O primeiro canto

O primeiro canto

domingo, 29 de março de 2015

A Carta de Lorde Chandos


A Carta de Lorde Chandos é um pequeno grande texto, em que Hugo von Hofmannsthal descreve uma súbita crise de linguagem experimentada por Lorde Chandos, um jovem poeta que, face a todo um novo mundo que se abre diante dos seus olhos, repleto de sensações e fenómenos que o invadem e fazem fervilhar todo o seu ser, dá-se conta da impotência das palavras, que outrora manejava com desenvolta mestria, para abarcar essa harmonia transcendente entre o seu interior e o mundo inteiro. Esta Carta é também um paradoxo: um escritor, para quem as palavras já não possuem significado nem utilidade, consegue escrever um texto de uma eloquência simplesmente prodigiosa.



"Senti neste momento, com uma certeza que não deixou de ser dolorosa, que nem no próximo ano, nem no seguinte, nem em mais ano nenhum da minha vida, escreverei um livro, quer latino, quer inglês: e isto por razão estranha e penosa que a infinita superioridade do seu espírito saberá, com um olhar não obscurecido, situar no lugar que lhe pertence no reino dos fenómenos corporais e espirituais, aberto harmoniosamente perante si: quero dizer que a língua em que me seria, talvez, dado não apenas escrever, mas pensar, não é nem o latim, nem o italiano, nem o espanhol, mas uma língua de que não conheço uma só palavra, uma língua com que as coisas mudas me falam e na qual deverei talvez um dia, do fundo da campa, justificar-me perante um juiz desconhecido."

Hugo von Hofmannsthal, "Carta de Lord Chandos", tradução de Carlos Leite, Hiena editora, Lisboa, 1990.