Eugénio de Andrade
Que
tempo é o nosso? Há quem diga que é um tempo a que falta amor. Convenhamos que
é, pelo menos, um tempo em que tudo o que era nobre foi degradado, convertido
em mercadoria. A obsessão do lucro foi transformando o homem num objecto com
preço marcado. Estrangeiro a si próprio, surdo ao apelo do sangue, asfixiando a
alma por todos os meios ao seu alcance, o que vem à tona é o mais abominável
dos simulacros. Toda a arte moderna nos dá conta dessa catástrofe: o
desencontro do homem com o homem. A sua grandeza reside nessa denúncia; a sua
dignidade, em não pactuar com a mentira; a sua coragem, em arrancar máscaras e
máscaras.
E
poderia ser de outro modo? Num tempo em que todo o pensamento dogmático é mais
do que suspeito, em que todas as morais se esbarrondam por alheias à
«sabedoria» do corpo, em que o privilégio de uns poucos é utilizado
implacavelmente para transformar o indivíduo em «cadáver adiado que procria»,
como poderia a arte deixar de reflectir uma tal situação, se cada palavra, cada
ritmo, cada cor, onde espírito e sangue ardem no mesmo fogo, estão arraigados
no próprio cerne da vida?
Desamparado até à medula, afogado nas águas difíceis da sua contradição,
morrendo à míngua de autenticidade - eis o homem! Eis a triste, mutilada face
humana, mais nostálgica de qualquer doutrina teológica que preocupada com uma
problemática moral, que não sabe como fundar e instituir, pois nenhuma fará
autoridade se não tiver em conta a totalidade do ser; nenhuma, em que espírito
e vida sejam concebidos como irreconciliáveis; nenhuma, enquanto reduzir o
homem a um fragmento do homem. Nós aprendemos com Pascal que o erro vem da
exclusão.
Do livro: Os Afluentes do Silêncio