O primeiro canto

O primeiro canto

terça-feira, 24 de março de 2015

O Prestígio da Poesia - Herberto Helder

Grande poeta que partiu no dia de hoje. 



"O prestígio da poesia é menos ela não acabar nunca do que propriamente começar. É um início perene, nunca uma chegada seja ao que for. E ficamos estendidos nas camas, enfrentando a perturbada imagem da nossa imagem, assim, olhados pelas coisas que olhamos. Aprendemos então certas astúcias, por exemplo: é preciso apanhar a ocasional distracção das coisas, e desaparecer; fugir para o outro lado, onde elas nem suspeitam da nossa consciência; e apanhá-las quando fecham as pálpebras, um momento, rápidas, e rapidamente pô-las sob o nosso senhorio, apanhar as coisas durante a sua fortuita distracção, um interregno, um instante oblíquo, e enriquecer e intoxicar a vida com essas misteriosas coisas roubadas. Também roubámos a cara chamejante aos espelhos, roubámos à noite e ao dia as suas inextricáveis imagens, roubámos a vida própria à vida geral, e fomos conduzidos por esse roubo a um equívoco: a condenação ou condanação de inquilinos da irrealidade absoluta. O que excede a insolvência biográfica: com os nomes, as coisas, os sítios, as horas, a medida pequena de como se respira, a morte que se não refuta com nenhum verbo, nenhum argumento, nenhum latrocínio.

Vivemos demoniacamente toda a nossa inocência."



Herberto Helder, in 'Servidões'

sábado, 21 de março de 2015

By: Cartier- Bresson, 1947


"Nunca observou, caro senhor, que nossa sociedade se organizou para este tipo de liquidação? Naturalmente, já deve ter ouvido falar dos minúsculos peixes dos rios brasileiros que se atiram aos milhares sobre o nadador imprudente, e limpam-no, em alguns instantes, com pequenas mordidas rápidas, deixando apenas um esqueleto imaculado. Pois bem, é esta a organização deles. "Quer ter uma vida limpa? Como todo mundo?" É claro que a resposta é sim. Como dizer não? "Está bem. Pois vamos limpá-lo. Pegue aí um emprego, uma família, férias organizadas." E os pequenos dentes cravam-se na carne até os ossos. Mas estou sendo injusto. Não se deve dizer que a organização é deles. Ela é nossa. Afinal de contas, é o caso de saber quem vai limpar o outro."
In Albert Camus - A Queda.

Para os amantes das palavras que Camus eternizou em "A Queda", segue o link de um programa da UNISINOS: "Direito e Literatura". Uma iniciativa valiosa de interpretar e/ou olhar com outras lentes para uma obra literária. Vale muito passar a vista. 

Direito e Literatura | A Queda, de Albert Camus: http://www.youtube.com/watch?v=gKBe1tmlOwo 

sexta-feira, 13 de março de 2015

Beautiful - Marillon



“…And the leaves turn from red to brown
To be trodden down, trodden down”



"Falling Slowly"- Once



“And I can't go back
Moods that take me and erase me
And I'm painted black”


quarta-feira, 11 de março de 2015

Liberdade- Miguel Torga



— Liberdade, que estais no céu... 

Rezava o padre-nosso que sabia, 

A pedir-te, humildemente, 
O pio de cada dia. 
Mas a tua bondade omnipotente 
Nem me ouvia. 

— Liberdade, que estais na terra... 
E a minha voz crescia 
De emoção. 
Mas um silêncio triste sepultava 
A fé que ressumava 
Da oração. 

Até que um dia, corajosamente, 
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado, 
Saborear, enfim, 
O pão da minha fome. 
— Liberdade, que estais em mim, 
Santificado seja o vosso nome.    

Miguel Torga, in 'Diário XII'


Quando ficava de cama, seu pai trazia um velho livro cujas últimas três páginas haviam sido arrancadas. Então, ela se aninhava nos seus braços para inventarem juntos o final. Na gripe, a princesa fugiu do castelo e foi ser repórter. Perna quebrada: deixou o príncipe em casa cozinhando e saiu com as amigas. Amídalas? Juntou-se a outras e mudaram o mundo. Ontem, já crescida, foi comprar o primeiro livro para a filha. Escolheu com carinho, arrancou as três últimas páginas e, sorrindo, pediu: “para presente”.  Leonardo Sakamoto

terça-feira, 10 de março de 2015


“Mesmo que a rota da minha vida me conduza a uma estrela,
nem por isso fui dispensado de percorrer os caminhos do mundo.”
-José Saramago-