Por Moacyr Alexandro Rosa*
“Louco é aquele que perdeu tudo,
menos a razão”
G. K. Chesterton
G. K. Chesterton
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
F. Pessoa
O
profundo mistério que caracteriza o ser humano provoca uma "inquietante
inquietação" em todas as pessoas e, de forma especial, em nós que nos
dedicamos a estudar o homem e encontrar algo da sua verdade. Tentamos iluminar
um pouco este mistério mas, a cada vez que o fazemos, damo-nos conta de que ele
é mais profundo do que supúnhamos em nossa ingenuidade. Cada descoberta
científica remete a inúmeros novos questionamentos. Cada certeza é derrubada
por uma nova, sucumbindo implacavelmente ao crivo do tempo.
Os
filósofos e os poetas, quando são bons filósofos e bons poetas, são os mais
capacitados para esta tarefa, pois vêem as coisas de forma mais global e sabem
que estão pisando em terreno sagrado ao tentar visitar a alma humana. Tiram o
calçado, por assim dizer.
A
loucura sempre foi assunto de grande interesse ao longo dos séculos. Sempre
houve "loucos". Poderíamos arriscar dizer que é "normal"
que haja loucos.
Não
acho que haja respostas definitivas para o tema da loucura. Apenas traçarei
algumas considerações a partir de um seminário do curso de Filosofia do Programa
Master em Jornalismo do qual participei a convite do Professor Lauand. O
seminário constou de depoimentos de pessoas que participam de grupos de
auto-ajuda. (Também tive a oportunidade de participar - como observador - da
primeira sessão dos Psicóticos Anônimos no Brasil).
A
grande questão é esta: o que é a loucura?
Quando
o primeiro expositor (L. F. Barros, fundador dos Psicóticos Anônimos no
Brasil) fez seu depoimento dirigindo-se a uma platéia de jornalistas, comparou
a profissão deles com o trabalho do mítico Sísifo, que, como se sabe, havia
sido condenado para sempre a erguer uma pedra até o cimo de um monte. Quando
chegava ao cimo, a pedra rolava novamente até o chão.
Assim,
os jornalistas erguem suas pedras diariamente. Estas chegam ao cimo quando a
matéria é publicada, mas caem no dia seguinte, quando o que escreveram torna-se
"jornal velho". É necessário elevar a pedra novamente.
Essa
feliz comparação foi feita por alguém que se declara "doente mental".
"É um louco inteligente!", dirão alguns, pouco dotados para enxergar
o que está em questão. É mais do que isso. É alguém que esteve no mais profundo
abismo e que voltou de lá para nos contar, brilhantemente, algo do mistério.
Barros
comentou, quase de passagem, que não conseguia entender como a loucura podia
fascinar tanto as pessoas, sendo, como é, algo tão terrível, "uma das
piores coisas que pode acontecer com uma pessoa". Louco inteligente? Não.
É um sábio que conhece o ser humano a partir de dentro de si mesmo, que
enfrentou todo tipo de internações (curiosamente não é contrário a elas...),
todo tipo de dificuldades, estigmas, incompreensões, destruição da própria
família...
A
comparação com o mito de Sísifo trouxe-me a mente outra que talvez ajude a
entender um pouco o que é uma doença mental. Comparo Barros a Prometeu que,
segundo a lenda, deu-nos o fogo e foi condenado a ser acorrentado a uma rocha
no Cáucaso. Um abutre vinha comer-lhe o fígado que se refazia sempre,
reiniciando-se o tormento. O fogo que nos deu foi sua experiência, mostrando
que ser "louco" é pouco fascinante quando se é o protagonista da
loucura. Ensinou-nos isto, estando ele próprio acorrentado à doença que o
destino lhe impôs.
A
corrente que o prende, durante seus surtos, à rocha da irrealidade, é a doença
mental.
Poderia
forçar um pouco a comparação, dizendo que o abutre são os medicamentos que
podem ter efeitos hepatotóxicos (lesar o fígado), mas seria uma comparação
injusta. Por piores que sejam os efeitos colaterais, os remédios abrem uma
janela, por pequena que seja, pela qual os doentes podem voltar a ter acesso à
luz da realidade, ao mundo dos "normais".
O
termo "loucura" é confuso. É usado de forma análoga (ou seja, com
semelhanças em alguns aspectos e diferenças em outros) para realidades bastante
díspares.
Todos
concordam em que a paixão "deixa louco". "Loucos são os sábios,
loucos são os gênios, loucos são os santos", como dizia Fernando Pessoa.
Sim, são loucos por fugirem à "normalidade", ao que é
"comum", ao que a maioria faz, à mediocridade. Mas a loucura da
sabedoria, da genialidade e da santidade é uma loucura que liberta, uma loucura
escolhida, enquanto que a loucura da doença mental escraviza, aprisiona,
destrói a capacidade de escolha. O descuido no uso do mesmo termo para
realidades tão diferentes, quase opostas, é perigoso e, por vezes altamente
deletério, quando feito de forma leviana (a poesia, esta sim, só tem vantagens,
com imprecisão do termo).
Algumas
correntes de pensamento dentro da Psicologia, da Filosofia e da Psiquiatria
caem nesta confusão. Com a boa intenção de desestigmatizar a doença mental,
acabam obscurecendo o caminho para sua melhor compreensão e bloqueando o acesso
ao tratamento a que essas pessoas têm direito.
Pode-se
dizer que Barros é alguém portador de duas loucuras (é um "louco em
dobro", se me permitem a expressão). Tem a loucura da doença (da qual vem
se tratando e ajudando outros a se tratarem) e a loucura da sabedoria, com a
qual nos ajuda a desvendar o mistério de sua própria existência. Sentimo-nos
muito gratos por compartilhar esta loucura conosco, tornando-nos mais humanos.
A
Psiquiatria (e a medicina como um todo) necessita rehumanizar-se. Mas não me
parece que o caminho seja o de negar a doença, ou até considerá-la algo bom.
Alguns
psicóticos fizeram seu depoimento. Um rapaz que não conseguiu concluir o curso
de Administração pois a doença eclodiu quando se encontrava no segundo ano.
Comoveu-nos sua simplicidade ao contar como sua vida foi acorrentada à rocha.
Impressionou-nos seu desejo de conhecer a Deus (está estudando teologia) e sua
vontade de "ir para o céu".
Uma
senhora, que participa de um grupo de auto-ajuda para familiares de doentes deu
seu depoimento. Choramos com ela, quando nos contou sobre seu filho doente
mental, que também tinha estado na faculdade até que a doença se manifestasse.
Ela comentava que, sendo psicóloga, achava que sabia algo sobre a mente humana
e a doença mental. Contudo, dizia, só tendo alguém dentro de casa é que se
descobre the real thing. Há quatro anos seu filho suicidou-se. Vem-me de
novo à mente a frase de Barros: "Como pode algo tão terrível causar tanto
fascínio?"
Os
doentes são acorrentados pelo destino e nós tentamos achar o caminho para que
se libertem. Esta mãe de um Prometeu acorrentou-se voluntariamente à rocha
onde, ajudando outras pessoas, pode reencontrar neles o filho que lhe foi
arrebatado.
Não
sei a que mito comparar os médicos psiquiatras. Talvez a Dédalo que, tentando
dar a liberdade a seu filho construindo-lhe asas, não atingiu seu objetivo.
Sentimo-nos assim: proporcionando um pequeno voo aos pacientes, mas logo
sobrevém a queda ao solo.
O
essencial é a humildade (necessária a todos: médicos, jornalistas,
filósofos...) perante o mistério humano, condição para procurar asas que não se
derretam ao se aproximarem do sol da liberdade.
*Psiquiatra
Assistente do Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP e Médico Assist. do Dep de Saúde Mental da Santa Casa de São Paulo.