O primeiro canto

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quarta-feira, 31 de outubro de 2018
Como sair do ódio? | Uma entrevista com Jacques Rancière
"O
amor afirma, o ódio nega. Mas por cada afirmação há milhentas de negação. Assim
o amor é pequeno em face do que se odeia. Vê se consegues que isso seja
mentira. E terás chegado à verdade." - Vergílio
Ferreira
Uma reflexão que não
embota com o passar das estações. Sobretudo num tempo de cultivo intenso do
ódio.
Eric Aeschimann entrevista Jacques Rancière.
Guerra
ou política? Segundo Jacques Rancière, a política passa longe das artimanhas
jurídicas e institucionais da política de gabinete. É uma forma de ação e
de subjetivação coletiva que constrói um mundo em comum, no qual se inclui
também o inimigo. A ação política cria identidades não-identitárias, um “nós”
aberto e inclusivo que reconhece e fala de igual para igual com o adversário. A
guerra, pelo contrário, tem como protagonista fundamental formações
identitárias fechadas e agressivas (sejam elas éticas, religiosas ou
ideológicas) que negam e excluem o outro do mundo partilhado. Entre o outro e o
eu, nada em comum.
A
verdadeira alternativa, segundo Rancière, não está na polarização que o
discurso hegemônico nos apresenta: “populistas contra democratas”. Para ele, o
melhor remédio possível neste momento é a própria ação política, autônoma em
relação aos lugares, aos tempos e à agenda estatal. Só elaborando o mal-estar
(o “ódio” diz Rancière) em chaves políticas de emancipação (coletivas,
igualitárias, abertas e inclusivas) se poderá, por exemplo, disputar terreno
com esta “lógica da guerra”. A politização do mal-estar é o melhor antídoto
contra a sua instrumentalização por parte daqueles que querem encontrar bodes
expiatórios entre os outros. Refletindo sobre o cenário francês após os
atentados ao Charlie Hebdo e ao Bataclan, cujo grande beneficiado tem sido o
Front National, de Le Pen, Rancière retoma temas centrais de seu recente O
ódio à democracia e fornece subsídios para pensarmos a conturbada
conjuntura brasileira de hoje.
Esta
entrevista realizada por Eric Aeschimann foi publicada originalmente no Le
Nouvel Observateur, em 7.2.2016. Publicamos aqui a entrevista com
autorização de Jacques Rancière a partir da versão francesa e da versão
espanhola (tradução de Pablo La Parra Pérez) publicada no El Diário, e da
versão portuguesa, publicada na Revista Punkto.
* * *
Um
ano depois dos atentados ao Charlie Hebdo, dois meses depois do ataque ao
Bataclan, como vê o estado da sociedade francesa? Estamos em guerra?
O
discurso oficial diz que estamos em guerra porque uma potência hostil ameaça
nos atacar. Os atentados realizados na França são interpretados como operações
de células encarregadas pelo inimigo de executar entre nós atos de guerra. A
questão é saber quem é esse inimigo.
O
governo optou por uma lógica a la bush: declarar uma guerra que é, ao
mesmo tempo, total (persegue-se a destruição do inimigo) e circunscrita a um
objetivo preciso (o Estado islâmico). Contudo, de acordo com uma outra versão
apresentada por certos intelectuais, foi o Islã quem nos declarou guerra e quem
está levando a cabo um plano mundial para impor a sua lei sobre o planeta.
Estas
duas lógicas misturam-se na medida em que o governo, no seu combate contra o
Daesh, deve mobilizar um sentimento nacional que, no final de contas, é um
sentimento anti-muçulmano e anti-imigrante. A palavra “guerra” nomeia essa
conjunção.
O
que é o Daesh? Um Estado? Uma organização terrorista? Em qualquer um dos casos,
não é legítimo combatê-la?
O
Daesh exerce a sua autoridade sobre um território, dispõe de recursos
econômicos e militares e, portanto, conta com um certo número de atributos
estatais. Mas, no final de contas, a sua lógica é a de um grupo armado. A
formação da sua força militar a partir do exército de Saddam Hussein é um
efeito da invasão americana. Mas a sua capacidade de recrutar, no nosso próprio
solo, voluntários que se reconhecem no seu combate é algo que nos diz respeito
diretamente: inscreve-se na tendência da lógica global atual onde há apenas
Estados e grupos criminosos.
Antes
existiam “grandes subjetivações coletivas” (por exemplo, o movimento operário)
que permitiam aos excluídos incluir-se no mesmo mundo daqueles que combatiam. A
ofensiva dita neoliberal desmantelou essas forças e criminaliza agora a luta de
classes, como vimos no caso Goodyear [no passado dia 12 de Janeiro de 2016,
oito empregados da Goodyear que participaram em ações de reivindicação foram
condenados a penas de prisão em França]. Os excluídos são expulsos para
subjetivações identitárias de tipo religioso e para formas de ações criminosas
ou guerreiras.
O
que temos de combater aqui é essa deriva identitária e cheia de ódio. Se os
crimes devem ser tratados pela polícia, o ódio deve ser tratado pela política.
Dizer que estamos em guerra com o Islã apenas consegue misturar, numa mesma
lógica, crime e ódio, repressão policial e ação política (e, por isso,
contribuindo para preservar o ódio). É o caso da proposta absurda de retirar a
nacionalidade francesa: uma medida incapaz de prevenir os crimes, mas eficaz em
alimentar o ódio que os desencadeia.
O
que poderia ser feito para não ceder a esta confusão?
Há
de se levar a sério o estado de dissidência virtual de uma parte da
população suscetível de se transformar em combatentes. Isso implica questionar
as causas, os discursos e os procedimentos que engendraram o ódio, combater a
sério o desemprego, as desigualdades e as discriminações de todo o tipo, e
repensar as formas como pessoas que não vivem nem pensam do mesmo modo poderiam
viver juntas.
É
uma tarefa difícil para todos. Idealmente, apenas a reconstituição de
“subjetivações coletivas” fortes, para além das chamadas diferenças culturais,
poderiam remediar a situação em que nos encontramos. Mas, em termos imediatos,
o mínimo é fugir do discurso da guerra religiosa.
Refere-se
aqui ao discurso dito “republicano”?
Esse
discurso contribuiu largamente para o clima de ódio. É preciso tirar conclusões
a esse respeito. Mas há um trabalho em profundidade que nos cabe a todos. A
população que se identifica como muçulmana deve também dizer como quer viver
com os outros, como quer tomar parte do nosso mundo e inventar formas de
participação política.
Nos
meus trabalhos anteriores, interessei-me por aqueles proletários do século XIX
que foram relegados pela representação dominante para um mundo à parte. Eles
estavam ali para trabalhar, talvez para gritar e revoltar-se quando não estavam
satisfeitos, mas nunca para falar como membros de um mundo em comum. Mas um
dia, alguns deles decidiram que sabiam refletir e falar. Escreveram panfletos,
manifestos de greves, jornais operários, poemas. Fizeram saber, pela palavra e
pela luta, que pertenciam ao mesmo mundo que os outros, ainda que o fizessem
como representantes daqueles que não tinham parte.
Sairemos
da lógica da secessão e do ódio quando aqueles que estão hoje na margem da
comunidade nacional inventarem formas semelhantes de participação polêmica num
mundo em comum. Trata-se de algo que vai para além da ideia de integração, que
pertence ainda à lógica da segregação.
O
poder de atração do jihadismo sobre alguns jovens, inclusive sobre aqueles sem
vínculo ao Islã, é interpretado por alguns analistas como sintoma de um
Ocidente que liquidou toda a possibilidade de pensar em termos absolutos. Não
será o momento de reinventar os ideais?
A
ruína dos ideais é um tema velho que já está presente no Manifesto
Comunista. Marx dizia que a burguesia “afogou os fervores
sagrados da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do
sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta.”
(p.42)
Em O ódio à democracia, mostrei como
tudo isto se tinha convertido num tema reacionário e estigmatizante.
Representam-se os jovens do banlieu tanto como vítimas do niilismo
consumista como da manipulação dos islamitas em nome de valores espirituais.
Estas análises partem da ruína capitalista dos ideais para chegar aos crimes
fanáticos. E entre o seu quadro explicativo (demasiado amplo) e o seu ponto de
aplicação (muito preciso) abre-se um vazio que se enche de ódio e estigmas.
Por
outro lado, não creio que nos faltem ideais. Estamos rodeados de gente que quer
salvar o planeta, que vai curar feridos para o outro lado do mundo, que serve
comidas a refugiados, que luta por restituir a vida em bairros abandonados.
Hoje há muito mais pessoas que se entregam do que no meu tempo. Não nos faltam
ideais, faltam-nos subjetivações coletivas. Um ideal é o que incita alguém a
encarregar-se dos outros. Uma subjetivação coletiva é o que faz com que todas
estas pessoas, juntas, constituam um povo.
Como
fazer para constituir um povo? Deve ser necessariamente à escala do
estado-nação?
Um
povo, em sentido político, constitui-se sempre à distância da forma estatal do
povo. Por isso fazem falta simbolizações igualitárias, abertas a todo o mundo e
que, para além dos temas específicos (os refugiados, a ecologia, o banlieu),
permitam a inclusão daqueles que não têm parte. Mas um povo também se constitui
localmente, em relação com uma dominação que se exerce num espaço nacional.
Em
Madrid, o movimento 15M estruturou-se em torno de uma ruptura com a lógica dos
partidos que monopolizam o poder comum. Em Istambul, o movimento da praça
Taksim formou-se em torno de um espaço aberto a todos que o Estado queria
transformar em zona comercial. Ainda que o capital seja mundial, atuamos
primeiro onde há um ponto de emergência. A nação é uma simbolização coletiva e,
como toda a simbolização, é um campo de luta permanente, em França e em todo o
lado. É dentro dessa perspectiva que devemos pensar a ofensiva que, desde
princípios dos anos 2000, pesa sobre a identidade francesa: é o ponto
culminante de uma contrarrevolução intelectual que progressivamente expurgou a
nação francesa da sua herança revolucionária, socialista, operária,
anticolonial e resistente para reduzi-la a uma nação branca e cristã.
A
onipresença do tema da insegurança provém da mesma “contrarrevolução”?
Ele
tende igualmente à constituição de uma identidade coletiva regressiva. O
governo atual segue a lição de Bush: é como comandante-chefe que o governante
gera maiores adesões. Perante o desemprego é preciso inventar soluções e
enfrentar a lógica do benefício. Mas quando se põe o uniforme de comandante é
tudo mais simples, sobretudo num país, onde apesar de tudo, o exército
permanece como um dos mais bem treinados.
O
que os nossos governos melhor sabem fazer não é gerir a segurança, mas sim o
sentimento de insegurança. É algo muito diferente, senão mesmo o oposto. Em novembro
de 2005 [durante as revoltas dos banlieus de Paris], poder-se-iam ter
evitado semanas de graves confrontos se o então ministro do interior [Nicolas
Sarkozy] tivesse estado um pouco menos preocupado por fazer do sentimento de
insegurança uma plataforma de lançamento do seu programa presidencial e tivesse
tido um pouco mais de interesse em procurar formas de apaziguamento e diálogo
apropriadas para garantir a segurança.
Manuel
Valls denuncia a busca de “explicações sociológicas”, que entende como uma
forma de desculpar os autores dos atentados. Como analisa este ataque, tendo em
conta que também dirigiu críticas – muito diferentes! – à sociologia de Pierre
Bourdieu?
A
“cultura da desculpa” é um simples espantalho que se esgrime para provar, a
contrário, que apenas as medidas repressivas são eficazes. Mas as
consequências são duvidosas. Sem dúvida, a sociologia de um meio social
desfavorecido será sempre impotente na hora de explicar porque dez ou vinte
membros desse meio se convertem em jihadistas e, sem dúvida, para
impedir que passem à ação. Ainda que nem os favoreça nem os desculpe.
O
ruído “securitário” funciona de outra maneira. As suas ameaças não podem
assustar aqueles que conhecem castigos mais temíveis. E mais: favorecem a
cultura de expiação, cuja forma mais extrema é o jihadismo. Esta é a cultura
que é preciso combater. Deveria ser possível, sem a ajuda de nenhuma ciência,
convencer os estudantes árabes que não se podem vingar sobre um professor judeu
pelos crimes do Estado israelita. Mas, para que isto seja possível, é preciso
deixar de transformar em delito de anti-semitismo o protesto contra esses
crimes de Estado.
Como
pensador, é frequentemente classificado sob o rótulo “esquerda radical” e,
portanto, anticapitalista. Contudo, nas suas análises, coloca os poderes
políticos e intelectuais à frente das forças económicas.
Há
quem acredite que ser de esquerda significa reduzir tudo à dominação do
capital. Esta posição “de esquerda” engendra no final uma resignação pesada à
lei de um sistema. É no espaço político que se organizam as formas de
comunidade que levam a cabo a dominação capitalista ou que se opõem a esta. A
banca e as finanças não fabricam por si próprias as formas de opinião que criam
um povo que lhes convém. São os políticos, os intelectuais e a classe mediática
quem faz esse trabalho. Neste ponto separo-me de um certo marxismo que
considera como simples aparências as simbolizações políticas produzidas no
campo da opinião e das instituições. Trata-se de um campo de batalha efetivo.
Se dizemos que nada mudará enquanto dure a dominação capitalista, podemos ficar
tranquilos: as coisas continuarão a ser o que são até ao fim do mundo.
Mas,
ao mesmo tempo, a transformação das relações humanas em relações mercantis, que
parecem agora prevalecer em todo o mundo. Não é desesperante?
Aqui,
de novo, a redução direta da ideologia à economia esquiva a questão política. É
um tema recorrente. Nos anos 20, denunciava-se o cinema como um lugar no qual
as classes se embruteciam perante as imagens; nos anos 60, acusava-se a máquina
de lavar a roupa e as casas de apostas de desviarem os proletários da
revolução… Hoje fetichiza-se a toda-poderosa mercadoria, como se a simples
presença de um iPhone de última geração pudesse ser suficiente para
engolir todas as consciências no ventre da besta.
A
impotência política não provém hoje do poder hipnótico do último gadget.
Vem da nossa incapacidade de conceber uma potência coletiva, susceptível de
criar um mundo melhor que o existente. Esta impotência alimenta-se do fracasso
dos movimentos revolucionários dos anos 60 e 70, da queda da URSS, da desilusão
perante as esperanças democráticas abertas por esse afundamento, pela
globalização e os seus efeitos sobre o tecido industrial francês. O que
desmoralizou as forças progressistas em França não foram as mercadorias mas sim
os governos do Partido Socialista.
Talvez
em França, mas e a nível mundial? O membro da classe média chinesa ou indiana,
que consome como nós, não é vítima do mesmo desencanto?
À
escala mundial há que fazer diagnósticos diferentes. O novo gestor chinês que
desfruta do seu televisor de tela gigante a partir da sua banheira de luxo
representa pouco mais que uma ínfima fracção do seu país. Para uma imensa
maioria da população mundial, o problema não é esse tal niilismo engendrado
pelo capitalismo tardio, mas o advento, ou a restauração, de formas de
exploração selvagens e de sistemas industriais concentracionários próprios do
capitalismo primitivo.
Jacques
Rancière nasceu em 1940 na Argélia. Em 1965, escreveu
com Louis Althusser e Étienne Balibar, o livro Lire le Capital. Foi
Professor emérito da Universidade de paris VIII, onde leccionou estética e
política. Em 2014 a Boitempo publicou dele O ódio à democracia.
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