A Tragédia Antígona
Reinério Simões
A tragédia Antígona discute o conflito
entre o Direito Natural – o Direito considerado pelos antigos como sendo de
origem divina e aceito ipso facto como costumeiro ou consuetudinário – e o
Direito que toma forma jurídica nas leis estabelecidas pelo governante,
tradicionalmente denominado Direito Positivo.
A narrativa de Sófocles segue a tradição
mitológica. Após a desgraça de Édipo, seus dois filhos, Etéocles e Polinice
disputam a posse do trono. Trava-se a luta, perecendo no mesmo dia os dois
irmãos, ambos mortalmente feridos no duelo que travaram. Creonte, impondo-se
então como tirano de Tebas, resolve prestar honras fúnebres a Etéocles, ao
passo que proíbe, sob pena de morte, que se dê sepultura ao corpo de Polinice,
para que fique exposto às aves carniceiras aquele que recorreu à aliança com os
Argivos (povo inimigo) para conquistar o poder em sua terra.
Antígona, exemplo de amor fraternal,
resolve expor-se ao perigo, e, contrariando o decreto do tirano, presta ao
infeliz Polinice, seu irmão, o piedoso serviço das honras e dos rituais
funerários, sob o risco de ser condenada à morte pela transgressão. Quando
interrogada por Creonte, que se considera duplamente afrontado pelo desrespeito
a uma lei em vigor e pela atitude criminosa vir de uma mulher, Antígona
responde:
"Sim, porque não foi Júpiter que a
promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas,
jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito
tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis
divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir
de ontem, ou de hoje; são eternas sim! E ninguém sabe desde quando vigoram!
Tais decretos, eu, que não temo o poder de homem algum, posso violar sem que
por isso me venham punir os deuses! Que vou morrer, eu bem sei; é inevitável; e
morreria mesmo sem a tua proclamação." (p. 227/228)
Na opinião de muitos esta passagem
contém os mais belos versos de Sófocles. Antígona afronta, destemerosa, o poder
e a cólera do próprio rei. Ao desobedecer ao decreto e ainda se alegrar com o
ato, Antígone argumenta que os deuses exigem que se apliquem os mesmos ritos a
todos os mortais. E ao ouvir de Creonte que nunca um inimigo lhe será querido,
mesmo após a sua morte, profere a bela frase: "Eu não nasci
para partilhar de ódio, mas somente de amor!"
(p. 233)
Em diversas passagens, Creonte
representa a tese do juspositivismo referente à identidade entre Direito e
mandatos, como no positivismo jurídico normativo e legalista: os termos Lei e
Direito são essencialmente equivalentes; em consequência, a lei que se
manifesta injusta constitui Direito formal e não carece de validade. Veja-se
este trecho: "Quem, por orgulho e arrogância, queira violar a
lei, e sobrepor-se aos que governam, nunca merecem meus encômios. O homem que a
cidade escolheu para chefe deve ser obedecido em tudo, quer seus atos pareçam
justos, quer não." (p. 243)
Quando surge em cena Hémon, filho de
Creonte e noivo de Antígona, a suplicar pela vida de sua amada, trava-se o
seguinte diálogo:
"Hémon – Ouve: não há Estado algum que
pertença a um único homem!
Creonte – Não pertence a cidade, então, a
seu governante?
Hémon – Só num país inteiramente deserto
terias o direito de governar sozinho!
Creonte – Bem se percebe que ele se tornou aliado dessa mulher!
Hémon – Só se tu te supões mulher, porque é
pensando em ti que assim falo.
Creonte – Miserável! Por que te mostras em
desacordo com teu pai?
Hémon – Por que te vejo renegar os ditames
da Justiça!
Creonte – Por acaso eu a ofendo, sustentando
minha autoridade?
Hémon – Mas tu não a sustentas calcando aos
pés os preceitos que emanam dos deuses!" (p. 247/248)
Até mesmo o Corifeu revolta-se contra a
lei do governante e não pode conter suas lágrimas ao ver Antígone dirigindo-se
ao túmulo. Reconhece a ação piedosa de prestar culto aos mortos, mas quem
exerce o poder não pode consentir em ser desobedecido: "tu
ofendeste a autoridade" (p. 255), diz ele.
O crime de Antígona foi obedecer aos
ditames da "lei divina", que prescreve o sepultamento digno ao
cadáver, principalmente quando se trata de um irmão de sangue. Mas ao cumprir a
"lei natural" (jus naturae), desobedeceu à norma legal instituída
pelos homens, ao Direito posto (jus positum) – ou melhor, imposto - pelo governante.
A questão não é, neste momento, discutir
os fundamentos do Direito, quer em seus princípios jusnaturalistas, quer em
suas bases juspositivistas. A tragédia Antígona já antevê, através do gênio de
Sófocles, o antagonismo entre Lei e Justiça e o problema da vigência das leis
injustas. Os adeptos do positivismo jurídico mais radical não aceitam o
problema, pois o valor não é objeto da pesquisa jurídica. O ato de justiça
consiste na aplicação da regra ao caso concreto. Não pode haver influência de
elementos extra legem na definição do Direito Objetivo. Daí o puro legalismo ou
o codicismo. Já os partidários do Direito Natural se identificam com os
imperativos do justo, quando, sem desprezar o sistema de legalidade, refletem
na instância ética que transcende a ordem positiva e ocupam-se com juízos de
valor. O jusnaturalismo refere-se a uma ordem jurídica ideal, no sentido de
relacionar Moral e Direito e de buscar nos princípios éticos e/ou
antropológicos a fundamentação do Direito.
O princípio do Direito Natural é jus
quia justum: o direito é o que é justo. Como lema, prefere-se até mesmo a
desordem ou a ilegalidade do que a injustiça: Pereat mundus, fiat justitia!
Para o defensores do positivismo jurídico, o princípio é jus quia jussum: o
direito é o que é ordenado enquanto direito. Como lema, os juspositivistas
preferem a injustiça à desordem ou ilegalidade: Dura lex, sed lex!
Responda: quem cometeu algum crime:
Antígona ou Creonte? Ou de outro modo: qual a fonte ou fundamento jurídico para
considerar crime o ato fraternal, respeitoso e costumeiro de Antígona? Qual a
fonte ou fundamento do poder legiferante de Creonte? O que equivale a
perguntar: qual a legitimidade do poder político e do Estado? Responder a estas
e a várias outras questões decorrentes da leitura da tragédia Antígona é um
excelente exercício de compreensão crítico-sistemática do Direito, ou seja, uma
boa maneira de principiar a prática da reflexão crítica em Filosofia do
Direito.
Bibliografia
BOBBIO, Norberto. O Positivismo
Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995.
GUIMARÃES, Ylves José de Miranda.
Direito Natural. Visão Metafísica e Antropológica. Rio de janeiro: Forense
Universitária, 1991.
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KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e
do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. Rio
de Janeiro: Saraiva, 1999.
SÓFOCLES. Antígone. Rio de Janeiro:
Edições de Ouro, sem data.