

O que poderia ser feito para não ceder a esta confusão?

Há de se levar a sério o estado de dissidência virtual de uma parte da população suscetível de se transformar em combatentes. Isso implica questionar as causas, os discursos e os procedimentos que engendraram o ódio, combater a sério o desemprego, as desigualdades e as discriminações de todo o tipo, e repensar as formas como pessoas que não vivem nem pensam do mesmo modo poderiam viver juntas.

É uma tarefa difícil para todos. Idealmente, apenas a reconstituição de “subjetivações coletivas” fortes, para além das chamadas diferenças culturais, poderiam remediar a situação em que nos encontramos. Mas, em termos imediatos, o mínimo é fugir do discurso da guerra religiosa.

Refere-se aqui ao discurso dito “republicano”?

Esse discurso contribuiu largamente para o clima de ódio. É preciso tirar conclusões a esse respeito. Mas há um trabalho em profundidade que nos cabe a todos. A população que se identifica como muçulmana deve também dizer como quer viver com os outros, como quer tomar parte do nosso mundo e inventar formas de participação política.

Nos meus trabalhos anteriores, interessei-me por aqueles proletários do século XIX que foram relegados pela representação dominante para um mundo à parte. Eles estavam ali para trabalhar, talvez para gritar e revoltar-se quando não estavam satisfeitos, mas nunca para falar como membros de um mundo em comum. Mas um dia, alguns deles decidiram que sabiam refletir e falar. Escreveram panfletos, manifestos de greves, jornais operários, poemas. Fizeram saber, pela palavra e pela luta, que pertenciam ao mesmo mundo que os outros, ainda que o fizessem como representantes daqueles que não tinham parte.

Sairemos da lógica da secessão e do ódio quando aqueles que estão hoje na margem da comunidade nacional inventarem formas semelhantes de participação polêmica num mundo em comum. Trata-se de algo que vai para além da ideia de integração, que pertence ainda à lógica da segregação.

O poder de atração do jihadismo sobre alguns jovens, inclusive sobre aqueles sem vínculo ao Islã, é interpretado por alguns analistas como sintoma de um Ocidente que liquidou toda a possibilidade de pensar em termos absolutos. Não será o momento de reinventar os ideais?

A ruína dos ideais é um tema velho que já está presente no Manifesto Comunista. Marx dizia que a burguesia “afogou os fervores sagrados da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta.” (p.42)

Em O ódio à democracia, mostrei como tudo isto se tinha convertido num tema reacionário e estigmatizante. Representam-se os jovens do banlieu tanto como vítimas do niilismo consumista como da manipulação dos islamitas em nome de valores espirituais. Estas análises partem da ruína capitalista dos ideais para chegar aos crimes fanáticos. E entre o seu quadro explicativo (demasiado amplo) e o seu ponto de aplicação (muito preciso) abre-se um vazio que se enche de ódio e estigmas.

Por outro lado, não creio que nos faltem ideais. Estamos rodeados de gente que quer salvar o planeta, que vai curar feridos para o outro lado do mundo, que serve comidas a refugiados, que luta por restituir a vida em bairros abandonados. Hoje há muito mais pessoas que se entregam do que no meu tempo. Não nos faltam ideais, faltam-nos subjetivações coletivas. Um ideal é o que incita alguém a encarregar-se dos outros. Uma subjetivação coletiva é o que faz com que todas estas pessoas, juntas, constituam um povo.

Como fazer para constituir um povo? Deve ser necessariamente à escala do estado-nação?

Um povo, em sentido político, constitui-se sempre à distância da forma estatal do povo. Por isso fazem falta simbolizações igualitárias, abertas a todo o mundo e que, para além dos temas específicos (os refugiados, a ecologia, o banlieu), permitam a inclusão daqueles que não têm parte. Mas um povo também se constitui localmente, em relação com uma dominação que se exerce num espaço nacional.

Em Madrid, o movimento 15M estruturou-se em torno de uma ruptura com a lógica dos partidos que monopolizam o poder comum. Em Istambul, o movimento da praça Taksim formou-se em torno de um espaço aberto a todos que o Estado queria transformar em zona comercial. Ainda que o capital seja mundial, atuamos primeiro onde há um ponto de emergência. A nação é uma simbolização coletiva e, como toda a simbolização, é um campo de luta permanente, em França e em todo o lado. É dentro dessa perspectiva que devemos pensar a ofensiva que, desde princípios dos anos 2000, pesa sobre a identidade francesa: é o ponto culminante de uma contrarrevolução intelectual que progressivamente expurgou a nação francesa da sua herança revolucionária, socialista, operária, anticolonial e resistente para reduzi-la a uma nação branca e cristã.

A onipresença do tema da insegurança provém da mesma “contrarrevolução”?

Ele tende igualmente à constituição de uma identidade coletiva regressiva. O governo atual segue a lição de Bush: é como comandante-chefe que o governante gera maiores adesões. Perante o desemprego é preciso inventar soluções e enfrentar a lógica do benefício. Mas quando se põe o uniforme de comandante é tudo mais simples, sobretudo num país, onde apesar de tudo, o exército permanece como um dos mais bem treinados.

O que os nossos governos melhor sabem fazer não é gerir a segurança, mas sim o sentimento de insegurança. É algo muito diferente, senão mesmo o oposto. Em novembro de 2005 [durante as revoltas dos banlieus de Paris], poder-se-iam ter evitado semanas de graves confrontos se o então ministro do interior [Nicolas Sarkozy] tivesse estado um pouco menos preocupado por fazer do sentimento de insegurança uma plataforma de lançamento do seu programa presidencial e tivesse tido um pouco mais de interesse em procurar formas de apaziguamento e diálogo apropriadas para garantir a segurança.

Manuel Valls denuncia a busca de “explicações sociológicas”, que entende como uma forma de desculpar os autores dos atentados. Como analisa este ataque, tendo em conta que também dirigiu críticas – muito diferentes! – à sociologia de Pierre Bourdieu?

A “cultura da desculpa” é um simples espantalho que se esgrime para provar, a contrário, que apenas as medidas repressivas são eficazes. Mas as consequências são duvidosas. Sem dúvida, a sociologia de um meio social desfavorecido será sempre impotente na hora de explicar porque dez ou vinte membros desse meio se convertem em jihadistas e, sem dúvida, para impedir que passem à ação. Ainda que nem os favoreça nem os desculpe.

O ruído “securitário” funciona de outra maneira. As suas ameaças não podem assustar aqueles que conhecem castigos mais temíveis. E mais: favorecem a cultura de expiação, cuja forma mais extrema é o jihadismo. Esta é a cultura que é preciso combater. Deveria ser possível, sem a ajuda de nenhuma ciência, convencer os estudantes árabes que não se podem vingar sobre um professor judeu pelos crimes do Estado israelita. Mas, para que isto seja possível, é preciso deixar de transformar em delito de anti-semitismo o protesto contra esses crimes de Estado.

Como pensador, é frequentemente classificado sob o rótulo “esquerda radical” e, portanto, anticapitalista. Contudo, nas suas análises, coloca os poderes políticos e intelectuais à frente das forças económicas.

Há quem acredite que ser de esquerda significa reduzir tudo à dominação do capital. Esta posição “de esquerda” engendra no final uma resignação pesada à lei de um sistema. É no espaço político que se organizam as formas de comunidade que levam a cabo a dominação capitalista ou que se opõem a esta. A banca e as finanças não fabricam por si próprias as formas de opinião que criam um povo que lhes convém. São os políticos, os intelectuais e a classe mediática quem faz esse trabalho. Neste ponto separo-me de um certo marxismo que considera como simples aparências as simbolizações políticas produzidas no campo da opinião e das instituições. Trata-se de um campo de batalha efetivo. Se dizemos que nada mudará enquanto dure a dominação capitalista, podemos ficar tranquilos: as coisas continuarão a ser o que são até ao fim do mundo.

Mas, ao mesmo tempo, a transformação das relações humanas em relações mercantis, que parecem agora prevalecer em todo o mundo. Não é desesperante?

Aqui, de novo, a redução direta da ideologia à economia esquiva a questão política. É um tema recorrente. Nos anos 20, denunciava-se o cinema como um lugar no qual as classes se embruteciam perante as imagens; nos anos 60, acusava-se a máquina de lavar a roupa e as casas de apostas de desviarem os proletários da revolução… Hoje fetichiza-se a toda-poderosa mercadoria, como se a simples presença de um iPhone de última geração pudesse ser suficiente para engolir todas as consciências no ventre da besta.

A impotência política não provém hoje do poder hipnótico do último gadget. Vem da nossa incapacidade de conceber uma potência coletiva, susceptível de criar um mundo melhor que o existente. Esta impotência alimenta-se do fracasso dos movimentos revolucionários dos anos 60 e 70, da queda da URSS, da desilusão perante as esperanças democráticas abertas por esse afundamento, pela globalização e os seus efeitos sobre o tecido industrial francês. O que desmoralizou as forças progressistas em França não foram as mercadorias mas sim os governos do Partido Socialista.

Talvez em França, mas e a nível mundial? O membro da classe média chinesa ou indiana, que consome como nós, não é vítima do mesmo desencanto?

À escala mundial há que fazer diagnósticos diferentes. O novo gestor chinês que desfruta do seu televisor de tela gigante a partir da sua banheira de luxo representa pouco mais que uma ínfima fracção do seu país. Para uma imensa maioria da população mundial, o problema não é esse tal niilismo engendrado pelo capitalismo tardio, mas o advento, ou a restauração, de formas de exploração selvagens e de sistemas industriais concentracionários próprios do capitalismo primitivo.

Jacques Rancière nasceu em 1940 na Argélia. Em 1965, escreveu com Louis Althusser e Étienne Balibar, o livro Lire le Capital. Foi Professor emérito da Universidade de paris VIII, onde leccionou estética e política. Em 2014 a Boitempo publicou dele O ódio à democracia.

Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2016/05/10/como-sair-do-odio-uma-entrevista-com-jacques-ranciere/

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Que horas ela volta?


Por Sidnei de Oliveira*


Quando discutimos questões sociais, valores e trabalho, o primeiro filósofo que nos vem à mente é Karl Marx (1818-1883), pois em sua obra esclareceu temas sobre a sociedade, a economia e a política, tendo como progresso continuado a luta de classes. O objetivo deste artigo não é discorrer sobre a teoria dos filósofos que aqui serão citados, mas, sim, nos apropriarmos de suas filosofias para compreendermos melhor a situação representada no filme Que horas ela volta?, dirigido por Anna Muylaert. O filme retrata a imposição do rico sobre o pobre, do “forte” sobre o “fraco”, do burguês sobre o proletariado, da dona de casa sobre a empregada doméstica. A História fez que essa naturalidade ganhasse seu espaço, o rico em espaço largo e o pobre no mínimo e “necessário” para “viver”. É preciso nos atentarmos para o fato de que o espaço designado ao “quartinho da empregada” não está determinado apenas ao meio físico, mas, sim, ao espaço como ambiente psicológico imposto pelo patrão ao empregado. Quando o patrão dita as regras, o seu espaço está sendo limitado e sua liberdade, questionada, pois as regras são formas de disciplinar o empregado e de colocá-lo em seu devido lugar. Esta forma disciplinar para Michel Foucault (1926-1984) “é antes de tudo, a análise do espaço”. “O poder disciplinar não coage em sentido direto, mas atinge seus objetivos através da imposição de uma conformidade que deve ser atingida. Em suma, ele normaliza, ou seja, molda os indivíduos na direção de uma norma particular, uma norma sendo o padrão de certo tipo”.
Este acontecimento disciplinar é bem desenvolvido no filme brasileiro Que horas ela volta?, pois a empregada, Val, está ciente do que pode ou não fazer na casa de seus patrões. Sua filha, Jéssica, não aceita a posição da mãe no trabalho e a questiona, “não sei onde você aprendeu essas coisas, não pode isso, não pode aquilo, estava escrito em livro? Quem te ensinou? Você chegou aqui e ficaram te ensinando essas coisas?”. Em outra cena, Jéssica novamente interpela a mãe: “sinceramente Val, não sei como tu aguenta […] Ser tratada desse jeito, como uma cidadã de segunda classe”. A posição firme, questionadora, reflexiva e segura de Jéssica ocasiona um desconforto e incômodo a D. Bárbara e ao seu filho, Fabinho, provavelmente pela insegurança que ambos possuem e interpretam de forma errada a situação de Jéssica, pois ela sabe que a única saída é por meio dos estudos, já que sua família não possui bens e muito menos heranças para garantir um futuro digno, ou ao menos as condições necessárias para uma ótima formação. O primeiro contato de Jéssica com a família é exatamente o momento que marca tal reação e interpretação, pois ali, podemos ver a ironia de D. Bárbara, a inveja de Fabinho e o espanto de ambos sobre Jéssica prestar o vestibular para Arquitetura, já que alguns dos cursos em universidades, ainda nos dias de hoje, são classificados por uma classe social. Quando questionada sobre seus estudos no Nordeste, Jéssica não hesita em dizer que não eram bons, mas que teve a ajuda de um professor de História, que tinha uma visão crítica e trabalhava com teatro. Sabemos que a Arte, em geral, é capaz de auxiliar e melhorar a formação do sujeito.
Ainda na cena do primeiro contato com a família, Jéssica demonstra não ter dúvida do que pretende seguir. Ela observa a casa e discorre com sabedoria prática, dado que já havia desenhado o projeto de uma casa para o seu tio construir na cidade de Recife. Esse caso mostra também a diferença entre o jovem de classe baixa, que precisa ainda cedo, antes dos estudos – que por vezes precisou ser interrompido para trabalhar –, colocar em prática muitas das coisas que futuramente irá se aprofundar, diverso do jovem de classe média alta, que se preocupa apenas com os estudos. Outra passagem que firma esta segurança é a relação de Jéssica com a leitura, do posicionamento que ela tem entre a escolha do curso com a sociedade em que vive, pois a jovem Jéssica acredita que a Arquitetura é um projeto de mudança social. D. Bárbara, mais uma vez irônica, expõe em uma frase a sua posição em manter-se distante da mudança, do pobre, do oprimido, “Sua filha é inteligente, Val […] O País está mudando mesmo, né? Bacana, muito bom, boa sorte!”. “Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica a sua própria vida”.
Para Marx, a ação planejada do trabalho transforma a natureza, o homem pensa para alcançar de alguma forma a concretização do trabalho, seja com instrumentos ou ferramentas. Na mudança sempre há um propósito, ou seja, a satisfação de suas necessidades e esta relação social é dinâmica, uma permanente transformação que pelas contradições, evolui. No filme é possível realizar uma analogia com o conceito de “mais-valia” em Marx, tal exemplo é evidenciado no trabalho da empregada Val. Antes disso, uma questão importante que não acontece com a protagonista no filme, segundo a filosofia de Marx, “o trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa”, ou seja, a importância entre o trabalhador e o local de trabalho, a separação destes dois ambientes – trabalho e casa – está relacionada à identificação do eu enquanto sujeito e o desligamento das horas trabalhadas. Logo, é inconcebível que o trabalhador viva no trabalho, mesmo que haja um horário estipulado para trabalhar, o sujeito está imerso no ambiente e totalmente desvinculado da sua vida pessoal e social. Val mora na casa de seus patrões, o único lugar “privado” que ela possui é o quartinho minúsculo e sem o mínimo de conforto. Temos conhecimento que a mais-valia é o trabalho excedente não pago, no caso de uma indústria é mais fácil de identificar esse processo, pois o operário tem seu horário definido e a função juntamente com a produção a ser executada. Ora, a empregada doméstica possui suas funções, teoricamente ela é determinada a cumprir o seu trabalho dentro de um horário, mas quando o indivíduo mora no trabalho, a “aproximação” do empregado com o patrão é algo inevitável, portanto, é neste momento que a mais-valia entra em ação no caso da empregada doméstica. O trabalho de uma empregada doméstica está relacionado à limpeza e à higiene da casa, desta maneira, outro tipo de trabalho que não esteja cotejado à limpeza e à higiene será realizado de forma gratuita – exploração de trabalho. Vejamos alguns momentos em que isso acontece no filme. “Val, me traz um copo de água, por favor? […] Val, você pode trazer um sorvete para a gente?” Parece ser algo irrelevante quando se trata de um “favor”, mas isso é o passo inicial para “liberdade de pedir” que a empregada leve o cachorro para passear, carregue as malas do filho do patrão, cuide e crie o filho da mãe ausente, acorde o patrão e o faz se lembrar de tomar seus remédios, entre tantas outras funções não pagas.
Questões como estas desenvolvidas no filme apresentam a diferença entre classes, valores, direitos e deveres. Poderíamos levantar mais problemas que foram mencionados, como: o uso da cannabis, não ter direito de utilizar a mesa dos patrões, a associação que D. Bárbara faz de Jéssica com um rato quando a vê na piscina, o amor de filho para mãe que Fabinho possui por Val, entre tantas outras coisas que talvez tenham passado despercebidas, independentemente da classe social que assistiu ao filme.
Questão de escolha
A frase utilizada apenas uma vez, mas muito bem conhecida no meio doméstico, dita por D. Bárbara, “você é praticamente da família”, é sutil, educada, “carinhosa”, mas com uma imposição muito forte.  Ela tem o sentido de pôr limites, regras, de estipular o direito e dever de Val. Ela, por sua vez, compreende isso muito bem, introjeta tais valores de uma classe que não lhe pertence e afirma em algumas de suas falas, “A pessoa já nasce sabendo o que pode e o que não pode […] Não pode sentar na mesa deles [sic], onde é que já se viu filha de empregada sentar na mesa dos patrões [sic]? […] Quando eles oferecem algumas coisas que é deles [sic] é por educação, é porque eles têm certeza que a gente vai dizer não!”. Até que ponto o pobre será coibido pelo rico, quando deverá tomar as rédeas e conduzir a vida da melhor maneira possível? Até quando os mais favorecidos “ditarão” as normas aos menos favorecidos? Para Jean-Paul Sartre (1905-1980), não existe um ser supremo capaz de estabelece regras e normas – valores – que conduzam o comportamento do homem e de sua consciência. Por essa razão, o homem é livre, ele não pode fugir de sua existência, logo, está condenado a ser livre. “Com efeito, sou um existente que aprende sua liberdade através de seus atos; mas sou também um existente cuja existência individual e única temporaliza-se como liberdade […] Assim, minha liberdade está perpetuamente em questão em meu ser; não se trata de uma qualidade sobre- posta ou uma propriedade de minha natureza; é bem precisamente a textura de meu ser…”.
 Essa liberdade traz consigo uma responsabilidade com o destino do próprio sujeito com o destino e a liberdade de outros indivíduos. No filme, é possível trazer a Filosofia de Sartre em um momento exato, quando Val, sabendo do resultado a prova de Jéssica, entra na piscina. Este ato é a consciência de sua liberdade em romper com as regras impostas e colocar-se como indivíduo, um sujeito capaz de tomar decisões próprias e não se deixar ser conduzido. Na Filosofia de Sartre, a atitude de Val pode ser interpretada como uma liberdade do projeto-homem que procura o seu ser, o seu mundo. Jéssica, neste caso, possui uma importância e também uma responsabilidade pela atitude de sua mãe, posto que a sua liberdade e responsabilidade estão relacionadas ao próprio destino e ao destino do outro.
É possível imaginar no decorrer do filme o resultado do vestibular, mesmo que existam outras possibilidades de finalizá-lo, mas a reação de D. Bárbara  e Fabinho é a realidade concreta que vivenciamos dia após dia na relação do rico com o pobre. Fabinho, ao saber que foi reprovado, não tem outra reação além de desamparo, de derrotado, e busca no colo de Val o consolo negado, o carinho da mãe. Mas ao saber que Jéssica foi aprovada com uma pontuação boa, sua feição muda e mostra sua origem de berço burguês. Val, ao saber que Jéssica foi aprovada, sem saber ao certo do que se trata um vestibular, de como é o processo e todo o estudo de uma universidade, consegue apenas demonstrar a felicidade que sua filha passou por meio do celular, é a felicidade de ver sua filha realizada mesmo depois de toda a história e dificuldade passada. Com isso, por um instante, ela se sente vitoriosa e uma mãe presente. A atitude burguesa ao saber da aprovação de Jéssica é a esperada, primeiro pelas palavras de D. Bárbara, “É, nem eu tô acreditando […] Oh Val, mas aqui, não fica muito animada, essa foi a primeira fase, vai ter outra prova, a segunda fase é muito mais difícil, tem que passar na outra fase, se não passar não adianta”. Segundo, tanto Fabinho como D. Bárbara veem em Jéssica a pessoa que está tomando o lugar de um burguês na universidade, ou seja, como pode uma menina pobre, que passou por dificuldades, que não teve uma boa formação escolar e, mesmo assim, conseguir ser aprovada em um vestibular de universidade pública, ainda mais em um dos cursos tidos como divisor de classe social? A resposta ingênua é dada por ela mesma ao filho: “Estudou, né? Não fazia outra coisa, só ficava estudando. Tem que estudar, né? Pra passar, tem que estudar”.
 Após o resultado da primeira fase do vestibular, Val pretende ser uma mãe mais presente com sua filha, então resolve pedir demissão. Enquanto Val busca se libertar das rédeas burguesas, sem ao menos conseguir se expressar, mas com o objetivo firmado, D. Bárbara tem apenas uma pergunta medíocre como tentativa de fazer Val desistir da demissão: “Você quer um aumento?”. Dinheiro, o meio que permite a produção e a circulação mercantil, quando nas mãos de um determinado burguês opressor, “ganha” o poder de comprar uma vida, um sujeito, um indivíduo, mas nunca a liberdade do homem livre. De acordo com Marx: “O dinheiro, na medida em que possui o atributo de tudo comprar, na medida em que possui o atributo de se apropriar de todos os objetos, é, portanto, o objeto enquanto possessão eminente. A universalidade de seu atributo é a onipotência de seu ser; ele vale, por isso, como ser onipotente. […] O dinheiro é alcoviteiro entre a necessidade e o objeto, entre a vida e o meio de vida do homem.”
D. Bárbara e Dr. Carlos mostram em cenas diferentes qual a relação que ambos possuem com o dinheiro e como veem as pessoas, isto é, como é possível comprá-las como se fossem coisas. A não aproximação entre as classes, a impossibilidade de ver o próximo como sujeito, como indivíduo da mesma espécie, é um dos problemas que a Filosofia da América Latina tenta resolver. Não deve haver uma superioridade entre os sujeitos, para que isso aconteça, cada indivíduo deve se espelhar no próximo, se enxergar na situação do próximo. A Filosofia da Libertação é uma reflexão da realidade concreta em que as pessoas são submetidas a diferentes formas de dominação, com isso, é necessário compreender a realidade da dominação e o processo de libertação. “Aceitar o argumento do outro supõe aceitar ao outro como igual, e esta aceitação do outro como igual é uma posição ética, é o reconhecimento ético ao outro como igual, quer dizer, aceitar o argumento não é somente uma questão de verdade é, também, uma aceitação da pessoa do outro”.
Uma cena simples e rápida que serve para acentuar ainda mais este problema do rico com o pobre acontece no ateliê de Dr. Carlos. Jéssica vê uma foto da família e sua mãe está ao longe com o uniforme de trabalho. A importância desta cena está na colocação de Dr. Carlos: “tem mais umas fotos aqui, acho que tem foto da sua mãe”, e quando mostra o álbum de fotos, Val aparece ao fundo, longe da família que está reunida e desfrutando do encontro. Jéssica, ao ver a foto, diz: “tá parecendo aquelas babás de propaganda, toda de branco”. Este comentário real e atual nos dias de hoje mostra o distanciamento do rico com o pobre, do patrão com a empregada. Para situar a veracidade da atualidade da foto, basta recordarmos das manifestações que aconteceram ainda no ano de 2015, onde a alta elite e a burguesia dentro dos seus direitos se manifestavam, mas uma das atitudes marcantes foram as várias fotos de famílias ricas com suas babás cuidando dos filhos dos patrões, por incrível coincidência, as babás estavam todas de branco.
A situação de Fabinho como reprovado ou “derrotado” nos remete a outra situação ainda presente em nossos dias. Um jovem da elite que fica triste com o resultado, mas diferente de um jovem pobre na mesma situação de reprovado, Fabinho ganha uma viagem e ficará seis meses desfrutando das praias da Austrália, lugar que provavelmente o mesmo pobre reprovado não conhecerá tão cedo. Retomando as manifestações de 2015, muitos da classe média alta afirmavam mudar-se do País, diziam que iriam morar nos Estados Unidos, simplesmente para não compactuar com o mesmo espaço da classe inferior.
Com isso, entramos em um novo tema que o filme Que horas ela volta? abordou em pano de fundo, a questão da meritocracia. Pergunto: depois de toda a análise feita sobre a classe social que o filme nos proporciona, é possível discutir meritocracia? A resposta é simples, tomamos o filme como exemplo, é mérito do Dr. Carlos ter herdado todo o dinheiro da família e com isso ter propiciado uma vida digna ao seu filho e à sua esposa? Qual o mérito de Fabinho para ganhar uma viagem à Austrália? Muitas Jéssicas não foram aprovadas em vestibulares até hoje, outros Fabinhos também não, mas há uma certeza nisso tudo, enquanto as Jéssicas irão arrumar um trabalho para pagar seu cursinho, tantos outros Fabinhos estarão curtindo seus cursos de inglês na Austrália, portanto, eis o mérito de cada um e de cada classe social.
A aceitação do outro como outro significa já uma opção ética, uma escolha e um compromisso moral.
“E mamãe, cadê? Que horas ela volta?”. Esta pergunta realizada por Fabinho ainda criança é a mesma que Jéssica fez várias vezes enquanto estava longe de sua mãe. A resposta é a mesma, mas o motivo é outro, a ausência de muitas mães Bárbaras é completamente diferente de tantas outras mães Vals. Por fim, Val não deixa que se repita com sua filha todo o sofrimento que passou. Na última cena, já na singela casinha da periferia, mas digna de ser melhor que muitas mansões – “Essa casa é muito melhor do que aquela” – Jéssica não esconde a felicidade de ver sua mãe tomar uma decisão em relação à sua vida e pergunta: “E agora, já pensou o que vai fazer?”. Val responde como muitos outros pobres responderiam: “Vou dar o meu jeito”. Provavelmente, a última fala de Val seja tão chocante para a burguesia quanto a Jéssica ter sido aprovada no vestibular: “Vá buscar Jorge, traga meu neto, eu pago a passagem de avião!”.
Nesta última frase, o filme finaliza afirmando a mudança de um país, a vitória de uma mãe em poder dar o mínimo de estudo à sua filha e de poder pagar uma passagem de avião ao seu neto. Para a classe dominante, são coisas irrisórias ou até mesmo insignificantes, pois sabem que isso nunca irá faltar aos seus filhos. Mas para os pobres, Val mostrou que é possível, não sozinha, mas com o seu país. E este país em ascensão é o país que a classe dominante teme, simplesmente porque os direitos dos pobres serão os mesmos dos ricos, em alguns dos espaços frequentados não haverá distinção de classe, sentarão no mesmo ambiente, uma filha de empregada e o filho de um doutor. Este é o espaço social que alguns vêm trabalhando para romper. Que horas ela volta? é um filme fictício baseado na veracidade de muitas famílias brasileiras.

*Sidnei de Oliveira é compositor e instrumentalista. Doutorando em Filosofia pela Unicamp – bolsista FAPESP e BEPE – Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior pela Universidade de Leipzig, Alemanha.
Adaptação do texto “O fim da senzala”
Revista Filosofia Ciência & Vida Ed. 112

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

"...cambia el modo de pensar"



"Pequena mosca,
Com minha mão
Bruta, cortei
Teu jogo vão.

Não serei, mosca,
Um igual teu?
Ou não és tu
Homem, como eu?

Pois amo a dança,
Canções, bebida,
Até que a mão cega
Me corta a vida."

William Blake, Songs of experience, "The fly", estrofes 1-3 (1795)