Quando ficava de cama, seu pai trazia um
velho livro cujas últimas três páginas haviam sido arrancadas. Então, ela se
aninhava nos seus braços para inventarem juntos o final. Na gripe, a princesa
fugiu do castelo e foi ser repórter. Perna quebrada: deixou o príncipe em casa
cozinhando e saiu com as amigas. Amídalas? Juntou-se a outras e mudaram o
mundo. Ontem, já crescida, foi comprar o primeiro livro para a filha. Escolheu
com carinho, arrancou as três últimas páginas e, sorrindo, pediu: “para
presente”. Leonardo Sakamoto
O primeiro canto

quarta-feira, 11 de março de 2015
terça-feira, 10 de março de 2015
sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015
DARVISH - Hanna Jahanforooz
Do abismo entre povos, a arte como ponte.
Cantora de dois mundos "inimigos", Hanna Jahanforooz, que nasceu no Irã, mas
mudou-se ainda menina para Israel, canta uma das suas canções. DARVISH.
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015
"O Amor nos Tempos do Cólera"
"- Está dizendo isso a sério? - perguntou.
-
Desde que nasci - disse Florentino Ariza - não disse uma única coisa que não
fosse a sério.
O
comandante olhou Fermina Daza e viu em suas pestanas os primeiros lampejos de
um orvalho de inverno. Depois olhou Florentino Ariza, seu domínio invencível,
seu amor impávido, e se assustou com a suspeita tardia de que é a vida, mais
que a morte, a que não tem limites.
-
E até quando acredita o senhor que podemos continuar nesse ir e vir? -
perguntou.
Florentino
Ariza tinha a resposta preparada havia 53 anos, sete meses e 11 dias com as
respectivas noites.
-
Toda a vida - disse."
quinta-feira, 29 de janeiro de 2015
A Ladeira – José Fanha
Era uma vez dois homens. Um era alto,
outro baixo. Um era gordo, outro magro. Um moreno, o outro ruivo. Um tinha a
voz muito grossa e outro uma borbulha na ponta do nariz. Um chamava-se Manuel
Francisco e o outro Francisco Manuel. E muito mais coisas poderia dizer de cada
um deles. Mas, o fundamental, é que eram muito diferentes um do outro. Só numa
coisa se assemelhavam: ambos eram tremendamente teimosos.
Na terra onde viviam havia uma ladeira
íngreme, inclinada, cheia de pedras e calhaus. Uma ladeira daquelas que a gente
só sobe ou desce quando não pode deixar de ser.
Um dia, um dos homens ia a subir a
ladeira quando o outro vinha a descê-la. Como é natural, encontraram-se a meio.
Bem… A meio, a meio, exactamente a meio, não tenho a certeza se foi. Talvez tenha
sido um bocadinho mais para cima ou um bocadinho mais para baixo. Para a nossa
história esse pormenor não tem grande importância e, por isso, vamos fazer de
conta que foi a meio.
Mais ou menos a meio da ladeira, os dois
homens encontraram-se, pararam à frente um do outro e desataram a discutir. Um
ia a subir e, por isso, achava que a ladeira era uma subida. O outro vinha a
descer e, pelo contrário, garantia que se tratava de uma descida.
Sem chegar a acordo, sentaram-se ali
mesmo no chão para tirar a questão a limpo. Quem os conhecesse, sabendo que
eram homens de palavra fácil, capazes de inventar sólidas razões e grandes
argumentos, logo via que aquela discussão ia demorar. E demorou.
Passaram-se sete dias e sete noites e a
discussão não parava. Veio a Lua e foi-se o Sol, veio o Sol e foi-se a Lua e os
dois homens a discutir. Nem o frio, nem o calor, nem a chuva, os distraíram.
Continuavam na mesma. Para um, aquela ladeira era uma subida porque subia de
baixo para cima. Para o outro, era uma descida porque descia de cima para
baixo.
A discussão continuou e continuou. À
sétima noite começou a soprar um vento muito forte. Um vento tão forte e
violento que arrancava terras, árvores e pedras e as atirava de um sítio para
outro. Um vento daqueles capazes de trabalhar lentamente, séculos e séculos a
fio, para mudar a face da Terra e transformar montes em covas fundas e buracos
de meter medo nas mais altas montanhas.
O tempo passou. O vento mexeu com tudo.
Mudou a paisagem. Transformou o mundo. Só os dois homens continuavam sentados
no meio da ladeira sem darem por nada do que acontecia à sua volta. Estavam tão
preocupados, cada um, em ganhar a discussão, que não sentiram nem a chuva na
pele, nem o frio nos ossos, nem o sol na moleirinha.
Passaram-se sete mil noites e sete mil
dias, os homens a discutir e o vento a trabalhar.
A ladeira, a pouco e pouco, ia ficando
diferente. A parte mais alta cada vez menos alta, e a parte mais baixa a
crescer sem parar à custa de entulho, areia, calhaus e pedrinhas que a tornavam
cada vez menos baixa.
Um belo dia, a parte de baixo e a parte
de cima da ladeira ficaram iguais, da mesma altura e, portanto, a ladeira
desapareceu. A terra ficou direitinha, lisa, uma planície que se estendia até
perder de vista.
O vento, sem mais nada que fazer ali,
foi trabalhar para outro lado. Os dois homens que, como eu já disse, eram muito
teimosos, continuavam a discutir se a ladeira era uma subida que se descia ou
uma descida que se subia.
A certa altura, olharam em volta, para
um lado e para outro, até onde a vista podia alcançar. Aperceberam-se então que
a ladeira tinha desaparecido. Olharam um para o outro, levantaram-se,
cumprimentaram-se e, cheios de orgulho, afastaram-se cada um em sua direcção,
ambos seguros de que tinham ganho a discussão.
José Fanha
A noite em que a noite não chegou
Porto, Campo das Letras, 2001
quarta-feira, 28 de janeiro de 2015
O Príncipe Feliz - Oscar Wilde
Bem
no alto da cidade, numa alta coluna, erguia-se a estátua do príncipe feliz. Era
todo coberto de finas folhas de ouro puro, tinha nos olhos duas safiras
brilhantes, e um grande rubi vermelho reluzia no cabo de sua espada.
Na verdade era muitíssimo admirado.
- É tão belo quanto um cata-vento - observou um dos conselheiros da cidade, que desejava ganhar reputação por ter gosto artístico -; só não é muito útil - acrescentou, temendo que o povo o considerasse pouco prático, o que realmente não era.
- Por que você não pode ser como o príncipe feliz? - perguntou uma mãe ao filho que pedia a lua. - O príncipe feliz nunca chora por motivo algum.
- Fico satisfeito que haja alguém no mundo que seja realmente feliz - murmurou um homem desapontado, enquanto fitava a estátua maravilhosa.
Parece mesmo um anjo - disseram as crianças da Escola de Caridade, ao saírem da catedral em seus mantos escarlates e aventais alvos.
- Como sabem? - disse o professor de matemática-, nunca viram um anjo.
-Ah! mas nós vimos, em sonhos - responderam as crianças; e o professor de matemática franziu as sobrancelhas, com semblante muito severo, pois não aprovava que crianças sonhassem.
Uma noite, voou sobre a cidade uma pequena andorinha. Suas companheiras tinham partido para o Egito seis semanas antes, mas ela ficou pra trás porque estava apaixonada pelo mais belo junco. Ela o conheceu no princípio da primavera, enquanto voava rio abaixo atrás de uma mariposa amarela, e ficou tão atraída por aquela figura esquia, que parou pra falar-lhe.
- Poderei amá-lo? - disse a andorinha, que gostava de ir direto ao assunto, e o junco fez-lhe uma reverência. Então voou ao seu redor, tocando a água com as asas, provocando ondulações prateadas. Era sua maneira de fazer a corte, que durou o verão inteiro.
É uma relação ridícula - chilchearam as outras andorinhas -, ele não tem dinheiro, e tem parentes demais - e na verdade o rio estava bem cheio de juncos. quando veio o outono, voaram para longe.
Depois que partiram, andorinha sentiu-se solitária e começou a cansar-se de seu amado. - Ele é de pouca conversa, e temo que seja galanteador, porque está sempre flertando com a brisa. E, certamente, toda vez que a brisa soprava, o junco fazia as mais graciosas mesuras. - Reconheço que seja caseiro - continuou -, mas adoro viajar, e meu marido, consequentemente, também deveria gostar de viagens.
- Virá comigo? - disse finalmente a ele; mas o junco meneou a cabeça, tão arraigado estava a seu lar.
- Só estava gracejando comigo - disse ela. -Vou para as pirâmides. Adeus! - e se foi.
O dia todo ela voou, e de noite chegou à cidade. - Onde pernoitarei? Espero que a cidade esteja preparada para me abrigar.
Então viu a estátua sobre a alta coluna, e disse:
- Vou me acomodar ali, é um lugar muito bem localizado, com bastante ar fresco. - Assim, pousou entre os pés do príncipe feliz.
- Tenho um aposento de ouro - disse baixinho para si, olhando ao redor, e preparou-se para dormir; mas no momento em que colocava a cabeça sob a asa, uma enorme gota de água caiu sobre ela. - Que estranho! não há uma única nuvem no céu, as estrelas estão brilhando e, entanto chove. O clima no Norte da Europa é mesmo horrível. O junco gostava de chuva, mas isso era puro egoísmo dele.
outra gota caiu.
- Qual a utilidade de uma estátua, se não serve para proteger da chuva? Tenho que procurar uma boa chaminé - disse ela, e decidiu ir embora.
Mas antes que abrisse as asas, uma terceira gota caiu, ela levantou os olhos e viu... Ah! o que ela viu?
Os olhos do príncipe feliz estavam cheios de lágrimas, e lágrimas corriam em suas faces douradas. Seu rosto era tão belo sob o luar que a pequena Andorinha encheu-se de compaixão.
- Quem é você? disse ela.
- Sou o príncipe feliz.
Por que está chorando então? - perguntou a andorinha. - Encharcou-me completamente.
-Quando era vivo e tinha um coração humano - respondeu a estátua -, eu não sabia o que eram lágrimas, pois vivia no Palácio de Sans-Souci, onde à tristeza não é permitido entrar. Durante o dia, brincava com meus companheiros no jardim, e à noite conduzia a dança no grande salão. Em volta do jardim havia um muro muito alto, mas nunca me importei em saber o que existia além dele, pois tudo ao meu redor era tão lindo. Meus cortesões chamavam-me príncipe feliz, e feliz em verdade eu era, se o prazer é felicidade. Assim vivi e assim morri. E agora que estou morto, colocaram-me aqui tão alto que posso ver a feiura e toda a miséria de minha cidade e, embora meu coração seja de chumbo, não posso fazer outra coisa senão chorar.
O quê? Ele não é de ouro maciço? - disse a andorinha para si. Era muito educada para fazer comentários pessoais em voz alta.
- Longe - continuou a estátua com sua voz baixa e musical -, muito longe numa rua estreita, há uma casinha pobre. Uma janela está aberta e vejo uma mulher sentada à mesa. Tem o rosto magro e abatido, e as mãos ásperas, picadas pela agulha, pois é costureira. Está bordando flores-da-paixão num vestido de cetim para a mais adorável dama de honra da rainha vestir no próximo baile da corte. Num leito, no canto do quarto, está deitado seu filho doente.Tem febre, e pede laranjas. A mãe não tem nada para dar-lhe, exceto água do rio, e por isso ele está chorando. Andorinha, andorinha, pequena andorinha, não quer levar-lhe o rubi do cabo de minha espada? Meus pés estão presos a este pedestal e não posso me mover.
- Esperam-me no Egito - disse a andorinha. - Minhas amigas estão voando sobre o Nilo, conversando com as flores de lótus. Em breve vão dormir na tumba do grande rei. O próprio rei está ali, em seu sarcófago coberto de adornos. Está enrolado em linho amarelo e embalsamado com especiarias. Em seu pescoço há um colar de jade verde-pálido, e suas mãos são como folhas secas.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, não quer ficar comigo por uma noite, e ser minha mensageira? O menino está com tanta sede, e a mãe tão triste...
- Acho que não gosto de meninos - respondeu a Andorinha. - No verão, quando eu estava no rio, havia dois meninos rudes, os filhos do moleiro, que estavam sempre atirando pedras em mim. Nunca me acertaram, é claro; nós andorinhas voamos bem demais para que nos acertem, e venho de uma família famosa pela agilidade; ainda assim, foi um sinal de desrespeito.
Mas o príncipe feliz parecia tão triste que a andorinha se condoeu:
- Está muito frio aqui, mas ficarei com você por um noite, e serei sua mensageira.
- Muito obrigada, andorinha - disse o príncipe.
Então a andorinha tirou o enorme rubi da espada do príncipe e voou, levando-o no bico por sobre os telhados da cidade.
Passou pela torre da catedral, onde anjos de mármore branco estavam esculpidos. Passou pelo palácio e ouviu o rumor da dança. Uma jovem formosa apareceu na sacada com seu namorado.
- Como estão maravilhosas as estrelas - disse ele - e como é maravilhoso o poder do amor!
- Espero que meu vestido fique pronto a tempo a tempo para o baile do Estado - respondeu a jovem. - Mandei que bordassem flores-da-paixão nele, mas as costureiras são tão preguiçosas!
A andorinha passou sobre o rio, e viu as lanternas penduradas nos mastros dos navios. Passou sobre o gueto e viu velhos judeus negociando entre si, pesando dinheiro em balanças de cobre. Finalmente, chegou à casa pobre e espiou. O menino agitava-se febrilmente no leito, e a mãe caíra no sono, tão cansada estava. saltou para dentro e deixou suavemente o grande rubi sobre a mesa, ao lado do dedal. Então voou suavemente em volta do leito, abanando a fronte do menino com as asas.
- Sinto-me refrescar - disse o menino -, acho que estou melhorando - e mergulhou num sono delicioso.
Então a andorinha voltou ao príncipe feliz, e contou-lhe o tinha feito.
- Engraçado - observou ela -, mas agora sinto calor, embora esteja tão frio.
- É porque praticou uma boa ação - disse o príncipe. E a pequena andorinha começou a pensar, adormecendo logo em seguida. Pensar sempre a fez ficar com sono.
Quando o dia raiou, ela voou ao rio e tomou um banho.
- Que fenômeno notável - disse o professor de ornitologia ao passar pela ponte. - Uma andorinha no inverno! -E escreveu uma longa carta sobre isso no jornal local. Todos a citavam, porque estava cheia de palavras que não compreendiam.
Esta noite parto para o Egito - disse a andorinha, bastante animada com a perspectiva. visitou todos os monumentos públicos, e ficou posada um longo tempo no topo do campanário da igreja. Onde quer que fosse, os pardais aplaudiam, dizendo uns aos outros:
- Que estrangeira distinta! - E ela se divertiu bastante com isso.
Quando a lua surgiu, voltou ao príncipe feliz e disse:
- Tem alguma encomenda para o Egito? Já estou partindo.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, não quer ficar comigo mais um noite?
- Esperam-me no Egito- respondeu a andorinha - Amanhã minhas amigas voarão até a segunda catarata. Os hipopótamos deitam-se ali entre os caniços, e num grande trono de granito está sentado o deus Memnon. Durante a noite inteira ele contempla as estrelas, e quando brilha a estrela da manhã, ele amite um canto de alegria e depois silencia. Ao meio dia os leões vêm à margem das águas para beber. Têm olhos que se parecem com berilos verdes, e seus rugidos são mais estrondosos do que o rugir das cataratas.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, longe, no outro lado da cidade, vejo um jovem numa água furtada. Está debruçado sobre uma mesa coberta de papéis, e num copo ao seu lado há um maço de violetas murchas. seu cabelo é castanho e crespo, seus lábios são vermelhos como a romã, e tem olhos grandes e sonhadores. Ele tenta terminar um peça para o diretor do teatro, mas sente muito frio para continuar escrevendo. Não há fogo no fogão, e a fome o enfraqueceu.
- Ficarei com você mais um noite - disse a andorinha, que no fundo tinha um bom coração. - Devo levar-lhe outro rubi?
- Ai de mim! Não tenho mais rubis - disse o príncipe -; meus olhos são tudo o que me resta. São feitos de safiras preciosas, trazidas da Índia há mil anos. Arranca um delas e leva ao jovem. Ele a venderá ao joalheiro, comprará comida e lenha, e terminará a peça.
- Caro príncipe - disse a andorinha -, não posso fazer isso - e começou a chorar.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe - faça o que lhe ordeno.
Então a andorinha arrancou o olho do príncipe e voou até a água furtada do estudante. Era muito fácil entrar já que havia um buraco no telhado. Arremessou-se através dele e entrou no quarto. O jovem tinha a cabeça enterrada nas mãos, e não viu o bater das asas; quando levantou os olhos, encontrou a bela safira pousada sobre as violetas murchas.
- Começo a ser apreciado. Isto deve ser de algum admirador. Agora posso terminar minha peça - gritou, parecendo muito contente.
No dia seguinte, a andorinha foi ao porto. Pousou no mastro de uma grande embarcação e observou os marinheiros puxando caixas enormes do porão do navio. - Upa! - gritavam eles a cada caixa que levantavam.
- Vou para o Egito! - bradou a andorinha, mas ninguém lhe deu atenção, e quando a lua surgiu, voou até o príncipe feliz.
- Vim para dizer-lhe adeus.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, não quer ficar comigo por mais um noite?
- É inverno - respondeu - e a neve fria logo vai chegar. No Egito o sol é quente sobre as palmeiras, e os crocodilos deitam-se na lama e olham preguiçosamente ao redor. Minhas companheiras estão construindo um ninho no templo de Baalbec, e as pombas rosadas as observam, arrulhando entre si. Caro príncipe, tenho que deixá-lo, mas nunca o esquecerei; e na próxima primavera trarei duas lindas jóias para substituir as que doou. O rubi será mais rubro que a rosa vermelha, e a safira tão azul quanto o imenso oceano.
- Na praça logo abaixo - disse o príncipe feliz - há uma pequena vendedora de fósforos. Ela os deixou cair na sarjeta, e estão todos estragados. Seu pai baterá nela se não levar dinheiro para casa, e por isso ela está chorando. Não tem sapatos nem meias, e sua cabecinha está descoberta. arranca meu outro olho e leva-lhe, para que seu pai não a maltrate.
- Ficarei com você mais um noite - disse a andorinha -, mas não posso arrancar outro olho. Você ficaria completamente cego.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, faça o que lhe ordeno.
Ela arrancou então o outro olho do príncipe e alçou voo. Precipitou-se sobre a vendedora de fósforos e deixou cair a joia na palma de sua mão.
- Que lindo pedacinho de vidro - disse ela, e correu para casa sorrindo.
A andorinha voltou ao príncipe e disse:
- Está cego agora; então ficarei com você para sempre.
- Não, pequena andorinha - disse o príncipe -, deve partir para o Egito.
- Ficarei com você para sempre - disse a andorinha, e adormeceu aos pés do príncipe.
Durante todo o dia seguinte, ficou pousada no ombro do príncipe, e contou-lhe histórias sobre coisas que viu em terras estranhas. falou-lhes sobre íbis vermelhos, que postavam em longas fileiras em margens do Nilo, apanhando peixes dourados com os bicos; sobre a Esfinge, que é tão antiga quanto o próprio mundo, vive no deserto e tudo sabe; sobre os mercadores, que caminham vagarosamente ao lado de seus camelos e levam contas de âmbar nas mãos; sobre o rei das montanhas da Lua, que é negro como o ébano e cultua um imenso cristal;sobre a grande serpente verde, que dorme numa palmeira e tem vinte sacerdotes para alimentá-la com bolos de mel; e sobre os pigmeus que navegam sobre um grande lago em largas folhas e que estão sempre em guerra com as borboletas.
- Querida andorinha - disse o príncipe -, você me conta coisas espantosas, mas mais espantoso é o sofrimento de homens e mulheres. não há mistério maior que a miséria. Voe por sobre minha cidade, pequena andorinha, e conte-me oque vir por lá.
Assim, a andorinha voou sobre a grande cidade e viu ricos divertindo-se em suas residencias luxuosas, enquanto os mendigos sentavam-se em frente aos portões. Voou por becos escuros e e viu os rostos pálidos das crianças esfaimadas, olhando apaticamente para as ruas sombrias. Sob o arco de um ponte estavam deitados dois meninos, abraçados um ao outro, tentando manter-se aquecidos.
- Temo tanta fome! - diziam os meninos.
- Vocês não podem ficar aqui - gritou o guarda noturno, e eles se retiraram, vagando sob a chuva.
Então a andorinha voltou e contou ao príncipe o que tinha visto.
- Sou coberto de ouro puro - disse o príncipe -, você deve tirá-lo folha por folha, dá-lo aos meus pobres; os vivos sempre acham que ouro pode fazê-los felizes.
Folha após folha de puro ouro a andorinha arrancou, até que o príncipe feliz ficasse fosco e acinzentado. Folha após folha de puro ouro levou aos pobres, e os rostos das crianças tornaram-se mais rosados, e elas riam e brincavam na rua.
- Agora temos pão - gritavam as crianças.
Então veio a neve, e depois da neve, a geada. As ruas pareciam feitas de prata, de tão luminosas e brilhantes; pontas de gelo, longas como adagas de cristal, pendiam dos beirais das casas; todos passavam vestindo casacos de pele, e as crianças usavam gorros escarlate, patinando sobre o gelo.
A pobre andorinha sentia cada vez mais frio, mas não queria deixar o príncipe, pois o amava muito. Apanhava as migalhas à porta do padeiro quando ele não estava olhando, e tentava se aquecer agitando as asas.
Mas por fim sentiu que iria morrer. Mal tinha forças para voar uma vez mais ao ombro do príncipe.
- Adeus, querido príncipe - murmurou -, deixa-me beijar suas mãos?
-Fico contente que vá para o Egito afinal, pequena andorinha -, disse o príncipe. - Ficou muito tempo aqui, mas deve beijar-me os lábios, pois a amo.
- Não é para o Egito que vou - disse a andorinha. - Vou para a casa da morte. A morte é irmã do sono, não é mesmo?
Então beijou o príncipe feliz nos lábios e caiu morta aos seu pés.
Naquele momento, um estranho estalo soou dentro da estátua, como se algo se tivesse quebrado. A verdade é que o coração de chumbo despedaçou-se em dois. Era certamente um geada terrível.
Na manhã seguinte, bem cedo, o prefeito caminhava na praça em companhia dos conselheiros da cidade. Ao passar pela coluna, olhou para a estátua:
- Meu Deus que aspecto miserável tem o príncipe feliz! - disse ele.
- Muito miserável, realmente - disseram os conselheiros da cidade, que sempre concordavam com o prefeito. - Na verdade, é pouco mais que um mendigo!
- Pouco mais que um mendigo - disseram os conselheiros da cidade.
E há até um pássaro morto aos seus pés! - continuou o prefeito. - Devemos emitir um decreto que proíba os pássaros de morrerem aqui. - E o secretário da cidade anotou a sugestão.
Então, puseram abaixo a estátua do príncipe feliz. - Como já não é belo, já não é mais útil - disse o professor de Arte na universidade.
Assim, fundiram a estátua numa fornalha e o prefeito convocou uma reunião com a corporação, para decidir o que seria feito do metal.
- Naturalmente precisamos ter outra estátua - disse ele -, e será com minha imagem.
- Com minha imagem - disse cada um dos conselheiros da cidade, e começaram a discutir. Da última vez que soube deles, ainda estavam discutindo.
- Que coisa estranha! - disse o contramestre da fundição. - Este coração de chumbo não derrete na fornalha. Vamos jogar fora. - Assim, jogaram-no em um monte de lixo onde estava também a andorinha morta.
-Traz-me as duas coisas mais preciosas da cidade - disse Deus a um de seus anjos; e o anjo trouxe-Lhe o coração de chumbo e o pássaro morto.
Na verdade era muitíssimo admirado.
- É tão belo quanto um cata-vento - observou um dos conselheiros da cidade, que desejava ganhar reputação por ter gosto artístico -; só não é muito útil - acrescentou, temendo que o povo o considerasse pouco prático, o que realmente não era.
- Por que você não pode ser como o príncipe feliz? - perguntou uma mãe ao filho que pedia a lua. - O príncipe feliz nunca chora por motivo algum.
- Fico satisfeito que haja alguém no mundo que seja realmente feliz - murmurou um homem desapontado, enquanto fitava a estátua maravilhosa.
Parece mesmo um anjo - disseram as crianças da Escola de Caridade, ao saírem da catedral em seus mantos escarlates e aventais alvos.
- Como sabem? - disse o professor de matemática-, nunca viram um anjo.
-Ah! mas nós vimos, em sonhos - responderam as crianças; e o professor de matemática franziu as sobrancelhas, com semblante muito severo, pois não aprovava que crianças sonhassem.
Uma noite, voou sobre a cidade uma pequena andorinha. Suas companheiras tinham partido para o Egito seis semanas antes, mas ela ficou pra trás porque estava apaixonada pelo mais belo junco. Ela o conheceu no princípio da primavera, enquanto voava rio abaixo atrás de uma mariposa amarela, e ficou tão atraída por aquela figura esquia, que parou pra falar-lhe.
- Poderei amá-lo? - disse a andorinha, que gostava de ir direto ao assunto, e o junco fez-lhe uma reverência. Então voou ao seu redor, tocando a água com as asas, provocando ondulações prateadas. Era sua maneira de fazer a corte, que durou o verão inteiro.
É uma relação ridícula - chilchearam as outras andorinhas -, ele não tem dinheiro, e tem parentes demais - e na verdade o rio estava bem cheio de juncos. quando veio o outono, voaram para longe.
Depois que partiram, andorinha sentiu-se solitária e começou a cansar-se de seu amado. - Ele é de pouca conversa, e temo que seja galanteador, porque está sempre flertando com a brisa. E, certamente, toda vez que a brisa soprava, o junco fazia as mais graciosas mesuras. - Reconheço que seja caseiro - continuou -, mas adoro viajar, e meu marido, consequentemente, também deveria gostar de viagens.
- Virá comigo? - disse finalmente a ele; mas o junco meneou a cabeça, tão arraigado estava a seu lar.
- Só estava gracejando comigo - disse ela. -Vou para as pirâmides. Adeus! - e se foi.
O dia todo ela voou, e de noite chegou à cidade. - Onde pernoitarei? Espero que a cidade esteja preparada para me abrigar.
Então viu a estátua sobre a alta coluna, e disse:
- Vou me acomodar ali, é um lugar muito bem localizado, com bastante ar fresco. - Assim, pousou entre os pés do príncipe feliz.
- Tenho um aposento de ouro - disse baixinho para si, olhando ao redor, e preparou-se para dormir; mas no momento em que colocava a cabeça sob a asa, uma enorme gota de água caiu sobre ela. - Que estranho! não há uma única nuvem no céu, as estrelas estão brilhando e, entanto chove. O clima no Norte da Europa é mesmo horrível. O junco gostava de chuva, mas isso era puro egoísmo dele.
outra gota caiu.
- Qual a utilidade de uma estátua, se não serve para proteger da chuva? Tenho que procurar uma boa chaminé - disse ela, e decidiu ir embora.
Mas antes que abrisse as asas, uma terceira gota caiu, ela levantou os olhos e viu... Ah! o que ela viu?
Os olhos do príncipe feliz estavam cheios de lágrimas, e lágrimas corriam em suas faces douradas. Seu rosto era tão belo sob o luar que a pequena Andorinha encheu-se de compaixão.
- Quem é você? disse ela.
- Sou o príncipe feliz.
Por que está chorando então? - perguntou a andorinha. - Encharcou-me completamente.
-Quando era vivo e tinha um coração humano - respondeu a estátua -, eu não sabia o que eram lágrimas, pois vivia no Palácio de Sans-Souci, onde à tristeza não é permitido entrar. Durante o dia, brincava com meus companheiros no jardim, e à noite conduzia a dança no grande salão. Em volta do jardim havia um muro muito alto, mas nunca me importei em saber o que existia além dele, pois tudo ao meu redor era tão lindo. Meus cortesões chamavam-me príncipe feliz, e feliz em verdade eu era, se o prazer é felicidade. Assim vivi e assim morri. E agora que estou morto, colocaram-me aqui tão alto que posso ver a feiura e toda a miséria de minha cidade e, embora meu coração seja de chumbo, não posso fazer outra coisa senão chorar.
O quê? Ele não é de ouro maciço? - disse a andorinha para si. Era muito educada para fazer comentários pessoais em voz alta.
- Longe - continuou a estátua com sua voz baixa e musical -, muito longe numa rua estreita, há uma casinha pobre. Uma janela está aberta e vejo uma mulher sentada à mesa. Tem o rosto magro e abatido, e as mãos ásperas, picadas pela agulha, pois é costureira. Está bordando flores-da-paixão num vestido de cetim para a mais adorável dama de honra da rainha vestir no próximo baile da corte. Num leito, no canto do quarto, está deitado seu filho doente.Tem febre, e pede laranjas. A mãe não tem nada para dar-lhe, exceto água do rio, e por isso ele está chorando. Andorinha, andorinha, pequena andorinha, não quer levar-lhe o rubi do cabo de minha espada? Meus pés estão presos a este pedestal e não posso me mover.
- Esperam-me no Egito - disse a andorinha. - Minhas amigas estão voando sobre o Nilo, conversando com as flores de lótus. Em breve vão dormir na tumba do grande rei. O próprio rei está ali, em seu sarcófago coberto de adornos. Está enrolado em linho amarelo e embalsamado com especiarias. Em seu pescoço há um colar de jade verde-pálido, e suas mãos são como folhas secas.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, não quer ficar comigo por uma noite, e ser minha mensageira? O menino está com tanta sede, e a mãe tão triste...
- Acho que não gosto de meninos - respondeu a Andorinha. - No verão, quando eu estava no rio, havia dois meninos rudes, os filhos do moleiro, que estavam sempre atirando pedras em mim. Nunca me acertaram, é claro; nós andorinhas voamos bem demais para que nos acertem, e venho de uma família famosa pela agilidade; ainda assim, foi um sinal de desrespeito.
Mas o príncipe feliz parecia tão triste que a andorinha se condoeu:
- Está muito frio aqui, mas ficarei com você por um noite, e serei sua mensageira.
- Muito obrigada, andorinha - disse o príncipe.
Então a andorinha tirou o enorme rubi da espada do príncipe e voou, levando-o no bico por sobre os telhados da cidade.
Passou pela torre da catedral, onde anjos de mármore branco estavam esculpidos. Passou pelo palácio e ouviu o rumor da dança. Uma jovem formosa apareceu na sacada com seu namorado.
- Como estão maravilhosas as estrelas - disse ele - e como é maravilhoso o poder do amor!
- Espero que meu vestido fique pronto a tempo a tempo para o baile do Estado - respondeu a jovem. - Mandei que bordassem flores-da-paixão nele, mas as costureiras são tão preguiçosas!
A andorinha passou sobre o rio, e viu as lanternas penduradas nos mastros dos navios. Passou sobre o gueto e viu velhos judeus negociando entre si, pesando dinheiro em balanças de cobre. Finalmente, chegou à casa pobre e espiou. O menino agitava-se febrilmente no leito, e a mãe caíra no sono, tão cansada estava. saltou para dentro e deixou suavemente o grande rubi sobre a mesa, ao lado do dedal. Então voou suavemente em volta do leito, abanando a fronte do menino com as asas.
- Sinto-me refrescar - disse o menino -, acho que estou melhorando - e mergulhou num sono delicioso.
Então a andorinha voltou ao príncipe feliz, e contou-lhe o tinha feito.
- Engraçado - observou ela -, mas agora sinto calor, embora esteja tão frio.
- É porque praticou uma boa ação - disse o príncipe. E a pequena andorinha começou a pensar, adormecendo logo em seguida. Pensar sempre a fez ficar com sono.
Quando o dia raiou, ela voou ao rio e tomou um banho.
- Que fenômeno notável - disse o professor de ornitologia ao passar pela ponte. - Uma andorinha no inverno! -E escreveu uma longa carta sobre isso no jornal local. Todos a citavam, porque estava cheia de palavras que não compreendiam.
Esta noite parto para o Egito - disse a andorinha, bastante animada com a perspectiva. visitou todos os monumentos públicos, e ficou posada um longo tempo no topo do campanário da igreja. Onde quer que fosse, os pardais aplaudiam, dizendo uns aos outros:
- Que estrangeira distinta! - E ela se divertiu bastante com isso.
Quando a lua surgiu, voltou ao príncipe feliz e disse:
- Tem alguma encomenda para o Egito? Já estou partindo.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, não quer ficar comigo mais um noite?
- Esperam-me no Egito- respondeu a andorinha - Amanhã minhas amigas voarão até a segunda catarata. Os hipopótamos deitam-se ali entre os caniços, e num grande trono de granito está sentado o deus Memnon. Durante a noite inteira ele contempla as estrelas, e quando brilha a estrela da manhã, ele amite um canto de alegria e depois silencia. Ao meio dia os leões vêm à margem das águas para beber. Têm olhos que se parecem com berilos verdes, e seus rugidos são mais estrondosos do que o rugir das cataratas.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, longe, no outro lado da cidade, vejo um jovem numa água furtada. Está debruçado sobre uma mesa coberta de papéis, e num copo ao seu lado há um maço de violetas murchas. seu cabelo é castanho e crespo, seus lábios são vermelhos como a romã, e tem olhos grandes e sonhadores. Ele tenta terminar um peça para o diretor do teatro, mas sente muito frio para continuar escrevendo. Não há fogo no fogão, e a fome o enfraqueceu.
- Ficarei com você mais um noite - disse a andorinha, que no fundo tinha um bom coração. - Devo levar-lhe outro rubi?
- Ai de mim! Não tenho mais rubis - disse o príncipe -; meus olhos são tudo o que me resta. São feitos de safiras preciosas, trazidas da Índia há mil anos. Arranca um delas e leva ao jovem. Ele a venderá ao joalheiro, comprará comida e lenha, e terminará a peça.
- Caro príncipe - disse a andorinha -, não posso fazer isso - e começou a chorar.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe - faça o que lhe ordeno.
Então a andorinha arrancou o olho do príncipe e voou até a água furtada do estudante. Era muito fácil entrar já que havia um buraco no telhado. Arremessou-se através dele e entrou no quarto. O jovem tinha a cabeça enterrada nas mãos, e não viu o bater das asas; quando levantou os olhos, encontrou a bela safira pousada sobre as violetas murchas.
- Começo a ser apreciado. Isto deve ser de algum admirador. Agora posso terminar minha peça - gritou, parecendo muito contente.
No dia seguinte, a andorinha foi ao porto. Pousou no mastro de uma grande embarcação e observou os marinheiros puxando caixas enormes do porão do navio. - Upa! - gritavam eles a cada caixa que levantavam.
- Vou para o Egito! - bradou a andorinha, mas ninguém lhe deu atenção, e quando a lua surgiu, voou até o príncipe feliz.
- Vim para dizer-lhe adeus.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, não quer ficar comigo por mais um noite?
- É inverno - respondeu - e a neve fria logo vai chegar. No Egito o sol é quente sobre as palmeiras, e os crocodilos deitam-se na lama e olham preguiçosamente ao redor. Minhas companheiras estão construindo um ninho no templo de Baalbec, e as pombas rosadas as observam, arrulhando entre si. Caro príncipe, tenho que deixá-lo, mas nunca o esquecerei; e na próxima primavera trarei duas lindas jóias para substituir as que doou. O rubi será mais rubro que a rosa vermelha, e a safira tão azul quanto o imenso oceano.
- Na praça logo abaixo - disse o príncipe feliz - há uma pequena vendedora de fósforos. Ela os deixou cair na sarjeta, e estão todos estragados. Seu pai baterá nela se não levar dinheiro para casa, e por isso ela está chorando. Não tem sapatos nem meias, e sua cabecinha está descoberta. arranca meu outro olho e leva-lhe, para que seu pai não a maltrate.
- Ficarei com você mais um noite - disse a andorinha -, mas não posso arrancar outro olho. Você ficaria completamente cego.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, faça o que lhe ordeno.
Ela arrancou então o outro olho do príncipe e alçou voo. Precipitou-se sobre a vendedora de fósforos e deixou cair a joia na palma de sua mão.
- Que lindo pedacinho de vidro - disse ela, e correu para casa sorrindo.
A andorinha voltou ao príncipe e disse:
- Está cego agora; então ficarei com você para sempre.
- Não, pequena andorinha - disse o príncipe -, deve partir para o Egito.
- Ficarei com você para sempre - disse a andorinha, e adormeceu aos pés do príncipe.
Durante todo o dia seguinte, ficou pousada no ombro do príncipe, e contou-lhe histórias sobre coisas que viu em terras estranhas. falou-lhes sobre íbis vermelhos, que postavam em longas fileiras em margens do Nilo, apanhando peixes dourados com os bicos; sobre a Esfinge, que é tão antiga quanto o próprio mundo, vive no deserto e tudo sabe; sobre os mercadores, que caminham vagarosamente ao lado de seus camelos e levam contas de âmbar nas mãos; sobre o rei das montanhas da Lua, que é negro como o ébano e cultua um imenso cristal;sobre a grande serpente verde, que dorme numa palmeira e tem vinte sacerdotes para alimentá-la com bolos de mel; e sobre os pigmeus que navegam sobre um grande lago em largas folhas e que estão sempre em guerra com as borboletas.
- Querida andorinha - disse o príncipe -, você me conta coisas espantosas, mas mais espantoso é o sofrimento de homens e mulheres. não há mistério maior que a miséria. Voe por sobre minha cidade, pequena andorinha, e conte-me oque vir por lá.
Assim, a andorinha voou sobre a grande cidade e viu ricos divertindo-se em suas residencias luxuosas, enquanto os mendigos sentavam-se em frente aos portões. Voou por becos escuros e e viu os rostos pálidos das crianças esfaimadas, olhando apaticamente para as ruas sombrias. Sob o arco de um ponte estavam deitados dois meninos, abraçados um ao outro, tentando manter-se aquecidos.
- Temo tanta fome! - diziam os meninos.
- Vocês não podem ficar aqui - gritou o guarda noturno, e eles se retiraram, vagando sob a chuva.
Então a andorinha voltou e contou ao príncipe o que tinha visto.
- Sou coberto de ouro puro - disse o príncipe -, você deve tirá-lo folha por folha, dá-lo aos meus pobres; os vivos sempre acham que ouro pode fazê-los felizes.
Folha após folha de puro ouro a andorinha arrancou, até que o príncipe feliz ficasse fosco e acinzentado. Folha após folha de puro ouro levou aos pobres, e os rostos das crianças tornaram-se mais rosados, e elas riam e brincavam na rua.
- Agora temos pão - gritavam as crianças.
Então veio a neve, e depois da neve, a geada. As ruas pareciam feitas de prata, de tão luminosas e brilhantes; pontas de gelo, longas como adagas de cristal, pendiam dos beirais das casas; todos passavam vestindo casacos de pele, e as crianças usavam gorros escarlate, patinando sobre o gelo.
A pobre andorinha sentia cada vez mais frio, mas não queria deixar o príncipe, pois o amava muito. Apanhava as migalhas à porta do padeiro quando ele não estava olhando, e tentava se aquecer agitando as asas.
Mas por fim sentiu que iria morrer. Mal tinha forças para voar uma vez mais ao ombro do príncipe.
- Adeus, querido príncipe - murmurou -, deixa-me beijar suas mãos?
-Fico contente que vá para o Egito afinal, pequena andorinha -, disse o príncipe. - Ficou muito tempo aqui, mas deve beijar-me os lábios, pois a amo.
- Não é para o Egito que vou - disse a andorinha. - Vou para a casa da morte. A morte é irmã do sono, não é mesmo?
Então beijou o príncipe feliz nos lábios e caiu morta aos seu pés.
Naquele momento, um estranho estalo soou dentro da estátua, como se algo se tivesse quebrado. A verdade é que o coração de chumbo despedaçou-se em dois. Era certamente um geada terrível.
Na manhã seguinte, bem cedo, o prefeito caminhava na praça em companhia dos conselheiros da cidade. Ao passar pela coluna, olhou para a estátua:
- Meu Deus que aspecto miserável tem o príncipe feliz! - disse ele.
- Muito miserável, realmente - disseram os conselheiros da cidade, que sempre concordavam com o prefeito. - Na verdade, é pouco mais que um mendigo!
- Pouco mais que um mendigo - disseram os conselheiros da cidade.
E há até um pássaro morto aos seus pés! - continuou o prefeito. - Devemos emitir um decreto que proíba os pássaros de morrerem aqui. - E o secretário da cidade anotou a sugestão.
Então, puseram abaixo a estátua do príncipe feliz. - Como já não é belo, já não é mais útil - disse o professor de Arte na universidade.
Assim, fundiram a estátua numa fornalha e o prefeito convocou uma reunião com a corporação, para decidir o que seria feito do metal.
- Naturalmente precisamos ter outra estátua - disse ele -, e será com minha imagem.
- Com minha imagem - disse cada um dos conselheiros da cidade, e começaram a discutir. Da última vez que soube deles, ainda estavam discutindo.
- Que coisa estranha! - disse o contramestre da fundição. - Este coração de chumbo não derrete na fornalha. Vamos jogar fora. - Assim, jogaram-no em um monte de lixo onde estava também a andorinha morta.
-Traz-me as duas coisas mais preciosas da cidade - disse Deus a um de seus anjos; e o anjo trouxe-Lhe o coração de chumbo e o pássaro morto.
quarta-feira, 17 de dezembro de 2014
Poema à boca fechada - José Saramago
Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é doutra raça.
Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vasa de fundo em que há raízes tortas.
Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.
Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais boiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.
Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quanto me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é doutra raça.
Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vasa de fundo em que há raízes tortas.
Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.
Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais boiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.
Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quanto me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.
Poema à boca fechada - José Saramago
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