O primeiro canto

O primeiro canto

sábado, 18 de novembro de 2017

"O Sonho de um Homem Ridículo"




Curta (animação): O Sonho de um Homem Ridículo [‘Сон смешного человека’ | ‘Son Smeshnogo Cheloveka’]
Direção: Aleksandr Petrov
Roteiro: Fiódor Dostoiévski (conto) e Aleksandr Petrov (adaptação)
Trilha: Alexander Raskatov
Ano/país: 1992 | Rússia
Duração: 20 min.

"Manuscrito Encontrado numa Garrafa" Allan Poe



“Qui n’a plus qu’un moment à vivre, n’a plus rien à dissimuler.”
Quinault, Atys


Da minha terra e da minha família pouco tenho a dizer. Os maus costumes e o acumular dos anos afastaram-me da primeira e alhearam-me da segunda. O meu patrimônio proporcionou-me uma educação pouco comum e uma disposição de espírito contemplativa permitiu-me ordenar metodicamente as aquisições diligentemente reunidas pelo estudo precoce. O estudo dos filósofos alemães fez particularmente as minhas delícias: não por qualquer mal-avisada admiração pela sua eloqüente loucura, mas antes pela facilidade com que os meus hábitos de raciocínio rigoroso me facultavam a detecção dos seus erros. Fui muitas vezes admoestado pela aridez do meu gênio; imputavam-me, como se de um crime se tratasse, falta de imaginação, e o pirronismo das minhas opiniões sempre me tornou notado. De fato, receio bem que uma forte atração pela filosofia física me tenha impregnado o espírito de um defeito muito comum nesta época: refiro-me ao hábito de reportar os acontecimentos, mesmo os menos susceptíveis de o serem, aos princípios de tal ciência. Em suma, ninguém seria menos dado que eu a deixar-se desviar das estritas fronteiras da verdade pelos ignes fatui da superstição. Achei que se justificaria esta introdução, sob pena de o incrível relato que se segue ser tomado mais pelo delírio de uma imaginação desenfreada do que pela experiência positiva de um espírito para o qual os devaneios da fantasia sempre foram letra morta e coisa de nulo valor.
Após muitos anos passados em deslocações pelo estrangeiro, larguei no ano de 18… do porto de Batávia, na rica e populosa ilha de Java, em viagem ao arquipélago de Sunda. Embarquei como passageiro, sem outro estímulo que não fosse uma qualquer nervosa irrequietude que me obcecava como espírito maléfico.
O nosso navio era um belo veleiro de umas quatrocentas toneladas, construído de teca do Malabar em Bombaim. Levava um carregamento de algodão em rama e azeite, proveniente das ilhas Lacadivas. Transportávamos ainda fibra de coco, açúcar mascavado, manteiga, cocos e algumas caixas de ópio. A estiva tinha sido feita de modo descuidado, pelo que o navio ia adornado.
Largamos sob um tênue bafejo de vento e mantivemo-nos durante vários dias ao longo da costa oriental de Java, sem mais incidentes que iludissem a monotonia da nossa singradura para além do encontro ocasional com alguns grabs (1) do arquipélago a que nos mantínhamos confinados.
Uma tarde, debruçado à balaustrada da popa, observei uma nuvem isolada muito estranha, a noroeste. Era singular, quer pela cor, quer por ser a primeira com que deparávamos desde a largada de Batávia. Contemplei-a atentamente até ao sol-pôr, altura em que alastrou repentinamente para leste e oeste, cercando o horizonte de uma estreita faixa de vapor e assemelhando-se a uma baixa linha de costa. Não tardou que a minha atenção fosse subseqüentemente atraída pelo aspecto vermelho-escuro da Lua e pelo invulgar estado do mar. Este sofreu uma rápida alteração e a água parecia mais transparente do que o habitual. Embora conseguisse ver distintamente o fundo, ao lançar a sonda verifiquei que a profundidade local era de vinte braças. O ar tornara-se agora intoleravelmente quente e estava carregado de exalações espirais semelhantes às que se desprendem do ferro quando aquecido. Com o tombar da noite, o vento caiu totalmente, sendo impossível conceber calmaria mais completa. A chama da lanterna sobre a popa ardia sem o menor movimento perceptível, e um cabelo comprido, seguro entre o polegar e o indicador, pendia sem que pudesse observar-se a mais pequena ondulação. No entanto, como o comandante dissesse que não se apercebia de qualquer indício de perigo, e uma vez que estávamos a abater totalmente para terra, mandou ferrar as velas e fundear. Não se passou a regime de quartos e a tripulação, constituída principalmente por malaios, veio deitar-se deliberadamente no convés. Desci aos alojamentos – não sem um forte pressentimento de desastre. De facto, todas as aparências me levavam a suspeitar da aproximação do simum. Dei parte dos meus temores ao comandante, mas este não prestou a menor atenção às minhas palavras e deixou-me sem ao menos se dignar de responder. Todavia, a inquietação não me deixou dormir e, perto da meia-noite, subi ao convés. Ao colocar o pé no último degrau da escada, fui surpreendido por um forte ruído sussurrante como produzido por rápida rotação de moinho e, antes que pudesse averiguar o seu significado, apercebi-me de que o navio estremecia na direção do seu centro. No instante imediato, um cachão de espuma fez-nos adornar subitamente e, passando sobre nós, varreu todo o convés de popa a proa.
A extrema violência do choque veio, em grande parte, a ser a salvação do navio. Embora completamente inundado, quando os mastros foram pela borda fora, ergueu-se pesadamente das águas um minuto depois e, vacilando um instante sob a intensa pressão da tempestade, endireitou-se finalmente.
Não sei dizer por que milagre escapei à destruição. Atordoado pelo embate de água, dei por mim, uma vez refeito, entalado entre o cadaste e o leme. com grande dificuldade, pus-me de pé e, olhando confusamente ao redor, fui inicialmente assaltado pela idéia de que estivéssemos no meio de recifes, de tal modo terrível e inimaginável era o turbilhão do oceano alteroso e espumejante em que estávamos mergulhados. Passados algum tempo ouvi a voz de um velho sueco, que embarcara conosco no momento em que largávamos do porto. Gritei-lhe com todas as forças e ele acabou por dirigir-se, a cambalear, para a popa. Depressa descobrimos que éramos os únicos sobreviventes do acidente. Todos os que estavam no convés, exceto nós, tinham sido varridos pela borda fora; o comandante e os oficiais deviam ter perecido durante o sono, visto que os camarotes se encontravam totalmente alagados. Sem auxílio, pouco poderíamos contar fazer pela segurança do navio e os nossos esforços foram de princípio paralisados pela perspectiva momentânea de irmos a pique. Era evidente que a amarra se quebrara como se fosse uma guita ao primeiro sopro do furacão, pois de contrário teríamos sido instantaneamente esmagados. Corríamos com o furacão a uma velocidade assustadora e as águas abriam brechas visíveis à nossa frente. A estrutura da popa tinha sofrido enormes danos e, praticamente sob todos os aspectos, fôramos objeto de consideráveis avarias; mas para nossa extrema alegria, descobrimos que as bombas não tinham ficado obstruídas e que o lastro não sofrera grande deslocação. A maior fúria da tempestade tinha já amainado e a violência do vento não parecia oferecer grande perigo: contudo, ansiávamos, consternados, por que ele cessasse completamente, pois estávamos em crer que, com tais estragos, inevitavelmente pereceríamos na ondulação tremenda que sobreviria. Contudo, esta justíssima apreensão não parecia de modo algum em vias de concretizar-se. Durante cinco dias e cinco noites – no decurso dos quais tivemos por único alimento uma pequena porção de açúcar mascavado, obtido com grande dificuldade no castelo da proa – o calhambeque correu a uma velocidade que desafiava qualquer cálculo, impulsionado por rajadas de vento que se sucediam rapidamente, as quais, sem contudo se compararem à violência inicial do simum, eram ainda mais terríveis do que qualquer tempestade que até então eu tivesse presenciado. O nosso rumo durante os primeiros quatro dias foi, com insignificantes variações, sueste quarta a sul, e deveríamos ir parar às costas da Nova Holanda. No quinto dia começou a fazer-se sentir um frio extremo, embora o vento tivesse rondado mais uma quarta para norte. O Sol despontou com um fulgor amarelo doentio e ergueu-se apenas alguns graus acima do horizonte – sem emitir uma luz definida. Não havia nuvens à vista, mas o vento continuava a refrescar e soprava com uma violência irregular e instável. Cerca do meio-dia, tanto quanto nos era possível estimar, a nossa atenção foi novamente desperta pela aparência do Sol. Não emitia luz propriamente dita, mas antes um clarão mortiço e soturno sem reverberação, como se todos os seus raios estivessem polarizados. Imediatamente antes de mergulhar no mar túrgido, a sua chama central extinguiu-se de súbito, como que pressurosamente apagada por algum inexplicável poder. Era apenas um arco esbatido e quase prateado ao precipitar-se no oceano insondável.
Aguardamos em vão a chegada do sexto dia: esse dia para mim não chegou: para o sueco, não existiu sequer. De então em diante, vimo-nos amortalhados numa escuridão de breu, de tal modo que não conseguiríamos ver um objeto a vinte passo do navio. A noite eterna começou a envolver-nos, nem sequer mitigada pela fosforescência das águas a que nos habituáramos nos trópicos. Observamos igualmente que, embora a tempestade continuasse a bramir com inquebrantável violência, já não conseguia descortinar-se o habitual aparecimento de rebentação ou espuma, que até então nos havia acompanhado. À nossa volta tudo era horror, trevas profundas e um negro e abrasador deserto de ébano. Um terror supersticioso começou a invadir progressivamente o cérebro do velho sueco, e meu próprio espírito estava mergulhado em profundo espanto. Abandonáramos todos os cuidados do navio, mais do que inúteis, e, amarrando-nos o melhor que pudemos ao mastro da mezena, observávamos amargamente a imensidão do oceano. Não tínhamos maneira de calcular o tempo nem fazíamos a menor idéia de qual a nossa posição. Contudo, estávamos perfeitamente cientes de que havíamos navegado mais para sul do que qualquer outro mareante e experimentamos grande admiração por se não nos depararem os habituais obstáculos de gelo. Entrementes, cada instante ameaçava ser o último da nossa vida: não havia vaga alterosa que não se precipitasse para nos esmagar. A ondulação ultrapassava tudo o que eu imaginara possível e o fato de o mar não nos ter sepultado instantaneamente constituía um milagre. O meu companheiro referiu-se ao pouco peso da carga que transportávamos e recordou-me as excelentes qualidades do navio; fosse como fosse, eu não conseguia deixar de sentir o extremo desespero da própria esperança e preparei-me melancolicamente para a morte que acreditava nada poder adiar por mais que uma hora, visto que, a cada nó que o navio avançava, a agitação das prodigiosas águas negras se tornava cada vez mais lugubremente aterradora. Por vezes, ao elevarmo-nos mais ainda que um albatroz, perdíamos a respiração; outras ficávamos atordoados com a velocidade com que o navio se afundava em qualquer inferno aquático, onde o ar estagnava e nenhum som perturbava o sono dokraken (2).
Encontrávamo-nos no fundo de um desses abismos quando um súbito grito do meu companheiro rompeu temerosamente na noite:
- Olhe! Olhe! – gritou angustiadamente aos meus ouvidos. – Deus todo-poderoso! Olhe! Olhe!
Enquanto ele falava, apercebi-me do clarão mortiço e sombrio de uma luz vermelha que se escoava de um e outro lado do abismo em que estávamos mergulhados, e lançava um brilho incerto sobre o nosso convés. Erguendo a vista, observei um espetáculo que me fez gelar o sangue nas veias. A uma altura descomunal acima de nós, e precisamente na orla precipício das águas, pairava um gigantesco navio de umas quatro mil toneladas. Apesar de alcandorado na crista de uma vaga que tinha mais de cem vezes a sua altura, as suas dimensões aparentes ainda assim excediam as de qualquer navio de linha ou da Companhia das Índias. O seu casco enorme era de um negro profundo, nem sequer atenuado por qualquer dos habituais ornatos que os navios ostentam. Uma fileira única de peças de artilharia de bronze emergia das escotilhas abertas e as suas superfícies polidas refletiam os clarões das inúmeras lanternas de combate que balouçavam de um lado para outro na mastreação. Todavia, o que fundamentalmente nos encheu de horror e espanto foi que ele navegava a todo o pano, a despeito daquele mar sobrenatural e do incontrolável furacão. Quando o avistamos a primeira vez, apenas se lhe via a proa, ao erguer-se lentamente do sombrio e horrível fosso que ia deixando para trás. Por um instante de intenso terror, deteve-se sobre o cume vertiginoso, como que imerso na contemplação da sua própria magnificência, após o que estremeceu, vacilou e… iniciou a queda.
Nesse instante, não sei que súbita serenidade me invadiu o espírito. Avançando a cambalear para a popa o mais que me foi possível, aguardei sem receio a catástrofe que certamente nos iria esmagar. O nosso próprio navio começava a abandonar a luta e a mergulhar a proa nas águas. O choque daquela mole que se abatia atingiu-o, por conseguinte, naquele porção da estrutura que estava já sob a água, e o resultado inevitável foi precipitar-me, com irresistível violência, de encontro ao cordame do intruso.
Quando caí, o navio aproou ao vento e virou de bordo; foi à confusão que se seguiu que atribuí o fato de ter passado despercebido aos olhos da tripulação. Não encontrei dificuldade em abrir caminho sem ser detectado até à escotilha principal, que estava parcialmente aberta, e pouco tardou que se me deparasse uma ocasião propícia para me ocultar no porão. Não sei exatamente por que razão o fiz. Talvez uma indefinida sensação de temor, que desde a primeira visão dos tripulantes do navio se me apoderara do espírito, estivesse na origem desta tentativa de buscar esconderijo. Não me sentia inclinado a confiar numa raça de gente que havia revelado, perante o olhar apressado que lhes deitara, tantos motivos de vaga estranheza, dúvida e apreensão. Julguei, pois, acertado arranjar um lugar no porão onde pudesse ocultar-me. Fi-lo deslocando uma porção de pranchas, de modo a obter um abrigo adequado entre o cavername enorme do navio.
Mal terminara ainda a tarefa, quando o som de passos no porão me obrigou a utilizá-lo. Um homem de andar débil e incerto passou junto ao meu esconderijo. Não pude ver-lhe o rosto, mas tive ocasião de observar-lhe o aspecto geral. Apresentava indícios de idade avançada e de doença. Os joelhos vacilavam ao peso dos anos e todo o corpo estremecia sob o seu fardo. Murmurava de si para si, em tom grave e entrecortado, quaisquer palavras numa língua que não logrei distinguir e tateou a um canto entre uma pilha de instrumentos de aspecto invulgar e de cartas de navegação apodrecidas. O seu comportamento era uma estranha mistura de rabugice da segunda infância e da solene dignidade de um deus. Acabou por regressar ao convés e não voltei a vê-lo.
* * *
Um sentimento que não sei designar apossou-se-me do espírito: uma sensação que não admite análise, para a qual os ensinamentos do passado de nada servem e, receio, nem o porvir me fornecerá a chave. Para um espírito da estrutura do meu, esta última consideração é uma tortura. Nunca hei de ser esclarecido – sei que nunca o serei – relativamente à natureza das minhas concepções. E contudo não será de estranhar que tais concepções sejam mal definidas, posto que têm a sua origem em causas tão inteiramente inéditas. Um novo sentido – uma nova entidade – foi acrescentada à minha alma.
Faz já muito que pisei pela primeira vez o convés deste terrível navio e julgo que os raios do meu destino convergem para um foco. Homens incompreensíveis! Imersos em meditações cuja natureza não logro adivinhar, passam por mim sem darem pela minha presença. O fato de me esconder é puro disparate da minha parte, pois esta gente não quer ver. Ainda há instantes passei diretamente pela frente do imediato; não faz muito tempo que me aventurei a penetrar mesmo no camarote individual do comandante e de lá tirei o material com o qual escrevo e tenho vindo a escrever. Continuarei este diário de quando em quando. É certo que posso não ter ocasião de transmiti-lo ao mundo, mas não deixarei de o tentar. No último momento meterei o manuscrito numa garrafa e lançá-la-ei ao mar.
* * *
Deu-se um incidente que me forneceu novos motivos de reflexão. Será tudo isto obra de um desordenado Acaso? Tinha-me aventurado a sair ao convés e estendi-me, sem despertar a menor atenção, no meio de um amontoado de cabos de enxárcias e de velas usadas, no fundo do escaler. Enquanto meditava sobre a singularidade do meu destino, rabisquei inconscientemente com uma brocha de alcatrão as orlas de um cutelo cuidadosamente dobrado que tinha perto de mim sobre uma barrica. O cutelo está agora envergado no navio e as pinceladas irrefletidas da brocha, com a vela esticada, formam a palavra DESCOBERTA.
Ultimamente fiz várias observações sobre a estrutura do navio. Embora bem armado, creio que não se trata de um navio de guerra. Quer o cordame, quer a construção, quer o equipamento em geral levam a por de lado tal hipótese. O que ele não é posso eu facilmente compreender; receio é que seja impossível dizer o que é. Não sei como, mas, ao perscrutar o seu estranho modelo e a forma singular da mastreação, o seu enorme tamanho, o exagerado número de jogos de velas, a sua proa austeramente simples e a popa antiquada, acontece vir uma ou outra vez ao meu espírito uma sensação de coisas familiares, e a essas sombras indistintas da memória mistura-se sempre uma inexplicável reminiscência de velhas crônicas estrangeiras e de épocas remotas.
Estive a observar o madeiramento do navio. O material de que é feito é-me desconhecido. Há uma característica peculiar da madeira que me choca como se a tornasse inadequada para o fim ao qual foi destinada: refiro-me à sua extrema porosidade, considerada independentemente do fato dos estragos que os parasitas provocam nestes mares e para além da podridão concomitante com a idade. Isto poderá porventura parecer uma observação algo sutil, mas esta madeira teria todas as características do carvalho espanhol se este tivesse sido distendido por quaisquer meios não naturais.
Ao reler a frase anterior, ocorre-me intacto à memória o curioso adágio de um velho marinheiro holandês forjado nas intempéries: “É tão verdade”, costumava dizer quando alguém albergava qualquer dúvida sobre a veracidade do que contava, “como é verdade existir um mar onde o próprio navio aumenta de volume como o corpo vivo de um marinheiro”.
Há cerca de uma hora, ousei introduzir-me num grupo de tripulantes. Não me deram a menor atenção e, embora estivesse mesmo no meio de todos eles, pareceram completamente alheios à minha presença. Tal como o que tinha visto antes no porão, qualquer deles apresentava indícios de encanecida velhice. Os joelhos tremiam-lhes de doença; tinham os ombros duplamente abaulados devido à decrepitude; os seus rostos ressequidos abanavam ao vento; as vozes eram baixas, trêmulas e entrecortadas; os olhos cintilavam-lhes com a reuma dos anos e os cabelos grisalhos tremulavam espantosamente na tempestade. Em redor deles, por todo o convés, estavam espalhados instrumentos matemáticos da mais singular e obsoleta estrutura.
Referi um pouco atrás o envergar de um cutelo. Desde essa altura o navio, correndo com o vento, continuou a sua assustadora carreira para sul, com todo pano largado, dos topos dos mastros aos botalós dos cutelos baixos, e balançando a cada instante as vergas do joanete no mais aterrador inferno marinho que a imaginação humana possa conceber. Acabo de abandonar o convés, onde concluí ser impossível manter-me, embora a tripulação não pareça experimentar grande incomodidade. Afigura-se-me o milagre dos milagres o fato de a massa enorme de nosso navio não ser tragada de uma vez por todas. Estamos certamente condenados a pairar continuamente sobre a orla da Eternidade, sem dar um mergulho final no abismo. Deslizamos entre vagas mil mais tremendas do que alguma vez vi, com a facilidade da sagitada gaivota; e as ondas colossais erguem as cristas sobre nós como demônios das profundezas, mas como demônios limitados a meras ameaças e impedidos de destruir. Sinto-me tentado a atribuir esta repetida salvação à unica causa natural que pode explicar tal efeito: devo supor que o navio está sob a influência de uma forte corrente, de uma impetuosa ressaca.
Vi o comandante cara a cara, e no seu próprio camarote; mas, como esperava, não me prestou atenção. Embora nada haja no seu aspecto, para um observador pouco atento, que possa sugerir ser ele alguma coisa mais ou menos do que humano, misturaram-se-me uma irreprimível reverência e temor à sensação de espanto com que o observei. A estatura dele é quase a mesma que a minha, isto é, certa de um metro e setenta. É de compleição proporcionada e compacta, sem ser robusto nem quanto ao resto digno de nota. É, porém, a singularidade da expressão que lhe anima o rosto, é o intenso, maravilhoso e empolgante testemunho de velhice, de uma tão extrema velhice que suscita no meu espírito um sentimento, uma sensação inefável. A sua fronte, conquanto pouco enrugada, parece transportar a marca de uma miríade de anos. Os seus cabelos grisalhos são registros do passado e os olhos ainda mais cinzentos são sibilas do futuro. O pavimento do camarote estava densamente juncado de in-fólios com fivelas de ferro, de esboroados instrumentos científicos e de cartas obsoletas e há muito abandonadas. Tinha a cabeça inclinada sobre as mãos e lia atentamente, com um ardente olhar inquieto, um papel que tomei por uma carta de comando e que, em qualquer caso, apresentava a assinatura de um monarca. Murmurava de si para si, em voz baixa e rabugenta, como fazia o primeiro marinheiro que eu vira no porão, quaisquer sílabas de uma língua estrangeira, e, embora falasse mesmo junto de mim, a sua voz parecia chegar-me aos ouvidos vinda de uma milha de distância.
O navio e todos os que nele seguem estão imbuídos do espírito de Antanho. A tripulação desliza para um lado e para outro como fantasmas de séculos enterrados; os seus olhares têm uma expressão ansiosa e intranqüila; e quando os seus dedos, à minha passagem, caem sob o brilho cru das lanternas de combate, sinto o que nunca antes senti, embora toda a vida tenha negociado em antiguidades e me tenha impregnado das sombras das colunas caídas de Balbec, Tadmor, e Persépolis, até a minha própria alma se converter numa ruína.
Quando olho em redor envergonho-me das minhas apreensões iniciais. Se tremi ante a tempestade que até agora nos acompanhou, não deveria ficar horrorizado perante a adversidade do vendo e do oceano, que as palavras tornado e simum se tornam banais e ineficazes para descrever? Tudo o que se encontra na imediata proximidade do navio é a escuridão da noite eterna e um caos de água sem espuma; mas, cerca de uma légua para um e outro bordo, podem ver-se, indistintamente e de quando em quando, enormes baluartes de gelo, que se erguem ao longe contra o céu desolado, semelhantes às muralhas do universo.
Conforme imaginei, prova-se que o navio está sob a ação de uma corrente, se é que assim se pode apelidar uma maré que, gemendo e uivando através da brancura do gelo, troveja para o sul com uma velocidade semelhante à impetuosa precipitação de uma catarata.
Creio ser totalmente impossível transmitir o horror das minhas sensações; porém, a curiosidade de penetrar os mistérios destas horríveis regiões prevalece mesmo sobre o meu desespero e reconcilia-me com o aspecto mais hediondo da morte. Torna-se evidente que corremos ao encontro de qualquer revelação emocionante: algum segredo que nunca será transmitido, descoberta é o termo da vida. Talvez esta corrente nos leve ao próprio Pólo Sul. Devo considerar que esta suposição, aparentemente tão estranha, tem todas as probabilidades de estar correta.
A tripulação percorre o convés com passo inquieto e trêmulo; mas há na sua atitude uma expressão que é mais da ânsia da esperança do que da apatia do desespero.
Entretanto, temos ainda o vento na popa e, como navegamos com imenso pano, o navio é por vezes erguido do mar em peso. Oh, horror sobre horror! O gelo abre-se simultaneamente à direita e à esquerda e começamos a rodopiar vertiginosamente em imensos círculos concêntricos, em torno de um gigantesco anfiteatro, de paredes cuja altura se perde na escuridão e na distância. Mas pouco tempo me restará para ponderar sobre o meu destino: os círculos estreitam rapidamente… mergulhamos loucamente nas garras do turbilhão… e, por entre o rugir, o bramir e o ribombar do oceano e da tempestade, o navio começa a estremecer e – meu Deus! – e… a afundar. (3)
Edgar Allan Poe

Notas:
1. Embarcação oriental armada de velas latinas e normalmente de dois mastros. (N. do T.)
2. Monstro marinho lendário das costas escandinavas. (N. do T.)
3. O Manuscrito encontrado numa garrafa foi publicado pela primeira vez em 1831, e só muitos anos mais tarde tomei conhecimento das cartas de Mercator, nas quais o oceano é representado a precipitar-se, por quatro embocaduras, no Abismo Polar (do Norte), para ser absorvido pelas entranhas da terra, sendo o próprio pólo representado por um rochedo negro que se ergue a uma altura prodigiosa. (N. do A.)


domingo, 12 de novembro de 2017

A aposta de Fausto e o processo da Modernidade


Imagem do filme Fausto. Direção: F.W. Murnau

A aposta de Fausto e o processo da Modernidade: figurações da sociedade e da metrópole contemporâneas na tragédia de Goethe
  
Michael Jaeger


"OH, PÁRA!" – nessa única exclamação de Fausto reverbera todo o potencial de felicidade e infelicidade da tragédia goethiana. Desvinculada de seu contexto, poder-se-ia pensar que se trata do suspiro de um ser esgotado ou do anelo de um solitário; nesse caso, a exclamação "Oh, pára!" seria um sinal de vida, palavras de alguém que, imerso no torvelinho ininterrupto da existência, suplica por uma trégua para respirar. Se complementarmos o semiverso no texto de Goethe, poderá resultar daí até mesmo uma expressão de ânsia amorosa: "Oh, pára! és tão formoso!".1 Tais significados podem muito bem estar presentes no discurso de Fausto, mas são desviados para uma dimensão subconsciente, pois o verso "Oh, pára! és tão formoso!" representa, antes de mais nada, o componente decisivo daquela aposta diabólica que Fausto fecha com Mefistófeles:

Se vier um dia em que ao momento 
Disser: Oh, pára! és tão formoso! 
Então algema-me a contento, 
Então pereço venturoso! 
Repique o sino derradeiro, 
A teu serviço ponhas fim, 
Pare a hora então, caia o ponteiro, 
O Tempo acabe para mim! (v.1.699-1.706)2

Aos olhos de Fausto, aquele "Oh, pára!" não constitui nenhuma manifestação de vida ou de amor, mas sim um sinal de morte. Pois o momento em que ele desejasse parar, quisesse deter-se porque a existência se lhe afigurasse bela e ele se mostrasse satisfeito com a realidade presente, esse momento deveria ser ao mesmo tempo o de sua morte – o instante, portanto, em que Mefisto, zeloso servo de Fausto durante o seu tempo de vida, assumiria domínio irrestrito sobre sua alma.
O texto de Goethe conhece diversas variações daquela proibição de paz e repouso em face do belo, proibição essa que resulta do pacto entre Fausto e Mefisto. Para citar apenas alguns exemplos: "E mais maldita ainda, a paciência!" (v.1.606), ou "De qualquer forma sou escravo" (v.1.710), ou "Saciemo-nos no efêmero momento, / No giro rápido do evento!" (v.1.754-1.755), ou "Entrego-me ao delírio, ao mais cruciante gozo" (v.1.766) e, finalmente, "Este aqui maldito!" (v.11.233). Todo "aqui", todo existir consciente no aqui e no agora é sem valor, árido, morto. Somente aquilo que não está dado, que não se encontra à disposição, apenas o ainda-não-existente é o que atrai e promete a verdadeira vida. Torna-se evidente que dessa proibição do deter-se resulta um culto da velocidade, da inovação desenfreada, da tropelia permanente de imagens e sensações.
Quem de nós, vivendo nos dias de hoje, poderia furtar-se à consciência de que a fórmula fáustica do pacto e da aposta, introjetada já desde muito tempo, determina o nosso comportamento cotidiano? Abre-se diante de nós a possibilidade de enxergar no processo de negação permanente de toda reflexão serena e detida, voltada ao existente, a lei estrutural da moderna sensação de tempo. Inúmeros exemplos do mundo atual das comunicações, do consumo, da economia e da política poderiam ser arrolados aqui para ilustrar a desvalorização de todo momento presente, de todo real efetivo, assim como para demonstrar a atração do não-existente.
Na atual sociedade dominada pela informação e pela mídia, a negação de todos os dados presentes é intensificada até o extremo. Mal ganham forma as imagens e notícias, e de imediato já se vêem desvalorizadas, descartadas pelo seu mero existir. O fluxo permanente, cada vez mais veloz, de imagens, sons, dados e notícias voa sem interrupção, de maneira sempre renovada, rumo à próxima sensação. No mundo das vertiginosas alternâncias de imagens e dos ritmos acelerados que as acompanham, todo deter-se por parte da consciência contemplativa e reflexiva tornou-se, de fato, impossível; não há mais nenhum momento que possa subtrair-se ao furor dinâmico impulsionado pela negação incessante do presente. O pacto de Fausto com Mefisto parece, portanto, exprimir em versão literária e, ao mesmo tempo, de modo preciso e concreto, a lei estrutural da modernidade e, por conseguinte, também do nosso mundo atual.
A Fausto não é possível e nem permitido contentar-se – primeiramente em seu ímpeto por conhecimento e, depois, em sua desesperada obsessão de entretenimento (ou, antes, atordoamento). Ele quer saber tudo, em primeiro lugar coisas novas, possuir continuamente outras coisas, ver imagens inéditas, cada vez mais espetaculares. Em sua vontade de exercer poder sobre a Vida, ele cobiça manipular incondicionalmente os seus elementos – e, em virtude dessa exigência desmedida, fica à mercê do diabo. A proibição fáustica do deter-se, a negação de tudo o que existe no aqui e agora, da realidade momentânea, e o seu almejo insaciável pelo ainda-não-existente, por aquilo que ele não possui, essa disposição de consciência é representada por Mefistófeles. Ao fazer do demônio, na figura de Mefisto, uma valência psíquica de Fausto, Goethe moderniza uma tradição antiqüíssima, proveniente do século XVI, isto é, a história daquele doutor Fausto que, em seu frenético ímpeto por conhecimento e domínio, acaba fazendo um pacto com o demônio.3
Acompanhado pelo ominoso poodle, Fausto retorna do passeio de Páscoa para o seu solitário gabinete de estudos, onde então Mefisto, sob intensa liberação de fumaça, desentranha-se do cão e apresenta-se como um princípio espiritual, no sentido daquela psicologização:

O Gênio sou que sempre nega! 
E com razão; tudo o que vem a ser 
É digno só de perecer; 
Seria, pois, melhor, nada vir a ser mais. 
Por isso, tudo a que chamais 
De destruição, pecado, o mal, 
Meu elemento é, integral. (v.1.338-1.344)

Esse auto-apresentar-se do espírito da negação tem conseqüências, já que pouco depois Fausto sucumbe à tentação de negar tudo. Pois na aposta, ou no pacto que fecha com o espírito da negação, Fausto converte-se por sua vez em espírito que nega todo existir no presente, nega em si todo momento e todo deter-se consciente e reflexivo, porque de antemão nada do que existe pode satisfazer as suas exigências, e, em conseqüência, revela-se digno de perecer. Se todo deter-se no presente está ameaçado de morte, a angústia perante essa ameaça mortal dá origem a um furor voltado ao consumo da realidade, à demanda de mundo – poder-se-ia falar até mesmo de uma embriaguez de consumo impelida de maneira fóbica. Margarida é a primeira vítima real dessa compulsão de devorar todo o existente, e é também ela que tem a percepção de Fausto e Mefisto como os dois lados de uma mesma medalha. Palavras de Margarida no cárcere, ao perceber Mefisto atrás de Fausto que, a bem da verdade, veio com a intenção de libertá-la:

Que surge do solo lá fora? 
Ele! é ele! Vem repeli-lo! 
Que busca no sagrado asilo? 
Busca-me a mim! (v.4.601-4.604)

Fausto não pode absolutamente repelir Mefisto, mandá-lo embora, uma vez que o tem sempre junto a si em sua angústia em relação ao deter-se e em sua obsessão de consumir pela negação tudo o que existe. E esse Fausto mefistofélico quer efetivamente Margarida, ele a quer devorar, sob o domínio do "apetite" pelo seu corpo (v.2.603). Por isso, exclama Margarida: "Henrique! aterro-me contigo!" (v.4.610).
O horror infundido por Fausto deriva, contudo, de sua angústia, da disposição mefistofélica que o compele a devorar todo ser presente, como deve portar-se um espírito que nega continuamente o real, para que não pereça no primeiro momento de comunhão com a realidade do ser, no primeiro gesto do demorar-se e admirar, quando então viesse a exclamar: "Oh, pára! és tão formoso!". Tudo o que acontece na tragédia – e as exceções confirmam a regra – está a serviço das tentativas de Fausto para, por meio da negação do momentaneamente existente, recalcar o seu medo mórbido perante o deter-se, o demorar-se no instante.
E para essa atitude ininterrupta de recalcamento fica valendo a constatação de caráter histórico: Goethe converte o Fausto mefistofélico em arquétipo da disposição de consciência característica de uma Modernidade que principia na segunda metade do século XVIII e alcança o seu apogeu, ou possivelmente a sua fase final, nos dias que hoje vivemos. Essa época moderna encontra-se sob o signo de dois específicos fenômenos revolucionários, a saber, o permanente revolucionamento político na Europa, que se inicia com a Revolução Francesa, e a permanente revolução econômica nas condições e relações de vida, encetada pela maquinaria do industrialismo no início do século XIX. O texto completo do Fausto goethiano surge entre 1770 e 1831, exatamente sob esse pano de fundo político-econômico.4 Em Fausto. Um fragmento, publicado em 1790 e assinalando o início da história editorial do texto goethiano, são inequívocas as alusões à incipiente Revolução Francesa. E quarenta anos depois, sob o impacto da Revolução Parisiense de julho de 1830, Goethe conclui o trabalho de sua vida no manuscrito fáustico, mas não sem depositar nos lábios do seu herói dramático as posições mais atuais, mais "modernas" dessa era das revoluções.5 Tanto para a revolução política como para a revolução econômica dessa época, o princípio da negação é constitutivo. Isso se torna particularmente evidente no âmbito da política revolucionária, a qual nega continuamente o estado de coisas vigente, reconhecido como corrupto e, portanto, como inimigo mortal. Na consciência dos revolucionários, o processo movido pela revolução é idêntico ao processo do movimento histórico. As sentenças proferidas pelos tribunais da Revolução, assim o quer a autoconsciência revolucionária, estão integradas à lógica processual da história e, como negação permanente do respectivo presente político e social, promovem e executam o progresso.
Ao mesmo tempo, porém, o princípio da negação vigora para a revolução econômica da Modernidade, que concebe tudo o que existe no presente como mercadoria, como produto, e surge perante este como espírito que sempre nega, pois tudo que é produzido e lançado no mercado é igualmente digno de logo perecer, de modo a que o processo do desenvolvimento econômico não caia na imobilidade. Assim como o diabo teme a água benta, assim tanto o revolucionário político como o revolucionário econômico, industrial, temem o deter-se. Jamais dirão a um momento, a um estado de coisas, a um produto, aquelas palavras de plenitude e satisfação – "Oh, pára! és tão formoso!" –, pois sempre têm em mira a atração do outro, do não existente, do futuro.6
O espírito desse Fausto-Mefisto, espírito que sempre nega, é a imagem literária de Goethe para o pensamento processual que caracteriza a Modernidade, o qual nega todo o existente com vistas ao novo, o ainda-não-existente, o melhor, e tão logo este surja e esteja dado, é por seu turno condenado como insuficiente em nome de um inatingível estado de felicidade localizado sempre no futuro, de modo a logo ser obrigado a "perecer". Esse processo dinâmico da revolução política e econômica, que reúne em si os momentos da negação e inovação, caminha ad infinitum. Por tal motivo, pode Mefisto dizer de Fausto, este arquétipo da revolução moderna:

E já te prendo em meu enlace. 
Deu-lhe o destino um gênio ardente 
Que, invicto, aspira para a frente 
E, em precipitação fugace, 
Da terra o Bom transpõe, fremente. (v.1.855-1.859)

"Sempre para a frente" – assim se formula a palavra de ordem progressista típica da época.7 A despeito das notas críticas que ressoam no texto goethiano, em consonância com as quais a aspiração de Fausto se mostra sempre frenética e desgostosa, uma vez que ele jamais consegue deter-se no "Bom", nas alegrias presentes, mas salta imediatamente sobre essas no anseio por prazeres novos, melhores, futuros – a despeito de tais notas críticas subliminares, Fausto foi considerado até recentemente como representante do modelo de progresso da Modernidade e de suas esperanças profanas de redenção. No acervo de citações dessa tendência exegética, entraram versos do ativismo fáustico: "Patenteia-se o homem na incessante ação" (v.1.759), "Ao homem apto, este mundo acomoda" (v.11.446), "No avanço, encontre ele êxtase ou tormento, / Insatisfeito embora, hoje e a qualquer momento!" (v.11.451-11.452).8
E, de fato, Goethe mostra a aspiração fáustica, sobretudo na segunda parte do drama, nos mais importantes estádios do moderno revolucionamento das condições e relações de vida. Mostra-a no Palatinado Imperial, onde Fausto e Mefisto introduzem o papel-moeda e deflagram o fluxo de capital que varre do mapa o velho mundo do feudalismo e financia os gigantescos projetos técnicos, industriais e de transportes da Modernidade. É-nos dado olhar dentro do laboratório do Dr. Wagner, o antigo fâmulo de Fausto, onde um homem está sendo criado nas retortas. Essa produção técnico-industrial de um ser humano (clonagem, como se diria hoje) configura-se como verdadeira meta daquele projeto da Modernidade de negar a primeira criação, a existência que deriva da Natureza, e substituí-la pela segunda criação, que é um produto do moderno processo de produção.
No final do drama, Fausto nos dá um exemplo dessa revolução moderna e, portanto, da inversão de todas as relações naturais e de produção. Nós o vemos primeiramente na orla marítima, onde ele manifesta o desejo de lutar contra as ondas, lutar contra os elementos e submetê-los ao princípio industrial de produtividade e desempenho (ver v.10.198 e seguintes); e nas últimas cenas terrenas da tragédia nós o vemos numa nova terra, que ele conquistou ao mar por intermédio de colossais construções de diques e canais. Nesse mundo novo, artificialmente produzido, ouvimo-lo por fim pronunciar os famosos versos:

Sim! da razão isto é a suprema luz, 
A esse sentido, enfim, me entrego ardente: 
À liberdade e à vida só faz jus, 
Quem tem de conquistá-las diariamente. 
E assim, passam em luta e em destemor, 
Criança, adulto e ancião, seus anos de labor. 
Quisera eu ver tal povoamento novo, 
E em solo livre ver-me em meio a um livre povo. (v.11.573-11.580)

No final, a aposta fáustica, a negação da permanência, passa a vigorar por toda parte. Contemplamos então a imensa história de sucesso do moderno ideal de movimentação, ao qual obedece agora toda a sociedade – "criança, adulto e ancião" – e esta é uma história de êxito não apenas no enredo dramático. Pois no Fausto de Goethe, em especial na sua segunda parte, podemos reconhecer também a expressão literária de nossa sociedade moderna, a prefiguração do ritmo vertiginoso das metrópoles contemporâneas, uma Brasília, por exemplo, erigida num esforço titânico em pouquíssimo tempo. Essa capital, aliás, poderia ter sido construída por Fausto, uma vez que não está distante de seu ideal desenvolvimentista, não seria estranha ao seu projeto colonizatório, que Goethe configura, porém, de modo irônico como espécie de utopia de uma modernidade que viria a ter o seu símbolo mais ostensivo justamente na arquitetura. Como na colônia de Fausto, também nas metrópoles atuais impera a vontade construtivista do homem moderno, e não seria surpreendente se, em meio a anotações do arquiteto da capital brasileira, por exemplo, se encontrassem pensamentos de inspiração genuinamente fáustica.
Seria lícito sustentar assim que a utopia de dinamismo que na tragédia goethiana deriva do pacto – "Quisera eu ver tal povoamento novo" – tenha se convertido nesse meio tempo em realidade: hoje não há nenhuma região da consciência, nenhum lugar, mesmo entre os mais isolados da Terra, que não tenha sido alcançado pela moderna negação do deter-se, já que o mundo todo se assemelha àquele "povoamento novo" que fervilha em movimentos cada vez mais acelerados de imagens, dados, finanças, consumo e transportes.
A uma utopia, contudo, não pode acontecer nada pior do que ser colocada em prática, uma vez que ela perde assim a fascinante aura da promessa redentora. Ao longo de 150 anos, Fausto foi festejado como personagem de identificação; mas, desde que sua utopia daquele povoamento fervilhante tornou-se realidade, vivenciamos uma mudança de paradigma na exegese do drama, uma vez que descobrimos o seu potencial crítico e, desse modo, passamos a nos perguntar o que seria assim tão pernicioso no deter-se, no demorar-se no presente. Por que tudo o que existe precisa ser permanentemente desvalorizado, por que todo espaço de repouso e serenidade tem de ser colonizado no sentido da moderna lei do dinamismo e arrastado para aquele fervilhar generalizado? Quais são os custos reais – assim nos perguntamos hoje em dia – do princípio moderno da intensificação incessante do movimento; quem e o que é atropelado pela mobilização geral a serviço da permanente negação do presente? Na tragédia goethiana são, ao lado de Margarida e de um Peregrino – possivelmente o próprio Goethe –, os dois anciãos, Filemon e Baucis, que vão parar debaixo das rodas, pois não podem integrar-se tão depressa assim ao novo ritmo, e tampouco querem integrar-se porque representam uma cultura inteiramente diferente, isto é, a cultura do deter-se calmo, da serenidade, e, por conseqüência, atraem sobre si o furor fáustico da negação.
No nosso mundo determinado por ritmos dinâmicos inescapáveis e de validade global, em que a exclamação "Oh, pára!", agora de maneira inteiramente não-fáustica, não mais nos surge como sinal de morte, mas sim de vida, nessa situação atual nós nos perguntamos se a famosa aspiração de Fausto por aquele povoamento final não representa antes um desnorteamento, a rota para um beco sem saída, para o "eterno-vazio", o qual se nos escancara então como Horror vacui, uma vez que nos foi negado e suprimido todo ponto de repouso e, de modo geral, tudo o que existe no presente.
Paradoxalmente são tais questões atuais e candentes que a tradição da história fáustica traz de volta à nossa lembrança. Desde o século XVI, a história de Fausto vem se configurando como um tema popular com variações específicas de cada época, não apenas na literatura, mas também na música e, sobretudo, nas artes plásticas, âmbito este ao qual será lançado um breve olhar à guisa de conclusão.
O drama goethiano sempre ofereceu às diferentes épocas o modelo literária para a elucidação da respectiva auto-imagem mediante um questionamento tipicamente fáustico: quão longe podemos ir na satisfação de nossas necessidades? Haveria um limite à nossa aspiração por felicidade, riqueza e domínio? Caso haja esse limite, onde começaria o pacto demoníaco? Tais questões encerram o problema antropológico fundamental de determinar a relação entre Eu e mundo, subjetividade e objetividade – e a esse problema Goethe confere forma literária concreta em sua nova modulação do tema fáustico na primeira parte da tragédia, mais precisamente por meio da contundente pergunta que Gretchen dirige a Fausto: "Dize-me, pois, como é com a religião?" (v.3.415). Já no final da segunda parte da tragédia, parece ser o próprio Goethe que, no gesto típico do iluminista que exorta à auto-reflexão crítica, dirige à Modernidade, num sentido mais amplo, aquela pergunta de Gretchen: Seria possível uma vida inteiramente desprovida de religião? Na perspectiva da velhice, religião não deve ser entendida num sentido ortodoxo, mas sim na chave geral de uma espiritualidade sincrética, pós-crítica e pós-iluminista, tal como caracteriza as paragens venturosas de Filemon e Baucis sob o signo do "eterno Deus" (v.11.142) – paragens, contudo, que serão extintas pelo moderno projeto colonizador de Fausto. Esse mesmo sincretismo espiritual irá caracterizar depois os enigmáticos versos "celestiais" no final da tragédia. No horizonte aberto da obra de velhice Fausto II e na consciência da ruptura revolucionária com a tradição, a atualização goethiana da pergunta de Gretchen se formula em relação à possibilidade de uma vida desprovida de todo e qualquer pensamento de transcendência, tal como se expressa nas palavras de Fausto: "Que importam do outro mundo os embaraços?" (v.1.660), "À nossa vista cerra-se o outro mundo; / Parvo quem para lá o olhar alteia" (v.11.442-11.443). Haveria ainda algo sagrado para nós, para a nossa cultura – assim se coloca hoje a pergunta de Gretchen –, sagrado, porém, numa concepção mais geral; haveria algo de valor insofismável e insubstituível, perante o qual é imperioso deter-se, sobre o qual o fervilhamento generalizado e global não deveria passar exercendo o recalque e a negação? Hoje, portanto, a pergunta de Gretchen que nos é dirigida, à aspiração fáustica em nosso íntimo, diz: "Haveria ainda um tabu?".
A pergunta que Margarida dirige a Fausto é atemporal, uma vez que cada época define a sua auto-imagem por intermédio dessa pergunta, passando primeiramente pela determinação da relação entre religiosidade e profanidade – uma relação, contudo, que no horizonte literário da tragédia de Goethe deve ser compreendida como expressão concreta e ao mesmo tempo simbólica dos liames mais gerais e profundos entre o "deter-se" e o "aspirar", entre repouso e movimento, reflexão e ação, contemplação mundana e revolução mundial.
Como, porém, se formula a resposta goethiana à pergunta de Gretchen? Goethe nunca foi particularmente pio, pelo menos não em sentido confessional, motivo pelo qual sempre foi hostilizado pela ortodoxia teológica e seus partidos radicais, que o consideravam representante típico de uma civilização moderna iluminista-liberal e alheia à religião ("ateísta"). Mas, apesar dessa imagem hostil, na perspectiva de uma história das idéias se haverá de constatar: religioso de um modo mais amplo, isso Goethe certamente foi, ou seja, naquela acepção original e literal da religio como veneração espiritual perante o que é indisponível e inacessível à vontade humana de poder, perante aquilo a que Goethe pôde dar o nome decididamente não-ortodoxo de "Eterno-feminino" e que ele encontrava sobretudo na contemplação da Natureza, "in herbis et lapidibus" – muito ao contrário da impulsiva e obcecada vontade fáustica de arrancar a Ísis o seu véu, de agarrar-se ao seio da Natureza (v.455 e seguintes) e submetê-la ao seu projeto de colonização e progresso. E é no sentido dessa espiritualidade livre, interpretável tanto em chave religiosa como na filosófica, que se há de compreender aquele fundamental verso místico no final da tragédia: "Tudo o que é efêmero / É apenas pré-existência".
Aquém da mística não-convencional e da contemplação espiritual da Natureza, a resposta de Goethe à pergunta de Gretchen pela relação entre "deter-se" e "aspirar" – pergunta tão virulenta em tempos de crises e rupturas – pode ser percebida na Arte, e de maneira particularmente nítida em seu Fausto. Pois a concreta resposta goethiana ao moderno furor de negação, colonização e movimento foi a própria Arte, e em especial uma arte inteiramente alheia ao ideal moderno de dinamicidade e progresso, mas que, em vez disso, reverencia o ideal do Classicismo, precisamente aquele momento do deter-se contemplativo-reflexivo, ou mesmo espiritual, em face do Belo, o qual Fausto amaldiçoa em sua angústia mórbida. É o próprio Kairós da filosofia antiga e de suas doutrinas eudemonistas, o momento pleno do reconhecimento do verdadeiramente existente – um ideal, portanto, que não pode ser superado por nada, por nenhum progresso e por nenhuma das deslumbrantes promessas do futuro. Esse ideal de consciência, vida, felicidade e beleza porta, na tragédia goethiana, o nome de Helena. A Fausto é dado contemplar Helena, a mais bela mulher, vê-la na Grécia, em um lugar por assim dizer extraterritorial, num interlúdio do drama. E na Arcádia, ao lado de Helena, vigora a sentença: "Somente o presente é a nossa felicidade". É esse o ideal de vida goethiano.9 É a inversão exata do pacto, da regra fáustica segundo a qual se deveria dizer: "Somente o presente é a nossa infelicidade", motivo pelo qual nós, contemporâneos modernos no espírito de Fausto, não podemos nos deter nem por um instante sequer e temos de marchar para o ainda-não-existente como que sobre um chão em brasas, sempre acossados pelos ritmos inexoráveis de uma dinâmica onipresente, sempre insatisfeitos, em permanente inquietação, em meio a uma caçada infindável pela riqueza e felicidade presumivelmente sempre maiores, que jamais se oferecem no presente, pois se evadindo sem cessar para o futuro. 
Essa dimensão frenética e vertiginosa que Goethe, movido por inequívoca intenção crítica, imprimiu à tragédia fáustica foi captada com grande sensibilidade por alguns de seus ilustradores, e cumpriria mencionar aqui, em primeiro lugar, o pintor francês Eugène Delacroix (1798-1863). Com efeito, a disposição para a inquietude, a obsessão impulsiva por agitação, a embriaguez de velocidade como marca característica da existência tipicamente moderna de Fausto – tudo isso foi convertido em imagem, com extrema intensidade e pregnância, no ciclo de dezessete litografias que Delacroix concluiu em 1828 e que originalmente ilustraram a tradução francesa de Frédéric Stapfer, publicada nesse mesmo ano.10
Quanto ao Fausto II, destacam-se certamente as ilustrações realizadas por Max Beckmann (143 desenhos a bico-de-pena) entre 15 de abril de 1943 e 15 de fevereiro de 1944 em Amsterdã, cidade de seu exílio entre 1937 e 1947. Pouco mais de um século após a publicação da segunda parte da tragédia, Beckmann, um dos mais relevantes artistas do século XX, retoma o olhar crítico que Goethe lançou sobre os inícios da nova era e o traduz, em suas ilustrações do Fausto, na auto-reflexão crítica do artista moderno e, indo mais além, na auto-reflexão crítica da Modernidade como tal. Os desenhos de Beckmann, não raro com traços de auto-retrato, mostram Fausto como personalidade dilacerada, exemplarmente moderna, cujo estado de consciência corresponde à crítica situação do mundo contemporâneo. Dificilmente se poderia conceber antinomia mais expressiva às interpretações otimistas (e "perfectibilistas") do Fausto do que esses retratos de Beckmann que lançam o homem moderno num universo de insegurança, angústia e apreensão. De modo conseqüente, o artista baniu essa atmosfera sombria apenas dos desenhos da clássica natureza arcádica, repetindo de maneira exata a frágil, possivelmente resignada reflexividade na constelação criada por Goethe. E, no sentido dessa correspondência congenial entre literatura e artes plásticas, valeria observar, por fim: do mesmo modo como os místicos versos finais de Goethe, também as imagens finais, e não menos místicas, de Beckmann são inteiramente inacessíveis à lógica processual da moderna ideologia do progresso e às suas promessas secularizadas de felicidade e redenção.11

Notas
1 As citações seguem a edição Faust. Eine Tragödie preparada por Albrecht Schöne (Frankfurt, 1994). A versão em português dos versos citados corresponde à tradução de Jenny Klabin Segall publicada em 2004 (Fausto. Uma tragédia – Primeira Parte) e 2007 (Fausto. Uma tragédia – Segunda Parte).
2 A proibição do "parar", do "deter-se", é precedida pelo fechamento da aposta entre Fausto e Mefistófeles: "FAUSTO: Se eu me estirar jamais num leito de lazer, / Acabe-se comigo, já! / Se me lograres com deleite / E adulação falsa e sonora, / Para que o próprio Eu preze e aceite, / Seja-me aquela a última hora! Aposto, e tu? MEFISTÓFELES: Topo!" (v.1.692-1.698). A aposta, por seu turno, decorre da conjectura de Fausto acerca de um possível pacto que o vincularia a Mefisto: "FAUSTO: O inferno, até, tem leis? mas, bravos! / Podemos, pois, firmar convosco algum contrato, / Sem medo de anular-se o pacto?" (v.1.413-1.415).
3 Quanto à proveniência da figura de Fausto a partir do ambiente teológico e protestante do século XVI, e ainda quanto à tradição dos livros históricos sobre o Doutor Fausto, ver o estudo de Jochen Schmidt Goethes Faust. Erster und Zweiter Teil. Grundlagen. Werk. Wirkung [O Fausto de Goethe.Primeira e segunda partes. Fundamentos. Obra. Efeito] (Munique, 2001, p.11-33). Ver também, à p.122 e seguintes, a elucidação que faz Schmidt, com fundamentos históricos, da modernização da arcaica figura do diabo, levada a cabo por Goethe ao fazer de Mefisto uma valência psíquica de Fausto. Na perspectiva dessa psicologização, as conversas entre Fausto e Mefisto podem ser entendidas como monólogos daquele.
4 Sobre esse período revolucionário na Europa como pano de fundo da tragédia e, de um modo geral, sobre a fenomenologia goethiana da incipiente Modernidade, ver o meu estudo Fausts Kolonie – Goethes kritische Phänomenologie der Moderne [A colônia de Fausto – A fenomenologia crítica da modernidade empreendida por Goethe] (Würzburg, 2004).
5 Isso foi demonstrado de maneira particularmente expressiva no caso das doutrinas pré-socialistas e industrialistas de Saint-Simon e dos sant-simonistas, que Goethe incorporou, por vezes em citações literais, em cenas do Fausto redigidas em 1831. Quem primeiro apontou para esse aspecto foi Gottlieb C. L. Schuchard: "Julirevolution, St. Simonismus und die Faustpartien von 1831" ["Revolução de julho, saint-simonismo e as partes do Fausto de 1831"], in: Zeitschrift für deutsche Philologie 60 (1935). Ver também, a esse respeito, o ensaio de Nicholas Boyle "The politics of Faust II. Another look at the stratum of 1831", in: Publications of the English Goethe Society, v.52 (1981/1982), p.4-43.
6 A respeito do princípio da negação que caracteriza o pensamento processual da revolução política e econômica na Modernidade, e, ainda, a respeito da reflexão crítica que Goethe empreende em seu Fausto sobre tais fenômenos processuais de negação, ver o meu ensaio "Fausts Revolution" ["A revolução de Fausto"], in: Verweile doch. Goethes Faust heute [Oh, pára! o Fausto de Goethe hoje] (organizado por Michael Jaeger; Blätter des Deutschen Theaters, 2006, p.103-14).
7 Sintomaticamente, Goethe insere tais versos no manuscrito da tragédia somente após o seu retorno da Itália e sob o impacto da fase inicial da Revolução Francesa. A versão mais antiga, o assim chamado Urfaust (Fausto original), ainda não contém esses versos típicos e representativos da época da Revolução. A gênese textual, cujo conhecimento possibilita ilações sobre o crescente potencial histórico e crítico da tragédia redigida ao longo de décadas, pode ser acompanhada à luz da edição sinóptica do Fausto I organizada por Werner Keller: Urfaust; Faust. Ein Fragment; Faust. Eine Tragödie.Paralleldruck der drei Fassungen [Fausto original; Fausto. Um Fragmento; Fausto. Uma Tragédia. Impressão paralela das três versões] (Frankfurt a.M., 1985).
8 Foi a recepção "socialista" (em seu sentido mais amplo) da tragédia goethiana que construiu a exegese "perfectibilista" mais conseqüente, mais bem elaborada filosoficamente, tomando o seu ponto de partida nas especulações teóricas de Hegel sobre o Fausto: Georg Lukács, na chave de um marxismo mais rigoroso, e Ernst Bloch, numa perspectiva utópica e não-ortodoxa, para citar apenas dois proeminentes exemplos do século XX.
9 Pierre Hadot, em seu grandioso estudo sobre a tradição do exercitium spirituale, discute o caráter eudemonista da espiritualidade clássica de Goethe, seus antigos textos de referência e a tradição desses na história da filosofia e da religião (P. Hadot. Exercices spirituels et philosophie antique [Paris, 1987] – ver, em especial, o capítulo sobre Goethe, p.101-22, intitulado justamente "Somente o presente é a nossa felicidade").
10 Essa constatação pode ser atualizada com a edição bilíngüe do Fausto I publicada pela Editora 34 (2004), em tradução de Jenny Klabin Segall, com notas e comentários de Marcus V. Mazzari e ilustrações de Delacroix.
11 A recente edição brasileira da segunda parte da tragédia, novamente em tradução de J. K. Segall (Editora 34, 2007), propicia ao leitor a possibilidade de colocar à prova essas observações sobre a relação entre os desenhos de Beckmann e o substrato crítico do Fausto II.

Michael Jaeger é docente na Universidade Livre de Berlim. Publicou, entre outros, o estudo Fausts Kolonie – Goethes kritische Phänomenologie der Moderne [A colônia de Fausto – A fenomenologia crítica da modernidade empreendida por Goethe] (Würzburg, 2004). Mais recentemente, organizou o volume Verweile doch. Goethes Faust heute [Oh, pára! o Fausto de Goethe hoje] (Blätter des Deutschen Theaters, 2006). @ –Asmljaeger@aol.com 
Tradução de Marcus Vinicius Mazzari. O original em alemão – "Fausts Wette und der Prozeß der Moderne" – encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta.


Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142007000100025&script=sci_arttext

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Thomas Mann e um grito de alerta antifascista

Thomas Mann, autor de “Dr. Fausto”, romance que espelha uma visão amadurecida de todo o processo em que as liberdades foram destroçadas pelas forças nazifascistas | Foto: Carl van Vechten

Carlos Russo Jr.
Especial para o Jornal Opção


Em 1933, os nazistas chegam ao poder na Ale­manha por meio do voto democrático. Imediata­mente devotam-se à destruição da democracia e à implantação do regime totalitário mais odioso da História da humanidade. O mesmo já ocorrera na Itália alguns anos antes, com o ex-socialista e fascista Benito Mussolini.
Logo após o incêndio do Par­lamento Alemão pelas claques de “cho­que” de Hitler, Mann, o maior dos escritores alemães do século 20, decidiu exilar-se de seu País.
Compreendendo os perigos que a ordem nazifascista representava para a Alemanha, assim como para o restante do mun­do, o engajamento do autor de “A Montanha Mágica” na luta democrática não tardaria. Em 1937, Thomas Mann publicou uma crônica sob o título: “Advertência à Europa!”
A Advertência era dirigida muito particularmente aos intelectuais, aos escritores, aos artistas, cientistas e a outros depositários do patrimônio cultural da humanidade. Firmemente Mann assinala a responsabilidade dos intelectuais que se omitem e se alheiam do combate aos inimigos da inteligência e da cultura, a pretexto de resguardarem a “integridade” e a “pureza” do espírito de qualquer contaminação de “caráter político”. Isto insistia Mann, resultava efetivamente em servir de um modo ou de outro ao “partido do interesse”, ou seja, os interesses de uma ordem política decadente, reacionária e por isso mesmo temerosa da cultura e do espírito. “Em nosso tempo, a torre de marfim é apenas uma tolice, e é quase impossível alguém furtar-se a compreendê-lo.”
“A democracia se realiza efetivamente em cada um de nós, visto que a política se tornou um negócio de todas as gentes. Ninguém pode afastar-se dela; a pressão imediata que ela exerce sobre cada um é demasiado forte. O fato é que aquele que nos declara “eu não me importo com a política”, parece-nos um homem superado, caduco. Tal ponto de vista revela não somente egoísmo e irrealidade, mas ainda embuste e estupidez. Mais que ignorância do espírito, o que há nisso é indiferença moral.”
A ordem política e social faz parte da totalidade, um aspecto da problemática humana, não se podendo menosprezá-la sem com isso se pecar contra a própria humanidade. Portanto como poderia o poeta ou o intelectual esquivar-se, omitir-se, quando sabemos que a sua natureza e o seu destino o colocaram na posição mais exposta da “polis”? “O poeta que se omite em face do problema humano, porque esse aparece sob a forma política, não é somente um traidor da causa do espírito em proveito do partido do interesse, mas é também um homem perdido, que perderá a força criadora, o talento e nada fará que apresente condições de durabilidade.”
O espiritual, para Mann, considerado sob o ângulo político e social, é a aspiração dos povos a uma vida em melhores condições, mais justas e mais felizes, adequadas à dignidade humana. Expressando a essência do pensamento democrático ele diz “o bom e o nobre é o que qualificamos de humano”. Aquilo por cuja causa os homens tem lutado e têm tomado Bastilhas de assalto, os acólitos do autoritarismo proclamam jubilosamente “aquilo não deve existir, que seja revogado, revogue-se até mesmo a ‘Nona Sinfonia’, de Beethoven!”
Uma das mais importantes obras primas do grande mestre foi, sem dúvida, o romance “Dr. Fausto”. Escrito em 1956 espelha uma visão amadurecida de todo o processo em que as liberdades foram destroçadas pelas forças nazifascistas. As peripécias do grande livro se desenvolvem num período histórico de aproximadamente 25 anos, entre 1920 e 1945, quando ocorre o esmagamento da Alemanha nazista.
O personagem-narrador nos diz: “Certa gente não deveria falar em liberdade, razão e humanidade, melhor que se abstivesse disso por motivos de decência. O dogmatismo também é uma forma intelectual do farisaísmo. Onde quer que haja Teologia, o Diabo também deve entrar no quadro, preservando sua autenticidade complementar à de Deus. O Inferno é tão simbólico quanto o Céu”.
Para Mann, “o adepto das luzes, o termo e o conceito ‘povo’ sempre conserva qualquer traço de arcaico, inspirador de apreensões e ele sabe que basta apostrofar a multidão de povo para induzi-la à maldade reacionária”. “Falo do povo, porém daqueles impulsos populares de natureza arcaica, que existem em todos nós, e para dizê-lo bem claramente, assim como penso, não considero a religião o meio mais adequado para reprimi-los com segurança. Isso se consegue, a meu ver, unicamente por meio da literatura, da ciência humanística, do ideal do homem livre e belo.”
Pessoas como o escritor alemão têm, afinal de contas, suas dúvidas a respeito do acerto dos “pensamentos do rebanho”, como ele mesmo os denomina. Sabe, entretanto, perfeitamente diferenciar o povo trabalhador da escória social, que com aquele não se confunde. “A supremacia das classes ditas inferiores se afigura a mim, como cidadão alemão, um estado ideal, quando a comparo com o domínio da escória. Ao contrário que eu saiba jamais o bolchevismo destruiu obras de arte. A revolução russa emocionou-me profundamente e a superioridade histórica de seus princípios em confronto com os das potências que dobravam nossa nuca aos seus pés, era evidente. Verdade é que certas camadas da democracia burguesa parecem merecer o que acabo de denominar de domínio da escória a fim de conservarem por mais tempo seus privilégios.”
No nazismo a violência opunha-se à verdade! Pregava-se um abismo entre a verdade e a força, a verdade e a vida, a verdade e a coletividade. Um grito de horror surge em “Dr. Fausto” sob a forma de uma composição musical do maestro dodecafônico Leverkun: “Nesse momento só uma única música pode servir-nos, somente ela corresponderá a nossas almas: a lamentação do filho do Inferno, a lamentação humana e divina, que, partindo do indivíduo, mas ampliando-se cada vez mais, e, em certo sentido, apoderando-se do Cosmo, há de ser a mais horrenda que jamais tenha sido entoada na Terra. Uma lamentação, um ‘De produndis’!”
O mundo criado pelo nazifascismo era ao mesmo tempo antigo e novo, “revolucionário” e retrógrado. Nele os valores ligados à ideia do indivíduo, verdade, liberdade, direito, razão, ficariam inteiramente debilitados e rejeitados, assumindo um significado totalmente diferente do que tiveram nos séculos precedentes. “Desarraigados da pálida teoria, seriam relativizados, abastecidos de sangue e em seguida submetidos a uma instância muito superior, à da força, da autoridade, da ditadura da fé, de uma forma que igualaria uma regressão muito inovadora da Humanidade em direção a estados e condições teocráticos- medievais.”
A imparcialidade da pesquisa, o pensamento livre, longe de representarem o progresso, o antigo e o novo, o passado e o futuro tornar-se-iam a mesma coisa. Isso ocorreria ao mesmo tempo em que se concedia ao pensamento a licença de legitimar a força, “assim como uns seiscentos anos antes, a razão tivera liberdade para discutir a fé e demonstrar o dogma”, numa referência à Reforma Luterana.
O pedagogo, por exemplo, sabia que, sob o nazifascismo já existia a tendência para distanciar-se do sistema de aprender letras e soletrar. Em vez disso preferia-se o método de ensinar palavras inteiras e de ligar a escrita à visão concreta das coisas. Isso representava, em certo sentido, a abolição da escrita abstrata, universal, não associada a nenhuma língua e, de alguma forma, a volta à ideografia dos povos primitivos. A disposição era de sacrificar sem mais as assim chamadas conquistas culturais em pró de uma simplificação reputada indispensável, assim como os tempos o exigiam, e que eventualmente pudesse ser qualificada de volta intencional à barbárie.
O narrador de “Dr. Fausto”, Serenus, prevê no início da ação dos nazistas no poder que “chegaria o dia em que se legitimasse, por razão de higiene nacional e racial, a não conservação dos elementos mórbidos, a eliminação em grande escala dos ineptos para a vida e dos débeis mentais”. “Enfatizava-se a intenção da rejeição de qualquer efeminação humana, produto da era burguesa, um esforço intensivo por tornar a humanidade capaz de enfrentar tempos sombrios, desdenhosa de sentimentos humanitários, mais próximos daquela fase obscura que precede a origem da Idade Média.”
Mann, pela boca de Serenus expressará seu ódio ao nazismo nas últimas páginas do portentoso livro: “Malditos, malditos os corruptores, que mandaram à escola do Diabo uma parcela do gênero humano, originalmente honrada, bem-intencionada, apenas excessivamente dócil e demasiado propensa a organizar sua vida à base de teorias! Mas um patriotismo que ousasse afirmar que o Estado sanguinário, cuja agonia atualmente presenciamos, que para citar uma expressão de Lutero, ‘pendurou em seu pescoço’ o peso de crimes incomensuráveis, e que, com seus apelos berrados, com suas proclamações aniquiladoras dos direitos do Homem, provocou nas multidões arroubos de imensa felicidade, esse Estado sob cujas bandeiras vistosas marchava nossa juventude, de olhos chispantes, altiva, radiante, firme na fé, um patriotismo, repito, que ousasse afirmar que esse regime tinha sido algo totalmente alheio à natureza de nosso povo, imposto a ela, desprovido de raízes em seu íntimo, ia se afigurar-me mais magnânimo que consciencioso. Não foi esse despotismo, em suas palavras e em seus atos, apenas a realização distorcida, oclocrática, aviltada de mentalidades e filosofias cujo caráter autêntico cumpre reconhecer e que o cristão, o humanista constatam, não sem certo susto, nos traços dos grandes homens, nas encarnações mais imponentes da humanidade?”
O professor Serenus, que se abstivera de combater o nazismo quando ele surgira, ao final do romance “Dr. Fausto” realizará um “mea culpa” de sua omissão, retroagindo à advertência de 1937: “Será que voltarei a inculcar nos cérebros dos alunos a ideia de uma cultura na qual a reverência às divindades das profundezas se une ao culto ético de olímpica razão e lucidez, formando uma só piedade? Mas ai de mim, receio que nessa década selvagem se haja criado uma geração que entenda a minha linguagem tão pouco como eu a sua; a mocidade de meu país se me tornou por demais estranha para que eu possa novamente ser seu mestre. A própria Alemanha, esse país desventurado, tornou-se-me estranha, justamente em virtude do fato de eu ter-me abstido de seus crimes, e, seguro do fim pavoroso, haver-me abrigado na solidão”.