O primeiro canto

O primeiro canto

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O Príncipe Feliz - Oscar Wilde




Bem no alto da cidade, numa alta coluna, erguia-se a estátua do príncipe feliz. Era todo coberto de finas folhas de ouro puro, tinha nos olhos duas safiras brilhantes, e um grande rubi vermelho reluzia no cabo de sua espada.
Na verdade era muitíssimo admirado.
- É tão belo quanto um cata-vento - observou um dos conselheiros da cidade, que desejava ganhar reputação por ter gosto artístico -; só não é muito útil - acrescentou, temendo que o povo o considerasse pouco prático, o que realmente não era.
- Por que você não pode ser como o príncipe feliz? - perguntou uma mãe ao filho que pedia a lua. - O príncipe feliz nunca chora por motivo algum.
- Fico satisfeito que haja alguém no mundo que seja realmente feliz - murmurou um homem desapontado, enquanto fitava a estátua maravilhosa.
Parece mesmo um anjo - disseram as crianças da Escola de Caridade, ao saírem da catedral em seus mantos escarlates e aventais alvos.
- Como sabem? - disse o professor de matemática-, nunca viram um anjo.
-Ah! mas nós vimos, em sonhos - responderam as crianças; e o professor de matemática franziu as sobrancelhas, com semblante muito severo, pois não aprovava que crianças sonhassem.
Uma noite, voou sobre a cidade uma pequena andorinha. Suas companheiras tinham partido para o Egito seis semanas antes, mas ela ficou pra trás porque estava apaixonada pelo mais belo junco. Ela o conheceu no princípio da primavera, enquanto voava rio abaixo atrás de uma mariposa amarela, e ficou tão atraída por aquela figura esquia, que parou pra falar-lhe.
- Poderei amá-lo? - disse a andorinha, que gostava de ir direto ao assunto, e o junco fez-lhe uma reverência. Então voou ao seu redor, tocando a água com as asas, provocando ondulações prateadas. Era sua maneira de fazer a corte, que durou o verão inteiro.
É uma relação ridícula - chilchearam as outras andorinhas -, ele não tem dinheiro, e tem parentes demais - e na verdade o rio estava bem cheio de juncos. quando veio o outono, voaram para longe.
Depois que partiram, andorinha sentiu-se solitária e começou a cansar-se de seu amado. - Ele é de pouca conversa, e temo que seja galanteador, porque está sempre flertando com a brisa. E, certamente, toda vez que a brisa soprava, o junco fazia as mais graciosas mesuras. - Reconheço que seja caseiro - continuou -, mas adoro viajar, e meu marido, consequentemente, também deveria gostar de viagens.
- Virá comigo? - disse finalmente a ele; mas o junco meneou a cabeça, tão arraigado estava a seu lar.
- Só estava gracejando comigo - disse ela. -Vou para as pirâmides. Adeus! - e se foi.
O dia todo ela voou, e de noite chegou à cidade. - Onde pernoitarei? Espero que a cidade esteja preparada para me abrigar.
Então viu a estátua sobre a alta coluna, e disse:
- Vou me acomodar ali, é um lugar muito bem localizado, com bastante ar fresco. - Assim, pousou entre os pés do príncipe feliz.
- Tenho um aposento de ouro - disse baixinho para si, olhando ao redor, e preparou-se para dormir; mas no momento em que colocava a cabeça sob a asa, uma enorme gota de água caiu sobre ela. - Que estranho! não há uma única nuvem no céu, as estrelas estão brilhando e, entanto chove. O clima no Norte da Europa é mesmo horrível. O junco gostava de chuva, mas isso era puro egoísmo dele. 
outra gota caiu.
- Qual a utilidade de uma estátua, se não serve para proteger da chuva? Tenho que procurar uma boa chaminé - disse ela, e decidiu ir embora.
Mas antes que abrisse as asas, uma terceira gota caiu, ela levantou os olhos e viu... Ah! o que ela viu?
Os olhos do príncipe feliz estavam cheios de lágrimas, e lágrimas corriam em suas faces douradas. Seu rosto era tão belo sob o luar que a pequena Andorinha encheu-se de compaixão.
- Quem é você?  disse ela.
- Sou o príncipe feliz.
Por que está chorando então? - perguntou a andorinha. - Encharcou-me completamente.
-Quando era vivo e tinha um coração humano - respondeu a estátua -, eu não sabia o que eram lágrimas, pois vivia no Palácio de Sans-Souci, onde à tristeza não é permitido entrar. Durante o dia, brincava com meus companheiros no jardim, e à noite conduzia a dança no grande salão. Em volta do jardim havia um muro muito alto, mas nunca me importei em saber o que existia além dele, pois tudo ao meu redor era tão lindo. Meus cortesões chamavam-me príncipe feliz, e feliz em verdade eu era, se o prazer é felicidade. Assim vivi e assim morri. E agora que estou morto, colocaram-me aqui tão alto que posso ver a feiura e toda a miséria de minha cidade e, embora meu coração seja de chumbo, não posso fazer outra coisa senão chorar.
 
O quê? Ele não é de ouro maciço? - disse a andorinha para si. Era muito educada para fazer comentários pessoais em voz alta.
- Longe - continuou  a estátua com sua voz baixa e musical -, muito longe numa rua estreita, há uma casinha pobre. Uma janela está aberta e vejo uma mulher sentada à mesa. Tem o rosto magro e abatido, e as mãos ásperas, picadas pela agulha, pois é costureira. Está bordando flores-da-paixão num vestido de cetim para a mais adorável dama de honra da rainha vestir no próximo baile da corte. Num leito, no canto do quarto, está deitado seu filho doente.Tem febre, e pede laranjas. A mãe não tem nada para dar-lhe, exceto água do rio, e por isso ele está chorando. Andorinha, andorinha, pequena andorinha, não quer levar-lhe o rubi do cabo de minha espada? Meus pés estão presos a este pedestal e não posso me mover.
- Esperam-me no Egito - disse a andorinha. - Minhas amigas estão voando sobre o Nilo, conversando com as flores de lótus. Em breve vão dormir na tumba do grande rei. O próprio rei está ali, em seu sarcófago coberto de adornos. Está enrolado em linho amarelo e embalsamado com especiarias. Em seu pescoço há um colar de jade verde-pálido, e suas mãos são como folhas secas.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, não quer ficar comigo por uma noite, e ser minha mensageira? O menino está com tanta sede, e a mãe tão triste...
- Acho que não gosto de meninos - respondeu a Andorinha. - No verão, quando eu estava no rio, havia dois meninos rudes, os filhos do moleiro, que estavam sempre atirando pedras em mim. Nunca me acertaram, é claro; nós andorinhas voamos bem demais para que nos acertem, e venho de uma família famosa pela agilidade; ainda assim, foi um sinal de desrespeito.
Mas o príncipe feliz parecia tão triste que a andorinha se condoeu: 
- Está muito frio aqui, mas ficarei com você por um noite, e serei sua mensageira.
- Muito obrigada, andorinha - disse o príncipe.
Então a andorinha tirou o enorme rubi da espada do príncipe e voou, levando-o no bico por sobre os telhados da cidade.
Passou pela torre da catedral, onde anjos de mármore branco estavam esculpidos. Passou pelo palácio e ouviu o rumor da dança. Uma jovem formosa apareceu na sacada com seu namorado.
- Como estão maravilhosas as estrelas - disse ele - e como é maravilhoso o poder do amor!
- Espero que meu vestido fique pronto a tempo a tempo para o baile do Estado - respondeu a jovem. - Mandei que bordassem flores-da-paixão nele, mas as costureiras são tão preguiçosas!
A andorinha passou sobre o rio, e viu as lanternas penduradas nos mastros dos navios. Passou sobre o gueto e viu velhos judeus negociando entre si, pesando dinheiro em balanças de cobre. Finalmente, chegou à casa pobre e espiou. O menino agitava-se febrilmente no leito, e a mãe caíra no sono, tão cansada estava. saltou para dentro e deixou suavemente o grande rubi sobre a mesa, ao lado do dedal. Então voou suavemente em volta do leito, abanando a fronte do menino com as asas.
- Sinto-me refrescar - disse o menino -, acho que estou melhorando - e mergulhou num sono delicioso.
Então a andorinha voltou ao príncipe feliz, e contou-lhe o tinha feito.
- Engraçado - observou ela -, mas agora sinto calor, embora esteja tão frio.
- É porque praticou uma boa ação - disse o príncipe. E a pequena andorinha começou a pensar, adormecendo logo em seguida. Pensar sempre a fez ficar com sono.
Quando o dia raiou, ela voou ao rio e tomou um banho.
- Que fenômeno notável - disse o professor de ornitologia ao passar pela ponte. - Uma andorinha no inverno! -E  escreveu uma longa carta sobre isso no jornal local. Todos a citavam, porque estava cheia de palavras que não compreendiam.
Esta noite parto para o Egito - disse a andorinha, bastante animada com a perspectiva. visitou todos os monumentos públicos, e ficou posada um longo tempo no topo do campanário da igreja. Onde quer que fosse, os pardais aplaudiam, dizendo uns aos outros:
- Que estrangeira distinta! - E ela se divertiu bastante com isso.
Quando a lua surgiu, voltou ao príncipe feliz e disse:
- Tem alguma encomenda para o Egito? Já estou partindo.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, não quer ficar comigo mais um noite?
- Esperam-me no Egito- respondeu a andorinha - Amanhã minhas amigas voarão até a segunda catarata. Os hipopótamos deitam-se ali entre os caniços, e num grande trono de granito está sentado o deus Memnon. Durante a noite inteira ele contempla as estrelas, e quando brilha a estrela da manhã, ele amite um canto de alegria e depois silencia. Ao meio dia os leões vêm à margem das águas para beber. Têm olhos que se parecem com berilos verdes, e seus rugidos são mais estrondosos do que o rugir das cataratas.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, longe, no outro lado da cidade, vejo um jovem numa água furtada. Está debruçado sobre uma mesa coberta de papéis, e num copo ao seu lado há um maço de violetas murchas. seu cabelo é castanho e crespo, seus lábios são vermelhos como a romã, e tem olhos grandes e sonhadores. Ele tenta terminar um peça para o diretor do teatro, mas sente muito frio para continuar escrevendo. Não há fogo no fogão, e a fome o enfraqueceu.
- Ficarei com você mais um noite - disse a andorinha, que no fundo tinha um bom coração. - Devo levar-lhe outro rubi?
- Ai de mim! Não tenho mais rubis - disse o príncipe -; meus olhos são tudo o que me resta. São feitos de safiras preciosas, trazidas da Índia há mil anos. Arranca um delas e leva ao jovem. Ele a venderá ao joalheiro, comprará comida e lenha, e terminará a peça.
- Caro príncipe - disse a andorinha -, não posso fazer isso - e começou a chorar.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe - faça o que lhe ordeno.
Então a andorinha arrancou o olho do príncipe e voou até a água furtada do estudante. Era muito fácil entrar já que havia um buraco no telhado. Arremessou-se através dele e entrou no quarto. O jovem tinha a cabeça enterrada nas mãos, e não viu o bater das asas; quando levantou os olhos, encontrou a bela safira pousada sobre as violetas murchas.
- Começo a ser apreciado. Isto deve ser de algum admirador. Agora posso terminar minha peça - gritou, parecendo muito contente.
No dia seguinte, a andorinha foi ao porto. Pousou no mastro de uma grande embarcação e observou os marinheiros puxando caixas enormes do porão do navio. - Upa! - gritavam eles a cada caixa que levantavam.
- Vou para o Egito! - bradou a andorinha, mas ninguém lhe deu atenção, e quando a lua surgiu, voou até o príncipe feliz.
- Vim para dizer-lhe adeus.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, não quer ficar comigo por mais um noite?
- É inverno - respondeu - e a neve fria logo vai chegar. No Egito o sol é quente sobre as palmeiras, e os  crocodilos deitam-se na lama e olham preguiçosamente ao redor. Minhas companheiras estão construindo um ninho no templo de Baalbec, e as pombas rosadas as observam, arrulhando entre si. Caro príncipe, tenho que deixá-lo, mas nunca o esquecerei; e na próxima primavera trarei duas lindas jóias para substituir as que doou. O rubi será mais rubro que a rosa vermelha, e a safira tão azul quanto o imenso oceano.
- Na praça logo abaixo - disse o príncipe feliz - há uma pequena vendedora de fósforos. Ela os deixou cair na sarjeta, e estão todos estragados. Seu pai baterá nela se não levar dinheiro para casa, e por isso ela está chorando. Não tem sapatos nem meias, e sua cabecinha está descoberta. arranca meu outro olho e leva-lhe, para que seu pai não a maltrate.
- Ficarei com você mais um noite - disse a andorinha -, mas não posso arrancar outro olho. Você ficaria completamente cego.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, faça o que lhe ordeno.
Ela arrancou então o outro olho do príncipe e alçou voo. Precipitou-se sobre a vendedora de fósforos e deixou cair a joia na palma de sua mão.
- Que lindo pedacinho de vidro - disse ela, e correu para casa sorrindo.
A andorinha voltou ao príncipe e disse:
- Está cego agora; então ficarei com você para sempre.
- Não, pequena andorinha - disse o príncipe -, deve partir para o Egito.
- Ficarei com você para sempre - disse a andorinha, e adormeceu aos pés do príncipe.
Durante todo o dia seguinte, ficou pousada no ombro do príncipe, e contou-lhe histórias sobre coisas que viu em terras estranhas. falou-lhes sobre íbis vermelhos, que postavam em longas fileiras em margens do Nilo, apanhando peixes dourados com os bicos; sobre a Esfinge, que é tão antiga quanto o próprio mundo, vive no deserto e tudo sabe; sobre os mercadores, que caminham vagarosamente ao lado de seus camelos e levam contas de âmbar nas mãos; sobre o rei das montanhas da Lua, que é negro como o ébano e cultua um imenso cristal;sobre a grande serpente verde, que dorme numa palmeira e tem vinte sacerdotes para alimentá-la com bolos de mel; e sobre os pigmeus que navegam sobre um grande lago em largas folhas e que estão sempre em guerra com as borboletas.
- Querida andorinha - disse o príncipe -, você me conta coisas espantosas, mas mais espantoso é o sofrimento de homens e mulheres. não há mistério maior que a miséria. Voe por sobre minha cidade, pequena andorinha, e conte-me oque vir por lá.
Assim, a andorinha voou sobre a grande cidade e viu ricos divertindo-se em suas residencias luxuosas, enquanto os mendigos sentavam-se em frente aos portões. Voou por becos escuros e  e viu os rostos pálidos das crianças esfaimadas, olhando apaticamente para as ruas sombrias. Sob o arco de um ponte estavam deitados dois meninos, abraçados um ao outro, tentando manter-se aquecidos.
- Temo tanta fome! - diziam os meninos.
- Vocês não podem ficar aqui - gritou o guarda noturno, e eles se retiraram, vagando sob a chuva.
Então a andorinha voltou e contou ao príncipe o que tinha visto.
- Sou coberto de ouro puro - disse o príncipe -, você deve tirá-lo folha por folha, dá-lo aos meus pobres; os vivos sempre acham que ouro pode fazê-los felizes.
Folha após folha de puro ouro a andorinha arrancou, até que o príncipe feliz ficasse fosco e acinzentado. Folha após folha de puro ouro levou aos pobres, e os rostos das crianças tornaram-se mais rosados, e elas riam e brincavam na rua.
- Agora temos pão - gritavam as crianças.
Então veio a neve, e depois da neve, a geada. As ruas pareciam feitas de prata, de tão luminosas e brilhantes; pontas de gelo, longas como adagas de cristal, pendiam dos beirais das casas; todos passavam vestindo casacos de pele, e as crianças usavam gorros escarlate, patinando sobre o gelo.
A pobre andorinha sentia cada vez mais frio, mas não queria deixar o príncipe, pois o amava muito. Apanhava as migalhas à porta do padeiro quando ele não estava olhando, e tentava se aquecer agitando as asas.
Mas por fim sentiu que iria morrer. Mal tinha forças para voar uma vez mais ao ombro do príncipe.
- Adeus, querido príncipe - murmurou -, deixa-me beijar suas mãos?
-Fico contente que vá para o Egito afinal, pequena andorinha -, disse o príncipe. - Ficou muito tempo aqui, mas deve beijar-me os lábios, pois a amo.
- Não é para o Egito que vou - disse a andorinha. - Vou para a casa da morte. A morte é irmã do sono, não é mesmo?
Então beijou o príncipe feliz nos lábios e caiu morta aos seu pés.
Naquele momento, um estranho estalo soou dentro da estátua, como se algo se tivesse quebrado. A verdade é que o coração de chumbo despedaçou-se em dois. Era certamente um geada terrível.
Na manhã seguinte, bem cedo, o prefeito caminhava na praça em companhia dos conselheiros da cidade. Ao passar pela coluna, olhou para a estátua:
- Meu Deus que aspecto miserável tem o príncipe feliz! - disse ele.
- Muito miserável, realmente - disseram os conselheiros da cidade, que sempre concordavam com o prefeito. - Na verdade, é pouco mais que um mendigo!
- Pouco mais que um mendigo - disseram os conselheiros da cidade.
E há até um pássaro morto aos seus pés! - continuou o prefeito. - Devemos emitir um decreto que proíba os pássaros de morrerem aqui. - E o secretário da cidade anotou a sugestão.
Então, puseram abaixo a estátua do príncipe feliz. - Como já não é belo, já não é mais útil - disse o professor de Arte na universidade.
Assim, fundiram a estátua numa fornalha e o prefeito convocou uma reunião com a corporação, para decidir o que seria feito do metal.
- Naturalmente precisamos ter outra estátua - disse ele -, e será com minha imagem.
- Com minha imagem - disse cada um dos conselheiros da cidade, e começaram a discutir. Da última vez que soube deles, ainda estavam discutindo.
- Que coisa estranha! - disse o contramestre da fundição. - Este coração de chumbo não derrete na fornalha. Vamos jogar fora. - Assim, jogaram-no em um monte de lixo onde estava também a andorinha morta.
-Traz-me as duas coisas mais preciosas da cidade - disse Deus a um de seus anjos; e o anjo trouxe-Lhe o coração de chumbo e o pássaro morto.


quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Poema à boca fechada - José Saramago



Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é doutra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vasa de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais boiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quanto me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

Poema à boca fechada - José Saramago 

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Um suicídio altruísta ou um homicídio egoísta?


Por Marli Piva Monteiro 

Louis Althusser, filósofo marxista, filho de franceses, nasceu na Argélia em 1918. Foi prisioneiro durante a II Guerra Mundial, na Alemanha. Após o período da Guerra, entrou para a Escola Superior de Paris onde lecionou Filosofia por 30 anos e exerceu a função de secretário da mesma Instituição. Publicou alguns livros sobre o pensamento marxista: Por Marx, Ler "O capital" em 1965, Lênin e a filosofia em 1968, Resposta a John Lewis em 1972, Elementos de Autocrítica em 1973, Posições em 1976.
Criticou duramente o Partido Comunista Francês do qual fazia parte desde 1948, no livro, O que não pode mais durar no PCF (1978). Em 1968 foi ativista na revolução em Paris.
É deste homem, com esta história de vida e esta bagagem cultural que vamos relatar experiências drásticas e conflituosas que culminaram com uma morte por ele praticada, a da sua esposa Helène que se chamava Rytmam e tinha o cognome de Sabine e depois de Legotien e com quem viveu por mais de 30 anos.
O caso Althusser, como o caso Schreber envolveu também uma escritura com propósito em causa própria. O juiz Schreber visava livrar-se do Asilo de Sonnenstein, Althusser, por sua vez, pretendia dar uma resposta com seu livro O futuro dura muito tempo. Como foi sancionado por impronúncia, seu objetivo é, como diz ele, "afastar a pedra sepulcral" sobre a sua fala, para expor-se aos outros e recuperar o julgamento suspenso, adquirindo o domínio sobre algo que não conseguia controlar. Vera Pollo (2002) num capítulo do livro organizado por Quinet "Extravios do desejo" chama a atenção de que Louis Althusser vale-se das palavras dasConfissões de Rousseau "direi com todas as letras: eis o que fiz, o que pensei, o que fui, (acrescentando), o que compreendi ou acreditei compreender, isso que não domino mais totalmente, mas isso que me tornei" (1999: 34).
Por esta atitude de desmascaramento, Quinet propõe que o livro seja visto como ‘O Outro do tribunal".
O crime de Althussser foi o assassinato por estrangulamento da sua companheira o que não lhe tendo custado processo, devido à impronúncia, custou-lhe a interdição para publicar. A impronúncia, como castigo, tira-lhe o direito de defesa e de pronunciar-se abertamente. A impronúncia de Althusser tem duas vias - uma que a ele se dirige a partir da justiça e outra que a partir dele se dirige ao mundo ao seu redor. Em vista disso desapareceu do cenário político e literário. Foi morto-vivo porque não podia falar. Sua saída foi escrever. Escrevendo pôde pronunciar-se e negar a sua própria morte.
Aliás, a relação de Louis Althusser com a morte é uma constante. Nas palavras de Althusser: "Relações singulares deviam imperar entre minha mãe e eu, minha mãe e a morte, meu pai e a morte, eu e a morte" (1993:50). Os nomes da morte perpassam sua vida a partir do seu próprio nome LOUIS - nome do seu tio ex-noivo de sua mãe por quem ela fora apaixonada. A guerra roubou-lhe o noivo e deixou-lhe de herança um cunhado que lhe propôs casamento. Os comentários de Louis sobre este nome é que ele é muito curto e a pronúncia se confunde com LUI = ele, o tio. O final do nome OUIS, pronunciado, confunde-se com OUI = sim, que parece lembrar a afirmativa do desejo da mãe. Além disso, o sobrenome, ALTHUSSER ao ser escandido resulta em ALT que quer dizer velho e HUSSER = häuser = casas - velhas casas.
O desejo de Louis era chamar-se Jacques, nome que teria algo que o identificasse com o pai - faltava-lhe o Nome do Pai. Queria ter um nome forte começando com J que lhe lembrava o jato do esperma e um "a" como o de Charles, do pai e QUES = queue = cauda, rabo, órgão sexual masculino, Finalmente Jacques o lembrava de "jacquerie", a revolução camponesa, de que com tanto orgulho lhe falava o avô.
A relação com a mãe sempre foi sentida como simbiótica e castradora e por ela se manteve casto até os 29 anos. Ele vivia o conflito de atender o desejo da mãe ou apropriar-se do seu próprio corpo "para começar a sair das regras da família" (1993:74). A forma como se identificava com os professores era de imitação dos seus gestos, gostos, opiniões e mesmo inflexões de voz. Isso, no entanto o fazia sentir-se uma impostura - um ser que não tinha existência própria - era apenas um habilidoso na arte de manipular e seduzir os outros para sentir-se amado. Com isso esperava o reconhecimento da sua existência. Não sem motivo, Althussser sentiu-se bem e protegido na prisão alemã onde cultivava a fantasia de "desaparecer" para fazer crer que fugira. Suas relações com seus amigos tinham fortes tinturas homossexuais, mas continuava casto até conhecer Helène, quando então teve a primeira relação sexual. Ao conhecê-la teve o impulso do amor impossível e no dia seguinte telefonou desesperado com a sensação de abismo que o invadia, para dizer-lhe que nunca mais iria fazer amor com ela.
Helène tinha pavor de ser uma megera como sua mãe. Tinha crises de "fúria" que quase a impediam de viver, com medo de repetir a estória da mãe e sentindo-se incapaz para o amor, embora Louis a considerasse uma pessoa que sabia amar como ninguém.
Mas Helène também foi marcada pela morte de forma atroz. Com a separação dos pais, coube-lhe aos 11 anos de idade, o cuidado do pai doente de câncer. Contava apenas com a ajuda do médico que depois tentou seduzi-la causando-lhe profundo desapontamento. Foi a ela que o Dr. Dileron encarregou de aplicar a última injeção de morfina no pai, já no leito de morte.Um ano depois, a estória se repetiu com a morte da mãe. Aos 13 anos, portanto, Helène "matara" o pai e a mãe.
O primeiro sentimento de Louis em relação a Helène foi de repulsa ao "cheiro da pele". Apesar de ter tentado afastar-se, Louis continuou a encontrar-se com Helène, mas antes de terem dormido juntos, fez questão de apresentar-lhe uma moça que cortejava, Angelina, só para provocá-la, como ele mesmo diz. Ele descreve a sensação do primeiro intercurso como "surpreendente, exaltante e violento" mas quando ela saiu, ficou "um abismo de angústia". Helène parecia dizer-lhe "dê-me o direito de existir", assim ele o sentia. Será que o deu, matando-a?
Ele se divertia muito, forçando-a a cenas terríveis que pareciam comprovar sua forma de comportar-se como uma mulher má. No entanto, Helène tinha uma grande capacidade de escuta que lhe rendeu até um comentário de Lacan que na época vivia com Sylvia - "você teria dado uma extraordinária analista".
Louis sentia-se sem existência real - vivia das imposturas. Quando seu analista interpretou a depressão como a sua onipotência, vibrou e passou a sentir-se potente. De 1947 a 1980 refere ter tido umas 15 crises. Seus medos se resumiam em ser abandonado, ser exposto a uma demanda de amor e que tivessem idéias a seu respeito.
Para Freud, o afeto do luto é provocado pela perda de libido e a conexão com a identificação narcísica é inequívoca. Freud assinala ainda a diferença entre a melancolia e as neuroses atuais, pois naquela "o buraco é na esfera psíquica".
Por isso, a característica da melancolia é o retorno da libido do objeto que se direciona ao eu, mas ao contrário da megalomania onde há um inchaço, na melancolia há um esgotamento, perda de interesse, desânimo, desinteresse pelo mundo, diminuição da auto-estima, inibição, auto-acusações, invectivas e, além disso, uma espera delirante de punição. Os conceitos freudianos da melancolia arrebataram Abraham a um debate, pois apesar de admitir os elementos violentos e criminosos dos pensamentos depressivos, considerava que o melancólico perdera algo que não sabe o que é e que se sente na obrigação de fazer publicamente o que é vedado a qualquer um em circunstâncias normais. Contudo, para Abraham é inaceitável que as auto acusações sejam oriundas de hetero acusações. Numa tentativa de resumir esta etapa do pensamento freudiano, Lacan afirma que "a melancolia é o triunfo do objeto" e para compreendê-lo, é preciso distinguir a suspensão do desejo neurótico direcionado à imagem especular, o ideal do eu e o objeto mais primitivo - Das Ding, o objeto a, ou a Coisa, como queiram. Na verdade é nada mais, nada menos que o que restou do Real do corpo, ou da carne, que não se deixou aprisionar pelo significante.
O melancólico, de modo diferente do neurótico não se deixa capturar em sua imagem de objeto narcísico, mas vai situar-se próximo ao puro desejo de morte.
O mecanismo dominante na perversão é a Verleugnung, ou seja, a recusa. O falo é substituído pelo objeto fetiche, a castração desmentida e o sujeito pode escolher uma mulher como objeto sexual por ela possuir supostamente, o falo. A partir do fetichismo estabelece-se a clivagem do eu - o fetiche presentifica no nível intrapsíquico, dois componentes inconciliáveis, a saber, o reconhecimento da ausência do pênis na mulher e a recusa da realidade desse reconhecimento. Esses dois componentes co-existem o tempo todo sem jamais se influenciarem reciprocamente, mas em sua relação com a dialética do desejo, a situação se põe assim, percebendo o pai como concorrente fálico, a criança percebe duas ordens de realidade para interrogar o curso do seu desejo. Por um lado, percebe que não é objeto exclusivo do desejo da mãe e por outro, percebe que a mãe é faltante. É em função disso, que o pai vai inscrever-se no registro da rivalidade imaginária o que contribuirá para determinar dois traços marcantes da estrutura, o desafio e a transgressão. A figura paterna representa o perigo, o proibido, e sugere um estranho gozo do qual a criança é excluída. Numa etapa posterior favorável, a falta seria simbolizada e a castração da mãe assegurada, neste caso, a simbolização da falta não ocorre e permite a negação da castração da mãe. Baseada na negação do desejo da mãe pelo pai, no que se refere à diferença dos sexos, o perverso acaba por condenar-se a viver a insuportável aflição do terror à castração. A única saída do perverso é desafiar a lei, transgredindo-a.
A relação do perverso com as mulheres é, segundo Joel D’Or, (1991:108), "sintomaticamente estereotipada".
Seria Louis Althusser um perverso?
Louis amava Helène "como se ama um homem", segundo ele próprio. De maneira estereotipada? Ele também, como Helène dizia-se incapaz de amar e insensível ao amor impessoal que despertava nos outros, homens ou mulheres. Ele o atribuía ao amor impessoal que lhe dedicava sua mãe, "traspassando-o" para atingir um outro (lui/ Louis), um morto. A situação era vivida por ele como a própria castração, que em muitas circunstâncias se atualiza, como quando a mãe instiga o pai para que puxe o prepúcio do menino para corrigir uma fimose que o atormentava.
Porém, Louis achava a vida de sua mãe muito sofrida e costumava auxilia-la nos serviços domésticos para aliviá-la, tornando-se, no seu dizer, um verdadeiro "homenzinho do lar". A vida de Louis era a tentativa frustrada de realizar os desejos da mãe e não conseguia dar a Helène, a quem confessa amar sem reservas, algo que expressava como "tudo" o que ela lhe pedia como o que lhe permitisse sair da angústia de ser só e de ser uma megera, de ser, enfim, capaz de despertar o amor de alguém. A relação conflituosa e conturbada que se instalou entre Louis e Helène era entremeada das tentativas de seduzi-la e provocar-lhe o medo para evitar o perigo de "soçobrar em suas mãos". Por isso insistia em apresentar-lhe sempre, as mulheres que estava empenhado em conquistar, para receber sua aprovação - a aprovação de uma boa mãe (provavelmente a sua). Mas isso era um tormento para Helène que nunca tivera uma boa mãe. Ela bem que tentava e chegou até a aceitar que ele tivesse casos, contando que não a fizesse saber. Isso, contudo, era o que ele não dispensava, esse olhar terceiro que assegura o gozo perverso. O testemunho de Helène era indispensável ao gozo que daí advinha, inclusive com as crises de raiva que lhe costumava provocar e que produziam insuportável sentimento de culpa por confirmar a megera que tanto lutava para negar. Não satisfeito com essas provocações, passou a intimida-la criando situações em que inventava que iria assaltar uma loja ou um banco e ensaiava algumas tentativas, o que a deixava desesperada. "...eu a fazia viver na insegurança e no terror mais absoluto"...(1993:140), afirma ele. E adiante acrescenta, "não se pode tratar um ser humano desta maneira", quando percebe o medo que passa a sentir de ser capaz de matá-la com as suas provocações que qualifica de "dementes". Essas práticas provocativas e chantagistas eram usadas ainda com o seu analista que acabou, segundo ele, atendendo também Helène, o que motivou por parte de seus amigos, por ocasião do crime, de comentar que a análise deles era "um círculo infernal", "um impasse total" ou um "ménage a trois". Louis gaba-se de pressionar o Dr. Etienne, seu analista e chantagea-lo com uma "insistência suicida". Ele demonstra ter muita consciência de sua capacidade de fazer com que os outros fossem seduzidos, para provoca-los e reduzi-los à sua mercê.
Quanto ao analista, que como Lacan atendia pessoas com íntimas relações e até familiares, ao mesmo tempo, ele considerava Louis e Hélène como "casos atípicos" e suas relações também "relações atípicas", por que a análise deles não poderia ser atípica?
Louis Althusser descreve detalhadamente como se comprazia ao ver no rosto de Hélène o desespero e a morte. "era aterrador e deslumbrante", diz ele, "ver a alternância do seu rosto, às vezes aberto, grave macio como um homem"... "subitamente fechado, surdo e mudo para sempre". É curioso observar que o rosto aberto, macio lhe lembrasse um rosto de homem.
O próprio Althusser relata que criava para seus amigos uma Hélène terrível para depois desculpar-se e desculpá-la. As pessoas que a conheciam tornavam-se amigas por elas mesmas e os amigos dele que se aventuravam a uma aproximação, percebiam uma mulher "inteligente, intuitiva, corajosa e generosa" (1993: 148).
Desse jogo com Hélène ele testava seu receio de não ser homem capaz de amar uma mulher.
Foi com os escritos de Sacha Nacht que descobriu suas imposturas profissionais, sua capacidade para escrever sobre um autor ou livro que desconhecia e a sensibilidade para a conjuntura devido às situações de constantes conflitos aos quais vivia sujeito. No entanto, nunca conseguiu fazer com os textos de Freud o que fez com os de Sacha Nacht.
A respeito de Lacan, Althsusser comenta que teve vários encontros com ele e por vezes sentiu-se fazendo com ele o papel de "pai do pai", como fazia com seus amigos, principalmente quando Lacan passou maus momentos e jantaram juntos, "...ele me contava o diabo a quatro sobre alguns de seus analisandos e sobretudo sobre suas mulheres, que também analisava, ao mesmo tempo que analisava os maridos"(1993: 166). Foi inclusive Althusser quem ofereceu a Lacan a École Normal para fazer seus seminários das 4as. Feiras ao meio dia, quando Lacan foi expulso de Saint-Anne. Lacan acabaria perdendo este espaço porque seus ouvintes inundavam de fumaça o ambiente da sala e inclusive a biblioteca.
Althusser refere um episódio com Lacan que o procurou em seus aposentos na École, numa manhã muito cedo. Estava desesperado devido ao suicídio de Sebag, um cliente que teria deixado a análise por iniciativa do próprio Lacan porque Sebag se apaixonara por Judith, filha do seu analista que considerou o impasse intransponível. Interrompeu a análise, mas continuou vendo diariamente o cliente e se colocando à sua disposição a qualquer hora. Depois do suicídio, Lacan vagou por toda Paria para "justificar-se" perante os amigos e colegas.
Nos dias que antecederam à morte de Hélène, Louis considera terrível a situação vivida pelos dois. Ele tinha vindo de novo internamento e ela não conseguia mais suportar as depressões do marido e sua solidão durante o tempo em que ele permanecia internado. Incomodava-a que os muitos amigos que ligavam para saber notícias dele nem se incomodavam de perguntar com ela estava.
Saindo deste penúltimo internamento, o último antes dos episódios cruciais trágicos, voltaram à França por 8 a 10 dias e de lá retornaram para viver o que ele qualificou de um "inferno sem trégua". Louis declara não saber que regime impôs à companheira para que ela transtornada, decidisse abandoná-lo porque não conseguia mais viver com um "monstro". Hélène não lhe dirigia a palavra, levantava-se cedo e partia em busca de algum lugar para ficar, batendo a porta e só voltando para dormir. Isso o alucinava. Após alguns dias ela falou em suicídio. Ele não acreditou e achou que poderia resolver a situação deixando o tempo passar. Um dia, finalmente, ela pede para que ele a mate. Nesse ponto, estavam os dois isolados e negavam-se a atender até o telefone. Amigos do casal culparam o analista por não ter interferido, mas não é verdade. O analista insistiu na hospitalização de Louis, mas Hélène pediu mais três dias. O analista acatou, embora depois se arrependesse e tentasse comunicar-se mandando uma correspondência que o correio atrasou, pedindo que ela lhe telefonasse.
Num domingo à 09h, após "uma noite impenetrável" de acordo com Louis, ele faz a seguinte descrição: ..."estava aos pés da cama de Hélène, de roupão, Hélène deitada à minha frente e eu continuando a lhe massagear o pescoço com a sensação de que meus antebraços estavam muito doloridos. Compreendi depois pela imobilidade dos olhos e daquela pobre pontinha de língua entre os dentes e os lábios que ela estava morta..."(1993:224).
E continua: "Estrangulei minha mulher, que era tudo para mim, durante uma crise intensa e imprevisível de confusão mental, em novembro de 1980, ela que me amava a ponto de querer apenas morrer, na falta de poder viver, e talvez eu tenha, em minha confusão, e em minha inconsciência, "prestado esse serviço", do qual ela não se defendeu mas do qual morreu"(1993: 11).
O desejo de Althusser de sair do anonimato após o crime, o faz escrever, não como se "afastasse a pedra sepulcral da impronúncia", mas para dar conhecimento público de tudo que sobre esse ato se pudesse saber e para ter a certeza de que nada mais lhe perguntariam e obter a glória de dizer que foi ele mesmo quem escreveu e não permitir brechas para mais nada que se pudesse acrescentar.

BIBLIOGRAFIA
ALTHUSSER, Louis. O futuro dura muito tempo - seguido de Os Fatos. S. Paulo: Cia das Letras,1993.
D’Or, Joel. Estrutura e Perversões. Porto Alegre: Artes Médicas,1991.
FREUD, Sigmnd. Luto e Melancolia. Vol. XIV. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Introdução ao Narcisismo. Vol.XIV. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.Vol VII. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de: Rio de Janeiro:Imago, 1976.
LACAN, Jacques. O Seminário livro 4 - A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor ,1994.
LACAN, Jacques.O Seminário livro 3 - As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
POLLO, Vera. O caso Althusser: um suicídio altruísta? In: Quinet Antonio(org). Extravios do desejo: depressão e melancolia. 2a. ed. Marca d’Água Livraría e Editora: Rio de Janeiro, 2002.
QUINET, Antonio (org). Extravios de do desejo: depressão e melancolia. 2a. ed.. Marca d’Água Livraria e Editora: Rio de Janeiro, 2002.


quinta-feira, 9 de outubro de 2014

"...Te direi em segredo aonde leva esta dança"



Vem,
Te direi em segredo
Aonde leva esta dança.

Vê como as partículas do ar
E os grãos de areia do deserto
Giram desnorteados.

Cada átomo
Feliz ou miserável,
Gira apaixonado
Em torno do sol.

Rumi

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Filosofia, Literatura & Grande Sertão: Veredas


Filosofia e literatura. O problema moral no «Grande Sertão: Veredas»

Álvaro Martins Andrade


"Mas liberdade - aposto - ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto,e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer." (GSV, 290)(1).
"A liberdade é assim, movimentação." (GSV, 303).
"ROSA: Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes da minha vida, e, em rigor, a seqüência representa um paradoxo. Como médico, conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte...
LORENZ: Deve-se entender isso como uma escala de valores?
ROSA: Exato, é uma escala de valores.
LORENZ: E não são esses três conhecimentos, no fundo, a espinha dorsal do romance "Grande Sertão"?
ROSA: São, mas somam-se ainda outros, sobre os quais nós temos ainda de falar também."(2)
"Gosto de achar que tudo evolui e avança necessariamente bem." Guimarães Rosa(3)
"O inconsciente é capaz, por momentos, de manifestar mais inteligência e finalidade do que não o é a introspecção consciente." Jung(4A exemplo de toda a travesia do Riobaldo - ou de toda filosofia - a gênese do pensamento moral de Guimarães Rosa se dá segundo um processo que comporta etapas prévias e necessárias. Com efeito, encontra-se no Grande Sertão: Veredas se não uma sistemática 'filosofia das ciências", pelo menos um narrador que reflete sobre o conhecimento do seu mundo e do teu tempo, a ponto de já poder "formular" a "hipótese" (ou "tese"?):
"Ao que, este mundo é muito misturado..." (GSV, 210, grifo nosso)
Embora o problema de uma filosofia das ciências no Grande Sertão: Veredas não esteja compreendido na presente análise, ainda assim é necessário assinalar - para os efeito da análise posterior - que o narrador tem uma síntese coerente de conhecimentos sobre o universo e o homem. Mesmo sem se poder falar ainda e rigorosamente defilosofia, trata-se de uma indagação preliminar que estabelece efetivamente certos referenciais fixos neste "mundo movente" - para usar a feliz expressão de José Carlos Garbuglio(5)Encontramos em seguida uma metafísica - no sentido de uma complementação, seguramente sempre hipotética, do fragmentário quadro de conhecimentos sobre o mundo e o homem. "Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia." (GSV, 62-63). Por isso, seguramente, "o real roda e põe adiante." (GSV, 133) Sem pretender ser superior à "ciência" representada pelo seu interlocutor silencioso, a "metafísica" do narrador ou do compadre meu Quelemém ainda assim visa sempre preencher de maneira "razoável" as persistentes lacunas do conhecimento "científico":
"A razão normal de coisa nenhuma não é verdadeira, não maneja." (GSV, 334),
diz o narrador, talvez melhor esclarecendo suas curiosas referência e descrição do compadre Quelemém, o qual "quer saber tudo diverso: quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra coisa." (GSV, 189, grifos nossos)
Da mesma forma que para o seu autor(6), também para o narrador o ético e o metafísico são inextrincavelmente interdependentes. A partir dos dois conceitos que este sábio ex-jagunço mais elabora - destino e liberdade - ocuparnos-emos agora do ético e do metafísico, com vistas à determinação do conceito que (embora não referido nominalmente pelo narrador) a nosso ver informa toda a sua ação e pensamento: o finalismo inerente à existência humana, o quantum de necessidade que define o sentido comum, invariável e universal dos mitos do herói.
A idéia de um finalismo inerente à substância já se encontra presente no sistema aristotélico: na passagem da potência para o ato, da forma para a matéria, quando o dynamós realiza as melhores potencialidades, já é com afinalidade de realizar "o melhor dos mundos possíveis." Negada pelo Pascal cartesiano ("As flores e os passarinhos não demonstram"), esta orientação ou finalidade interior ao dynamós e à substância, realizando-se continuamente pela transformação (que desta forma supõe o tempo) implicará assim na irreversibilidade, com todas as suas conseqüências que, no caso do narrador, serão de ordem sobretudo ética porque também psicológicas. "A partir de um certo ponto, não há mais retorno. Esse é o ponto que se precisa atingir" - já o sabia o Kafka das Considerações sobre o pecado, a dor, a esperança e o verdadeiro caminho. Nosso narrador vai mais longe: associa e coloca este 'ponto" crítico ("ponto de marca") no interior do finalismo ("Tudo tinha me torcido para um rumo só") - e portanto inerente a este, verdadeira finalidade no interior da necessidade:
"Tem um ponto de marca, que dele não se pode mais voltar para trás. Tudo tinha me torcido para um rumo só, minha coragem regulada somente para diante, somente para diante." (GSV 203, grifos nossos).
Acreditamos ter deixado suficientemente claro, em outras análises dedicadas especificamente ao problema(7), que o "rumo só" para o qual está "minha coragem regulada" é o rumo do inconsciente, o do mergulho nas imagens primordiais do mito pessoal. "Tendo atravessado o Rubicão, seria impossível voltar atrás", diz Jung valendo-setambém das (no caso) indispensáveis metáforas.(8)
Reconhecemos que a insistência com que o narrador - direta ou indiretamente - refere o destino, autorizaria pensar em uma concepção de homem de tipo determinista ou fatalista. Observe-se, contudo, que não só o próprio conceito quanto suas variantes são sempre utilizadas de maneira ambígua, de maneira tal que se tem desde suacategórica afirmação até sua radical negação, passando por outros usos metafóricos e poéticos que permitirão determinar seu verdadeiro valor significativo. Associados a outras "falas", tais usos possibilitam determinar seusentido original. No primeiro caso (acepção ingênua e determinista), tem-se o narrador se referindo à adivinha Ana Duzuza, mãe de Nhorinhá:
"No momento, foi que eu caí em mim, que podia ter perguntado à Ana Duzuza alguma passagem de minha sina por vir. (...) E se a Duzuza adivinhasse mesmo, conhecesse por detrás o pano do destino?"(GSV, 35, grifos nossos)
Com a mesma acepção (embora sem referí-lo), reaparece na estória de Davidão e Faustino, na qual, como após o pacto entre ambos nenhum dos dois morre, o narrador diz que "Para nenhum deles tinha chegado a hora-e-dia"(GSV, 81, grifos nossos) Ou, ainda, referindo-se a Fancho-Bode e Fulorêncio, que "Morreram, porque era seu dia,deles, de boa questão." (GSV, 154, grifo nosso) Entretanto, descrevendo os momentos que precederam ao pacto, o narrador já fala d'"o alto destino possível da gente" (GSV, 381, grifo nosso), introduzindo assim a primeira"variação" que, por si mesma, negaria a noção estrita de um "destino" enquanto determinismo, pre-determinismo ou fatalismo. A menos que se conceba a paradoxal duplicidade do destino - um "alto" e outro "baixo". O "possível", aqui, já abre necessariamente para uma concepção de liberdade que, se não nega a necessidade do determinismo estrito, a relativiza em finalismo. Ou, se é possível dizê-lo - a liberdade no interior da necessidade se traduz em permanente atualidade livre:
"E o que era para ser. O que é pra ser - são as palavras." (GSV, 47, grifos nossos) Esta "relativização" do destino é nitidamente sugerida pelo narrador ao se perguntar se "Deveras se vê que o viver da gente não é tão cerzidinho assim?" (GSV, 106, grifos nossos), pois na realidade ele também conhece e admite o que chama de "acaso" e sua importância: 
"Ao que, digo ao senhor, pergunto: em sua vida é assim? Na minha, agora é que vejo, as coisas importantes, todas, em caso curto de acaso foi que se conseguiram - pelo pulo fino de sem ver se dar - a sorte momenteira, por cabelo por um fio, um clim de clina de cavalo. Ah, e se não fosse, cada acaso não tivesse sido, qual é então que teria sido o meu destino seguinte? Coisa vã, que não conforma respostas. Às vezes essa idéia me põe susto." (GSV, 120-121, grifos nossos) Se o determinismo estrito ("destino") é assim limitado e relativizado pelo narrador, a tal ponto este já se represeenta claramente sua concepção d'"essa idéia", que chega ao extremo cuidado de relativizar também o oposto - isto é, a "liberdade de escolha" - antecipando de quase quatrocentas páginas o conceito-chave de sua concepção da existência humana ("Cumpro." - GSV, 571):
"Quem que diz que na vida tudo se escolhe? O que castiga, cumpre também." (GSV, 205, grifos nossos) O problema que se coloca, portanto, seja para o narrador, seja para nós, é o seguinte: o destino do homem é problema de Deus, ou do próprio homem? Ao nível da narrativa dos "fatos", o artifício utilizado para elaborar o tema será o mesmo utilizado pelo Goethe do Fausto: a aposta, o pacto (Fausto será perdido? Fausto se perderá?). Ora, em relação ao "Deus" do narrador, se é verdade que ele "quer" alguma coisa em relação ao homem, é preciso reconhecer que não somente se trata de um objetivo bastante simples e "saudável" (a "alegria"), como também será necessário reconhecer que este mesmo "Deus" "respeita" a liberdade do homem ("na horinha em que se quer"):
"O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito - por coragem." (GSV, 301, grifos nossos)
Além do já verifcado em relação a esse Deus do narrador como categoria antropológica e imagem do centro ou Si(9) seu "parentesco" com o diabo, esta humanidade liberal de um Deus que assim respeita a liberdade humanaverifica-se ainda pela conseqüente solidariedade e responsabilidade que decorreria do próprio "pacto": "Se vendo minha alma, estou vendendo também a dos outros." (GSV, 294, grifo nosso). Mas não nos iludamos, não se trata de um existencialista a repetir os lugares-comuns sartrianos. Já vimos que, na realidade, enquanto o narrador "brinca" com diferentes jargões filosóficos ou pseudo-filosóficos, simultaneamente "dialetiza" entre os sistemas originários destas linguagens, em busca de sua síntese pessoal. Observe-se que, de tomar ou interpretar isoladamente algumas falas "sentenciosas" do narrador, sem previamente estabelecer seu contexto subjetivo e o global de seu universo, poder-se-ia em conseqüência "definir" sucessivamente seu "pensamento" não apenas como "existencialista"(10), mas também "spinosano", "kantiano" e outros mais.
Com efeito, descrevendo a entrada no sertão de Minas, na perseguição final ao Hermógenes, ao mesmo tempo que reafirma a já apontada irreversibilidade da específica "travessia" que está realizando (a do inconsciente para o consciência), o narrador "se revelaria" também como um "spinosano":
'Dali de lá, eu podia voltar, não podia? Ou será que não podia, não? Bambas asas, me não sei. Bambas asas... Sei ou o senhor sabe? Lei é asada é para as estrelas. Quem sabe, tudo o que já está escritotem constante reforma - mas que a gente não sabe em que rumo está - em bem ou mal, todo-o-tempo reformando?" (GSV, 510, grifos nossos) Se é verdade que "a ilusão da liberdade vem da consciência de nossa ação e da ignorância das causas que nos fazem agir(11), o narrador seria realmente um "spinosano" ("tudo... está escrito... a gente não sabe...");entretanto observe-se: "tudo o que já está escrito tem constante reforma": a liberdade não é uma "ilusão" nem o narrador um "spinosano".
Tem sido esse mesmo tipo de análise (sem levar em conta o contexto subjetivo e global de um narrador que "brinca" com as linguagens dos "sistemas" filosóficos) o que, a nosso ver, tem ocasionado, na crítica rosiana até aqui publicada, a aproximação mais freqüente das "idéias filosóficas" do narrador com as assim chamadas "vertentes existencialistas". E, realmente, se adotado o critério fácil da simples justaposição, pode-se de fato "provar" por tal meio que o narrador é um "sartriano". Se não, vejamos: discutindo o problema da liberdade em Descartes, Sartre observa que "ele compreendeu, melhor que ninguém, que a menor démarche do pensamento engaja todo o pensamento, um pensamento autônomo que se põe, em cada um de seus atos, em sua independência plena e absoluta."(12) Se assim é - e com a mesma facilidade de critério das simples aproximações - nosso narrador seria "sartriano" quando diz que "Ações? O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada." (GSV, 170, grifos nossos), hipótese que imediatamente se "verificaria" pela afirmação de que "A liberdade é assim, movimentação" (GSV, 303, grifos nossos). Entretanto, não esqueçamos que para o narrador, a liberdade é essencialmente uma libertação: libertação das trevas do "não-saber" (GSV, 96, 97, 133, 272, 294), do seu "sertão" (GSV, 149, 270, 271, 274, 334, 354, 409,432, 466, 486-487, 490, 491, 501, 510, 540, 560), enfim, libertação em relação ao seu inconsciente. "Sujeição epossessão são sinônimos. Esta a razão pela qual há sempre algo na alma que toma a dianteira, limita ou põe em xeque a liberdade moral"(13). E não esqueçamos que, se Diadorim é o grande "personagem" deste inconsciente, na fase inicial e caótica do herói "As vontades de minha pessoa estavam entregues a Diadorim." (GSV, 37) Não obstante, "enquanto ser natural, simpelsmente criado ou emerso de pre-condições inconscientes, o homem não tem nenhuma liberdade e a consciência não tem nenhuma 'razão de ser'. O julgamento psicológico deve ter em conta que, em virtude do fato de que a despeito de toda sua intrincação causal, o homem possui um sentimento de liberdade que se confunde com a autonomia da consciência. Embora todas as coisas, tomadas uma a uma, provem ao Eu que ele é dependente e condicionado, não se pode entretanto persuadí-lo de sua escravidão."(14)Convenhamos que, tomada passo a passo a evolução do jagunço Riobaldo ao Chefe Urutú Branco e, finalmente, aonarrador-enquanto-narrador ("hoje", "agora"), não se confundem a falta de "razão de ser" inicial do primeiro (GSV, 11, 272 etc.), o "sentimento de liberdade que se confunde com a autonomia da consciência" do segundo (GSV, 437, 527 etc.) e a liberdade-libertação de que goza o terceiro e último: "Agora, paz." (GSV, 432) Pensada assim, como árdua e penosa libertação do "dentro do ferro de grandes prisões" do inconsciente, comprende-se então quetambém a "verdade" da liberdade tenha de ser aprendida nesta solitária conquista a partir do "encoberto": "Vento que vem de toda parte. Dando no meu corpo, aquele ar me falou em grito de liberdade. Masliberdade - aposto - ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer." (GSV, 290, grifos nossos) Avessas a todo o "racional" e "intelectual", a ética e mesmo a metafísica do narrador e seu autor serão sempre fundadas no vivido, numa concepção geral do universo e do homem simultaneamente "experimentada" e verbalizada ao longo da narrativa. Procuremos assim, agora, determinar a forma e as conseqüências práticas que -para a ação - tem esta concepção ético-metafísica do homem e do universo.
O que estamos chamando de "metafísica", no Grande Sertão: Veredas é o conjunto de proposições "sentenciosas" e "textos teóricos"(15) que - transcendendo as aparentes "contradições" e "ambigüidades" - apresenta verdadeirahomogeneidade entre si, completando assim as poucas certezas "racionais" do narrador e lhe permitindo resolver os problemas e desafios que lhe colocam sua existência e o mundo: o que é o sertão, o que é viver. Observe-se que as progressivas falas e respostas que definem especialmente a "metafísica" do narrador, também aí se dão segundo as possibilidades de toda e qualquer metafísica. Isto é, todas as suas proposições que configuram um "sistema" se conformam segundo a adoção de uma crença radical, prévia e organizadora - mais de Guimarães Rosa que de Riobaldo - e que funciona como postulado fundante da metafísica em questão. Ora, tais possibilidades geradoras das metafísicas - sem pre referidas à "Ordem" ou à idéia de uma ordem - dão-se invariavelmente na raiz de toda e qualquer metafísica sob uma das três alternativas: há uma Ordem no universo; não existe Ordem alguma no universo; ou: uma ordem se ela* hora progressivamente. A adoção da terceira destas três alternativas encontra-se na raiz de toda a reflexão moral do narrador: uma ordem, um mundo e um homem in fieri, fazendo-se, em processo.
Muitas vezes o narrador faz pensar que Guimarães Rosa teria platonicamente optado pela afirmação de uma Ordem. Mas com o simples fato de fazer pensar o narrador, Guimarães Rosa revela estar muito mais próximo da terceira alternativa: toda Ordem é construção e elaboração progressiva: "Gosto de achar que tudo evolui e avançanecessariamente bem."(16) A própria adoção desta alternativa já é de certa forma uma "inclinação" inicial,absolutamente indemonstrável e provavelmente de natureza afetiva, semelhante, talvez, à que faz com que alguns de nós gostemos mais de Riobaldo, outros de Diadorim. Afinal, "A gente sabe mais de um homem, é o que ele esconde." (GSV, 319)
É esta inclinação ou opção pela Ordem in fieri, pelo movimento, transformação orientada e pela metamorfose do processo que, a nosso ver, constitui a verdadeira opção de Riobaldo-Rosa. Desta forma resulta ainda um tanto arbitrário quando dizemos que o pensamento moral de Riobaldo é o resultado ou conseqüência de uma elaboração metafísica anterior; na realidade, no caso deste narrador porta-voz de seu autor, o ético está na origem do "metafísico"ambos inextrincavelmente ligados ao psicológico. Neste sentido se pode dizer indiferentemente que oGrande Sertão: Veredas está construído de trás para diante ou de diante para trás: quando, encerrando sua "estória", o narrador diz que "No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade" (GSV, 564, grifo nosso) é porque efetivamente ele já tem essa "verdade", sabe que só é possível construir uma "metafísica" coerente a partir não de uma "razão normal de coisa nenhuma" - que "não é verdadeira, não maneja" (GSV, 334), mas sim a partir da "Verdade maior", essa "que a vida me ensinou." (GSV, 24, grifsos nossos). Mais precisamente ainda, a ética do narrador se constitui precisamente na elaboração desta intuição afetiva e anterior a qualquer construção lógico-filosófica, elaboração que assim se fazendo no modo da ingenuidade fenomenológica, ao nível da expressãose dará na forma da ambigüidade. Em última instância, o que o narrador procura (e procura definir) é o objeto mesmo de toda a filosofia - o sentido ou não-sentido do universo, desse viver que "nem não é muito perigoso" (GSV, 35), o sentido de sua própria existência. É esta "intuição", "visão" ou modo de sentir o mundo que, se ao nível do poético resulta na criação visionária, ao nível do ético já é de natureza "moral": desenvolvendo-se, realizando-se e objetivando-se no processo, toma forma e consciência de si mesma através da reflexão que prova,organizando-se finalmente em discurso e pensamento moral. Resultados de um engajamento do coração e do sentimento, ética e metafísica rosianas se dão assim em um só movimento; somente para efeito de análise se pode considerá-las separadamente.
* * *

ENGAJAMENTO DO SENTIMENTO E ENGAJAMENTO DA VONTADE
"Eu queria minha vida própria, por meu querer governada." (GSV, 335)
"Quem me entende? O que eu queira. Os fatos passados obedecem à gente; os em vir, também. Só o poder do presente é que é furiável? Não. Esse obedece igual - e é o que é. Isto, já aprendi." (GSV, 324-325)
Graças a um artigo de Karl Krolow tem-se por definitivamente assentado que toda a obra de Guimarães Rosa - e por consequência também seu pensamento - se constituem em um engajamento do coração, ou um engajamento do sentimento.(17) O próprio autor, aliás, jamais negou ou objetou qualquer coisa a respeito. Entretanto, por suas consequências e significação para a determinação do que chamamos um pensamento brasileiro, urge retomar esta afirmação e verificar em que medida a mesma é verdadeira - mas não toda a verdade. Isto só é possível de ser feito a partir sobretudo do próprio texto.
Tomado o Grande Sertão: Veredas como dimensão maior da realização do mito pessoal do homem e artista João Guimarães Rosa, embora sua vida pessoal e seus depoimentos devam contar, são ainda seus textos a sua maiorobjetivação.
Com efeito, a maior parte dos valores afirmados na obra são de natureza e origem sentimental: bondade, alegria, coragem etc.:
"- 'Não sabe que quem é mesmo inteirado valente, no coração, esse também não pode deixar de ser bom?!" (fala de Diadorim - GSV, 143)
"O vau do mundo é a alegria!" (GSV, 288)
"- 'Vau do mundo é a coragem ...' - eu disse." (GSV, 289)
"Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem - que Êle é bondade adiante, quero dizer." (GSV, 296)
Entretanto, na medida em que tais valores têm de ser vividos ("Deus é bondade adiante"), os mesmos sãoinstaurados pelo homem na ação - e não transcendentes ou abstratos. Não obstante, é preciso ter-se em conta que tais valores, em que pese sua incidência e afirmação ao longo de toda a obra rosiana, expressam, no fundo,um modo particular de ser (sentimental, emocional etc) , e que embora postos e elevados à dignidade de valoresmorais, se se pensa a moral na sua relação com a prática de uma ação, dificilmente poderiam caracterizar uma ética. Impõe-se aqui, portanto, o problema dos tipos: não se pode definir como virtudes a alegria de um extrovertido ou a reserva do introvertido; da mesma forma, não se pode falar de "valor" em relação ao sentimentoenquanto função superior do tipo-sentimento, assim como tampouco o é, moralmente, a superior "inteligência" do tipo-pensamento. Vista da perspectiva contrária, é a mesma situação pela qual, jurídica e moralmente, o louco ou débil mental não são considerados responsáveis pelo crime que cometem, ou ainda, da perspectiva religiosa, seu crime não é considerado "falta" ou "pecado". Só há virtude ou não-virtude ali onde se empenham (ou deixam de se empenhar) a vontade, a consciência e a liberdade individuais. Contra o comportamentismo, ainda é possível afirmar que o meio inclina, mas não obriga.
Neste sentido, a nosso ver, aquilo que Krolow chama o engajamento do coração ou do sentimento na obra rosiana, é precisamente aquilo que esta tem de mais pessoal: seja no sentido de uma auto-biografia sincera, seja - eventualmente - no sentido de uma compensação do exatamente oposto. "O artista é um fingidor.. - já o sabia Fernando Pessoa. Não estamos afirmando tal hipótese, mas apenas mostrando a necessidade de se tê-la em conta, em decorrência mesmo do fato de estarmos diante de uma obra que, se nos apresenta um tipo, ao mesmo tempo é obra de um artista.
Se, contrariamente, por valores genuinamente morais entendermos aqueles que dizem respeito à ação e suas conseqüências, aqui, sim, poder-se-á falar de uma ética rosiana - esta porém de tipo muito mais voluntarista que sentimental. De início, refaçamos a "teoria dos valores" do narrador:
"Também, o que é que vale e o que é que não vale? Tudo." (GSV, 138)
A extensão absoluta do conceito ("Tudo") é não obstante mais circunscrita pelo próprio narrador, ao dizer que
"O que vale são outras coisas." (GSV, 95, grifos nossos)
Por sua vez, esta circunscrição do axiológico é logo novamente mais precisada - embora ampliada na ambigüidade de sua formulação:
"Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo ou por cima - o que parece longe e está perto, ou o que está perto e parece longe." (GSV, 217, grifos nossos)
Fazendo intervir o simbolismo da orientação espacial ("em pé" = vertical = consciente) mais um pouco se precisa esta "ambigüidade" quando o narrador declara que
"Só o que a gente pode pensar em pé - isso é que vale." (GSV, 276, grifos nossos).
Se parecemos nos aproximar de uma ética do tipo rácionalista e inoperante ("Só o que... pensar em pé - é que vale"), por outro lado a ação e a proversividade se impõem:
"Não sabia, hoje será que sei, a regra de nenhum meio-têrmo. Sem ação, eu podia gastar ali minha vida inteira, debulhando." (GSV, 83, grifos nossos)
"Tudo tinha me torcido para um rumo só, minha coragem regulada somente para diante, somente para diante." (GSV, 203, grifos nossos)
Entretanto, levando-se em conta o contexto ou experiência específicos a que se refere o narrador - a subjetividade em processo do seu mito pessoal em realização, travessia do "sertão"-inconsciente para a "cidade" da consciência-centro atingido - esta "ação", ao mesmo tempo que assume nova dimensão moral - condição da autonomia - retorna também ao seu sentido primeiro, mitológico e psicológico.
* * *

DA HETERONOMIA À AUTONOMIA: SENTIDO E VALOR DA TRAVESSIA
"Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra." (GSV, 166, grifos nossos)
Ora, "ser bom" e "proceder honesto" apresenta, em relação à consciência individual, um duplo aspecto em que os termos finalmente se invertem: em primeiro lugar, na medida em que têm sua origem na cultura, representampara a consciência individual, tanto o coletivo como o exterior: a heteronomia, pois; em segundo lugar, na medida mesma em que coletivos e exteriores, para a consciência que recebe tais valores como imposição externa (e não conquista interior), tais valores resultam, finalmente e à maneira do superego freudiano, inconscientes. O que é "dificultoso", pois, é a passagem da heteronomia coletivo-multiplicidade-inconsciente para a autonomia unidade-consciência. Não esquecer o
"conselho que Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca não se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempogovernando a idéia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é." (GSV, 225, grifos nossos)
Através do universo de partes mei in aliis personalizadas por via de projeção, continuamente re-verificamos que o ético, para o narrador, está mais estreitamente vinculado ao psicológico do que fariam parecer suas falas tomadasisoladamente. Assim é que melhor se comprende quando o narrador diz que "Eu queria minha vida própria, por meu querer governada" (GSV, 335, grifos nossos), ou quando, se valendo das imagens extremas para o centro (ou eu profundo, ou si mesmo) e para a sombra (o reprimido, ou negativo), já Chefe - mas não narrador ainda,"pensa":
"- 'Não sou do demo e não sou de Deus!' - pensei bruto, que nem se exclamasse." (GSV, 465, grifos nossos)
Afinal o "governo" que definirá a autonomia moral, será (ou não) exercido em relação a um "estado" chamado "sertão":
"O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou osertão maldito vos governa..." (GSV, 466, grifos nossos)
Desta forma, as relações de ordem moral que o narrador estabelece entre os domínios do sentimento e da vontadetrazem-nos de volta às constatações anteriormente apontadas: o sentimento é um dado, fato da subjetividade que decorre do tipo psicológico; prima matéria, deverá ser elaborado pela vontade para, qualitativamentetransformado, assim ascender à eminência de "valor". Neste sentido e para tal objetivo - a vontade (seu uso e exercício a partir da liberdade) é "anterior" e "superior" ao sentimento em questão. Esse esquema de relações, embora constante em todo o conjunto da obra rosiana, encontra sua mais clara formulação na Secção IV do quarto prefácio de Tutaméia ("Sobre a escova e a dúvida"). Introduzindo um equivalente do compadre meu Quelemém, ao qual (não por acaso) chama "o meu guru Weridião"(18) assim se encontra condensada a concepção moral do homem rosiano:
"Suspeito nem sequer minhas vontades profundas. Sob a palavra de Weridião, somos os humanosseres incompletos, por não dominados ainda à vontade os sentimentos e pensamentos. E precisaria, cada um, para simultaneidade no sentir e pensar, de vários cérebros e corações. Quem sabe, temos?Sem amor, eu é que sou um Sísifo sem gravidade."(19)
Ainda aqui coerente com Jung - ao diferenciar "os sentimentos" do amor como uma forma do sentimento - ainda aqui encontramos "os humanos seres incompletos" definidos a partir do herói (Sísifo). Para efeito de verificação da hipótese de um voluntarismo moral que, se não sobrepuja o "engajamento do sentimento", teria como este o mesmo significado ético final, seja-nos permitido adotar, neste domínio, as convenções gráfico-espaciais da formalização matemática, e assim "deduzir" em "fórmula" aquela que se revela a forma da ética rosiana:

 


Assim é que, escapando continuamente de todo abstrato e puramente intelectual, a ética do narrador assume a concretude espessa e humana do psicológico vivido como um
"trabalho de segurar a alma e endurecer as mãos." (GSV, 180, grifos nossos)
Nem absoluta liberdade ou livre arbítrio absoluto, nem destino estrito, fatalismo ou determinismo, se não se pode falar de uma autonomia da moral no pensamento rosiano, necessário é reconhecer-lhe a precisa formulação de uma moral da autonomia. Profundamente humana, porque fundada no que de mais profundo tem o homem; profundamente naturalista, porque fundada no imediato do psicológico; profundamente realista, porque expressa pelo irreal do mito; profundamente concreta, porque tarefa de todos nós. Qualquer análise desta ética, sem qualquer juízo de valor, seria um non-sense. Mais que qualquer síntese, porém,
"Estou dando batalha." (GSV, 296)
E mais sintético ainda, o narrador tudo diz ao dizê-lo em uma única palavra:
"Cumpro." (GSV, 571)


(1) Todas as citações do Grande Sertão: Veredas são feitas sobre a 2ª. edição - que é a definitiva.
(2) in LORENZ, Günter - Literatura Deve Ser Vida. Um Diálogo de Günter W. Lorenz com João Guimarães Rosa.Trad. Jehovanira Füchtner e Chrysóstomo de Sousa, do livro Dialog mit Lateinamerika. Panorama einer Literatur Zukunft - Tübingen, Horst Erdman, 1970. Puhl, in Exposição do Novo Livro Alemão - 1971, org. "Austellungs-und Messe-GmbH Börsenvereins des Buchhandels" em col. Institutos Culturais Brasileiro-Alemães. Págs. 272-273.
(3) Carta a Dora Ferreira da Silva, de 19.2.1958, in Cavalo Azul, S. Paulo, 3 :33, s.d.
(4) JUNG, Carl Gustav - Psychologie et Religion - Trad. Marthe Bernson e Gilbert Cahen, Paris, Buchet/Chastel, 1958, p. 80.       
 (5) O Mundo Movente de Guimarães Rosa. São Paulo, Ed. Ática, 1972.
(6) Cf. Literatura Deve Ser Vida - entrevista a Günter Lorenz, op. cit., passim.
(7) "O Sertão é o inconsciente", "O sonho e o mito: universo e linguagem", "Matéria e matéria vertente no Grande Sertão" - in Revista de Letras, Vol . 16, 1974.     
 (8) JUNG, CG. - Psychologie et Alchimie, Trad. Dr. Roland Cahen e Henry Pernet, Paris, Buchet/Chastel, 1970, p. 161.        
 (9) Cf. ANDRADE, Álvaro Martins - "Matéria e Matéria Vertente no Grande Sertão", Revista de Letras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, Vol . 16, 1974.
(10) Como já tem efetivamente ocorrido na crítica; cf., p. ex., CARDOSO, Wilton - "A estrutura da Composição em Guimarães Rosa", Ciclo de Conferências sobre Guimarães Rosa, Universidade Federal de Minas Gerais - Centro de Estudos Mineiros - Div. autores, Belo Horizonte, 1966, p. 47.
(11) SPINOSA, Êthique, trad. Appuhn, Paris, Garnier, 1958, II , prop. XXXV) escólio. Grifos nossos.         
(12) SARTRE, J . P. - Situations I, Paris, Gallimard, 1947, p. 314 . Grifos nossos.
(13) JUNG, Psychologie et Religion, op. cit., p. 172. Grifos nossos.
(14) JUNG, L'Ame et la Vie, Paris , Buchet/Chastel, 1963, p. 281.
(15) A título de ilustração da natureza especialmente "teórica" de certas falas que - por este motivo - chamamos"textos teóricos", confronte-se, entre outros: pág. 39 (projeção, amor, inconsciente, função da linguagem, homem interior e exterior) ; pág. 59 (Deus, vida, multiplicidade, dôr, nascimento-morte, inferno-diabo, Céu-fim) ; pág. 81 ("antes" e "hoje", Chefia, condição humana-encantamento, projeção) ; pág. 90 (Diadorim, vingança, diabo, "caminho certo", viver) ; pág. 270 (natureza mítica de Zé Bebelo, julgamento, centro, Joca Ramiro e Zé Rebelo) ; pág. 275 (natureza de Diadorim) ; págs. 292 e sgs. (dos mais importantes, síntese contendo "chaves" para quase todos os temas codificados) ; pág. 455-6 (diabo, pacto inegação) ; pág. 456 (processo, ética).
(16) Guimarães Rosa, Carta a Dora Ferreira da Silva, 19.2.1958, Cavalo Azul n.º 3, op. cit., p. 33. Grifos nosos.
(17) Krolow, Karl - "Brasilianisches Epos - João Guimarães Rosa: Corps de Ballet", Süddeutsche Zeitung,Francforte/s/Meno, 8.12.1966.
(18) ROSA, João Guimarães - Tutaméia - Terceiras Estórias, 3.ª ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1969, p. 153.       
 (19) Idem, p. 154. Grifos nossos.