“Não gosto de usar as credenciais de
judeu filho de pais que estiveram em campos de concentração. Meu falecido pai
esteve em Auschwitz, minha falecida mãe esteve em Majdanek. Todos os
membros da minha família, em ambos os lados, foram exterminados. Os meus dois
pais estiveram nas revoltas do gueto Polonês. E é exatamente por causa das
lições que meus pais ensinaram a mim e aos meus irmãos que eu não vou ficar
calado quando Israel cometer seus crimes contra os Palestinos. Considero que
não há nada mais desprezível do que usar o sofrimento e a morte deles para
tentar justificar a tortura, a brutalidade, a demolição de lares que Israel
comete diariamente contra os Palestinos. Me recuso a continuar a ser intimidado
por lágrimas [dos judeus que invocam o Holocausto para atacar os
palestinos]. Se vocês tivessem coração estariam chorando pelos palestinos, não
pelas metralhadoras israelenses.”
O primeiro canto

segunda-feira, 21 de julho de 2014
terça-feira, 1 de julho de 2014
segunda-feira, 14 de abril de 2014
Animula
Animula, vagula, blandula
Hospes comesque corporis
Quae nunc abibis em loca
Pallidula, rigida, nudula,
Nec, ut soles, Dabis iocos...*
Aelius Hadrianus
* Pequena
alma terna flutuante
Hóspede e companheira de meu corpo,
Vais descer aos lugares pálidos duros nus
Onde deverás renunciar aos jogos de outrora...
Hóspede e companheira de meu corpo,
Vais descer aos lugares pálidos duros nus
Onde deverás renunciar aos jogos de outrora...
segunda-feira, 7 de abril de 2014
A biblioteca de Babel - J.L. Borges
Borges... Um
prazer reler!
By this art you may contemplate the variation of the
23 letters…
(The Anatomy of Melancholy, part. 2, sect. II, mem.
IV.)
O universo (que outros chamam a
Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias
hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas
baixíssimas. De qualquer hexágono, vêem-se os andares inferiores e superiores:
interminavelmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte prateleiras,
em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos os lados menos dois; sua
altura, que é a dos andares, excede apenas a de um bibliotecário normal. Uma
das faces livres dá para um estreito vestíbulo, que desemboca em outra galeria,
idêntica à primeira e a todas. À esquerda e à direita do vestíbulo, há dois
sanitários minúsculos. Um permite dormir em pé; outro, satisfazer as
necessidades físicas. Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva
ao infinito. No vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências.
Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o
fosse realmente, para que essa duplicação ilusória?), prefiro sonhar que as
superfícies polidas representam e prometem o infinito… A luz procede de algumas
frutas esféricas que levam o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono:
transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante.
Como todos os homens da Biblioteca,
viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, talvez do catálogo
de catálogos; agora que meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo,
preparo-me para morrer, a poucas léguas do hexágono onde nasci. Morto, não
faltarão mãos piedosas que me joguem pela balaustrada; minha sepultura será o
ar insondável; meu corpo cairá demoradamente e se corromperá e dissolverá no
vento gerado pela queda, que é infinita. Afirmo que a Biblioteca é
interminável. Os idealistas argúem que as salas hexagonais são uma forma
necessária do espaço absoluto ou, pelo menos, de nossa intuição do espaço,
Alegam que é inconcebível uma sala triangular ou pentagonal. (Os místicos
pretendem que o êxtase lhes revele uma câmara circular com um grande livro
circular de lombada contínua, que siga toda a volta das paredes; mas seu
testemunho é suspeito; suas palavras, obscuras. Esse livro cíclico é Deus.)
Basta-me, por ora, repetir o preceito clássico: “A Biblioteca é uma esfera cujo
centro cabal é qualquer hexágono, cuja circunferência é inacessível”.
A cada um dos muros de cada hexágono
correspondem cinco estantes; cada estante encerra trinta e dois livros de
formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página, de
quarenta linhas; cada linha, de umas oitenta letras de cor preta. Também há
letras no dorso de cada livro; essas letras não indicam ou prefiguram o que
dirão as páginas. Sei que essa inconexão, certa vez, pareceu misteriosa. Antes
de resumir a solução (cuja descoberta, apesar de suas trágicas projeções, é
talvez o fato capital da história), quero rememorar alguns axiomas.
O primeiro: A Biblioteca existe ab
aeterno. Dessa verdade cujo corolário imediato é a eternidade futura do
mundo, nenhuma mente razoável pode duvidar. O homem, o imperfeito bibliotecário,
pode ser obra do acaso ou dos demiurgos malévolos; o universo, com seu elegante
provimento de prateleiras, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas para o
viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado, somente pode ser obra de
um deus. Para perceber a distância que há entre o divino e o humano, basta
comparar esses rudes símbolos trêmulos que minha falível mão garatuja na capa
de um livro, com as letras orgânicas do interior: pontuais, delicadas,
negríssimas, inimitavelmente simétricas.
O segundo: O número de símbolos
ortográficos é vinte e cinco(1). Esta comprovação permitiu, depois de trezentos
anos, formular uma teoria geral da Biblioteca e resolver satisfatoriamente o
problema que nenhuma conjetura decifrara: a natureza disforme e caótica de
quase todos os livros. Um, que meu pai viu em um hexágono do circuito quinze
noventa e quatro, constava das letras MCV perversamente repetidas da primeira
linha até a última. Outro (muito consultado nesta área) é um simples labirinto
de letras, mas a página penúltima diz Oh, tempo tuas pirâmides. Já se
sabe: para uma linha razoável ou uma correta informação, há léguas de
insensatas cacofonias, de confusões verbais e de incoerências. (Sei de uma
região montanhosa cujos bibliotecários repudiam o supersticioso e vão costume
de procurar sentido nos livros e o equiparam ao de procurá-lo nos sonhos ou nas
linhas caóticas da mão… Admitem que os inventores da escrita imitaram os vinte
e cinco símbolos naturais, mas sustentam que essa aplicação é casual, e que os
livros em si nada significam. Esse ditame, já veremos, não é completamente
falaz.)
Durante muito tempo, acreditou-se que
esses livros impenetráveis correspondiam a línguas pretéritas ou remotas. É
verdade que os homens mais antigos, os primeiros bibliotecários, usavam uma
linguagem assaz diferente da que falamos agora; é verdade que algumas milhas à
direita a língua é dialetal e que noventa andares mais acima é incompreensível.
Tudo isso, repito-o, é verdade, mas quatrocentas e dez páginas de inalteráveis
MCV não podem corresponder a nenhum idioma, por dialetal ou rudimentar que
seja. Uns insinuaram que cada letra podia influir na subseqüente e que o valor
de MCV na terceira linha da página 71 não era o que pode ter a mesma série
noutra posição de outra página, mas essa vaga tese não prosperou. Outros
pensaram em criptografias; universalmente essa conjetura foi aceita, ainda que
não no sentido em que a formularam seus inventores.
Há quinhentos anos, o chefe de um
hexágono superior(2) deparou com um livro tão confuso como os outros,
porém que possuía quase duas folhas de linhas homogêneas. Mostrou seu achado a
um decifrador ambulante, que lhe disse que estavam redigidas em português;
outros lhe afirmaram que em iídiche. Antes de um século pôde ser estabelecido o
idioma: um dialeto samoiedo-lituano do guarani, com inflexões de árabe
clássico. Também decifrou-se o conteúdo: noções de análise combinatória,
ilustradas por exemplos de variantes com repetição ilimitada. Esses exemplos
permitiram que um bibliotecário de gênio descobrisse a lei fundamental da
Biblioteca. Esse pensador observou que todos os livros, por diversos que sejam,
constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as vinte e duas
letras do alfabeto. Também alegou um fato que todos os viajantes confirmaram:
“Não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos”. Dessas premissas
incontrovertíveis deduziu que a Biblioteca é total e que suas prateleiras
registram todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos
ortográficos (número, ainda que vastíssimo, não infinito), ou seja, tudo o que
é dado expressar: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as
autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares
de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração
da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o
comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o
relato verídico de tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as
interpelações de cada livro em todos os livros; o tratado que Beda pôde
escrever (e não escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros perdidos de
Tácito.
Quando se proclamou que a Biblioteca
abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade.
Todos os homens sentiram-se senhores de um tesouro intacto e secreto. Não havia
problema pessoal ou mundial cuja eloqüente solução não existisse: em algum
hexágono. O universo estava justificado, o universo bruscamente usurpou as
dimensões ilimitadas da esperança. Naquele tempo falou-se muito das
Vindicações: livros de apologia e de profecia, que para sempre vindicavam os
atos de cada homem do universo e guardavam arcanos prodigiosos para seu futuro.
Milhares de cobiçosos abandonaram o doce hexágono natal e precipitaram-se
escadas acima, premidos pelo vão propósito de encontrar sua Vindicação. Esses
peregrinos disputavam nos corredores estreitos, proferiam obscuras maldições,
estrangulavam-se nas escadas divinas, jogavam os livros enganosos no fundo dos
túneis, morriam despenhados pelos homens de regiões remotas. Outros
enlouqueceram… As Vindicaçôes existem (vi duas que se referem a pessoas do
futuro, a pessoas talvez não imaginárias), mas os que procuravam não recordavam
que a possibilidade de que um homem encontre a sua, ou alguma pérfida variante
da sua, é computável em zero.
Também se esperou então o esclarecimento
dos mistérios básicos da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. E
verossímil que esses graves mistérios possam explicar-se em palavras: se não
bastar a linguagem dos filósofos, a multiforme Biblioteca produzirá o idioma
inaudito que se requer e os vocabulários e gramáticas desse idioma. Faz já quatro
séculos que os homens esgotam os hexágonos… Existem investigadores oficiais, inquisidores. Eu
os vi no desempenho de sua função: chegam sempre estafados; falam de uma escada
sem degraus que quase os matou; falam de galerias e de escadas com o
bibliotecário; às vezes, pegam o livro mais próximo e o folheiam, á procura de
palavras infames. Visivelmente, ninguém espera descobrir nada.
À desmedida esperança, sucedeu, como é
natural, uma depressão excessiva. A certeza de que alguma prateleira em algum
hexágono encerrava livros preciosos e de que esses livros preciosos eram
inacessíveis afigurou-se quase intolerável. Uma seita blasfema sugeriu que
cessassem as buscas e que todos os homens misturassem letras e símbolos, até
construir, mediante um improvável dom do acaso, esses livros canônicos. As
autoridades viram-se obrigadas a promulgar ordens severas. A seita desapareceu,
mas na minha infância vi homens velhos que demoradamente se ocultavam nas
latrinas, com alguns discos de metal num fritilo proibido, e debilmente
arremedavam a divina desordem.
Outros, inversamente, acreditaram que o
primordial era eliminar as obras inúteis. Invadiam os hexágonos, exibiam
credenciais nem sempre falsas, folheavam com fastio um volume e condenavam
prateleiras inteiras: a seu furor higiênico, ascético, deve-se a insensata
perda de milhões de livros. Seu nome é execrado, mas aqueles que deploram os
“tesouros” destruídos por seu frenesi negligenciam dois fatos notórios. Um: a
Biblioteca é tão imensa que toda redução de origem humana resulta
infinitesimal. Outro: cada exemplar é único, insubstituível, mas (como a
Biblioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-símiles
imperfeitos: de obras que apenas diferem por uma letra ou por uma vírgula,
Contra a opinião geral, atrevo-me a supor que as conseqüências das depredações
cometidas pelos Purificadores foram exageradas graças ao horror que esses
fanáticos provocaram, Urgia-lhes o delírio de conquistar os livros do Hexágono
Carmesim: livros de formato menor que os naturais; onipo. tentes, ilustrados e
mágicos.
Também sabemos de outra superstição
daquele tempo: a do Homem do Livro. Em alguma estante de algum hexágono
(raciocinaram os homens) deve existir um livro que seja a cifra e o compêndio
perfeito de todos os demais: algum bibliotecário o consultou e é
análogo a um deus. Na linguagem desta área persistem ainda vestígios do culto
desse funcionário remoto.
Muitos peregrinaram à procura d’Ele.
Durante um século trilharam em vão os mais diversos rumos. Como localizar o
venerado hexágono secreto que o hospedava? Alguém propôs um método regressivo:
Para localizar o livro A, consultar previamente um livro B, que indique o lugar
de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim até o
infinito… Em aventuras como essas, prodigalizei e consumi meus anos. Não me parece
inverossímil que em alguma prateleira do universo haja um livro total;(3) rogo
aos deuses ignorados que um homem – um só, ainda que seja há mil anos! – o
tenha examinado e lido. Se a honra e a sabedoria e a felicidade não estão para
mim, que sejam para outros. Que o céu exista, embora meu lugar seja o inferno.
Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num instante, num ser, Tua enorme
Biblioteca se justifique.
Afirmam os ímpios que o disparate é
normal na Biblioteca e que o razoável (e mesmo a humilde e pura coerência) é
quase milagrosa exceção. Falam (eu o sei) de “a Biblioteca febril, cujos
fortuitos volumes correm o incessante risco de transformar-se em outros e que
tudo afirmam, negam e confundem como uma divindade que delira”. Essas palavras,
que não apenas denunciam a desordem mas que também a exemplificam, provam,
evidentemente, seu gosto péssimo e sua desesperada ignorância. De fato, a
Biblioteca inclui todas as estruturas verbais, todas as variantes que permitem
os vinte e cinco símbolos ortográficos, porém nem um único disparate absoluto.
Inútil observar que o melhor volume dos muitos hexágonos que administro
intitula-se Trono Penteado, e outro A Cãibra de Gesso e
outro Axaxaxas mlö. Essas proposições, à primeira vista incoerentes,
sem dúvida são passíveis de uma justificativa criptográfica ou alegórica; essa
justificativa é verbal e, ex hypothesí, já figura na Biblioteca. Não
posso combinar certos caracteres
dhcmrlchtdj
que a divina Biblioteca não tenha
previsto e que em alguma de suas línguas secretas não contenham um terrível
sentido. Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja cheia de ternuras e
de temores; que não seja em alguma dessas linguagens o nome poderoso de um
deus. Falar é incorrer em tautologias. Esta epístola inútil e palavrosa já
existe num dos trinta volumes das cinco prateleiras de um dos incontáveis
hexágonos – e também sua refutação. (Um número n de linguagens possíveis usa o
mesmo vocabulário; em alguns, o símbolo biblioteca admite a correta
definição ubíquo e perdurável sistema de galerias hexagonais, mas
biblioteca é pão ou pirâmide ou qualquer outra coisa, e as sete palavras
que a definem têm outro valor. Você, que me lê, tem certeza de entender minha
linguagem?)
A escrita metódica distrai-me da
presente condição dos homens. A certeza de que tudo está escrito nos anula ou
nos fantasmagoriza. Conheço distritos em que os jovens se prostram diante dos
livros e beijam com barbárie as páginas, mas não sabem decifrar uma única
letra. As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações que
inevitavelmente degeneram em bandoleirismo, dizimaram a população. Acredito ter
mencionado os suicídios, cada ano mais freqüentes. Talvez me enganem a velhice
e o temor, mas suspeito que a espécie humana – a única – está por extinguir-se
e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente
imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.
Acabo de escrever infinita. Não
interpelei esse adjetivo por costume retórico; digo que não é ilógico pensar
que o mundo é infinito. Aqueles que o julgam limitado postulam que em lugares
remotos os corredores e escadas e hexágonos podem inconcebivelmente cessar – o
que é absurdo. Aqueles que o imaginam sem limites esquecem que os abrange o
número possível de livros. Atrevo-me a insinuar esta solução do antigo
problema: A Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante
a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os
mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem: a
Ordem). Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança.(4)
Mar del Plata, 1941.
Notas
1. O manuscrito original não contém
algarismos ou maiúsculas. A pontuação foi limitada à vírgula e ao ponto. Esses
dois signos, o espaço e as vinte e duas letras do alfabeto são os vinte e cinco
símbolos suficientes que enumera o desconhecido (nota do editor).
2. Antes, em cada três hexágonos havia um homem. O suicídio e as enfermidades pulmonares destruíram essa proporção. Lembrança de indizível melancolia: às vezes, viajei muitas noites por corredores e escadas polidas sem encontrar um único bibliotecário.
3. Repito-o: basta que um livro seja possível para que exista. Somente está excluído o impossível. Por exemplo: nenhum livro é também unia escada, ainda que, sem dúvida, haja livros que discutem e neguem e demonstrem essa possibilidade e outros cuja estrutura corresponde à de uma escada.
4. Letizia Álvarez de Toledo observou que a vasta Biblioteca é inútil; a rigor, bastaria um único volume, de formato comum, impresso em corpo nove ou em corpo dez, composto de um número infinito de folhas infinitamente delgadas. (Cavalieri, em princípios do século XVII, disse que todo corpo sólido é superposição de um número infinito de planos.) O manuseio desse vade mecum sedoso não seria cômodo: cada folha aparente se desdobraria em outras análogas; a inconcebível folha central não teria reverso.
sexta-feira, 28 de março de 2014
A caixa preta, de Amós Oz: um romance epistolar
Amos Oz’s The
black box: an epistolary novel
Berta Waldman*
RESUMO
O romance epistolar é
um gênero muito divulgado no século XVIII. Ele conflui para o registro
dramático na medida em que não dispõe de um narrador que coordena o andamento
da narrativa, bem como a apresentação das personagens e sua atuação. Além de
ser epistolar, A caixa preta, de Amós Oz, é também um romance político, fator
que não pode ser obliterado em sua leitura. O romance trata dos conflitos entre
os partidos de esquerda e de direita em Israel e seus desdobramentos em um
plano passional de interação entre os personagens. A proposta polifônica do
romance corresponde estruturalmente a um modo de vida comunitário horizontal, a
cargo do personagem Boaz, longe dos antagonismos políticos, ideológicos e
religiosos, em que todos têm voz.
Palavras-chave: Literatura israelense contemporânea, Romance epistolar, Romance
político, Paixão e dinheiro.
ABSTRACT
The epistolary novel
is a genre that was very much in favor in the 18th century. It merges with the
dramatic form in that it does not have a narrator who coordinates the
development of the story, or the characters’ presentation and behavior. Besides
being an epistolary novel, Amos Oz’s The black box is also a political text, a
factor that cannot be obliterated when we read it. The novel deals with the
conflicts between the left and right wing parties in Israel, and their
unfolding on a passionate plane of interaction among the characters. There is a
structural correspondence between the novel’s polyphony and the character Boaz’
proposal of a horizontal and communitarian way of life, in which all have a
say, away from the political, ideological, and religious antagonisms.
Keywords: Israeli contemporary literature, Epistolary novel, Political novel,
Passion and money.
O autor da literatura
israelense contemporânea mais traduzido para o português é Amós Oz2.
E também o mais apreciado pelos leitores. Suas passagens por São Paulo apenas
confirmam a simpatia e o carisma que cercam o escritor e sua obra, traduzida
para cerca de trinta idiomas.
Professor de literatura
na Universidade Ben-Gurion, Amós Oz vive em Arad, no deserto do Neguev, em
Israel. Contrapondo-se às ideias feitas que perpetuam a discriminação, a
intolerância, a opressão, o autor não escreve “em linha reta”; para ele todas
as coisas são plurais e multívocas. Sua obra autobiográfica De amor e
trevas(2005) é um exemplo disso. Multifacetada e móvel, um caleidoscópio de
lembranças recuperadas e imaginadas, misto de referencialidade e subjetividade,
a obra retrata não um sujeito, mas vários, ou um autor multiforme que se move
sem cessar entre a “verdade” e a ficção, entre o passado e o presente, entre
aquele que conta e o que é contado, substituindo o ponto final pelo texto
necessariamente incompleto e aberto.
A questão política
está sempre presente nas obras de Amós Oz. A propósito de sua inclusão na
literatura, Stendhal dizia que “política em uma obra literária é como um tiro
de pistola em meio a um concerto; o efeito é estridente e vulgar, e, ainda
assim, algo de que não é possível desviar a atenção” (citado por Howe, p. 17).
A posição de Stendhal é clara e não abre brechas. Mas podemos refletir: uma vez
disparada a pistola, o que acontece com o concerto? Imagino que a interrupção
pode tanto ser bem recebida como provocar ressentimento. No primeiro caso,
suponho que o ruído da pistola pode vir a se tornar parte da execução e, nesse
sentido, teremos um concerto bem-sucedido. Caso contrário, o tiro esfacela a
unidade mais ampla e determina o fracasso da obra.
Stendhal estava bem
sintonizado com o problema. Sabe-se que o discurso político é feito de tensões
internas, produto da absorção de um fluxo ideológico mesclado com matéria de
experiência. O romance tenta enformar essa experiência que é imediata e íntima,
enquanto a política é, por natureza, geral e abrangente.
Dizer que a ideologia
é uma carga ou um empecilho não nos diz que o empecilho pode ser valioso ao
forçar o romancista a uma concentração de todos aqueles recursos necessários
para superá-lo. A noção de que ideias abstratas contaminam uma obra de arte é
certa se a ideologia se agrupa em massa, pondo em perigo a vivacidade do texto.
As ideias da vida real que estimularam o escritor devem permanecer invioláveis,
mas, uma vez postas em ação dentro do texto literário, não podem mais se manter
como meras massas de abstração. Essas ideias devem vir dissolvidas em
movimento, fundindo-se com as emoções de suas personagens.
Este é o grande
desafio: fazer que ideias ou ideologias ganhem vida, dotando-as da capacidade
de instigar personagens a gestos de paixão, e, mais ainda, criar a ilusão de
que têm uma espécie de movimento independente, de forma que elas próprias –
aqueles pesos abstratos de ideia ou ideologia – pareçam transformar-se em
personagens ativas no texto político.
Esse vem sendo o
propósito de Amós Oz, ficcionista e militante político da esquerda israelense,
ligado ao movimento pacifista Shalom Achshav (Paz Agora), que a partir da
década de 1970 assume uma atitude crítica apontando na imprensa escrita e
televisiva sua posição a propósito dos rumos políticos do país. O homem
político transparece na ficção de forma harmoniosa e engenhosa, conforme
veremos mais especificamente, em A caixa preta (1993).
Nascido em Jerusalém
em 1939, Amós Oz passou grande parte de sua vida no kibutz Hulda,
mudando-se a certa altura para a cidade de Arad, no Neguev, onde vive até hoje.
Viajou a diferentes países como convidado tanto para apresentar conferências
sobre seus livros traduzidos para muitos idiomas, entre eles o português, como
para ministrar cursos, pois é professor de literatura.
No início, o kibutz forma
um importante eixo aglutinador de sua obra que, embora se distancie do
realismo, toma sua matéria da realidade kibutziana. Oz usa essa comunidade como
cenário de luta entre forças ocultas que não são estritamente sociais nem
psicológicas, mas que lhe serve para expressar dilemas existenciais através de
esquemas simbólicos.
Em A caixa
preta, o autor conduz com perfeito domínio o destino das personagens e as
motivações políticas da sociedade israelense, construindo as duas partes
sincronicamente, como dobradiças em que o duplo movimento agiliza a função.
O romance é composto
de correspondências: 51 cartas e 56 telegramas que as personagens trocam entre
si. Trata-se, pois, de um romance epistolar, gênero que desfrutou de enorme
prestígio no século XVIII. Werther, de Goethe; Ligações
perigosas, de Laclos, são exemplos de romances epistolares. Nesse tipo de
romance, como em uma peça de teatro, o narrador se oculta em benefício de suas
personagens, que ganham o primeiro plano. A drástica redução da mediação
narrativa dá ao romance epistolar uma temporalidade essencialmente dramática.
Contrariamente à literatura memorialista, por exemplo, que costuma jogar com a
distância entre o presente do narrador e o passado remoto da história, o
romance epistolar tende a identificar os dois planos. Os missivistas ficam
mergulhados na opacidade do presente e desconhecem qualquer futuro, pois contam
a história ao mesmo tempo em que vivem os acontecimentos. Nas Reflexões
sobre as cartas persas, Montesquieu (1991) atribui o sucesso do romance
epistolar ao fato de ele suprimir as distâncias e mergulhar o leitor nas
paixões das personagens, fazendo-o experimentar diante desse tipo de romance
uma tensão semelhante à do espectador de teatro.
É também como o
espectador de teatro que o leitor tem de montar, a partir das cartas, a fábula
do romance, seu enredo, e também compor o perfil das personagens, que não são
apresentadas, nem contadas por um narrador, mas desdobram-se diante dos olhos
do leitor, com suas incertezas, oscilações e contradições.
A caixa preta pode ser lida também como uma montagem de fragmentos. A montagem
provoca o efeito de “choque”, pois quando o espectador percebe uma imagem, ela
logo é interrompida, sem poder ser fixada. Na linguagem escrita esse “choque”
se dá com a ruptura de uma continuidade, o que tira o leitor de sua inércia e o
obriga a pensar, a se fazer perguntas, a sair de sua passividade e a assumir
uma recepção mais ativa e crítica.
Mas por que teria
Amós Oz escolhido esse formato para este romance? A resposta que privilegia um
nível interpretativo é a que indica que o autor quis dar voz a diferentes
segmentos da sociedade israelense (romance polifônico), porque ao mesmo tempo
em que as personagens se constroem na e através da escrita, elas compõem algum
segmento social e político da vida social e política do país.
Em linhas gerais, o
romance apresenta um embate ideológico, quando mostra a desestruturação de uma
família ashkenazita3 bem
estabelecida, que acaba acolhendo um membro da comunidade judaica oriental, o
que acelera o sepultamento de uma era cujo tempo de glória e de superioridade
acabaram.
Michael Sommo, além
de oriental, é de convicção religiosa e ideias de direita com relação ao
“Grande Israel”, e vem, no romance, substituir e desbancar a figura
todo-poderosa de outro protagonista, o intelectual bem-sucedido Alexander
Guideon, que, além de tudo, é simpatizante da esquerda política israelense.
Este serviu no exército e tornou-se um pensador de esquerda destacado, alcançou
um reconhecimento internacional, porém deslocou-se para o exterior, abandonando
Israel nas mãos da direita, representada no texto por Michael Sommo.
A trama do romance se
passa em 1976, antes, portanto, da virada política de 1977, quando a direita
ganhou o poder, tomando-o do partido trabalhista que era apoiado pela elite
ashkenazita.
O romance, assim,
anuncia um desfecho que acontecerá nas décadas de 1980 e 1990, quando o período
heroico dos sabras de origem europeia começou a se esgotar, e os pioneiros que
sonharam em criar uma sociedade laica e pluralista tiveram de enfrentar a
frustração.
A caixa preta de um
avião permite desvendar o motivo de um acidente. Mas o romance é uma cartola de
mágico que dá a ver, na superfície, uma rede de relações conflitivas que atam
uma família integrada por Alexander Guideon, um importante intelectual, Ilana,
sua ex-mulher, Boaz, o filho de ambos, criado durante sete anos como bastardo,
e o novo marido de Ilana, Michael Sommo. Sob essa trama corre outra
subterrânea, representando os conflitos que ressoam em nível sociopolítico.
As relações entre
Sommo e Alex são representativas das relações étnicas entre ashkenazitas e
sefarditas4,
esquerda e direita em Israel. A esquerda mostra-se em baixa, e em seu lugar
surge uma força nova, a força do judaísmo mediterrâneo, que acredita no Grande
Israel e que está se preparando para substituir o Israel anterior.
A partir da primeira
carta de Ilana a seu ex-marido Alex, entra em cena um jogo de paixões que
cresce com o desenrolar do texto (marido e mulher, embora separados, são
extremamente apaixonados um pelo outro) entremeado com relações de poder, que
vêm marcadas pela circulação do dinheiro. Paixão e dinheiro, entretanto, não
caminham no mesmo fluxo. O dinheiro flui de Alex para Sommo, para Boaz e para o
advogado Zakheim, podendo tanto corromper como construir. Já as paixões
exacerbadas que desencadearam a quebra dos laços familiares terão o fôlego
necessário para reconstruí-los, embora deslocados para outro lugar e em outra
condição, isto é, os protagonistas da paixão terão de se submeter aos dados da
realidade (doença e morte) e aceitar sua mudança de posição.
De qualquer forma, a
linguagem circula e carreia o dinheiro e a paixão.
Assim, lentamente,
Sommo, o humilde professor de francês, começa a transformar-se ao perceber a
possibilidade de começar a receber uma ajuda financeira do ex-marido de sua
esposa. O dinheiro o corrompe, pois ele abandona sua carreira de professor e
usa o dinheiro de Alex para reformar sua casa, sua vida. Ingressa em um movimento
de direita nacionalista militante e passa a dedicar-se à compra de terras nos
territórios ocupados, planejando levar a família para viver no bairro judaico
na cidade velha de Jerusalém. Fundamentalista, acredita em um futuro novo
inspirado no passado. Sua fala é formal e permeada de citações bíblicas que vão
se tornando cada vez mais frequentes à medida que o romance evolui e sua adesão
ao nacionalismo se acentua. Seu empenho é o de impor a posição que defende aos
que o rodeiam. Assim, Boaz teria de se educar em Kiriat Arba, e Ilana teria de
reeducar-se dentro da tradição religiosa. Ambos, porém, escaparão da órbita de
sua influência.
A transformação de
Sommo se faz, segundo lhe parece, em nome do Sionismo. Comprar terras, casas em
Hebron, reconstruir as antigas sinagogas, em uma cidade que já fora a sede do
reinado do rei Davi, são parâmetros ideológicos que têm na mira a reconstrução
de um mapa antigo da terra de Sion. E impor a Halachá, a lei religiosa judaica,
a todos os cidadãos de Israel, sem se importar com a concepção ideológica e
religiosa de cada um, é a forma que ele privilegia para redimir o presente
israelense e plantar a salvação futura, preparando a vinda do Messias.
Sommo expressa a
frustração que sente por não fazer parte da sociedade constitutiva da
empreitada sionista, ele, um novo imigrante, um imigrante oriental, de estatura
menor que os judeus europeus, dá vazão à sua frustração na atividade política,
opondo-se fortemente aos árabes. Assimetrias intraétnicas e interétnicas se
cruzam, e cabe ao mais fraco a obrigação de respeitar a força e o poder de quem
os têm em mãos.
Alex é seu antípoda
tanto no aspecto físico como na origem, no trabalho, na ideologia. Filho de um
pioneiro imigrante da Europa Oriental convulsionada pelo antissemitismo, seu
pai, movido pelo sonho sionista secular, vai para a Palestina e rompe os laços
com a tradição e com o judaísmo normativo para ajudar a construir uma nação
moderna. Esse pai projeta para seu filho nascido na Palestina um futuro
heroico, ele seria o sabra alto, destemido e forte, orgulhoso de seu país, o
oposto do judeu diaspórico oprimido e sacrificado. Criado para sentir ódio,
para defender-se, Alex tornou-se um comandante perdido e solitário e é no
exército que conhece a que será sua mulher, Ilana. Um casamento complicado
feito de jogos eróticos perigosos, o adultério da mulher separa o casal
litigiosamente, deixando mãe e filho sem dinheiro, enquanto o pai amealhava uma
fortuna. É essa fortuna que ele irá transferir durante o romance, no momento em
que sua carreira de escritor e intelectual está no topo mas sua saúde se vê
prejudicada por um câncer irreversível.
É curioso observar
que o tema da pesquisa de Alex é o fundamentalismo religioso, visto como uma
bomba que implodirá a sociedade israelense e as nações que o albergam, conforme
se pode ler em uma crítica a seu livro estampada na imprensa mundial: “a obra
despeja uma pesada sombra sobre a psicopatologia de várias fés e ideologias
desde a Idade Média até nossos dias” (p. 75). Ou: “seu livro expõe a fé como
fonte de imoralidade” (p. 76).
À beira do desespero,
Ilana casa-se com Sommo, que lhe oferece uma nova oportunidade de reconstrução
da vida familiar. Casar-se com Ilana, ashkenazita alta e bonita, representou
uma vitória para Sommo. Ele a salva da autodestruição quando Alex a abandona, e
enquanto isso sua autoimagem cresce.
No início, a mulher o
admira, mas em seguida fica perplexa com a velocidade com a qual Sommo se deixa
corromper pelo dinheiro de Alex, ainda que o dinheiro seja utilizado para o que
ele chama de “o bem da nação”.
No final Ilana o
abandona para ir cuidar de Alex, prestes a morrer. Mas este ato é interpretado
por Sommo como um castigo, pelo fato de ele ter quebrado uma norma social ao
ter casado com alguém acima de sua condição e de fora de sua comunidade étnica.
Ironicamente, o
herdeiro material de Alex será Sommo, o fanático destruidor de um presente tido
como corrompido, cujo objetivo é o de criar uma sociedade inspirada no passado
bíblico glorioso, segundo a ideologia que o aproxima do movimento
nacionalista Gush Emunim e do partido ultranacionalista Kach.
No final do romance, Sommo compõe a imagem estereotipada do judeu oriental. E
Alex, por sua vez, no final de sua vida sabe que o dinheiro herdado de seu pai,
que pertencera à geração dos pioneiros, destina-se à compra de terras nos
territórios além da linha verde, mas, mesmo assim, nomeia Sommo seu herdeiro.
Há uma passividade e uma inoperância que talvez o autor coloque nos movimentos
pacifistas e nos movimentos de esquerda que silenciaram diante do avanço
nacionalista. Assim, Sommo se transforma em uma nova figura que não hesita em
tomar o dinheiro do “opressor” ashkenazita e, graças a ele, se torna um homem
moderno, com poder de decisão no novo cenário político israelense.
Já Boaz, o filho de
Alex, não tem preparo para nem vontade de continuar a empreitada sionista,
embora a certa altura do romance se diga sionista. Sonhador e idealista, sua
participação no romance instaura uma quebra entre a ideologia sionista e uma
prática amorosa de se enraizar no território que fora desbravado pelos
pioneiros, como é o caso de seu avô, sem nenhuma nostalgia do passado grandioso
do Israel bíblico. Seu tempo é o presente e seu propósito, o de redimir a
terra, com o trabalho de suas próprias mãos. Que cada um faça algo de
construtivo, este é o seu lema. Sua posição ante os árabes é a de que têm o
direito de viver em sua terra, caso contrário os judeus acabarão com os árabes
e estes com os judeus, sobrando apenas escombros da Bíblia e do Alcorão,
chacais e ruínas de um passado glorioso.
Não é por acaso que
ele estabelece em Zichron Yacov, cidade fundada no início da colonização
judaica da Palestina na era moderna, longe do fanatismo de Jerusalém e do
consumismo cosmopolita de Tel Aviv, uma comunidade ligada à terra e inspirada
em um estilo de vida primitivo, contrastando com o luxo e a modernidade
perseguida por Sommo e ao alcance natural de seu pai, Alex. Em carta de Ilana a
Boaz, ela reconhece e verbaliza: “Você é melhor que todos nós”, reconhecimento
que é partilhado pelo pai: “Essa árvore está crescendo longe das maçãs podres”.
Também para Boaz
reflui o dinheiro de Alex, mas não o corrompe, porque não é usado como valor de
troca nem como mediação de poder. O jovem trata os que o cercam como iguais,
sua comunidade apresenta uma organização horizontal, ninguém exerce autoridade
sobre o outro. Cada um tem autonomia para fazer o que quer, na hora que quer,
ligando-se todos pelo empenho comum de uma construção coletiva.
É essa organização,
em que há lugar para todos, até mesmo para Sommo, a matriz que ditará a forma
deste romance de Amós Oz. Essa é a microcomunidade imaginada como modelo ideal
da nação: concede voz a todos, a todas as representações de forças políticas de
Israel, mesmo àquelas com as quais o autor não concorda. É sobre esse modelo
que se estrutura o romance polifônico de Amós Oz. A partir dessa construção,
ele mostra a singularidade de uma comunidade que, com todos os defeitos,
conseguiu moldar uma sociedade singular. Talvez Sommo e Boaz tenham de disputar
algum dia a liderança do país, mas o romance, com certeza, torce pelo segundo.
Em um romance
epistolar, a caracterização das personagens se faz pela linguagem, por aquilo
que elas dizem e como dizem. O tom protocolar e feito de citações religiosas de
Sommo; a linguagem pausada e pontuada de erros de quem não frequenta nem
frequentou a escola de Boaz; a escrita limpa, franca e um pouco kitsch de
Ilana; o texto cortante, inteligente e irônico de Alex; os relatórios
“objetivos” e pragmáticos dos advogados; a linguagem sucinta e decidida dos
telegramas – cada um dos discursos figura um ethos, aponta para uma
direção e compõe uma “cara”. A diversidade de vozes justapostas remete à
multiplicidade de caracteres. E como a história vai-se tecendo à medida em que
cada carta é escrita, com a autoridade que lhe atribui o missivista, ela pode
ser e é contraditada pelo destinatário, que desconstrói a história anterior
para reconstruí-la de seu ponto de vista em novo patamar. Isso significa que os
sentidos hesitam em um romance epistolar, porque, como desfazer as
contradições?
A história passional
vivida por Ilana e Alex é duplamente construída. Os motivos que levaram ao
casamento, ao adultério da mulher, ao desencontro do casal, vão se montando e
desmontando, qual areia movediça, pelo homem e pela mulher, deixando o leitor
perplexo diante da impossibilidade de refazer a história em um percurso linear.
A única certeza que fica é a de que se trata de uma história de amor e paixão
nada banal, vivida por duas personagens complexas e que, apesar dos
impedimentos da vida, não se separam de fato, embora a estrutura familiar se
desfaça.
Se é a pele que
sanciona a integridade dos corpos, limitando-os como invólucros, ela explicita
uma dinâmica entre superfície e profundidade ao aceitar e acompanhar, ao mesmo
tempo, relevos e depressões. Assim também o corpo da linguagem, no caso desse
romance, delimitado pelos múltiplos estilos, múltiplos emissores, deixa-se
atravessar pela paixão, que traz a reboque a ideologia.
Essa construção não
se deixa capturar em partes excludentes, isto é, a ideologia sem a paixão, a
paixão sem a ideologia, o que é um trunfo em termos de seu resultado final.
Buscando a estrutura multivocal, em que as vozes contracenam sem se submeter ao
comando de um único desígnio, o homem político, que é a contraface do escritor,
também busca um olhar equânime em relação ao conflito israelense-palestino.
Israelenses e
palestinos vão chegar a um acordo tristemente pragmático: haverá um Estado da
Palestina ao lado do de Israel; sem lua de mel nem história de amor, mas
viveremos como vizinhos civilizados. Não sei quando isso virá, mas posso
prometer, em nome de israelenses e palestinos, que se a Europa demorou mais de
mil anos para acabar com as guerras e criar a Comunidade Europeia, nós o
faremos mais depressa e derramaremos menos sangue. Tenham um pouco de paciência
e não tenham uma atitude de condenação, indignação, ou paternalismo... Não nos
digam que somos terríveis. Tentem ajudar. Deem às duas partes toda a empatia
que puderem. Isso é o que faço em meu livro, não julgo quem era bom e quem era
mau entre meu pai e minha mãe. Escrevo sobre os dois, com toda a empatia de que
sou capaz5.
Referências
Howe, I.
(1998). A política e o romance. São Paulo: Perspectiva.
Montesquieu, C.
(1991). Cartas persas (R. J. Ribeiro, trad.). São Paulo: Pauliceia.
Oz, A. (1993). A
caixa preta. São Paulo: Companhia das Letras.
Oz, A. (2005). De
amor e trevas. São Paulo: Companhia das Letras.
Waldman, B. (2004). Linhas
de força: escritos sobre literatura hebraica. São Paulo: Humanitas.
* Professora aposentada de Teoria Literária na Universidade Estadual
de Campinas; professora titular de Literatura Hebraica na Universidade de São
Paulo.
1 Este trabalho retoma elementos de outro ensaio, “Literatura e política: alguns aspectos da obra de Amós Oz”, mas dá-lhe outra direção (Waldman, 2004).
2 As obras de Amós Oz traduzidas para o português são: Conhecer uma mulher (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras, 1992; A caixa preta (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras, 1993; Fima (trad. George Schlesinger). São Paulo: Companhia das Letras, 1996; Não diga noite (trad. George Schlesinger). São Paulo: Companhia das Letras, 1997; Pantera no porão (trad. Milton Lando e Isa Mara Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 1999; O mesmo mar (trad. Milton Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 2001; Meu Michel (trad. Rifka Berezin et al.). São Paulo: Summus, 1982 | (trad. Milton Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 2002; De amor e trevas (trad. Milton Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
3 Judeus ashkenazitas são aqueles provenientes da Europa Oriental e falantes do iídiche. Eles tiveram um papel preponderante na fundação e construção do Estado de Israel.
4 Judeus sefarditas são aqueles que foram expulsos da Península Ibérica e dispersaram-se por outras diásporas. São falantes do ladino. A diferenciação entre sefarditas e ashkenazitas ficou mais evidente a partir do século XVI. Basicamente, a diferença era de rito e tradição sinagogal, sendo que a dos sefarditas ligava-se ao judaísmo da Babilônia e a dos ashkenazitas, ao da Palestina. Refletia-se também na pronúncia do hebraico, nos hábitos sociais, no vestuário etc. O grande centro cultural da vida sefardita até a era moderna foi Salônica, arrasada pelos nazistas em 1943. Ultimamente manifesta-se certa tendência a se considerar como sefarditas todos os judeus orientais (muitos dos quais adotaram o ritual sefardita), ou mesmo todos os não ashkenazitas.
5 Entrevista a Entre Livros, a propósito de De amor e trevas, em janeiro de 2007.
1 Este trabalho retoma elementos de outro ensaio, “Literatura e política: alguns aspectos da obra de Amós Oz”, mas dá-lhe outra direção (Waldman, 2004).
2 As obras de Amós Oz traduzidas para o português são: Conhecer uma mulher (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras, 1992; A caixa preta (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras, 1993; Fima (trad. George Schlesinger). São Paulo: Companhia das Letras, 1996; Não diga noite (trad. George Schlesinger). São Paulo: Companhia das Letras, 1997; Pantera no porão (trad. Milton Lando e Isa Mara Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 1999; O mesmo mar (trad. Milton Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 2001; Meu Michel (trad. Rifka Berezin et al.). São Paulo: Summus, 1982 | (trad. Milton Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 2002; De amor e trevas (trad. Milton Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
3 Judeus ashkenazitas são aqueles provenientes da Europa Oriental e falantes do iídiche. Eles tiveram um papel preponderante na fundação e construção do Estado de Israel.
4 Judeus sefarditas são aqueles que foram expulsos da Península Ibérica e dispersaram-se por outras diásporas. São falantes do ladino. A diferenciação entre sefarditas e ashkenazitas ficou mais evidente a partir do século XVI. Basicamente, a diferença era de rito e tradição sinagogal, sendo que a dos sefarditas ligava-se ao judaísmo da Babilônia e a dos ashkenazitas, ao da Palestina. Refletia-se também na pronúncia do hebraico, nos hábitos sociais, no vestuário etc. O grande centro cultural da vida sefardita até a era moderna foi Salônica, arrasada pelos nazistas em 1943. Ultimamente manifesta-se certa tendência a se considerar como sefarditas todos os judeus orientais (muitos dos quais adotaram o ritual sefardita), ou mesmo todos os não ashkenazitas.
5 Entrevista a Entre Livros, a propósito de De amor e trevas, em janeiro de 2007.
quinta-feira, 13 de março de 2014
Um coração simples, de Gustave Flaubert
Não se deixem iludir com o espaço que
esse conto ocupa. Vale a pena a leitura!
Durante meio século, os burgueses de
Pont-l’Évêque invejaram a Sra. Aubain por sua criada Felicidade.
Por cem francos ao ano, ela cozinhava e
limpava a casa, costurava, lavava, passava, sabia arrear cavalos, engordar
aves, bater a manteiga; permaneceu fiel à sua patroa, que, no entanto, não era
uma pessoa agradável.
Ela esposara um belo rapaz sem fortuna,
que falecera no começo de 1809, deixando-lhe duas crianças pequenas e uma
quantidade considerável de dívidas. Então, vendeu seus imóveis, exceto as
terras arrendadas de Toucques e de Geffosses, cujos rendimentos atingiam, no
máximo, 5 mil francos, e deixou sua casa de Saint-Melaine para morar em outra
menos dispendiosa que pertencera a seus ancestrais, localizada atrás do
mercado.
Essa casa, revestida de ardósia,
situava-se entre um beco e uma ruela que terminava no riacho. Seu interior
tinha desníveis que faziam tropeçar. Um vestíbulo estreito separava a cozinha
da sala onde a Sra. Aubain permanecia durante o dia, sentada em uma poltrona de
palha, perto da janela. Encostadas no lambri, pintado de branco, alinhavam-se oito
cadeiras de acaju. Um velho piano sustentava, sob um barômetro, um pilha
piramidal de caixas variadas, algumas de papelão. Duas “bergères” em tapeçaria,
ladeavam a lareira em mármore amarelo, em estilo Luís XV. O relógio, no meio,
representava um templo de Vesta — e todo o ambiente cheirava um pouco a mofo,
pois o piso era mais baixo do que o quintal.
No primeiro andar, havia primeiro o
quarto da “senhora”, muito grande, forrado com um papel de flores desbotadas,
contendo o retrato do “senhor”, de aparência janota. Ele se comunicava com um
quarto menor, onde se viam duas camas de crianças sem colchões. Depois, vinha a
sala de visitas, sempre fechada, cheia de móveis cobertos por lençóis. Em
seguida, um corredor levava a um escritório; livros e papéis lotavam as
prateleiras de uma estante que tomava três lados de uma escrivaninha grande em
madeira escura. Dois painéis, por sua vez, desapareciam sob desenhos em bico de
pena, paisagens a guache e gravuras de Audran, lembranças de um tempo melhor e
de um luxo perdido. Uma lucarna, no segundo andar, clareava um pouco o quarto
de Felicidade, com vista para os campos.
Felicidade levantava-se com a madrugada,
para não perder a missa, e trabalhava até a noite, sem interrupção; depois,
terminado o jantar, a louça em ordem e a porta bem fechada, ela cobria de
cinzas a acha de lenha e adormecia diante da lareira com o rosário na mão.
Ninguém, nas redondezas, demonstrava mais perseverança. Quanto à limpeza, o
brilho de suas panelas levava ao desespero as outras criadas. Econômica, ela
comia com lentidão e recolhia com os dedos as migalhas de pão — um pão de doze
libras, especialmente feito para ela, que durava vinte dias.
Em todas as estações do ano, ela usava
um lenço indiano fixado nas costas por um alfinete, uma touca escondendo-lhe os
cabelos, meias cinzas, um saiote vermelho e sobre a camisola, um avental
inteiriço, como o das enfermeiras de hospital.
Seu rosto era magro e sua voz aguda. Com
vinte e cinco anos, davam-lhe quarenta. A partir dos cinquenta, não aparentava
mais nenhuma idade; e, sempre silenciosa, postura ereta e gestos comedidos,
parecia uma mulher de madeira, funcionando de maneira automática.
II
Ela tivera, como qualquer outra, sua
história de amor.
O pai, pedreiro, morreu quando caiu de
um andaime. Depois, a mãe faleceu, as irmãs se dispersaram, um arrendatário
recolheu-a e empregou-a, ainda pequena, para cuidar das vacas no pasto. Ela
tremia de frio em seus farrapos, bebia, deitada no chão, a água das poças,
apanhava por qualquer motivo; por fim, acabou sendo expulsa por causa de um
furto de trinta soldos, que não havia cometido. Foi para uma outra propriedade,
onde trabalhava no fundo do quintal, cuidando dos animais; e, como agradava aos
patrões, os outros criados invejavam-na.
Numa noite do mês de agosto (tinha,
então, dezoito anos), eles a levaram à feira em Colleville. Imediatamente ficou
atordoada, estupefata pela balbúrdia dos violeiros, pelas luzes nas árvores,
pela miscelânea de cores das roupas, pelas rendas, crucifixos de ouro, pela
multidão indo e vindo ao mesmo tempo. Mantinha-se a distância, modestamente,
quando um jovem, de aparência abastada, fumando cachimbo, com os dois cotovelos
sobre o timão de uma carroça, veio tirá-la para dançar. Pagou-lhe sidra, café,
bolo, um lenço e, imaginando que ela o adivinharia, ofereceu-se para levá-la
para casa. Ao lado de um aveal, ele a derrubou brutalmente. Ela teve medo e se
pôs a gritar. Ele se afastou.
Uma outra noite, na estrada de Beaumont,
ela quis ultrapassar uma grande carroça de feno que avançava lentamente; e, ao
esbarrar nas rodas, reconheceu Teodoro.
Ele a abordou com um ar tranquilo,
dizendo que precisava perdoar tudo, pois era “culpa da bebida”.
Ela não soube o que responder e teve
vontade de fugir.
Logo em seguida, ele falou das colheitas
e das pessoas importantes da comuna, pois seu pai tinha deixado Colleville
pelas terras de Écots, de modo que, agora, eram vizinhos.
— Ah! — disse ela.
Acrescentou que desejavam casá-lo. Porém
não estava apressado e aguardava uma mulher do seu agrado. Ela abaixou a
cabeça. Então, ele lhe perguntou se pensava em casamento. Ela respondeu,
sorrindo, que não era bom debochar.
— Mas, não, eu lhe juro! — e, com o
braço esquerdo ele lhe enlaçou a cintura.
Ela caminhava amparada pelo seu abraço;
diminuíram o passo. O vento estava suave, as estrelas brilhavam, a enorme
carroça de feno balançava diante deles; e os quatro cavalos arrastando os
passos, levantavam poeira. Em seguida sem comando, viraram à direita. Ele a
beijou ainda uma vez. Ela desapareceu na penumbra.
Teodoro, na semana seguinte, conseguiu
marcar encontros com ela.
Viam-se no fundo dos pátios, atrás de um
muro, sob uma árvore isolada. Ela não era inocente à maneira das moças finas —
os animais haviam-na instruído; — mas a razão e o instinto de honra
impediram-na de se entregar. Essa resistência exasperou o amor de Teodoro, de
modo que para satisfazê-lo (ou ingenuamente talvez) ele lhe propôs casamento.
Ela hesitava em acreditar. Ele fez grandes juras.
Logo em seguida, confessou-lhe algo
desagradável: seus pais, no ano anterior, haviam pago a um homem para se
alistar em seu lugar; contudo, cedo ou tarde, poderiam chamá-lo; a ideia do
recrutamento assustava-o. Essa covardia foi para Felicidade uma prova de afeto;
seu sentimento por ele redobrou. Ela escapava de noite, e uma vez juntos,
Teodoro torturava-a com suas inquietudes e insistências.
Enfim, Teodoro anunciou que ele mesmo
iria à administração para obter informações e as traria no domingo seguinte, entre
onze horas e meia-noite.
Chegado o momento, ela correu ao
encontro de seu amado.
Em seu lugar, encontrou um de seus
amigos.
Este lhe disse que não mais deveria
revê-lo. Para se livrar do alistamento, Teodoro havia-se casado com uma mulher
velha e muito rica, sra. Lehoussais, de Toucques.
Foi uma crise de desgosto. Ela se atirou
ao chão, gritou, clamou pelo bom Deus, e gemeu sozinha no campo até o sol se
levantar. Depois, retornou à propriedade, declarou sua intenção de ir embora;
e, no final do mês, tendo recebido suas contas, reuniu seus poucos pertences em
uma trouxa e foi para Pont-l’Évêque.
Diante de um albergue, interpelou uma
burguesa com capelina de viúva, que justamente procurava por uma cozinheira. A
jovem não sabia grande coisa, mas parecia ter tanta boa vontade e tão poucas
exigências, que a sra. Aubain acabou por dizer:
— Está bem, eu a admito!
Felicidade, quinze minutos depois,
estava instalada na casa dela.
No começo, conviveu com uma espécie de
estremecimento que lhe causavam “o estilo da casa” e a lembrança do “senhor”,
pairando sobre tudo! Paulo e Virgínia, aquele com sete anos, esta com apenas
quatro, pareciam-lhe formados de uma matéria preciosa; ela os carregava nas
suas costas como se fosse um cavalo, e a sra. Aubain proibiu-lhe de beijá-los a
cada minuto, o que a mortificava. No entanto estava feliz. A suavidade do
ambiente tinha dissolvido sua tristeza.
Todas as quintas-feiras, frequentadores
assíduos vinham jogar uma partida de bóston. Felicidade preparava com
antecedência as cartas e os aquecedores. Eles chegavam às oito horas em ponto e
se retiravam antes de soar as onze.
Toda segunda-feira, o vendedor de
objetos usados que morava no lado de baixo da alameda esparramava pelo chão
suas tranqueiras. Depois a cidade enchia-se de um murmúrio de vozes, ao qual se
misturavam relinchos de cavalos, balidos de carneiros, grunhidos de porcos, com
o barulho seco das charretes na rua. Por volta de meio-dia, no auge da feira,
via-se surgir na soleira um velho camponês de estatura alta, com boné para
trás, nariz adunco, e que era Robelin, o arrendatário das terras de Geffosses.
Logo depois, chegava Liébard, arrendatário de Toucques, pequeno, vermelho,
obeso, usando um casaco cinza e botinas munidas de esporas.
Os dois ofereciam à proprietária
galinhas ou queijos. Felicidade invariavelmente adivinhava suas astúcias; e
eles iam embora plenos de consideração por ela.
De quando em quando, a sra. Aubain
recebia a visita do marquês de Gremanville, um tio seu, arruinado pela
devassidão, que vivia em Falaise no seu último quinhão de terra. Chegava sempre
na hora do almoço, com um cão insuportável cujas patas sujavam todos os móveis.
Apesar de seus esforços para parecer um fidalgo, chegando mesmo a tirar o
chapéu cada vez que dizia: “Meu falecido pai”, o hábito era mais forte, ele
bebia um copo após o outro e deixava escapar inconveniências. Felicidade
colocava-o para fora polidamente. “Já é o bastante, senhor de Gremanville! Até
uma outra vez!” E fechava a porta.
Ela a abria com prazer para o sr.
Bourais, antigo procurador judicial. Sua gravata branca e sua calvície, o
peitilho da camisa, ampla sobrecasaca marrom, o modo de tomar o rapé curvando o
braço, todo o seu ser produzia-lhe uma perturbação em que nos lança o
espetáculo dos homens extraordinários.
Como ele gerenciava as propriedades da
“senhora”, trancava-se com ela, durante horas, no escritório do “senhor” e
sempre temia comprometer-se, respeitava infinitamente a magistratura, tinha
pretensões de conhecer o latim.
Para instruir as crianças de um modo
agradável, deu-lhes de presente um livro de geografia em estampas. Elas
representavam diferentes cenas do mundo, antropófagos com as cabeças cobertas
de penas, um macaco aprisionando uma moça, beduínos no deserto, uma baleia
arpoada etc.
Paulo explicou essas gravuras a
Felicidade. Essa foi toda sua educação literária.
A das crianças era feita por Guyot, um
pobre-coitado, empregado da prefeitura, famoso por sua bela caligrafia, que
afiava o canivete na bota.
Quando o tempo estava bom, iam bem cedo
para as terras de Geffosses.
No pátio em declive, a casa ficava no
meio; e o mar, ao longe, surgia como uma mancha cinza.
Felicidade retirava de seu cesto fatias
de carne fria e almoçavam em uma peça contígua à leiteria. Foi a única que
restou de uma construção de lazer, agora desaparecida. O papel da parede, todo
rasgado, tremia com as correntes de ar. A sra. Aubain abaixava a cabeça,
abatida pelas lembranças; as crianças não se atreviam mais a falar. “Brinquem,
vamos!” dizia ela; elas saíam correndo.
Paulo subia no celeiro, apanhava
pássaros, fazia ricochetes sobre as poças, ou batia com um bastão os largos barris
que ressoavam como tambores.
Virgínia dava comida aos coelhos, corria
para colher florezinhas azuis, e a rapidez de suas pernas descobria as pequenas
calças bordadas.
Numa noite de outono, voltaram pelas
pastagens.
A lua, em quarto crescente, iluminava
uma parte do céu e uma neblina flutuava como um véu sobre as sinuosidades do
rio Toucques. Alguns bois, deitados na relva, olhavam tranquilamente passarem
essas quatro pes-soas. No terceiro pasto cercado, alguns se levantaram,
puseram-se, em seguida, em círculo diante delas.
— Não tenham medo! — disse Felicidade e,
murmurando uma espécie de lamento, acariciou o dorso do animal que se
encontrava mais próximo; ele fez meia-volta, os outros o imitaram. Porém,
quando atravessaram o pasto seguinte, um mugido medonho soou. Era um touro que
a neblina escondia. Ele avançou em direção às duas mulheres. A sra. Aubain ia
correr.
— Não! Não! Mais devagar!
Elas apertaram o passo, contudo, e
ouviam por trás uma respiração forte que se aproximava. Seus tamancos, como martelos,
batiam na relva da campina; e agora ele galopava! Felicidade virou-se; com as
duas mãos arrancava placas de terra e jogava-lhe nos olhos. Ele abaixava o
focinho, sacudia os chifres e tremia de furor, mugindo horrivelmente. A sra.
Aubain, no fim do pasto, com as duas crianças, procurava, perdida, como
atravessar a cerca alta. Felicidade recuava sempre diante do touro e lançava
continuamente torrões de relva que o cegavam, enquanto gritava:
— Corram! Corram!
A sra. Aubain desceu a vala, empurrou
Virgínia, Paulo em seguida; caiu muitas vezes tentando subir o talude, e, à
força de muita de coragem, conseguiu fazê-lo.
O touro tinha encurralado Felicidade
contra uma cerca; sua baba jorrava no rosto dela, um segundo mais ele a
estriparia. Ela teve tempo de deslizar entre duas barras da cerca, e o grande
animal, surpreso, parou.
Esse acontecimento, durante muitos anos,
foi assunto de conversa em Pont-l’Évêque. Felicidade não tirou nenhuma vantagem
disso, duvidando até mesmo de que tivesse feito algo de heroico.
Virgínia sozinha ocupava todo o seu
tempo — porque teve, após o seu pavor, uma afecção nervosa e o doutor Poupart
aconselhou banhos de mar de Trouville.
Naquele tempo, não se tomavam banhos de
mar. A sra. Aubain informou-se, consultou Bourais, fez preparativos como se
fosse fazer uma longa viagem.
Seus pertences partiram na véspera, na
charrete de Liébard. No dia seguinte, ele levou dois cavalos; um tinha uma sela
para mulher, munida de um encosto de veludo; na garupa do segundo, um manto
enrolado formava uma espécie de assento. A sra. Aubain sentou-se atrás dele.
Felicidade encarregou-se de Virgínia, e
Paulo montou o burro do sr. Lechaptois, emprestado com a condição de se ter
muito cuidado com ele.
A estrada era tão ruim que seus oitos
quilômetros exigiram duas horas. Os cavalos enterravam até as quartelas na lama
e, para sair, faziam bruscos movimentos de ancas; ou, então, apoiavam-se nos
sulcos na estrada; outras vezes, era-lhes preciso pular. A égua de Liébard, em
certos lugares, parava de repente. Ele esperava pacientemente que ela se
pusesse em marcha; e falava de pessoas cujas propriedades margeavam a estrada,
acrescentando a suas histórias reflexões morais. Assim, no meio de Toucques,
quando passaram sob umas janelas rodeadas de capuchinhas, ele disse, levantando
os ombros:
— Aí está uma, a sra. Lehoussais, que em
vez de aceitar um jovem rapaz...
Felicidade não ouviu o resto; os cavalos
trotavam, o burro galopava; todos entraram por um caminho estreito, uma
porteira se abriu, dois garotos apareceram, e desceram em frente da purina, na
soleira da porta.
A velha Liébard, vendo sua patroa,
prodigalizou demonstrações de alegria. Serviu-lhe um almoço com lombo de boi,
rabada, chouriço, um fricassê de frango, sidra espumante, uma torta de compotas
e ameixas embebidas em aguardente, tudo regado com cortesias à senhora que
parecia cheia de saúde, e à senhorita que se tinha tornado “maravilhosa”, ao
sr. Paulo excepcionalmente “gordo”, sem esquecer seus avós falecidos que os
Liébard tinham conhecido, pois estavam a serviço da família havia muitas
gerações. As terras tinham, como eles, caráter de antiguidade. As vigotas do
teto estavam corroídas, as paredes, negras de fumaça, os ladrilhos cinza de
poeira. Um aparador de carvalho mantinha todos os tipos de utensílios, jarras,
pratos, tigelas de estanho, armadilhas de lobo, tesouras para a tosquia de
carneiros; uma enorme seringa provocou risos nas crianças. Não havia ne-nhuma
macieira nos três pátios que não tivesse cogumelos em sua base ou, em seus
galhos, um tufo de visgo. O vento derrubara várias delas. Voltaram a brotar
pelo meio; e todas se curvavam com a quantidade de maçãs. Os telhados de palha,
como veludos castanhos de diferentes espessuras, resistiam aos mais fortes
vendavais. Entretanto a cocheira caía em ruínas. A sra. Aubain disse que iria
partir e mandou selar os animais.
Levaram ainda meia hora antes de chegar
a Trouville. O pequeno grupo teve que apear para passar as Écores, tratava-se
de uma falésia que pendia sobre os barcos; e três minutos mais tarde, no fim do
cais, entraram no pátio do Agneau d’or, na casa da velha David.
Virgínia, desde os primeiros dias,
sentiu-se um pouco mais forte, resultado da mudança de ares e da ação dos
banhos. Ela os tomava de camisa, por não ter roupa apropriada; e sua empregada
a vestia em uma cabana de aduaneiro que servia aos banhistas.
À tarde, ia-se com o burro para além de
Roches-Noires, ao lado de Hennequeville. O caminho, no começo, subia entre
terrenos com vales como o gramado de um parque depois, chegava a um planalto
onde alternavam as pastagens e as plantações. À beira do caminho, no amontoado
de espinheiros, azevinhos erguiam-se; aqui e acolá, havia grandes árvores
mortas que faziam ziguezagues com seu galhos no ar azul.
Quase sempre, eles repousavam em um
campo, tendo Deauville à esquerda, o Havre à direita e, em frente, o mar
aberto. Ele brilhava sob o sol, liso como um espelho tão calmo que mal se
escutava seu murmúrio; pardais escondidos chilreavam, e a imensa abóbada
celeste recobria tudo. A sra. Aubain, sentada, trabalhava em sua costura;
Virgínia, próxima a ela, trançava juncos; Felicidade arrancava flores de
lavanda; Paulo, que se entediava, queria ir embora.
Outras vezes, tendo passado de barco por
Toucques eles procuravam conchas. A maré baixa deixava à mostra ouriços-do-mar,
moluscos, medusas; as crianças corriam para pegar os flocos de espuma que o
vento carregava. As ondas adormecidas, quebrando na areia, desenrolavam-se ao
longo da praia; esta se estendia a perder de vista, mas, do lado da terra,
tinha como limite as dunas que a separavam do Marais, ampla pradaria em forma
de hipódromo. Quando retornavam por aí, Trouville, ao fundo sobre o penhasco da
encosta, a cada passo, aumentava, e com todas suas casas desiguais parecia
desabrochar-se em uma alegre desordem.
Nos dias de muito calor, eles não saíam
do quarto. A ofuscante claridade do exterior imprimia faixas de luz entre as
lâminas das persianas. Nenhum ruído no vilarejo. Embaixo, na calçada, ninguém.
Esse silêncio espalhado aumentava a tranquilidade das coisas. Ao longe, os
martelos dos calafates batiam nas carenas, e uma brisa densa trazia o cheiro do
piche.
O principal divertimento era o regresso
da barca. Assim que ultrapassavam as boias, eles começavam a bordejar. As velas
dos mastros vinham dois terços arriadas; e, com a mezena cheia como um balão,
eles avançavam, deslizavam no marulho das ondas, até o meio do porto, onde, de
repente, lançavam a âncora. Em seguida, o barco se colocava junto ao cais. Os
marujos jogavam por cima da borda peixes ainda palpitantes, uma fila de
charretes os aguardava e mulheres com gorros de algodão corriam para pegar as
cestas e abraçar seus homens.
Uma delas, um dia, abordou Felicidade,
que pouco tempo após entrou no quarto, toda feliz. Havia reencontrado uma de
suas irmãs; e Nastácia Barette, mulher de Leroux, apareceu, com um bebê no
colo, segurando à mão direita uma outra criança, e tendo à sua esquerda um pequeno
grumete com os punhos nas ancas e a boina até as orelhas.
Ao cabo de quinze minutos, a sra. Aubain
dispensou-a.
Reencontravam-se sempre nos arredores da
cozinha ou nos passeios que faziam. O marido nunca aparecia.
Felicidade afeiçoou-se por eles. Ela lhes
deu um cobertor, camisas, um fogão; evidentemente, eles a exploravam. Essa
fraqueza irritava a sra. Aubain, que, aliás, não gostava das familiaridades do
sobrinho, porque ele tratava seu filho por “você”; e, como Virgínia estivesse
tossindo e como o tempo tivesse mudado, retornou a Pont-l’Évêque.
O sr. Bourais orientou-a na escolha de
um colégio. O de Caen parecia ser o melhor. Paulo foi enviado para lá; e
despediu-se valentemente, satisfeito por ir viver em uma casa onde teria
amigos.
A sra. Aubain conformou-se com o
afastamento do filho, porque era indispensável. Virgínia pensava nisso cada vez
menos. Felicidade, sentia falta da balbúrdia que ele fazia. Mas uma ocupação
veio distraí-la; depois do Natal, ela levava todos os dias a menina ao
catecismo.
III
Uma vez feita, à porta, uma genuflexão,
ela avançava sob a alta nave entre as duas fileiras de cadeiras, abria o banco
da sra. Aubain, sentava-se e deixava os olhos vagarem à sua volta.
Os rapazes à direita, as moças à
esquerda ocupavam a estala do coro; o pároco permanecia de pé perto da estante
do coro; em um vitral da abside, o Espírito Santo se elevava sobre a Virgem; um
outro mostrava-a de joelhos diante do Menino Jesus e, atrás do tabernáculo, um
grupo em madeira representava São Miguel subjugando o dragão.
De início, o padre fez um resumo da
História Sagrada. Ela acreditava ver o paraíso, o dilúvio, a torre de Babel, as
cidades completamente em chamas, pessoas que morriam, ídolos derrubados; e
guardava desse assombro o respeito pelo Altíssimo e o temor de sua cólera.
Depois, chorou ao ouvir a Paixão. Por que o haviam crucificado, ele que amava
as crianças, alimentava as multidões, curava os cegos e quisera, por bondade,
nascer entre os pobres, sobre o esterco de um estábulo? A semeadura, a
colheita, o lagar, todas essas coisas familiares de que fala o Evangelho,
encontravam-se em sua vida; a passagem de Deus as havia santificado; e ela
sentia mais afeto pelos cordeiros por amor ao Cordeiro, e pelas pombas, por
causa do Espírito Santo.
Era-lhe difícil imaginar sua pessoa; já
que não era apenas uma ave, mas ainda um fogo e, outras vezes, um sopro. Talvez
seja sua luz que paira à noite sobre a margem dos pântanos, sua respiração que
empurra as nuvens, sua voz que torna os sinos harmoniosos; e ela se estendia em
uma adoração, gozando o frescor das paredes e a tranquilidade da igreja.
Quanto aos dogmas, não compreendia
absolutamente nada, nem mesmo se esforçava para compreendê-los. O padre
discorria, as crianças recitavam, ela acabava por adormecer; e acordava de
repente, quando os outros, ao saírem, faziam soar os tamancos sobre o piso.
Foi dessa maneira, de tanto ouvi-lo, que
aprendeu o catecismo, uma vez que sua educação religiosa tinha sido
negligenciada na juventude; e desde aquele momento, imitava todas as práticas
de Virgínia, jejuando como ela, confessando-se com ela. Para a festa de Corpos
Christi fizeram juntas um andor.
A primeira comunhão atormentava-a por
antecipação. Preocupou-se com os sapatos, o terço, o livro, as luvas. Com que
tremor não ajudou a mãe a vesti-la!
Durante toda a missa, sentiu uma
angústia. O Bourais escondia-lhe um lado do coro; mas logo à frente o bando de
virgens usando coroas brancas sobre os véus abaixados formavam como que um
campo de neve; e reconhecia de longe a menina querida pelo pescoço fino e a
atitude recolhida. O sino tocou. As cabeças se curvaram; fez-se silêncio. Ao
som do órgão, os cantores e a multidão entoaram o Agnus Dei; então começou o
desfile dos meninos; e, depois deles, as meninas se levantaram. Passo a passo e
de mãos juntas andavam em direção ao altar todo iluminado, ajoelhavam-se no primeiro
degrau, recebiam sucessivamente a hóstia e, na mesma ordem, voltavam aos seus
genuflexórios. Quando foi a vez de Virgínia, Felicidade debruçou-se para vê-la
e, com a imaginação dos verdadeiros afetos, parecia ser ela mesma aquela
criança; aquele rosto se tornava seu, aquele vestido a vestia, aquele coração
batia em seu peito; no momento de abrir a boca, fechando as pálpebras, estava a
ponto de desmaiar.
No dia seguinte, logo cedo,
apresentou-se na sacristia para que o padre lhe desse a comunhão. Recebeu-a
devotamente, mas não experimentou as mesmas delícias. A sra. Aubain queria
tornar sua filha uma pessoa perfeita e, como Guyot não pudesse lhe ensinar
inglês e tampouco música, resolveu colocá-la em um pensionato nas Ursulinas de
Honfleur.
A criança não fez nenhuma objeção.
Felicidade suspirava, julgando a senhora insensível. Depois considerou que
talvez a sua patroa tivesse razão. Todas essas coisas ultrapassavam sua
competência.
Um dia, afinal, uma velha traquitana
parou em frente à porta e dela desceu uma religiosa que vinha buscar a
senhorita. Felicidade pôs a bagagem no carro, fez recomendações ao cocheiro e
colocou no baú seis potes de doces e uma dúzia de peras com um ramalhete de
violetas.
Virgínia, no último momento, foi tomada
por um grande choro; abraçava a mãe que a beijava no rosto, repetindo:
— Vamos! Coragem! Coragem!
O degrau foi levantado e o carro partiu.
Então, a sra. Aubain teve um
desfalecimento e à noite todos os amigos — o casal Lormeau, a sra. Lechaptois,
as senhoritas Rochefeuille, o sr. de Houppeville e Bourais — apareceram para
consolá-la.
De início, a privação de sua filha foi
muito dolorosa. Mas três vezes por semana recebia uma carta, nos demais dias
escrevia-lhe, passeava no quintal, lia um pouco e, dessa forma, preenchia o
vazio das horas.
De manhã, por força do hábito,
Felicidade entrava no quarto de Virgínia e olhava as paredes. Sentia falta de
pentear os seus cabelos, amarrar-lhe as botinas, colocá-la na cama, — e de ver
continuamente seu delicado rosto, de segurá-la pela mão quando saíam juntas. Em
sua ociosidade, tentou fazer rendas. Os dedos pesados demais rompiam os fios;
não ouvia nada, perdera o sono, segundo sua palavra, estava “minada”.
Para “se distrair”, pediu a permissão
para receber seu sobrinho Vítor.
Ele chegava aos domingos após a missa,
com as faces rosadas, o peito nu e cheirando aos campos que atravessara.
Imediatamente ela botava a mesa. Almoçavam um diante do outro e, comendo ela o
menos possível para evitar as despesas, empanturrava-o de tal maneira que ele
acabava por adormecer. Ao primeiro toque das vésperas, ela o acordava, escovava
suas calças, apertava-lhe a gravata e dirigia-se à igreja, apoiada em seu braço
com um orgulho maternal.
Seus pais sempre o encarregavam de
conseguir alguma coisa, fosse um pacote de açúcar, sabonete, aguardente, às
vezes até mesmo dinheiro. Trazia suas roupas velhas para remendar; e ela
aceitava esse trabalho, feliz por haver uma oportunidade que o forçasse a
voltar.
No mês de agosto, seu pai enviou-o à
marinha.
Era época de férias. A chegada das
crianças consolou-a. Mas Paulo tornara-se caprichoso e Virgínia não tinha mais
idade para ser tratada por “você”, o que colocava um constrangimento, uma
barreira entre elas.
Vítor foi sucessivamente a Morlaix,
Dunkerque e Brighton; no regresso de cada viagem ele lhe trazia um presente. Da
primeira vez, foi uma caixa de conchas; da segunda, uma xícara de café; da
terceira, um grande boneco de pão de mel. Estava tornando-se belo, era magro,
tinha um bigodinho, olhos sãos e francos e um pequeno chapéu de couro, que
usava para trás como um piloto. Divertia-a contando histórias repletas de
termos de marinheiro.
Em uma segunda-feira, 14 de julho de
1819 (ela não esqueceu a data), Vítor anunciou que havia sido recrutado para
uma longa viagem e que dali a duas noites, com o navio de Honfleur, iria
juntar-se à galé, que deveria partir do porto do Havre em breve. Ele talvez
ficasse fora por dois anos.
A perspectiva de tal ausência deixou
Felicidade desolada; e, para ainda lhe dizer adeus, na quarta-feira à noite,
após o jantar da senhora, vestiu as galochas e percorreu as quatro léguas que
separavam Pont-l’Évêque de Honfleur.
Chegando diante do Calvário, em vez de
pegar a esquerda, pegou a direita, perdeu-se nos canteiros de obras, voltou
para trás; as pessoas que abordava mandavam-na apressar-se. Ela deu a volta na
doca repleta de navios, batia nas amarras; depois o terreno se inclinou, as
luzes se entrecruzaram e ela acreditou estar louca, avistando cavalos no céu.
À margem do cais, outros relinchavam
assustados com o mar. Uma talha, que os levantava, desceu-os no barco onde os
viajantes se acotovelavam entre os barris de sidra, os cestos de queijo, os
sacos de grãos; ouvia-se o barulho das galinhas, o capitão blasfemava e um
grumete permanecia apoiado ao turco da embarcação, indiferente a tudo aquilo.
Felicidade, que não o reconhecera, gritou:
— Vítor!
Ele levantou a cabeça; ela avançou
quando, de repente, retiraram a escada.
O navio, que mulheres cantando puxavam
pelas cordas, deixou o porto. A carcaça estalava, as ondas pesadas fustigavam a
proa. A vela virara, não se via mais ninguém; e, sobre o mar prateado pela lua,
o navio deixou uma mancha negra que se ia empalidecendo, embrenhou-se nas
águas, desapareceu.
— Felicidade, ao passar perto do
Calvário, quis recomendar a Deus o que mais amava; e rezou muito tempo de pé,
com as faces banhadas em lágrimas, os olhos em direção às nuvens. A cidade
dormia, os aduaneiros passeavam; e a água caía sem parar pelos buracos da
eclusa com um barulho de torrente. Soaram duas horas.
O locutório não abriria antes do
amanhecer. Um atraso, certamente, deixaria a senhora contrariada e, apesar do
desejo de beijar a outra criança, ela voltou. As moças do albergue despertavam
quando ela entrou em Pont-l’Évêque.
O pobre rapaz durante meses iria então
vaguear sobre as ondas! Suas viagens precedentes não a haviam assustado. Da
Inglaterra e da Bretanha podia-se voltar; mas a América, as Colônias, as Ilhas,
aquilo ficava perdido em uma região incerta, do outro lado do mundo.
Desde então, Felicidade pensou
exclusivamente em seu sobrinho. Nos dias de sol, atormentava-se com a sede;
quando caía um temporal, temia os raios por ele. Escutando o vento que troava
na chaminé e varria as ardósias, via-o batido pela mesma tempestade, no topo de
um mastro despedaçado, com o corpo todo para trás, sob um lençol e espuma; ou
então — lembranças do livro de geografia estampas — ele era devorado pelos
selvagens, aprisionado pelos macacos em uma floresta, morria ao longo de uma
praia deserta. E jamais falou de suas inquietudes.
A sra. Aubain tinha outras pela filha.
As freiras achavam que ela era afetuosa,
mas delicada. A mínima emoção deixava-a nervosa. Era preciso largar o piano.
A mãe exigia do convento uma
correspondência regular. Numa manhã em que o carteiro não viera, impacientou-se
e andava pela sala, da poltrona até a janela. Era realmente extraordinário!
quatro dias, sem notícias!
Para que ela se consolasse com o
exemplo, Felicidade disse-lhe:
— E eu, senhora, já faz seis meses que
não recebo nada!...
— Mas de quem?...
A criada replicou suavemente:
— Mas ... de meu sobrinho!
— Ah! seu sobrinho! — E, dando de
ombros, a sra. Aubain retomou seu passo, o que queria dizer: “Eu nem penso
nele!... Além disso, pouco me importa! Um grumete, um miserável, grande
coisa!... Enquanto que minha filha... Imagine só!...
Felicidade, embora crescida em meio à
crueldade, indignou-se com a senhora, depois esqueceu.
Parecia-lhe fácil perder a cabeça em se
tratando da menina.
As duas crianças tinham uma importância
igual; um lugar em seu coração as unia e seus destinos deviam ser os mesmos.
O farmacêutico contou-lhe que o barco de
Vítor chegara a Havana. Lera essa informação em uma gazeta.
Por conta dos charutos, ela imaginava
Havana como um país onde não se fazia outra coisa senão fumar, e Vítor
circulava entre os negros em uma nuvem de tabaco. Podia-se “em caso de
necessidade” voltar de lá por terra? A que distância ficava de Pont-l’Évêque?
Para sabê-lo, interrogou o sr. Bourais.
Ele pegou o atlas, depois começou
explicações sobre longitudes; e estampava no rosto um grande sorriso pedante
diante do pasmo de Felicidade. Por fim, com sua lapiseira, indicou nos recortes
de uma mancha oval um ponto negro, imperceptível, acrescentando:
— Aqui está.
Ela se debruçou sobre o mapa; aquela
malha de linhas coloridas cansava a vista, sem lhe ensinar coisa alguma; e a
Bourais, o qual insistia que lhe dissesse o que a perturbava, pediu que lhe
mostrasse a casa onde morava Vítor.
Bourais levantou os braços, espirrou,
riu a valer; tamanha candura excitava sua alegria; e Felicidade não compreendia
o motivo, — ela que esperava talvez ver até o retrato do sobrinho, de tal modo
sua inteligência era limitada!
Foi após quinze dias que Liébard, na
hora do mercado, como de costume, entrou na cozinha e entregou-lhe uma carta
enviada pelo cunhado. Uma vez que nenhum dos dois sabia ler, ela recorreu à
patroa.
A sra. Aubain, que contava as malhas de
um tricô, colocou-o de lado, deslacrou a carta, estremeceu e, com uma voz
baixa, um olhar profundo:
— É uma desgraça... que lhe é anunciada.
Seu sobrinho...
Morrera. Não estava escrito mais nada.
Felicidade caiu sobre uma cadeira,
apoiando a cabeça na parede e fechou as pálpebras, que, de repente, tornaram-se
rosadas. Depois, com a fronte baixa, as mãos caídas, o olhar fixo, repetia em
intervalos:
— Pobre menino! Pobre menino!
Liébard via-a soltando suspiros. A sra.
Aubain tremia um pouco.
Ela lhe propôs ir ver a irmã em
Trouville.
Felicidade respondeu, com um gesto, que
não era preciso.
Fez-se silêncio. Liébard, homem simples,
julgou conveniente se retirar.
Então ela disse:
— Para eles, isso não significou nada!
Sua cabeça baixou; e maquinalmente ela
erguia, de tempos em tempos, as longas agulhas sobre a mesa de costura.
Algumas mulheres passaram no pátio com
uma padiola de onde gotejava a roupa.
Vendo-as pela janela, lembrou-se da
roupa lavada; tendo-a deixado de molho no dia anterior, precisava hoje
enxaguá-la; e saiu do aposento.
A tábua de bater roupa e a tina estavam
nos limites do Toucques. Jogou sobre o talude uma pilha de camisas, arregaçou
as mangas, pegou a tábua de bater; e os fortes golpes que dava eram ouvidos nos
outros quintais ao lado. Os campos estavam vazios, o vento agitava o riacho; ao
fundo, a relva alta se inclinava sobre ele como cabeleiras de cadáveres
flutuando na água. Reteve sua dor, até a noite foi muito corajosa; mas, em seu
quarto, jogou-se de ventre sobre o colchão, com o rosto no travesseiro e os
dois punhos contra as têmporas.
Muito depois, pelo próprio capitão de
Vítor, conheceu as circunstâncias de seu fim.
Haviam-no sangrado demais no hospital,
por causa da febre amarela. Quatro médicos ocuparam-se dele ao mesmo tempo.
Morreu imediatamente e o médico chefe dissera:
— Bem! Mais um!
Os pais sempre o tinham tratado com
crueldade. Preferiu não os rever; e eles não tentaram nenhuma aproximação, por
esquecimento ou por endurecimento dos miseráveis.
Virgínia enfraquecia.
Sufocações, tosse, uma febre contínua e
marcas na face revelavam uma enfermidade profunda. O dr. Poupart aconselhara
uma estada na Provence. A sra. Aubain decidiu-se e teria imediatamente trazido
sua filha para casa, se não fosse pelo clima de Pont-l’Évêque.
Fez um trato com um dono de carros que a
levava ao convento todas as terças-feiras. Há no jardim um terraço de onde se
descobre o Sena. Ali Virgínia passeava de braços dados com ela sobre as folhas
caídas das videiras. Às vezes o sol atravessando as nuvens forçava-a a piscar,
en-quanto olhava as velas ao longe e todo o horizonte, desde o castelo de
Tancarville até o farol do Havre. Em seguida repousavam sob o caramanchão. Sua
mãe providenciara um pequeno barril de excelente vinho de Málaga; e rindo com a
idéia de ficar levemente embriagada, bebia dois dedos, não mais.
Recobrou forças. O outono passou
suavemente. Felicidade tranquilizava a sra. Aubain. Mas, certa noite, quando
fora aos arredores fazer compras, encontrou à porta o cabriolé do sr. Poupart;
e ele estava no vestíbulo. A sra. Aubain amarrava o chapéu.
— Dê-me meu aquecedor, minha bolsa, minhas
luvas. Ande, mais rápido!
Virgínia tinha uma fluxão do peito.
Talvez fosse grave.
— Ainda não! — disse o médico; e ambos
subiram no carro, sob os flocos de neve que turbilhavam. A noite estava por
chegar. Fazia muito frio.
Felicidade precipitou-se para a igreja
para acender uma vela. Depois correu atrás do cabriolé, que alcançou uma hora
mais tarde, saltou ligeiramente por trás, segurando-se nas barras, quando lhe
veio um pensamento: “O pátio não estava fechado! e se entrassem ladrões?” E ela
desceu.
No dia seguinte, logo de madrugada,
apareceu na casa do médico. Ele tinha chegado e saído novamente para o campo.
Depois ela permaneceu no albergue, acreditando que algum desconhecido lhe
entregaria uma carta. Por fim, ao amanhecer, pegou a diligência de Lisieux.
O convento encontrava-se no fim de uma
ruela íngreme. Aproximadamente no meio, ela ouviu sons estranhos, um toque de
finados. “É para outra pessoa”, pensou ela; e Felicidade puxou violentamente a
aldrava.
Ao cabo de alguns minutos, chinelos
arrastaram-se, a porta entreabriu-se e uma religiosa apareceu.
A freira com um ar de compunção disse
que “ela acabara de falecer”. Ao mesmo tempo o sino fúnebre de São Leonardo
tocou.
Felicidade chegou ao segundo andar.
Já na soleira do quarto, viu Virgínia
estendida de costas, com as mãos juntas, a boca aberta e a cabeça para trás sob
uma cruz negra que se inclinava sobre ela, entre as cortinas imóveis, menos
pálidas que seu rosto. A sra. Aubain, aos pés do leito que abraçava, soluçava
de agonia. A madre superiora estava de pé à direita: Três candelabros sobre a
cômoda faziam manchas vermelhas e a névoa esbranquiçava as janelas. Algumas
religiosas retiraram a sra. Aubain.
Durante duas noites, Felicidade não
deixou a morta. Repetia as mesmas preces, aspergia água benta sobre os lençóis,
voltava a sentar-se e contemplava-a. Ao final da primeira noite, notou que o
rosto havia amarelado, os lábios azulado, o nariz afinava-se, os olhos
afundavam. Beijou-os diversas vezes e não teria experimentado nenhuma imensa
surpresa se Virgínia os houvesse reaberto; para semelhantes almas o
sobrenatural é muito simples. Fez sua toalete, envolveu-a no lençol, desceu-a
para o esquife, colocou-lhe uma coroa, estendeu seus cabelos. Eram louros e de
extraordinário comprimento para sua idade. Felicidade cortou uma grande mecha,
cuja metade deixou deslizar dentro do peito, decidida a jamais dela se separar.
O corpo foi levado a Pont-l’Évêque,
seguindo as intenções da sra. Aubain, que seguia o féretro em um carro fechado.
Após a missa foram necessárias ainda
quatro horas para alcançar o cemitério. Paulo andava à frente e soluçava. O sr.
Bourais vinha atrás, depois os principais habitantes, as mulheres cobertas de
mantas negras e Felicidade. Sonhava com seu sobrinho e por não haver podido lhe
render suas honrarias, sentia um acréscimo em sua tristeza, como se o
estivessem enterrando com a outra.
O desespero da sra. Aubain foi
ilimitado.
Primeiro, revoltou-se contra Deus,
julgando injusto de sua parte ter levado sua filha, — ela que jamais fizera mal
algum e cuja consciência era tão pura! Mas não! ela deveria tê-la levado ao
Sul. Outros médicos a teriam salvado! Acusava-se, queria juntar-se a ela,
gritava de angústia no meio dos sonhos. Um deles, sobretudo, obcecava-a. Seu
marido, vestido como um marinheiro, voltava de uma longa viagem e dizia-lhe
chorando, que havia recebido a ordem de levar Virgínia. Então, planejaram
juntos de encontrar um esconderijo em alguma parte.
Certa vez, voltou do quintal,
transtornada. Havia pouco (ela mostrava o lugar) o pai e a filha tinham-lhe
aparecido um após o outro e não faziam nada; observavam-na.
Durante vários meses, permaneceu no
quarto, inerte. Felicidade reprimia-a delicadamente; era preciso conservar-se
pelo filho e pela outra, em memória “dela”.
— Ela? — repetia a sra. Aubain, como que
acordando. — Ah! sim!... sim!... Você não esquece mesmo! — Alusão ao cemitério
que lhe haviam proibido escrupulosamente.
Felicidade lá ia todos os dias.
Às quatro horas precisamente, passava ao
longo das casas, subia a encosta, abria a grade e chegava à tumba de Virgínia.
Era uma pequena coluna de mármore rosa com uma laje por baixo e correntes em
volta circundando um pequeno jardim. Os canteiros desapareciam sob uma
cobertura de flores. Regava as folhas, renovava a areia, ajoelhava-se para
melhor trabalhar a terra. A sra. Aubain, quando podia vir, sentia um alívio,
uma espécie de consolo.
Depois os anos passaram, todos iguais e sem outros episódios senão a volta das grandes festas: Páscoa, Assunção, Todos os Santos. Alguns acontecimentos no interior da casa marcaram data, a que se reportavam mais tarde. Assim, em 1825, dois vidraceiros pintaram o vestíbulo; em 1827 uma parte do teto, ao cair no pátio, quase matou um homem. No verão de 1828, foi a vez de a senhora oferecer o pão bento; Bourais, nessa época, ausentou-se misteriosamente; e os antigos conhecidos aos poucos se foram: Guyot, Liébard, a sra. Léchaptois, Robelin, o tio Gremanville, paralítico havia tempos.
Depois os anos passaram, todos iguais e sem outros episódios senão a volta das grandes festas: Páscoa, Assunção, Todos os Santos. Alguns acontecimentos no interior da casa marcaram data, a que se reportavam mais tarde. Assim, em 1825, dois vidraceiros pintaram o vestíbulo; em 1827 uma parte do teto, ao cair no pátio, quase matou um homem. No verão de 1828, foi a vez de a senhora oferecer o pão bento; Bourais, nessa época, ausentou-se misteriosamente; e os antigos conhecidos aos poucos se foram: Guyot, Liébard, a sra. Léchaptois, Robelin, o tio Gremanville, paralítico havia tempos.
Certa noite, o condutor da mala-posta
anunciou em Pont-l’Évêque a Revolução de Julho. Um novo subprefeito, poucos
dias depois, foi nomeado: o barão de Larsonnière, ex-cônsul na América e que
tinha em casa, além da mulher, a cunhada com três senhoritas, já bem grandes.
Eram vistas na relva vestidas de blusas esvoaçantes; possuíam um negro e um
papagaio. A sra. Aubain recebeu a visita deles e não se esqueceu de fazer a
sua. Por mais longe que fosse de onde aparecessem, Felicidade corria para
avisá-la. Mas uma coisa apenas era capaz de comovê-la, as cartas de seu filho.
Ele não podia seguir nenhuma profissão,
por estar absorvido nos botequins. Ela lhe pagava as dívidas, ele fazia outras;
e os suspiros que soltava a sra. Aubain, tricotando perto da janela, chegavam
até Felicidade, que girava a roca na cozinha.
Elas passeavam juntas ao longo da
fileira de árvores e falavam sempre de Virgínia, perguntando-se se tal coisa
lhe teria agradado, em tal ocasião o que provavelmente teria dito.
Todos os seus pequenos objetos ocupavam
um armário no quarto com duas camas. A sra. Aubain os inspecionava o menos
possível. Certo dia de verão, resignou-se; e borboletas saíram voando do
armário.
Os vestidos alinhavam-se sob uma prateleira
onde havia três bonecas, arcos, uma casinha, a bacia de mãos de que se servia.
Elas retiraram igualmente os saiotes, as meias, os lenços e estenderam-nos
sobre os dois leitos antes de dobrá-los novamente. O sol iluminava aqueles
pobres objetos, fazendo aparecer as manchas e as dobras formadas pelo movimento
do corpo. O ar estava quente e azul, um melro chilreou, tudo parecia viver em
uma profunda tranquilidade. Reencontraram um pequeno chapéu de pelúcia, com
longos pelos, de cor marrom; mas estava todo comido por traças. Fixaram os
olhos uma na outra, eles se encheram de lágrimas; por fim a patroa abriu os
braços, a criada neles se jogou; e abraçaram-se, satisfazendo a dor te em um
abraço que as igualava.
Foi a primeira vez de suas vidas, pois a
sra. Aubain não era uma pessoa de natureza expansiva. Felicidade ficou-lhe
grata como por uma caridade e doravante adorava-a com uma devoção bestial e uma
veneração religiosa.
A bondade de seu coração desenvolveu-se.
Quando ouvia na rua os tambores de um
regimento em marcha colocava-se à porta com uma moringa de sidra e oferecia de
beber aos soldados.
Cuidava dos doentes de cólera. Protegia
os poloneses; e houve mesmo um que declarou querer se casar com ela. Mas eles
se desentenderam; pois certa manhã, ao voltar da igreja, encontrou-o na
cozinha, onde entrara e preparara um molho vinagrete que comia tranquilamente.
Depois dos poloneses, foi a vez do velho Colmiche, conhecido por cometer atrocidades em 93. Vivia à margem do riacho, nos escombros de uma pocilga. Os meninos observavam-no pelas fendas do muro e atiravam-lhe pedregulhos que lhe caíam sobre a enxerga, onde jazia, continuamente abalado por um catarro, com os cabelos muito longos, as pálpebras vermelhas e no braço um tumor maior que a cabeça. Ela lhe providenciou roupas, tratou de limpar aquele chiqueiro, sonhava em instalá-lo na casa do forno, sem que isso incomodasse a senhora. Quando o câncer rebentou, ela o tratava todos os dias, algumas vezes trazia-lhe um pouco de bolo, sentava-o no sol sobre um feixe de palha; e o pobre velho, babando e tremendo, agradecia-lhe com a voz apagada, temendo perdê-la, estendia as mãos assim que a via afastar-se. Ele morreu; ela encomendou uma missa para o descanso de sua alma.
Naquele dia teve uma grande felicidade:
na hora do jantar, o negro da sra. de Larsonnière apareceu segurando o papagaio
na gaiola, com o bastão, a corrente e o cadeado. Um bilhete da baronesa
anunciava à sra. Aubain que, na vez que seu marido havia sido promovido para
uma prefeitura, eles partiriam àquela noite; e ela pedia que aceitasse este
pássaro como uma lembrança e testemunho de seu respeito por ela.
Ele já ocupava há muito tempo a
imaginação de Felicidade, pois vinha da América; aquela palavra lembrava-lhe
Vítor, tanto que se informava sobre ele com o negro. Certa vez até disse:
— A senhora é que ficaria feliz em
tê-lo!
O negro repetira aquela fala à sua
patroa que, não podendo levá-lo, livrou-se dele dessa maneira.
IV
Ele se chamava Lulu. Seu corpo era
verde, as pontas das asas rosa, a fronte azul e o pescoço dourado.
Mas tinha a irritante mania de morder
seu bastão, arrancava as penas, espalhava sua sujeira, derramava a água de sua
banheira; a sra. Aubain, a quem aborrecia, deu-o para sempre para Felicidade.
Ela se ocupou a ensiná-lo; logo ele repetia:
“Belo rapaz! Às ordens, senhor! Ave Maria!” Ficava perto da porta e muitos
espantavam-se que não atendesse pelo nome de Jacquot, uma vez que todos os
papagaios se chamam Jacquot. Comparavam-no a um peru, achavam-no estúpido:
tantas punhaladas para Felicidade! Estranha obstinação de Lulu de não falar
assim que o observavam!
No entanto procurava companhia; pois aos
domingos, enquanto as senhoritas Rochefeuille, o sr. de Houppeville e novos
freqüentadores — Onfroy o boticário, senhor Varin e o capitão Mathieu — jogavam
sua partida de cartas, ele batia nos vidros com as asas e agitava-se tão
furiosamente, que era impossível ouvir qualquer coisa.
O rosto de Bourais, provavelmente,
parecia-lhe muito engraçado. Logo que o via, começava a rir com todas as
forças. Os estalos de sua voz repercutiam no pátio, o eco repetia-os, os vizinhos
colocavam-se às janelas, rindo também; e, para não ser visto pelo papagaio, o
sr. Bourais passava rente ao muro, dissimulando o perfil com o chapéu,
alcançava o riacho, depois entrava pela porta do quintal; e os olhares que
lançava ao pássaro não tinham nenhuma ternura.
Lulu recebera do empregado do açougueiro
um piparote, quando se permitira afundar a cabeça em seu cesto; e desde então
tratava sempre de beliscá-lo através da camisa. Fabu ameaçava torcer-lhe o
pescoço, se bem que não fosse cruel, apesar das tatuagens nos braços e das
grandes suíças. Pelo contrário! tinha até uma afeição pelo papagaio, querendo
mesmo, por brincadeira jovial, ensinar-lhe alguns palavrões.
Felicidade, a quem estas, maneiras
desagradavam, colocou-o na cozinha. Tirou-lhe a corrente e ele circulava pela
casa.
Quando descia as escadas, apoiava sobre os degraus a curva do bico, levantava a pata direita, depois a esquerda; e ela temia que tal ginástica lhe causasse tonturas. Ele ficou doente, não podia mais falar nem comer. Tinha sob a língua uma membrana grossa, como às vezes a tem algumas galinhas. Ela o curou arrancando essa película com suas unhas. O sr. Paulo, certo dia, teve a imprudência de soprar-lhe nas narinas a fumaça de um charuto; uma outra vez a sra. Lormeau provocou-o com a ponta de sua sombrinha, ele engoliu o aro da mesma, por fim desapareceu.
Quando descia as escadas, apoiava sobre os degraus a curva do bico, levantava a pata direita, depois a esquerda; e ela temia que tal ginástica lhe causasse tonturas. Ele ficou doente, não podia mais falar nem comer. Tinha sob a língua uma membrana grossa, como às vezes a tem algumas galinhas. Ela o curou arrancando essa película com suas unhas. O sr. Paulo, certo dia, teve a imprudência de soprar-lhe nas narinas a fumaça de um charuto; uma outra vez a sra. Lormeau provocou-o com a ponta de sua sombrinha, ele engoliu o aro da mesma, por fim desapareceu.
Ela o havia colocado sobre a relva para
refrescá-lo, ausentando-se por um minuto e, quando voltou, nada do papagaio!
Primeiro procurou-o nas moitas à beira da água e sobre os telhados, sem ouvir
sua patroa que gritava:
— Tome cuidado! Você está louca! Em
seguida verificou todos os quintais de Pont-l’Évêque; e parava os passantes.
— Não viram, por acaso, meu papagaio?
— Àqueles que não conheciam o papagaio,
dava uma descrição. De repente, acreditou distinguir detrás dos moinhos, ao
final das ladeiras, uma coisa verde que esvoaçava. Mas do alto das ladeiras,
nada! Um mascate lhe afirmou que o havia encontrado agora mesmo, em
Saint-Melaine, na loja da velha Simão. Para lá ela correu. Não entendiam o que
ela queria dizer. Por fim, voltou para casa esgotada, os chinelos aos farrapos,
com a morte na alma; e sentada no meio do banco, perto da senhora, contava
todas as suas peripécias, quando um leve peso lhe pousou sobre o ombro. Lulu! Que
diabos tinha ele feito? Talvez tivesse passeado pelos arredores!
Custou-lhe recompor-se, ou melhor, não
se recompôs jamais.
Como consequência de um resfriado, ela
pegou uma angina; pouco tempo depois, uma dor nos ouvidos. Três anos mais
tarde, ela ficou surda; e falava muito alto, mesmo na igreja. Ainda que seus
pecados pudessem, sem desonra para ela e sem inconveniência para o mundo,
espalhar-se pelos quatro cantos da diocese, o pároco julgou conveniente não
mais ouvir sua confissão na sacristia.
Zunidos ilusórios conseguiam
atormentá-la. Frequentemente sua patroa dizia:
— Meu Deus! Como você é tola!
Ela retrucava:
— Sim, senhora! — procurando alguma
coisa à sua volta.
O pequeno círculo de suas ideias
encolheu ainda mais e o badalar dos sinos, o mugido dos bois, não existiam
mais. Todos os seres funcionavam com o silêncio das almas. Um único som chegava
agora a seus ouvidos, a voz do papagaio.
Como que para distraí-la, ele reproduzia
o tique-taque do relógio, o grito agudo de um vendedor de peixes, o serrote do
marceneiro que morava em frente e, ao soar da campainha, imitava a sra. Aubain:
“Felicidade! A porta! A porta!”
Mantinham diálogos, ele recitando à
saciedade as três frases de seu repertório, e ela as respondendo com palavras
sem lógica, mas com as quais seu coração se extravasava, Lulu, em seu
isolamento, era quase um filho, um amado. Ele escalava seus dedos, mordia seus
lábios, agarrava-se a seu lenço; e quando ela se debruçava inclinando a cabeça
como as babás, as grandes asas de sua toca e as asas do papagaio tremiam
juntas.
Quando nuvens se acumulavam e trovões
estrondavam, ele dava gritos talvez se recordando das tempestades de sua
floresta natal. O cair das águas excitava seu delírio. Esvoaçava, desvairado
subia ao teto, derrubava tudo e pela janela ia agitar-se no quintal; mas
voltava rapidamente sobre um dos cães da lareira, e saltitando para secar as
plumas, mostrava ora o rabo, ora o bico.
Numa manhã do terrível inverno de 1837,
quando ela o colocara diante da lareira, por causa do frio, encontrou-o morto,
no meio da gaiola, com a cabeça para baixo e as garras nas barras de ferro. Uma
congestão, talvez, o matara? Ela acreditava ter sido um envenenamento pela
salsa; e apesar da ausência de qualquer prova, suas suspeitas recaíram sobre
Fabu. Chorou tanto, que sua patroa lhe disse:
— Bom! Mande empalhá-lo!
Pediu conselho ao farmacêutico, que
sempre fora bom com o papagaio.
Ele escreveu ao Havre. Um certo
Fellacher encarregou-se desse trabalho. Mas, como a diligência por vezes perdia
os pacotes, ela resolveu levá-lo ela mesma até Honfleur.
As macieiras sem folhas sucediam-se à
margem do caminho. Gelo cobria as valas. Cães latiam ao redor das casas e, com
as mãos sob o manto, seus pequenos tamancos pretos e a sacola, andava
apressadamente, no meio da rua.
Atravessou a floresta, passou
Haut-Chêne, chegou a volt Saint-Gatien.
Atrás dela, em uma nuvem de poeira uma
mala-posta a todo galope vinha violentamente, acelerada pela descida. Vendo
aquela mulher que nem se incomodava, o condutor ergueu-se por sobre a capota e
o cocheiro também gritou, enquanto os quatro cavalos, que não conseguia conter,
aceleravam a marcha; os dois primeiros roçaram-na; com uma sacudida nas rédeas,
ele os jogou para fora do caminho, mas furioso levantou o braço, e com toda a força
e o grande chicote acertou-lhe do ventre ao coque um tamanho golpe que ela caiu
de costas.
O primeiro gesto ao recuperar a
consciência foi abrir o cesto. Lulu não tinha nada, felizmente. Sentiu uma
queimação na face direita; as mãos, que a tocaram, estavam vermelhas. O sangue
corria.
Sentou-se sobre os pedregulhos, limpou o
rosto com o lenço, depois comeu uma côdea de pão colocada no cesto por
precaução e consolou-se de sua ferida olhando o pássaro.
Chegando ao topo de Ecquemauville, viu
as luzes de Honfleur que cintilavam na noite como um punhado de estrelas; o
mar, ao longe, estendia-se confusamente. Então uma fraqueza fê-la parar; e a
miséria de sua infância, a decepção do primeiro amor, a partida do sobrinho, a
morte de Virgínia, como o fluxo das marés, voltaram ao mesmo tempo e,
subindo-lhe pela garganta sufocavam-na.
Depois quis falar com o capitão do barco
e, sem lhe dizer o que estava enviando, fez-lhe muitas recomendações.
Fellacher ficou por muito tempo com o
papagaio. Prometia-o sempre para a semana seguinte; ao cabo de seis meses,
anunciou a remessa de um caixote; e não se falou mais naquilo. Parecia que Lulu
não voltaria jamais. “Eles o roubaram de mim!” — pensava ela.
Finalmente ele chegou, — e esplêndido,
em pé sobre um galho de árvore, que estava parafusado a um soquete de acaju,
com uma das patas no ar, a cabeça inclinada e mordendo uma noz que o empalhador
tinha dourado por amor ao grandioso.
Ela o trancou em seu quarto.
Neste lugar, onde apenas poucos podiam
entrar, havia um clima ao mesmo tempo de capela e de bazar, de tantos objetos
religiosos e coisas heteróclitas que continha.
Um grande armário dificultava a abertura
da porta. Do lado oposto da janela, dominando o quintal, um olho-de-boi dava
para o pátio; uma mesa, perto da cama de lona, continha um pote de água, dois
pentes e um cubo de sabonete azul em um pratinho lascado. Viam-se nas pare-des:
terços, medalhas, diversas Virgens, uma pia batismal talhada em uma casca de
coco; sobre a cômoda coberta com um lençol, como um altar, a caixa de conchas
que Vítor lhe havia dado; depois um regador e uma bola, cadernos, o livro de
geografia em estampas, um par de botinas; e no prego do espelho, preso pelas
fitas, o chapéu de pelúcia! Felicidade cultivava mesmo esse tipo de respeito
tão distante que guardava uma das sobrecasacas do senhor. Todas as velharias
que a sra. Aubain não queria mais, ela levava para o quarto. Assim havia flores
artificiais no canto da cômoda e o retrato do conde de Artois no vão da
lucarna.
Com uma prancheta, Lulu foi instalado em
um canto da lareira que avançava para dentro do quarto. Todas as manhãs, ao
levantar, ela o via na claridade da aurora e se lembrava então dos dias
passados e de ações insignificantes em seus menores detalhes, sem dor, com toda
a tranquilidade.
Por não se comunicar com ninguém, vivia
em um torpor de sonâmbulo. As procissões de Corpus Christi reanimavam-na. Ela
ia até os vizinhos pedir tochas e esteiras para embelezar os andores que
passavam na rua.
Na igreja, sempre contemplava o Espírito
Santo observava que nele havia algo de similar com o papagaio. A semelhança
pareceu-lhe ainda mais evidente em uma imagem de Épinal representando o batismo
de Nosso Senhor. Com as asas de púrpura e o corpo de esmeralda era realmente o
retrato de Lulu.
Tendo-o comprado pendurou-o no lugar do
conde de Artois — de maneira que, com um só olhar, via-os juntos. Associavam-se
em seu pensamento, o papagaio santificado pela relação com o Espírito Santo,
que por sua vez se tornava mais vivo a seus olhos e inteligível. O Pai para
expressar-se não deveria ter escolhido uma pomba, uma vez que esses animais não
tem voz, mas antes um dos ancestrais de Lulu. E Felicidade fazia suas preces
olhando a imagem mas, de vez em quando, virava-se um pouco em direção ao
pássaro.
Ela teve vontade de entrar para as
Filhas de Maria. A sra. Aubain dissuadiu-a.
Um acontecimento considerável sucedeu: o
casamento de Paulo.
Após ter sido primeiro escrivão de
cartório, após ter trabalhado no comércio, na alfândega, nas arrecadações e ter
mesmo começado a pleitear um emprego nas águas e reflorestamento, aos trinta e
seis anos, de repente por uma inspiração dos céus, descobriu seu caminho: o
registro! e nele mostrava tamanha habilidade que um aferidor ofereceu-lhe a
filha, prometendo-lhe proteção.
Paulo, agora homem sério, trouxe-a até a
mãe.
Ela denegriu os hábitos de
Pont-l’Évêque, agiu com ares de princesa, ofendeu Felicidade. A sra. Aubain,
assim que ela saiu, sentiu um alívio.
Na semana seguinte, souberam da morte do
sr. Bourais, na Baixa Bretanha, em um albergue. O rumor de um suicídio acabou
se confirmando; levantaram-se dúvidas quanto a sua probidade. A sra. Aubain
conferiu suas contas e não tardou a conhecer uma infinidade de falcatruas:
desvios de pagamentos, vendas de madeira dissimuladas, falsas quitações etc.
Além do mais, tinha um filho natural e “relações com uma certa pessoa de
Dozulé”.
Essas baixezas afligiram-na muito. No
mês de março de 1853, teve uma dor no peito; sua língua parecia coberta de
fumaça, as sanguessugas não acalmaram suas sufocações; e na nona noite ela
expirou tendo precisamente setenta e dois anos.
Julgavam-na mais jovem, por causa dos
cabelos castanhos, cujos bandôs envolviam o rosto macilento, marcado pela
varíola. Poucos amigos entristeceram-se por ela, de tal forma suas maneiras
eram de uma altivez que distanciava.
Felicidade chorou-a como não se costuma
chorar os patrões. Que a senhora morresse antes dela, isso lhe perturbava as
ideias, parecia-lhe contrário à ordem natural das coisas, inadmissível,
monstruoso.
Dez dias depois (o tempo de chegarem de
Besançon), os herdeiros apareceram. A nora vasculhou gavetas, escolheu alguns
móveis, vendeu os demais, depois recuperaram o registro.
A poltrona da senhora, sua mesinha
redonda, o aquecedor, as oito cadeiras, foram-se! No lugar das gravuras
desenhavam-se quadrados amarelos no meio das paredes. Eles haviam levado as
duas camas e os colchões, e dentro do armário não se via mais nenhum dos
pertences de Virgínia! Felicidade subiu os andares, ébria de tristeza.
No dia seguinte, havia sobre a porta um
cartaz; o boticário gritou-lhe aos ouvidos que a casa estava à venda.
Ela cambaleou e foi obrigada a se
sentar.
O que a desolava principalmente era ter
de abandonar seu quarto, — tão cômodo para o pobre Lulu. Envolvendo-o em um
olhar de angústia, implorava ao Espírito Santo e adquiriu o hábito idólatra de
dizer as preces ajoelhada diante do papagaio. Às vezes, o sol entrando pela
lucarna atingia seu olho de vidro, fazendo jorrar um grande raio luminoso que a
fazia entrar em êxtase.
Tinha uma renda de trezentos e oitenta
francos, legados pela patroa. A horta fornecia-lhe legumes. Quanto as
vestimentas, tinha com o que se vestir até o fim de seus dias, e economizava
luz, deitando-se logo ao crepúsculo.
Ela não saía muito, a fim de evitar a
loja do antiquário, onde estavam expostos alguns dos antigos móveis. Desde seu
atordoamento, puxava uma perna; e, como suas forças minguavam, a velha Simão,
que perdera tudo no armazém, vinha todas as manhãs cortar a lenha e bombear
água.
Seus olhos enfraqueceram-se. As
persianas não se abriam mais. Muitos anos se passaram. E a casa nem se alugava,
nem se vendia.
Com medo de que fosse mandada embora,
Felicidade não pedia por nenhum conserto. As ripas do telhado apodreciam;
durante todo um inverno a cabeceira de sua cama ficou molhada. Depois da
Páscoa, cuspiu sangue. Então a velha Simão recorreu a um médico. Felicidade
quis saber o que tinha. Mas, surda demais para ouvir, uma única palavra
chegou-lhe aos ouvidos: “pneumonia”. Era-lhe conhecida e replicou suavemente:
— Ah! Como a senhora. — achando natural
seguir a patroa.
A época dos altares aproximava-se.
O primeiro era sempre montado ao pé da
encosta, o segundo na frente do correio, o terceiro no meio da rua. Houve
disputas a respeito desse último; e os paroquianos escolheram finalmente o
pátio da sra. Aubain.
As sufocações e a febre aumentavam.
Felicidade entristecia-se por nada fazer para o altar. Ao menos, se ela pudesse
ter colocado qualquer coisa sobre ele! Então pensou no papagaio. Não era
conveniente, objetaram os vizinhos. Mas o pároco deu a permissão; ela ficou tão
feliz, que lhe pediu que aceitasse, quando falecesse, Lulu, sua única riqueza.
Da terça-feira ao sábado, na véspera de
Corpus Christi, ela tossiu com mais frequência. À noite, seu rosto estava
crispado, os lábios colavam-se às gengivas, os vômitos surgiram; e no dia
seguinte, ao amanhecer, sentindo-se muito mal, mandou chamar um padre.
Três velhas rodeavam-na durante a
extrema-unção. Depois disse que precisava falar com Fabu.
Ele chegou em trajes de domingo, pouco à
vontade naquela atmosfera lúgubre.
— Perdoe-me — disse ela com um esforço para
estender o braço — Eu acreditava que fora você quem o havia matado!
O que significavam semelhantes asneiras?
Ter suspeitado dele como um assassino, um homem como ele! e indignou-se, ia
fazer um alvoroço.
— Ela perdeu o juízo, vocês estão vendo!
Felicidade, vez ou outra, falava com as
sombras. As velhas afastaram-se. A Simone foi almoçar.
Um pouco mais tarde, pegou Lulu e,
aproximando-o de Felicidade:
— Vamos! Diga-lhe adeus!
Embora não fosse um cadáver, os vermes
devoravam-no; uma de suas asas estava quebrada, a estopa saía-lhe do ventre.
Mas, cega agora, ela o beijou na fronte e o mantinha encostado à face. A Simone
pegou-o. de volta para colocá-lo sobre o altar.
V
As pastagens exalavam o aroma do verão;
moscas zumbiam; o sol fazia brilhar o ribeirão, aquecia as ardósias. A velha
Simão, de volta ao quarto, dormia tranquilamente.
Toques de sino acordaram-na; saía-se das
vésperas. O delírio de Felicidade diminuiu. Sonhando com a procissão, ela a
via, como se a tivesse acompanhado.
Todas as crianças das escolas, os
cantores e os bombeiros andavam nas calçadas, enquanto pelo meio da rua
avançavam primeiramente: o suíço carregando a alabarda, o sacristão com uma
grande cruz, o instrutor vigiando os garotos, a religiosa inquieta com suas
meninas — três das menores, cacheadas como anjos, lançavam no ar pétalas de
rosas —, o diácono, com os braços abertos, moderando a música e dois
incensadores voltando-se a cada passo em direção ao Santo Sacramento, que o
pároco, na sua bela casula, carregava, sob um pálio de veludo vermelho vivo,
segurado por quatro membros da igreja. Uma multidão seguia atrás, entre as
toalhas brancas cobrindo o murro das casas; e chegou ao final da ladeira.
Um suor frio molhava as têmporas de
Felicidade. A Simone a enxugava com um pano, dizendo que precisaria um dia
passar por lá.
O murmúrio da multidão aumentou.
Tornou-se muito forte por um momento, distanciou-se.
Uma rajada de fuzis abalou os ladrilhos.
Eram os postilhões saudando o ostensório. Felicidade virou suas pupilas, e
disse, o mais alto que pode:
— Ele está bem? — angustiada pelo
papagaio.
Sua agonia começou. E estertores, cada
vez mais frequentes, erguiam-lhe as costas. Bolhas de espuma escorriam-lhe pelo
canto da boca, e todo seu corpo tremia.
Logo se distinguiu o ronco dos oficlides,
as vozes cristalinas das crianças, a voz grave dos homens. Tudo silenciava de
vez em quando, e a batida dos passos, amortecida pelas flores, fazia o barulho
de um rebanho sobre a relva.
O pároco surgiu no pátio. A Simone subiu
em uma cadeira para alcançar o olho-de-boi, e dessa maneira dominava o andor.
Guirlandas verdes pendiam sobre o altar,
ornado por um falbalá em ponto inglês. Havia no meio um pequeno quadro contendo
relíquias, duas laranjeiras nos cantos e, em todo o comprimento, candelabros de
prata e vasos de porcelana, de onde saíam girassóis, lírios, peônias,
dedaleiras, cachos de hortênsias. Esse amontoado de cores brilhantes descia
obliquamente, do primeiro andar até o tapete, prolongando-se sobre os
paralelepípedos; e objetos estranhos atraíam os olhares. Um açucareiro de prata
dourada tinha uma coroa de violetas, pingentes em pedras de Alençon brilhavam
sobre musgo, dois biombos chineses expunham suas paisagens. Lulu, escondido sob
as rosas, só deixava ver sua testa azul, parecida com uma placa de
lápis-lazúli.
Os membros da igreja, os cantores, as
crianças enfileiraram-se nos três lados do pátio. O padre subiu lentamente os
degraus e colocou sobre a renda seu grande sol de ouro que cintilava. Todos se
ajoelharam. Fez-se um grande silêncio. E os incensórios, balançados
vigorosamente, deslizavam em suas correntinhas.
Um vapor azul subiu no quarto de
Felicidade. Ela avançou as narinas, inalando-o com uma sensualidade mística;
depois fechou suas pálpebras. Seus lábios sorriam. Os movimentos de seu coração
diminuíram um a um, cada vez mais vagos, mais suaves, como uma fonte se esgota,
como um eco desaparece; e quando exalou seu último suspiro, ela acreditou ver,
nos céus entreabertos, um papagaio gigantesco, planando acima de sua cabeça.
Nota: Conto publicado no livro “Um
Coração Simples”, editora Paz e Terra, com tradução de Clotilde Mariano Vaz,
Daniel Vaz e Simia Katarina Rickmann.
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