"O prestígio da poesia é menos ela
não acabar nunca do que propriamente começar. É um início perene, nunca uma
chegada seja ao que for. E ficamos estendidos nas camas, enfrentando a
perturbada imagem da nossa imagem, assim, olhados pelas coisas que olhamos.
Aprendemos então certas astúcias, por exemplo: é preciso apanhar a ocasional
distracção das coisas, e desaparecer; fugir para o outro lado, onde elas nem
suspeitam da nossa consciência; e apanhá-las quando fecham as pálpebras, um
momento, rápidas, e rapidamente pô-las sob o nosso senhorio, apanhar as coisas
durante a sua fortuita distracção, um interregno, um instante oblíquo, e
enriquecer e intoxicar a vida com essas misteriosas coisas roubadas. Também
roubámos a cara chamejante aos espelhos, roubámos à noite e ao dia as suas
inextricáveis imagens, roubámos a vida própria à vida geral, e fomos conduzidos
por esse roubo a um equívoco: a condenação ou condanação de inquilinos da
irrealidade absoluta. O que excede a insolvência biográfica: com os nomes, as coisas,
os sítios, as horas, a medida pequena de como se respira, a morte que se não
refuta com nenhum verbo, nenhum argumento, nenhum latrocínio.
Vivemos demoniacamente toda a nossa inocência."
Herberto Helder, in 'Servidões'