A triste despedida das
livrarias
POR MARCOS LISBOA
(Presidente do Insper)
A casa da minha infância parecia-me interminável. Quadros e esculturas
esparramavam-se pelas paredes e pelo chão.
As pinturas dos amigos dos meus tios conviviam com surpresas em cada
canto, da fotografia de um garoto segurando o bico de um ganso a um presépio de
madeira que comovia pela brutalidade.
O corredor e o escritório, por sua vez, eram dominados por incontáveis
livros de cima a baixo. Havia um pouco de tudo, das tragédias gregas aos livros
que perverteram a geração anterior, como os romances de Joyce e Dostoiévski.
Aqui e acolá, alguns escritores brasileiros, como Graciliano e Guimarães.
Criança, deitava-me no chão do corredor, acolhido no meio da tarde pelos
livros desorganizadamente deitados nas prateleiras, preferindo os contos de
Borges.
Foi minha madrinha que me revelou o incrível universo paralelo das
livrarias. Deu-me de presente, talvez aos 12 anos, crédito para adquirir livros
na mágica Leonardo Da Vinci, no centro do Rio, e suas estantes intermináveis.
As livrarias tornaram-se o meu mosteiro. É para lá que vou depois de uma
reunião incômoda ou qualquer outra razão que me tenha atravessado o dia.
Escolher um livro é flertar uma amizade. Há a conversa de salão das orelhas e
da contracapa, mas relações profundas requerem o convívio das páginas, muitas
vezes decepcionante. Eventualmente, porém, somos iluminados por descobertas
sublimes.
As religiões apenas prometem a verdade sobre o nosso cotidiano e o além,
enquanto alguns livros despejam um novo universo. Dos criadores prefiro, desde
a infância, aqueles que utilizam máquinas de escrever.
Jovem adulto, achava que as igrejas iriam desaparecer oprimidas pela
contagiante liberdade permitida aos livros e às escolhas individuais. Os
diversos deuses e suas muitas certezas cansavam-me pela sua intolerância em
meio à pretensa poesia dominada por mau português.
As minhas divindades eram Beckett e Tchekhov e os meus demônios incluíam
Celine, cercados pela sátira paranoica de Pynchon ou pelo encanto de Bulgákov. A leitura irresponsável permite meu afeto por
Vonnegut Jr., afinal as livrarias defendem, inclusive, a maior das ofensas, o
prazer com a literatura de segunda.
Na minha sacristia pagã há Natsume Soseki e seus filhos japoneses melancólicos, em
meio à prosa impecável de Coetzee e à imperfeita de Philip Roth.
Há, sobretudo, a elegia de Machado à culpa interminável sobre o amor
talvez destruído pelo ciúme doentio. O meu Adão há muito tem sido Dom
Casmurro.
Segundo os crentes, Deus pode muito, inclusive nos permitir assistir à
nossa própria morte. Aos poucos, melancolicamente, vão-se as livrarias.
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Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcos-lisboa/2018/12/a-triste-despedida-das-livrarias.shtml