Um
tico-tico estufa as penas, inchado de preguiça, e gorjeia seu canto miúdo ao
sol das duas horas da tarde. Marcos Agostinho estrebucha, agonizando à beira da
estrada. Fora tocaiado ao meio dia, a mando do coronel Jorjão. Nem uma viva
alma para rezar um credo e ouvir sua última confissão. Bem que ele queria,
naquele transe, ter uma mão amiga segurando na sua. A hora dele tinha chegado,
e o caboclo tentava lembrar de alguma oração por inteiro. Porém, o passarinho
de topete preto pulava, pra lá e pra cá, no ramo do Maricá empoeirado, roubando
o fiapinho de atenção, que ele tanto precisava pra rezar.
- Que diabo de tico-tico bonitinho, só falta mesmo falar. Pois, faça o favor de me escutar, seu peralta. Ouça-me o pensamento, que em pensamento nem preciso falar, só imaginar, e, isso, você pode bem entender.
Desde criança que Agostinho tinha certas manias esquisitas, que o faziam passar por doido. A vizinhança da viúva, sua mãe, lhe apontava: "Lá está o Gostinho, falando com a formigas cortadeiras, como se elas fossem gente, dona Anacleta, esse menino precisa de um doutor!"
- Você que tem asinhas ligeiras, senhorzinho, podia ir até a casa de Iracema e bater lá na janela dela, não podia?
O pássaro saltou para um galho mais perto do homem que agonizava e ficou paradinho, parece até que compreendia. A respiração de Agostinho era curta, quase que só no começo da garganta. Tinha muita bala dentro do corpo. Uma porção.
- Então, meu pequeno, veja se tem lembrança, que nunca atirei de bodoque em nenhum dos teus parentes. Nos passarões sim, muitas vezes.
Mesmo quando moleque era mais por necessidade do que por divertimento, que ele ia à caça. Era só pra ajuntar uma carnezinha magra, na hora da bóia - sempre um feijão aguado, um arroz minguado -, a alguma folha de almeirão do mato, que sua mãe colhia, aqui e ali, na beira da estrada.
- Que diabo de tico-tico bonitinho, só falta mesmo falar. Pois, faça o favor de me escutar, seu peralta. Ouça-me o pensamento, que em pensamento nem preciso falar, só imaginar, e, isso, você pode bem entender.
Desde criança que Agostinho tinha certas manias esquisitas, que o faziam passar por doido. A vizinhança da viúva, sua mãe, lhe apontava: "Lá está o Gostinho, falando com a formigas cortadeiras, como se elas fossem gente, dona Anacleta, esse menino precisa de um doutor!"
- Você que tem asinhas ligeiras, senhorzinho, podia ir até a casa de Iracema e bater lá na janela dela, não podia?
O pássaro saltou para um galho mais perto do homem que agonizava e ficou paradinho, parece até que compreendia. A respiração de Agostinho era curta, quase que só no começo da garganta. Tinha muita bala dentro do corpo. Uma porção.
- Então, meu pequeno, veja se tem lembrança, que nunca atirei de bodoque em nenhum dos teus parentes. Nos passarões sim, muitas vezes.
Mesmo quando moleque era mais por necessidade do que por divertimento, que ele ia à caça. Era só pra ajuntar uma carnezinha magra, na hora da bóia - sempre um feijão aguado, um arroz minguado -, a alguma folha de almeirão do mato, que sua mãe colhia, aqui e ali, na beira da estrada.
- Já que Deus te mandou pra me fazer companhia
nessa passagem braba, passarozinho, leve no teu bico um pouco do meu sangue pra
minha noiva. Deixe lá na vidraça da janela, só um pingo vermelho, bem
pequenino, que ela vai saber que sou eu quem tá te enviando. Diga pra ela pegar
as roupas do enxoval e arribar pra cidade grande. Se ela ficar aqui, o malvado
vai ter a presa ao alcance da mão. Vai acontecer bem assim. Primeiramente, vai
ter um banzé de polícia e investigação fingida, quando acharem meu corpo caído,
sem vida, aqui nesta posição. Então, vêm as perguntas. Ela não pode dizer nada,
muito menos que o coronel Jorjão, andava querendo lhe pegar na marra, sem
respeitar noivado, nem futuro casamento. É melhor que ela se faça de sonsa, pra
não levantar suspeita. Por uns dois ou três dias vão deixar ela em paz, é o
tempo que ela tem. Ela tem de ir pra rodoviária na madrugada, e se picar pra
capital. Tem lá a tia dela, não tem? Pois, então, ela vai. Lá ela faz rezar uma
missa, pra que Deus me tire do purgatório, pelo amor da Virgem Santa. Depois,
aos bocadinhos, que trate de me esquecer. Que cuide da vida, que agora vai ser
só dela. Eu, também, me despeço pra sempre, pois - do outro lado - de que me
adianta recordar...
Fizera papel de homem. Foi tirar satisfação com o coronel, na frente da família dele pra quem Iracema cozinhava. Ela não queria que ele fosse, mas foi, e não se arrepende. É como acontecia quando derrubava, com uma pedra certeira, uma pomba do mato. Não pensava no acontecido. Destino. Está feito. É Deus quem põe, e o diabo quem dispõe, e se acabou.
Fizera papel de homem. Foi tirar satisfação com o coronel, na frente da família dele pra quem Iracema cozinhava. Ela não queria que ele fosse, mas foi, e não se arrepende. É como acontecia quando derrubava, com uma pedra certeira, uma pomba do mato. Não pensava no acontecido. Destino. Está feito. É Deus quem põe, e o diabo quem dispõe, e se acabou.
Sobre o Autor:
Camilo de
Lélis - é diretor de teatro. Seus trabalhos foram vistos em circulação por
quase todo Brasil. No exterior, destacam-se apresentações em Montevidéu (em
1996 e 2001, respectivamente) e em Buenos Aires (1997). Apresentou-se na
Alemanha (Munique) em 1998 e em Portugal (Coimbra) em 2003. Em 2006, as
encenações de Camilo de Lélis foram objeto da monografia "Carnaval, Encenação
e Teatro Gaúcho", premiada no Concurso Nacional de Monografias Gerd
Bornheim, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre.
Camilo de Lélis também escreve contos, crônicas e poemas, além de críticas e
ensaios sobre Teatro.