O primeiro canto

O primeiro canto

terça-feira, 8 de setembro de 2020

A solidão da América Latina (discurso de García Márquez no Nobel de Literatura)



Antônio Pigafetta, um navegante florentino que acompanhou Magalhães na primeira viagem ao redor do mundo, ao passar pela nossa América meridional escreveu uma crônica rigorosa, que, no entanto, parece uma aventura da imaginação. Contou que havia visto porcos com o umbigo no lombo, e uns pássaros sem patas cujas fêmeas usavam as costas dos machos para chocar, e outros como alcatrazes sem língua cujos bicos pareciam uma colher. Contou que havia visto um engendro animal com cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo, patas de cervo, relincho de cavalo. Que puseram um espelho na frente do primeiro nativo que encontraram na Patagônia, e que aquele gigante ensandecido perdeu o uso da razão pelo pavor de sua própria imagem.
Este livro breve e fascinante, no qual já se vislumbram os germes de nossos romances de hoje, está longe de ser o testemunho mais assombroso da nossa realidade daqueles tempos. Os cronistas das índias nos legaram outros, incontáveis. O El Dourado, nosso país ilusório tão cobiçado, apareceu em inúmeros mapas durante longos anos, mudando de lugar e de forma de acordo com a fantasia dos cartógrafos. Na procura da fonte da Eterna Juventude, o mítico Alvar Núñez Cabeza de Vaca explorou durante oito anos o norte do México, numa expedição lunática cujos membros se comeram uns aos outros, e dos 600 que começaram só restaram cinco. Um dos tantos mistérios que nunca foram decifrados é o das onze mil mulas carregadas com cem libras de ouro cada uma, que um dia saíram de Cuzco para pagar o resgate de Atahualpa e nunca chegaram ao seu destino. Mais tarde, durante a colônia, em Cartagena das Índias eram vendidas umas galinhas criadas em terras de aluvião, em cujas moelas apareciam pedrinhas de ouro. Este delírio ao áureo de nossos fundadores nos perseguiu até há pouco tempo. No século passado, a missão alemã encarregada de estudar a construção de uma estrada de ferro interoceânica no istmo do Panamá concluiu que o projeto era viável, desde que os trilhos não fossem feitos de ferro, que era um metal escasso na região, e sim de ouro.
A independência do domínio espanhol não nos pôs a salvo da demência. O general Antonio López de Santana, que foi três vezes ditador do México, mandou enterrar com funerais magníficos a perna direita que perdeu na chamada Guerra dos Bolos. O general García Moreno governou o Equador durante dezesseis anos como um monarca absoluto, e seu cadáver foi velado com seu uniforme de gala e sua couraça de condecorações sentado na poltrona presidencial. O general Maximiliano Hernández Martínez, o déspota teósofo de El Salvador que fez exterminar numa matança bárbara 30 mil camponeses, tinha inventado um pêndulo para averiguar se os alimentos estavam envenenados, e mandou cobrir de papel vermelho a iluminação pública para combater uma epidemia de escarlatina. O monumento do general Francisco Morazán, erguido na praça principal de Tegucigalpa, na realidade é uma estátua do marechal Ney, comprada em Paris num depósito de esculturas usadas.
Há onze anos, um dos poetas insignes do nosso tempo, o chileno Pablo Neruda, iluminou este espaço com a sua palavra. Nas boas consciências da Europa, e às vezes também nas más, irromperam desde então com mais ímpeto que nunca as notícias fantasmagóricas da América Latina, essa pátria imensa de homens alucinados e mulheres históricas, cuja tenacidade sem fim se confunde com a lenda. Não tivemos, desde então, um só instante de sossego. Um presidente prometeico, entrincheirado em seu palácio em chamas, morreu lutando sozinho contra um exército inteiro, e dois desastres aéreos suspeitos e nunca esclarecidos ceifaram a vida de outro de coração generoso, e de um militar democrata que havia restaurado a dignidade de seu povo.
Neste lapso houve cinco guerras e dezessete golpes de Estado, e surgiu um ditador luciferino que em nome de Deus leva adiante o primeiro etnocídio da América Latina em nosso tempo. Enquanto isso, 20 milhões de crianças latino-americanas morreram antes de fazer dois anos, mais do que todas as crianças que nasceram na Europa Ocidental desde 1970. Os desaparecidos pela repressão somam quase 120 mil: é como se hoje ninguém soubesse onde estão os habitantes da cidade de Upsala. Numerosas mulheres presas grávidas deram à luz em cárceres argentinos, mas ainda se ignora o paradeiro de seus filhos, que foram dados em adoção clandestina ou internados em orfanatos pelas autoridades militares. Por não querer que as coisas continuem assim, morreram cerca de duzentas mil mulheres e homens em todo o continente, e mais de cem mil pereceram em três pequenos e voluntários países da América Central – Nicarágua, El Salvador e Guatemala. Se fosse nos Estados Unidos, a cifra proporcional seria de um milhão e 600 mil mortes violentas em quatro anos.
Do Chile, país de tradições hospitaleiras, fugiram um milhão de pessoas: dez por cento de sua população. O Uruguai, uma nação minúscula de dois milhões e meio de habitantes e que era considerado o país mais civilizado do continente, perdeu no desterro um a cada cinco cidadãos. A guerra civil em El Salvador produziu, desde 1979, quase um refugiado a cada 20 minutos. O país que poderia ser feito com todos os exilados e emigrados forçados da América Latina teria uma população mais numerosa que a da Noruega.
Eu me atrevo a pensar esta realidade descomunal, e não só a sua expressão literária, que este ano mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras. Uma realidade que não é a do papel, mas que vive conosco e determina cada instante de nossas incontáveis mortes cotidianas, e que sustenta um manancial de criação insaciável, pleno de desdita e de beleza, e do qual este colombiano errante e nostálgico não passa de uma cifra assinalada pela sorte. Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e malandros, todos nós, criaturas daquela realidade desaforada, tivemos que pedir muito pouco à imaginação, porque para nós o maior desafio foi a insuficiência dos recursos convencionais para tornar nossa vida acreditável. Este é, amigos, o nó da nossa solidão.
Pois se estas dificuldades nos deixam – nós, que somos da sua essência – atordoados, não é difícil entender que os talentos racionais deste lado do mundo, extasiados na contemplação de suas próprias culturas, tenham ficado sem um método válido para nos interpretar. É compreensível que insistam em nos medir com a mesma vara com que se medem, sem recordar que os estragos da vida não são iguais para todos, e que a busca da identidade própria é tão árdua e sangrenta para nós como foi para eles. A interpretação da nossa realidade a partir de esquemas alheios só contribuiu para tornar-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres, cada vez mais solitários. Talvez a Europa venerável fosse mais compreensiva se tratasse de nos ver em seu próprio passado. Se recordasse que Londres precisou de trezentos anos para construir a sua primeira muralha e de outros trezentos para ter um bispo, que Roma se debateu nas trevas da incerteza durante vinte séculos até que um rei etrusco a implantasse na história, e que em pleno século XVI os pacíficos suíços de hoje, que nos deleitam com seus queijos mansos e seus relógios impávidos, ensanguentaram a Europa com seus mercenários. Ainda no apogeu do Renascimento, ainda doze mil lansquenetes a soldo dos exércitos imperiais saquearam e devastaram Roma, e passaram na faca oito mil de seus habitantes.
Não pretendo encarnar as ilusões de Tonio Kröger, cujos sonhos de união entre um norte gasto e um sul apaixonado Thomas Mann exaltava há 53 anos neste mesmo lugar. Mas creio que os europeus de espírito esclarecedor, os que também aqui lutam por uma pátria grande mais humana e mais justa, poderiam ajudar-nos melhor se revisassem a fundo a sua maneira de nos ver. A solidariedade com os nossos sonhos não nos fará sentir menos solitários enquanto não se concretize com atos de respaldo legítimo aos povos que assumem a ilusão de ter uma vida própria na divisão do mundo.
A América Latina não quer e nem tem porque ser um peão sem rumo ou decisão, nem tem nada de quimérico para que seus desígnios de independência e originalidade se convertam em uma aspiração ocidental.
Não obstante, os progressos da navegação que reduziram tanto as distâncias entre nossas Américas e a Europa parecem haver aumentado nossa distância cultural. Por que a originalidade que é admitida sem reservas em nossa literatura nos é negada com todo tipo de desconfiança em nossas tentativas difíceis de mudança social? Por que pensar que a justiça social que os europeus desenvolvidos tratam de impor em seus países não pode ser também um objetivo latino-americano, com métodos distintos e em condições diferentes? Não: a violência e a dor desmedida da nossa história são o resultado de injustiças seculares e amarguras sem conta, e não uma confabulação urdida a três mil léguas da nossa casa. Mas muitos dirigentes e pensadores europeus acreditaram nisso, com o infantilismo dos avós que esqueceram as loucuras frutíferas de sua juventude, como se não fosse possível outro destino além de viver à mercê dos dois grandes donos do mundo. Este é, amigos, o tamanho da nossa solidão.
E ainda assim, diante da opressão, do saqueio e do abandono, nossa resposta é a vida. Nem os dilúvios, nem as pestes, nem a fome, nem os cataclismos, nem mesmo as guerras eternas através dos séculos e séculos conseguiram reduzir a vantagem tenaz da vida sobre a morte. Uma vantagem que aumenta e se acelera: a cada ano há 74 milhões de nascimentos a mais que mortes, uma quantidade de novos vivos suficiente para aumentar sete vezes, anualmente, a população de Nova York. A maioria deles nasce nos países com menos recursos, e entre eles, é claro, os da América Latina. Enquanto isso, os países mais prósperos conseguiram acumular um poder de destruição suficiente para aniquilar cem vezes não apenas todos os seres humanos que existiram até hoje, mas a totalidade de seres vivos que passaram por esse planeta de infortúnios.
Num dia como o de hoje, meu mestre William Faulkner disse neste mesmo lugar: “Eu me nego a admitir o fim do homem”. Não me sentiria digno de ocupar este lugar que foi dele se não tivesse a consciência plena de que pela primeira vez desde as origens da humanidade, o desastre colossal que ele se negava a admitir há 32 anos é, hoje, nada mais que uma simples possibilidade científica. Diante desta realidade assombrosa, que através de todo o tempo humano deve ter parecido uma utopia, nós, os inventores de fábulas que acreditamos em tudo, nós sentimos no direito de acreditar que ainda não é demasiado tarde para nos lançarmos na criação da utopia contrária. Uma nova arrasadora utopia da vida, onde ninguém possa decidir pelos outros até mesmo a forma de morrer, onde de verdade seja certo o amor e seja possível a felicidade, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham, enfim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra.
Agradeço à Academia de Letras da Suécia por haver me distinguido com um prêmio que me coloca junto a muitos dos que orientaram e enriqueceram meus anos de leitor e de celebrante cotidiano deste delírio sem remédio e que é o ofício de escrever. Seus nomes e suas obras se apresentam hoje para mim como sombras tutelares, mas também com o compromisso, frequentemente sufocante, que se adquire com esta honra. Uma dura honra que neles sempre me pareceu de simples justiça, mas que em mim entendo como mais uma dessas lições com as quais o destino costuma nos surpreender, o que fazem mais evidente nossa condição de joguetes de um fato indecifrável, cuja única e desoladora recompensa costuma ser, na maioria das vezes, a incompreensão e o esquecimento.
Por isso é natural que eu me interrogasse, lá naquele bastidor secreto onde costumamos enfrentar-nos às verdades mais essenciais que conformam nossa identidade, a qual terá sido o sustento constante da minha obra, o que pode ter chamado atenção de forma tão comprometedora, desse tribunal de árbitros tão severos. Confesso sem falsas modéstias que não foi fácil encontrar a razão, mas quero crer que tenha sido a que eu gostaria. Quero crer, amigos, que esta é, uma vez mais, uma homenagem que é rendida à poesia. À poesia, por cuja virtude o inventário assustador das náuseas que o velho Homero enumerou em sua Ilíada está visitado por um vento que as empurra a navegar com sua tristeza intemporal e alucinada. À poesia, que retém, no delgado andaime dos tercetos de Dante, toda a fábrica densa e colossal da Idade Média. À poesia, que tão milagrosa totalidade resgata a nossa América nas Alturas de Macchu Picchu, de Pablo Neruda, o grande, o maior, e onde destilam sua tristeza milenar nossos melhores sonhos sem saída. À poesia, enfim, a essa energia secreta da vida cotidiana, que cozinha seus grãos e contagia o amor e repete as imagens nos espelhos.
Em cada linha que escrevo trato sempre, com maior ou menor fortuna, de invocar os espíritos esquivos da poesia, e trato de deixar em cada palavra o testemunho de minha devoção pelas suas virtudes de adivinhação e pela sua permanente vitória contra os surdos poderes da morte. Entendo que o prêmio que acabo de receber, com toda humildade, é a consoladora revelação de que meu intento não foi em vão. É por isso que convido todos a brindar por aquilo que um grande poeta das nossas Américas, Luis Cardoza y Aragón, definiu como a única prova concreta da existência do homem: a poesia.
Muito obrigado.


domingo, 6 de setembro de 2020

"Minha história flui em mais de uma direção"


Delta

Se você pegou este entulho para o meu passado
revolvendo-o em busca de fragmentos para vender
saiba que eu há muito segui em frente
para dentro, para o coração da matéria


Se você pensa que pode me agarrar, pense melhor:
minha história flui em mais de uma direção
um delta do leito do rio se abrindo
com seus cinco dedos abertos

Adrienne Rich

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

"Murar o medo" - Mia Couto



O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já eram para me guardarem, servindo como agentes da segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos.
Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.
O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.
No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.
O preço dessa construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no Poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história. A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.
A Guerra-Fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a Ocidente. E porque se trata de novas entidades demoníacas não bastam os seculares meios de governação. Precisamos de intervenção com legitimidade divina. O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder.
Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentar as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho começaria pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e do outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.
Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente situação de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.
Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas como, por exemplo, estas: por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento? Por que motivo se gastou, apenas o ano passado, um trilhão e meio de dólares com armamento militar? Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadaffi? Por que motivos se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?
Se queremos resolver e não apenas discutir a segurança mundial teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que sejam precisos pretextos de guerra. Essa arma chama-se fome.  Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.
Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. A verdade é que pesa uma condenação antecipada pelo simples fato de serem mulheres. A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome, e como militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência nem de ética nem de legalidade.
É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A chamada Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente, morreram mais chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar.
Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje no mundo muro que separe os que têm medo dos que não têm medo.  Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente. Citarei Eduardo Galeano acerca disso que é o medo global: “Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quando não têm medo da fome, têm medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.” E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

"A excêntrica família de Antônia"


"-E não existe um céu?   
-Esta é a única dança que dançamos."


quarta-feira, 2 de setembro de 2020

"Quem não tem amigo mas tem um livro tem uma estrada”


Carolina Maria de Jesus



Quarto de despejo relata a vida de uma mulher preta, mãe solteira, catadora de lixo, moradora de favela - o quarto de despejo de uma cidade. Contudo, também retrata a vida de uma mulher lutadora, cheia de fé, que insistiu em resistir e se fazer visível, num mundo que costuma invisibilizar os marginalizados.
Uma leitura emocionante. Que nos faz sentir muita indignação, além de uma admiração enorme por essa mulher marcadamente extraordinária, Carolina Maria de Jesus. Que força! Particularmente, em muitos aspectos, ela me fez lembrar a Buchi Emecheta (outra escritora que marcou a minha vida!).
Quarto de despejo: diário de uma favelada é uma leitura que deveria ser obrigatória - tenho esse ideal romântico de que alguns livros têm o poder de nos transformar em pessoas melhores. Fazendo-nos enxergar o mundo de modo mais amplo, uma questão de tornarmo-nos mais humanos. Minha utopia tem disso...
Enfim, segue um pequeno filme que nos fala dessa mulher que marcou a história da literatura brasileira com um texto (infelizmente?!), atual. E se você ainda não conhece esse livro, espero muito que possa ter a oportunidade. Vale a pena!


sexta-feira, 28 de agosto de 2020