O primeiro canto

O primeiro canto

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Os Amantes- Magritte


"A Arte evoca o mistério,
sem a qual o mundo não existiria"
René Magritte

terça-feira, 29 de maio de 2012

Cântico negro- José Régio

Uma poesia do luso José Régio. Palavras cheias. Intensas! Ainda mais num mundo onde as pessoas pensam que os elogios e as palavras "mansas" encantam.   

Cântico negro
José Régio

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!





sexta-feira, 13 de abril de 2012

Viejo



Outono, antes do anoitecer do dia 13

Viejo, como andas?

Escrevo rápido e sem escolher bem as palavras. Escuto mais uma vez o Einaudi, do disco que tu esquecestes. Penso que irias gostar deste tempo. Estou aqui na varanda, vejo a tua árvore. Da última vez que a vistes, era primavera. Ela está linda, emoldurada com o adeus do dia.
Sei que a distância é grande, mas sinto tanto a tua presença. Hoje, uma vez mais, li a tua carta. Capaz de pensar que ando a arquivar na alma cada palavra. Não te rias...
Acreditas que a cada leitura, e olha que passa de algumas dúzias, encontro novos sentidos para as palavras que já andam a envelhecer? Pois, se digo isto, faço o uso da verdade. Sinto muito não ter respondido com a urgência solicitada, mas o tempo por aqui anda mais curto que no restante doutros lugares.
Gostaria tanto de ter contigo ainda nesta estação, apesar disso, parece que esse desejo é coisa para mais um par de tempo. E não te atrevas a dizer que é por minha culpa. Sabes muito bem do meu desejo de ver-te, mas as pernas são curtas e ainda não surgiu nenhum 'gênio' da lâmpada.
Sei que sou, muitas vezes, inflexível com minhas ações. E sei, ainda mais, que não consegues compreender a todas. Reconheço que não sou pessoa de fácil entendimento. No entanto, importante que saibas: amo-o muito, muito. Nos últimos tempos, esse amor, nutrido pela saudade, cresce. Sei bem, quando estamos juntos, nosso convívio não é fácil. Contudo, temos lá nossos momentos de ternura. Leveza...
Imagino que agora deves rir das minhas afloradas sensibilidades. Não importa, só por hoje, vou ignorar.
A verdade é que ando muito cansada. É tanto a ser feito, e a penúria de tempo, recurso, a rondar como fantasma. Mas como tu diz: uma coisa por tempo.
Vá saber por que escrevo estas palavras pintadas de emoção. Talvez a poesia sirva-me como defensora e tal qual o poeta, posso dizer que a lua, o conhaque, botam a gente comovido como o diabo.
Lembro-me, nesta hora, do teu sorriso. Da tua cara amuada quando bombardeio as tuas ideias. Até disso sinto falta. Oh...
Ah, quase esquecia. Encontrei o livro que te prometi. Mando junto com essas palavras. Não te ofendas, mas destaquei umas linhas que encontrei no meio das páginas. Deixo-te como despedida. E não te esqueças, espero vê-lo em breve. Aguardo a tua companhia por estes campos. Mando também uma música do Einaudi, a que escuto agora.
Um abraço, meu amigo querido. Meu pai. Meu Viejo.

“Estes são os alicerces da nossa razão e da nossa força, este é o muro por trás do qual nos foi possível defender, até aos dias de hoje, quer a nossa identidade quer a nossa autonomia. Assim temos continuado. E assim continuaríamos se novas reflexões não nos viessem apontar a necessidade de novos caminhos” Saramago- Todos os Nomes.