Enterre seus mortos é um livro incômodo.
Entretanto, diga-se de passagem, necessário. Faz-nos
refletir sobre como tratamos os nossos mortos. Não falo dos mortos queridos,
os que nos são caros. Refiro-me aos "esquecidos", os que não têm
alguém que reclame seus corpos - neste sentido, a reflexão abarca a dimensão do
papel do Estado, a falta de recursos humanos e materiais para lidar com essa
questão. Ou, como diz um personagem, o Sargento Américo: “Estamos falidos. Não damos conta nem dos mortos”.
O protagonista, Edgar Wilson, presente
em outros livros da escritora, é um homem simples, cercado pela morte (ele se
sente à vontade em meio ao pútrido), introspectivo, do tipo de pessoa que
escuta mais e fala menos. De certo modo, alguém que poderíamos comparar aos
abutres - pois, assim como essas aves, ele sobrevive graças aos que morrem.
Contudo, sobre os mortos, pessoas ou animais, Edgar Wilson considera a importância
de enterrá-los. Para ele, “não existe
sentimento de desprezo maior do que abandonar um morto, deixá-lo ao relento, às
aves carniceiras, à vista alheia”. Inclusive, talvez esse seja o seu maior
medo. Ainda sobre os abutres, ave representada na capa do livro, chama a
atenção uma observação que concordo muitíssimo: “É bonito o voo dos abutres”. De fato, é muito bonito - embora sejam, reconhecidamente, aves que
indicam a morte, admirá-las é prazeroso, acalma. Neste sentido, “a morte e o
sagrado estão sempre juntos”.
Outro ponto de destaque é o modo como é
tratada a questão religiosa. O sarcasmo faz muita diferença - ainda que seja
apavorante. É perspicaz o olhar que nos é apresentado sobre este assunto. Numa
situação de esquecimento do Estado, de pobreza e alienação, muitas vezes o que
sobra é a “dependência da força divina”.
Uma teologia antiga, baseada na culpa, no medo e na ganância. Alguns diriam: “tão
medieval”. Mas, como diria o velho barbudo, a história se repete... Primeiro
como tragédia, depois como farsa.
Por fim, um livro que precisa ser lido com atenção. Do contrário, corre-se o
risco de sentir apenas repulsa, certo embrulho no estômago, e isso pode
comprometer a possibilidade de uma boa reflexão e de percebermos que a
literatura é, também, uma forma de entendermos o mundo e, a partir desse
entendimento, tentarmos modificá-lo.