O primeiro canto

O primeiro canto

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

O Encontro de Prometeu e Sísifo - Algumas Considerações sobre a Loucura

Por Moacyr Alexandro Rosa*
 

“Louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão”
G. K. Chesterton

Sem a loucura que é o homem 
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
F. Pessoa

O profundo mistério que caracteriza o ser humano provoca uma "inquietante inquietação" em todas as pessoas e, de forma especial, em nós que nos dedicamos a estudar o homem e encontrar algo da sua verdade. Tentamos iluminar um pouco este mistério mas, a cada vez que o fazemos, damo-nos conta de que ele é mais profundo do que supúnhamos em nossa ingenuidade. Cada descoberta científica remete a inúmeros novos questionamentos. Cada certeza é derrubada por uma nova, sucumbindo implacavelmente ao crivo do tempo.
Os filósofos e os poetas, quando são bons filósofos e bons poetas, são os mais capacitados para esta tarefa, pois vêem as coisas de forma mais global e sabem que estão pisando em terreno sagrado ao tentar visitar a alma humana. Tiram o calçado, por assim dizer.
A loucura sempre foi assunto de grande interesse ao longo dos séculos. Sempre houve "loucos". Poderíamos arriscar dizer que é "normal" que haja loucos.
Não acho que haja respostas definitivas para o tema da loucura. Apenas traçarei algumas considerações a partir de um seminário do curso de Filosofia do Programa Master em Jornalismo do qual participei a convite do Professor Lauand. O seminário constou de depoimentos de pessoas que participam de grupos de auto-ajuda. (Também tive a oportunidade de participar - como observador - da primeira sessão dos Psicóticos Anônimos no Brasil).
A grande questão é esta: o que é a loucura?
Quando o primeiro expositor (L. F. Barros, fundador dos Psicóticos Anônimos no Brasil) fez seu depoimento dirigindo-se a uma platéia de jornalistas, comparou a profissão deles com o trabalho do mítico Sísifo, que, como se sabe, havia sido condenado para sempre a erguer uma pedra até o cimo de um monte. Quando chegava ao cimo, a pedra rolava novamente até o chão.
Assim, os jornalistas erguem suas pedras diariamente. Estas chegam ao cimo quando a matéria é publicada, mas caem no dia seguinte, quando o que escreveram torna-se "jornal velho". É necessário elevar a pedra novamente.
Essa feliz comparação foi feita por alguém que se declara "doente mental". "É um louco inteligente!", dirão alguns, pouco dotados para enxergar o que está em questão. É mais do que isso. É alguém que esteve no mais profundo abismo e que voltou de lá para nos contar, brilhantemente, algo do mistério.
Barros comentou, quase de passagem, que não conseguia entender como a loucura podia fascinar tanto as pessoas, sendo, como é, algo tão terrível, "uma das piores coisas que pode acontecer com uma pessoa". Louco inteligente? Não. É um sábio que conhece o ser humano a partir de dentro de si mesmo, que enfrentou todo tipo de internações (curiosamente não é contrário a elas...), todo tipo de dificuldades, estigmas, incompreensões, destruição da própria família...
A comparação com o mito de Sísifo trouxe-me a mente outra que talvez ajude a entender um pouco o que é uma doença mental. Comparo Barros a Prometeu que, segundo a lenda, deu-nos o fogo e foi condenado a ser acorrentado a uma rocha no Cáucaso. Um abutre vinha comer-lhe o fígado que se refazia sempre, reiniciando-se o tormento. O fogo que nos deu foi sua experiência, mostrando que ser "louco" é pouco fascinante quando se é o protagonista da loucura. Ensinou-nos isto, estando ele próprio acorrentado à doença que o destino lhe impôs.
A corrente que o prende, durante seus surtos, à rocha da irrealidade, é a doença mental.
Poderia forçar um pouco a comparação, dizendo que o abutre são os medicamentos que podem ter efeitos hepatotóxicos (lesar o fígado), mas seria uma comparação injusta. Por piores que sejam os efeitos colaterais, os remédios abrem uma janela, por pequena que seja, pela qual os doentes podem voltar a ter acesso à luz da realidade, ao mundo dos "normais".
O termo "loucura" é confuso. É usado de forma análoga (ou seja, com semelhanças em alguns aspectos e diferenças em outros) para realidades bastante díspares.
Todos concordam em que a paixão "deixa louco". "Loucos são os sábios, loucos são os gênios, loucos são os santos", como dizia Fernando Pessoa. Sim, são loucos por fugirem à "normalidade", ao que é "comum", ao que a maioria faz, à mediocridade. Mas a loucura da sabedoria, da genialidade e da santidade é uma loucura que liberta, uma loucura escolhida, enquanto que a loucura da doença mental escraviza, aprisiona, destrói a capacidade de escolha. O descuido no uso do mesmo termo para realidades tão diferentes, quase opostas, é perigoso e, por vezes altamente deletério, quando feito de forma leviana (a poesia, esta sim, só tem vantagens, com imprecisão do termo).
Algumas correntes de pensamento dentro da Psicologia, da Filosofia e da Psiquiatria caem nesta confusão. Com a boa intenção de desestigmatizar a doença mental, acabam obscurecendo o caminho para sua melhor compreensão e bloqueando o acesso ao tratamento a que essas pessoas têm direito.
Pode-se dizer que Barros é alguém portador de duas loucuras (é um "louco em dobro", se me permitem a expressão). Tem a loucura da doença (da qual vem se tratando e ajudando outros a se tratarem) e a loucura da sabedoria, com a qual nos ajuda a desvendar o mistério de sua própria existência. Sentimo-nos muito gratos por compartilhar esta loucura conosco, tornando-nos mais humanos.
A Psiquiatria (e a medicina como um todo) necessita rehumanizar-se. Mas não me parece que o caminho seja o de negar a doença, ou até considerá-la algo bom.
Alguns psicóticos fizeram seu depoimento. Um rapaz que não conseguiu concluir o curso de Administração pois a doença eclodiu quando se encontrava no segundo ano. Comoveu-nos sua simplicidade ao contar como sua vida foi acorrentada à rocha. Impressionou-nos seu desejo de conhecer a Deus (está estudando teologia) e sua vontade de "ir para o céu".
Uma senhora, que participa de um grupo de auto-ajuda para familiares de doentes deu seu depoimento. Choramos com ela, quando nos contou sobre seu filho doente mental, que também tinha estado na faculdade até que a doença se manifestasse. Ela comentava que, sendo psicóloga, achava que sabia algo sobre a mente humana e a doença mental. Contudo, dizia, só tendo alguém dentro de casa é que se descobre the real thing. Há quatro anos seu filho suicidou-se. Vem-me de novo à mente a frase de Barros: "Como pode algo tão terrível causar tanto fascínio?"
Os doentes são acorrentados pelo destino e nós tentamos achar o caminho para que se libertem. Esta mãe de um Prometeu acorrentou-se voluntariamente à rocha onde, ajudando outras pessoas, pode reencontrar neles o filho que lhe foi arrebatado.
Não sei a que mito comparar os médicos psiquiatras. Talvez a Dédalo que, tentando dar a liberdade a seu filho construindo-lhe asas, não atingiu seu objetivo. Sentimo-nos assim: proporcionando um pequeno voo aos pacientes, mas logo sobrevém a queda ao solo.
O essencial é a humildade (necessária a todos: médicos, jornalistas, filósofos...) perante o mistério humano, condição para procurar asas que não se derretam ao se aproximarem do sol da liberdade.

*Psiquiatra Assistente do Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP e Médico Assist. do Dep de Saúde Mental da Santa Casa de São Paulo.

"Dying Slowly" - Tindersticks




segunda-feira, 16 de outubro de 2017

"Minhas Leis não são suas Leis. As minhas são, foram e sempre serão"


A Lei Divina (Thémis) e a Lei dos Homens (Diké) em Antígona
Por Luciene Félix 

Foi-nos legado pelo tragediógrafo grego Sófocles (496 a.C.), em sua obra "Antígona" (441 a.C.) uma abordagem mítica e lógica, mitológica, de um terrível dilema humano que sempre tomará de assalto nossa Alma, colocando-nos diante de questões insolucionáveis. O fato do mito ser atemporal não nos surpreende pois a sua principal característica é a inestoriabilidade, ou seja, um processo contínuo, um incessante vir-a-ser.
A sophrosyne (nada em excesso) que nos foi tão cara no artigo anterior sobre a polêmica das charges, a justa medida, o métron grego não dá conta de evitar o embate entre Thémis e Diké quando estas duas concepções de justiça se opõem no interior da psiquê e coagem o homem obrigando-o a tomar uma posição inexoravelmente excludente.
Este drama eterno será vivido com toda intensidade e paixão pela marcada filha de Édipo, neta do amaldiçoado transgressor Laio, filho de Lábdaco: a nobre Antígona.
Retomemos a tragédia Sofocliana de Édipo Rei que, ao ser apresentada em 430 a.C. desbancou o veterano Ésquilo. Marcado, pois portador da hamartía - marca da maldição familiar - dos Labdácias, Édipo é um inocente herói trágico. Sobre ele paira o justificável e legítimo argumento de ignorar a verdade sobre suas origens e nada poder fazer para fugir de seu inescapável destino já profetizado pelo oráculo de Apollo em Delfos: matar o pai e desposar a mãe, incorrendo numa irreversível transgressão a ordem (kosmós) da natureza (physis). Trata-se de uma aberração pois uma vez marido da própria mãe, tornou-se assim irmão e pai de seus filhos. No desenrolar de toda tragédia, Édipo não suporta a revelação de tamanha desgraça a seu espírito, diante da imensidão de seu infortúnio, fura os próprios olhos e retira-se da cidade. Filha zelosa e solidária, Antígona o acompanha. Pobre Antígona. Singular Antígona. Possui ainda mais uma irmã, a ponderada e razoável Ismene e dois irmãos: Polinices e Eteócles.
Amaldiçoados pelo próprio pai Édipo, a quem rejeitaram, a morrer um pelas mãos do outro, Etéocles e Polinices, irmãos de Antígona, rivalizam-se: Etéocles à favor do tio, Creonte e Polinices, pleiteando reaver o trono que fora de seu pai, coloca-se contra Tebas. Num sangrento fratricídio, extingem-se reciprocamente.
Creonte, agora Rei de Tebas, personifica a tirania quando das leis escritas se apropria em benefício próprio que é o de manter-se no poder. Justifica e legitima seus atos quando prende-se ferreamente a "manipulável" lei dos homens (Diké): a um desertor, traidor (Polinices), não se permite sepultamento. Isso significa ter seu cadáver jogado aos cães, dilacerado por feras carniceiras e aves de rapina.
Por Zeus, muito mais preocupante que a morte em si, pois esta é certa, é a honra da sepultura, o justo merecimento de, tendo sido bem-quisto neste mundo, obter a glória de ser bem recebido no outro. Certeza de poder ter um funeral condigno, pagar a moeda ao barqueiro Caronte, fazer a travessia pelo Léthe, o rio do esquecimento, chegar ao insondável reino dos mortos, onde Plutão e Perséfone imperam no misterioso Hades.
Onde faz morada o embate entre Thémis e Diké? O conflito jaz em olvidar o telos (propósito, finalidade) da lei em prol da letra que beneficia a quem a aplica, mas "a letra não está acima do espírito da lei dos homens". Quando se confrontam a Lei dos Deuses e a Lei dos Homens? Quando não se atinge sua consonância, quando esta última impõe-se desconsiderando a primeira. Dito de outra forma, dá-se assim, quando na terra não é como no céu.
Sobre a conseqüência desta deflagrada polêmica muitos filósofos do direito se debruçaram (e debruçarão!). Na verdade todo e qualquer mortal. Estas são questões fundamentais para o espírito humano: como estabelecer qual é o limite da autoridade do Estado, do direito positivo, sobre as ditas leis do direito natural, as leis não escritas? Com quem está a razão? Polinices em lutar por reaver o trono deixado por seu pai, algo que julga ser seu por direito divino (Thémis) ou Creonte que agora Rei deve aplicar a Lei dos homens (Diké) a qualquer inimigo de Tebas? Quando a razão não dá conta de tudo, mais necessário se faz que sejamos razoáveis. Ponderemos esta instância divina, de Thémis.
O que se enfrenta quando se opta por seguir Thémis ao invés de sujeitar-se ao cumprimento das normas e dos deveres impostos pelos reis Creontes? Qualquer que seja a opção há um preço a se pagar.
Antígona sabe que, pela sagrada consanguinidade, deve enterrar Polinices, evitando que abutres disputem-lhe as carnes. Sobre a Lei de Zeus, observa: "... não é de hoje, não é de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram".
O drama de Antígona não consiste na dúvida sobre qual lei seguir. Ela possui envergadura demais para não fugir às consequências, pois como nos diz Sófocles "evidencia-se a linhagem da donzela, indômita, de pai indômito: não cede nem no momento de enfrentar a adversidade".
Todo corajoso herói domina phobos (medo) - considerado pelos gregos um temido "ente", quase real, que acomete e faz debandar aterrorizados guerreiros, outrora bravos e valentes, diante da batalha. Antígona, destemida, ousada e indomável, atreve-se a desafiar a tirania de seu tio Creonte e mesmo ciente da pena de morte que seu ato implicaria, como observa a sua temerosa irmã Ismene: "ferve diante do que faz gelar". Explicitando a recusa em obedecer as Leis civis.
O que se enfrenta quando se opta por seguir irrefletidamente a letra da lei ao invés de ponderar se a mesma é fiel ao seu espírito, ou se é mesmo compatível com os harmoniosos desígnios da justiça divina?
Creonte mantém-se irredutível quanto a pena de Polinices. E mais, com o enfrentamento de Antígona, torna-a baluarte de sua intransigência. Sem sucesso, o velho sacerdote, o mântico cego Tirésias alerta para o custo da teimosia em Creonte: "... os homens todos erram mas quem comete um erro não é insensato, nem sofre pelo mal que fez, se o remedia em vez de preferir mostrar-se inabalável: de fato, a intransigência leva à estupidez".
Característica da tragédia é que, a partir de determinados atos consumados, todas as possibilidades que se apresentem trarão consequências terríveis. Uma vez que Antígona foi condenada a morrer encerrada viva numa gruta, seu apaixonado pretendente, Hêmon, filho de Creonte, desconsolado com a morte da amada e furioso com o crime de seu pai, suicida-se. Eurídice, sua mãe, dilacerada pela morte do filho, apunhalando-se no fígado, também dá fim à própria vida.
Creonte cai em si diante da irreflexão na aplicação da lei. Diz o coro: "Destaca-se a prudência, sobremodo como a primeira condição para a felicidade. Não se deve ofender aos deuses em nada. A desmedida empáfia nas palavras reverte em desmedidos golpes contra os soberbos que, já na velhice, aprendem afinal prudência".
Se pela insolência, nossa heroína pagou com sua própria vida, a dor de Creonte, já profundamente perturbado, acometido pela perseguição das implacáveis Fúrias, as Erínias (a vingança) é também consternadora: "Ai de mim! O autor destas desgraças sou eu... não sou mais nada! Venha, aconteça a última das mortes - a minha! - e traga o meu dia final, o mais feliz de todos! Venha, pois não quero viver nem mais um dia!... Levem para bem longe este demente que sem querer te assassinou, meu filho, e a ti também, mulher! Ai de mim! Não sei qual dos dois mortos devo olhar nem para onde devo encaminhar-me!".
O desfecho de todo este drama é concluído com a redenção final da maldição familiar dos Labdácias por Antígona. Assim proclama o coro:

"Tu te lançaste aos últimos extremos
de atrevimento e te precipitaste
de encontro ao trono onde a justiça excelsa
tem sede, minha filha; pode ser
que na presente provação expies
pecados cometidos por teu pai."

Ainda que proferidos na longínqua aurora dos tempos, até hoje ouvimos o altivo e desafiador brado da heroína e este alicerça nossas convicções interiores contra as ordens de um poder arbitrário, desmedido, mesmo que revestido de todas as formas de legalidade. No âmago de nossas almas ecoa o que Zeus sussurrou no coração de Antígona: "Minhas Leis não são suas Leis. As minhas são, foram e sempre serão".


Ausência, Carlos Drummond de Andrade


Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta. 
E lastimava, ignorante, a falta. 
Hoje não a lastimo. 
Não há falta na ausência. 
A ausência é um estar em mim. 
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus 
                                                                            [braços, 
que rio e danço e invento exclamações alegres, 
porque a ausência, essa ausência assimilada, 
ninguém a rouba mais de mim. 


Carlos Drummond de Andrade, in 'O Corpo'



quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Funes, o Memorioso - J. L. Borges


Funes, o Memorioso
 Jorge Luis Borges
Recordo-o (não tenho o direito de pronunciar esse verbo sagrado, apenas um homem na terra teve o direito e tal homem está morto) com uma obscura passiflórea na mão, vendo-a como ninguém jamais a vira, ainda que a contemplasse do crepúsculo do dia até o da noite, uma vida inteira. Recordo-o, o rosto taciturno e indianizado e singularmente remoto, por trás do cigarro. Recordo (creio) suas mãos delicadas de trançador. Recordo próximo dessas mãos um mate, com as armas da Banda Oriental, recordo na janela da casa uma esteira amarela, com uma vaga paisagem lacustre. Recordo claramente a sua voz; a voz pausada, ressentida e nasal de orillero antigo, sem os assobios italianos de agora. Mais de três vezes não o vi; a última, em 1887... Parece-me muito feliz o projeto de que todos aqueles que o conheceram escrevam sobre ele; meu testemunho será por certo o mais breve e sem dúvida o mais pobre, porém não o menos imparcial do volume que vós editareis. A minha deplorável condição de argentino impedir-me-á de incorrer no ditirambo - gênero obrigatório no Uruguai; quando o tema é um uruguaio. Literato, cajetilla, porteño. Funes não disse essas palavras injuriosas, mas de um modo suficiente me consta que eu representava para ele tais desventuras. Pedro Leandro Ipuche escreveu que Funes era um precursor dos super-homens; "Um Zaratustra cimarrón e vernáculo"; não o discuto, mas não se deve esquecer que era também natural de Fray Bentos, com certas limitações incuráveis.
A minha primeira lembrança de Funes é muito clara. Vejo-o em um entardecer de Março ou Fevereiro do ano de 1884. Meu pai, nesse ano, levara-me a veranear em Fray Bentos. Voltava com meu primo Bernardo Haedo da estância de San Francisco. Voltávamos cantando, a cavalo, e essa não era a única circunstância da minha felicidade. Após um dia abafado, uma enorme tempestade cor cinza escura havia escondido o céu. Alentava-me o vento Sul, já enlouqueciam-se as árvores; eu tinha o temor (a esperança) de que nos surpreenderia em um descampado a água elemental. Apostamos uma espécie de corrida com a tempestade. Entramos em um desfiladeiro que se aprofundava entre duas veredas altíssimas de tijolo. Escurecera repentinamente; ouvi passos rápidos e quase secretos no alto; levantei os olhos e vi um rapaz que corria pela vereda estreita e esburacada como que por uma parede estreita e esburacada. Recordo a bombacha, as alpargatas, recordo o cigarro no rosto duro, contra a densa nuvem já sem limites. Bernardo gritou-lhe imprevisivelmente: Que horas são, Ireneo? Sem consultar o céu, sem deter-se, o outro respondeu: Faltam quatro minutos para as oito, jovem Bernardo Juan Francisco. A voz era aguda, zombeteira.
Sou tão distraído que o diálogo a que acabo de me referir não teria chamado a minha atenção se não o tivesse enfatizado o meu primo, a quem estimulavam (creio) certo orgulho local, e o desejo de mostrar-se indiferente à réplica tripartite do outro.
Disse-me que o rapaz do desfiladeiro era um tal Ireneo Funes, conhecido por algumas peculiaridades como a de não se dar com ninguém e a de saber sempre a hora, como um relógio. Complementou dizendo que era filho de uma passadeira do povo, Maria Clementina Funes, e que alguns diziam que seu pai era um médico de saladeiro, um inglês O’Connor, e outros um domador ou rastreador do departamento de Salto. Vivia com a sua mãe, na curva da quinta dos Laureles.
Nos anos de 1885 e 1886 veraneamos na cidade de Montevideo. Em 1887 voltei a Fray Bentos. Perguntei, como é natural, por todos os conhecidos e, finalmente, pelo "cronométrico Funes". Responderam-me que um redomão o havia derrubado na estância de San Francisco, e que havia se tornado paralítico, sem esperança. Recordo a sensação de incômoda magia que a notícia despertou-me: a única vez que eu o vi, vínhamos a cavalo de San Francisco e ele andava em um lugar alto; o fato, na boca do meu primo Bernardo, tinha muito de sonho elaborado com elementos anteriores. Disseram-me que não se movia da cama, os olhos repousados na figueira do fundo ou em uma teia de aranha. Ao entardecer, permitia que o levassem para perto da janela. Levava a arrogância ao ponto de simular que era benéfico o golpe que o havia fulminado... Duas vezes o vi atrás da relha, que toscamente enfatizava a sua condição de eterno prisioneiro; uma, imóvel, com os olhos cerrados; outra, imóvel também, absorto na contemplação de um aromático galho de santonina.
Não sem um certo orgulho havia iniciado naquele tempo o estudo metódico do latim. A minha mala incluía o De viris illustribus de Lhamond, o Thesaurus de Quicherat, os comentários de Júlio César e um volume ímpar da Naturalis historia de Plínio, que excedia (e continua excedendo) as minhas modestas virtudes de latinista. Tudo se propaga em um povoado; Ireneo, em seu rancho das orillas, não tardou em enteirar-se da chegada desses livros anômalos. Dirigiu-me uma carta florida e cerimoniosa, na qual recordava no encontro, desditosamente fugaz, "do dia 7 de Fevereiro de 1884", ponderava os gloriosos serviços que Don Gregorio Haedo, meu tio, falecido nesse mesmo ano, "havia prestado às duas pátrias na valorosa jornada deItuzaingó", e me solicitava o empréstimo de qualquer dos volumes, acompanhado de um dicionário "para a boa intelecção do texto original, pois todavia ignoro o latim". Prometia devolvê-los em bom estado, quase imediatamente. A letra era perfeita, muito perfilada; a ortografia, do tipo que Andrés Bello preconizou: i por y, j por g. A princípio, suspeitei naturalmente tratar-se de uma zombaria. Meus primos asseguraram que não, que eram coisas de Ireneo. Não sabia se atribuía ao atrevimento, à ignorância ou à estupidez a idéia de que o árduo latim não requeresse mais instrumento do que um dicionário; para desencorajá-lo completamente enviei-lhe o Gradus ad parnassum de Quicherat e a obra de Plínio.
No dia 14 de Fevereiro telegrafaram-me de Buenos Aires que voltasse imediatamente, pois meu pai não estava "nada bem". Deus me perdôe; o prestígio de ser o destinatário de um telegrama urgente, o desejo de comunicar a toda Fray Bentos a contradição entre a forma negativa da notícia e o peremptório advérbio, a tentação de dramatizar a minha dor, fingindo um estoicismo viril, talvez distraíram-me de toda a possibilidade de dor. Ao fazer a mala, notei que me faltavam o Gradus e o primeiro tomo da Naturalis historia. O "Saturno" sarpava no dia seguinte, pela manhã; essa noite, depois da janta, dirigi-me à casa de Funes. Assombrou-me que a noite fora não menos pesada que o dia.
No humilde rancho, a mãe de Funes recebeu-me.
Disse-me que Ireneo estava no quarto dos fundos e que não me estranhasse encontrá-lo às escuras, pois Ireneo preferia passar as horas mortas sem acender a vela. Atrevessei o pátio de lajota, o pequeno corredor; cheguei ao segundo pátio. Havia uma parreira; a escuridão pareceu-me total. Ouvi prontamente a voz alta e zombeteira de Ireneo. Essa voz falava em latim; essa voz (que vinha das trevas) articulava com moroso deleite um discurso, ou prece, ou encantamento. Ressoavam as sílabas romanas no pátio de terra; o meu temor as tomava por indecifráveis, intermináveis; depois, no enorme diálogo dessa noite, soube que formavam o primeiro parágrafo do 24o capítulo do 7o livro da Naturalis historia. O tema desse capítulo é a memória: as últimas palavras foram ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum.
Sem a menor mudança de voz, Ireneo disse-me o que se passara. Estava na cama, funmando. Parece-me que não vi o seu rosto até a aurora; creio lembrar-me da brasa momentânea do cigarro. O quarto exalava um vago odor de umidade. Sentei-me, repeti a estória do telegrama e da enfermidade de meu pai.
Chego, agora, ao ponto mais difícil do meu relato. Este (é bem verdade que já o sabe o leitor) não tem outro argumento senão esse diálogo de há já meio século. Não tratarei de reproduzir as suas palavras, irrecuperáveis agora. Prefiro resumir com veracidade as muitas coisas que me disse Ireneo. O estilo indireto é remoto e débil; eu sei que sacrifico a eficácia do meu relato; que os meus leitores imaginem os períodos entrecortados que me abrumaram essa noite.
Ireneo começou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de memória prodigiosa registrados pela Naturalis historia: Ciro, rei dos persas, que sabia chamar pelo nome todos os soldados de seus exércitos; Metríadates e Eupator, que administrava a justiça dos 22 idiomas de seu império; Simónides, inventor da mnemotecnia; Metrodoro, que professava a arte de repetir com fidelidade o escutado de uma só vez. Com evidente boa fé maravilhou-se de que tais casos maravilharam. Disse-me que antes daquela tarde chuvosa em que o azulego o derrubou, ele havia sido o que são todos os cristãos; um cego, um surdo, um tolo, um desmemoriado. (Tratei de recordar-lhe a percepção exata do tempo, a sua memória de nomes próprios; não me fez caso.) Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando or ecobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois averiguou que estava paralítico. Fato pouco o interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora a sua percepção e sua memória eram infalíveis.
Num rápido olhar, nós percebemos três taças em uma mesa; Funes, todos os brotos e cachos e frutas que se encontravam em uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer de trinta de abril de 1882 e podia compará-los na lembrança às dobras de um livro em pasta espanhola que só havia olhado uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no Rio Negro na véspera da ação de Quebrado. Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada a sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entresonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro, não havia jamais duvidado, mas cada reconstrução havia requerido um dia inteiro. Disse-me: Mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo. E também: Meus sonhos são como a vossa vigília. E também, até a aurora; Minha memória, senhor, é como depósito de lixo. Uma circunferência em um quadro-negro, um triângulo retângulo; um losango, são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo se passava a Ireneo com as tempestuosas crinas de um potro, com uma ponta de gado em um coxilha, com o fogo mutante e com a cinza inumerável, com as muitas faces de um morto em um grande velório. Não sei quantas estrelas via no céu.
Essas coisas me disse; nem então nem depois coloquei-as em dúvida. Naquele tempo não havia cinematógrafos nem fonógrafos; é, no entanto, verossímil e até incrível que ninguém fizera um experimento com Funes. O cérto é que vivemos postergando todo o postergável; talvez todos saibamos pronfundamente que somos imortais e que mais cedo ou mais tarde, todo homem fará todas as coisas e saberá tudo.
A voz de Funes, vinda da escuridão, seguia falando.
Disse-me que em 1886 havia elaborado um sistema original de numeração e que em muito poucos dias havia ultrapassado vinte e quatro mil. Não o havia escrito, porque o pensado uma só vez já não podia desvanecer-lhe. Seu primeiro estímulo, creio, foi o descontentamento de que os trinta e três uruguaios requeressem dois signos e três palavras, em lugar de uma só palavra e um só signo. Aplicou logo esse desparatado princípio aos outros números. Em lugar de sete mil e treze, dizia (por exemplo)Máximo Pérez; em lugar de sete mil e catorze, A Ferrovia; outros números eram Luis Melián Lafinur, Olivar, enxofre, os rústicos, a baleia, o gás, a caldeira, Napoleão, Agustín de Vedia. Em lugar de quinhentos, dizia nove. Cada palavra tinha um signo particular, uma espécie de marca; as últimas eram muito complicadas... Eu tratei de explicar-lhe que essa rapsódia de vozes desconexas era precisamente o contrário de um sistema de numeração. Eu lhe observei que dizer 365 era dizer três centenas, seis dezenas, cinco unidades; análise que não existe nos "números". O Negro Timoteo a manta de carne. Funes não me entendeu ou não quis me entender.
Locke, no século XVII, postulou (ou reprovou) um idioma impossível no qual cada coisa individual, cada pedra, cada pássaro e cada ramo tivesse um nome próprio; Funes projetou alguma vez um idioma análogo, mas o desejou por parecer-lhe demasiado geral, demasiado ambígüo. De fato, Funes não apenas recordava cada folha de cada árvore de cada monte, mas também cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças, que definiria logo por cifras. Dissuadiram-no duas considerações: a consciência de que a tarefa era interminável, a consciência de que era inútil. Pensou que na hora da morte não havia acabo ainda de classificar todas as lembranças da infância.
Os dois projetos que foi indicado (um vocabulário infinito para a série natural dos números, um inútil catálogo mental de todas as imagens da lembrança) são insensatos, mas revelam certa balbuciante grandeza. Nos deixam vislumbrar ou inferir o vertiginoso mundo de Funes. Este, não o esqueçamos, era quase incapaz de idéias gerais, platônicas. Não apenas lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abarcava tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; perturbava-lhe que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quatro (visto de frente). Sua própria face no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no cada vez. Comenta Swift que o imperador de Lilliputdiscernia o movimento do ponteiro dos minutos; Funes discernia continuamente os avanços tranqüilos da corrupção, das cáries, da fatiga. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intolerantemente preciso. Babilônia, Londres e Nova York têm preenchido com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém, em suas torres populosas ou em suas avenidas urgentes, sentira o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Ireneo, em seu pobre subúrbio sulamericano. Era-llhe muito difícil dormir. Dormir é distrair-se do mundo; Funes, de costas na cama, na sombra, figurava a si mesmo cada rachadura e cada moldura das casas distintas que o redoavam. (Repito que o menos importante das suas lembranças era mais minucioso e mais vivo que nossa percepção de um gozo físico ou de um tormento físico). Em direção ao leste, em um trecho nãopavimentado, havia casas novas, desconhecidas. Funes as imaginava negras, compactas, feitas de treva homogênea; nessa direção virava o rosto para dormir. Também era seu costume imaginar-se no fundo do rio, mexido e anulado pela corrente.
Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.
A receosa claridade da madrugada entrou pelo pátio de terra.
Então vi a face da voz que toda a noite havia falado. Ireneo tinha dezenove anos; havia nascido em 1868; pareceu-me tão monumental como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior às profecias e às pirâmides. Pensei que cada uma das minhas palavras (que cada um dos meus gestos) perduraria em sua implacável memória; entorpeceu-me o temor de multiplicar trejeitos inúteis.
Ireneo Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar.

Tradução de Marco Antonio Franciotti
(in Jorge Luis Borges: Prosa Completa, Barcelona: Ed. Bruguera, 1979, vol. 1., pgs. 477-484).


domingo, 8 de outubro de 2017

Te quiero - Mario Benedetti




"si te quiero es porque sos
mi amor mi cómplice y todo
y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos" 


segunda-feira, 2 de outubro de 2017

A Terceira Margem do Rio


Guimarães Rosa

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.
No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.
Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.




Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 32, cuja compra e leitura recomendamos.