O primeiro canto

O primeiro canto

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Thomas Mann e um grito de alerta antifascista

Thomas Mann, autor de “Dr. Fausto”, romance que espelha uma visão amadurecida de todo o processo em que as liberdades foram destroçadas pelas forças nazifascistas | Foto: Carl van Vechten

Carlos Russo Jr.
Especial para o Jornal Opção


Em 1933, os nazistas chegam ao poder na Ale­manha por meio do voto democrático. Imediata­mente devotam-se à destruição da democracia e à implantação do regime totalitário mais odioso da História da humanidade. O mesmo já ocorrera na Itália alguns anos antes, com o ex-socialista e fascista Benito Mussolini.
Logo após o incêndio do Par­lamento Alemão pelas claques de “cho­que” de Hitler, Mann, o maior dos escritores alemães do século 20, decidiu exilar-se de seu País.
Compreendendo os perigos que a ordem nazifascista representava para a Alemanha, assim como para o restante do mun­do, o engajamento do autor de “A Montanha Mágica” na luta democrática não tardaria. Em 1937, Thomas Mann publicou uma crônica sob o título: “Advertência à Europa!”
A Advertência era dirigida muito particularmente aos intelectuais, aos escritores, aos artistas, cientistas e a outros depositários do patrimônio cultural da humanidade. Firmemente Mann assinala a responsabilidade dos intelectuais que se omitem e se alheiam do combate aos inimigos da inteligência e da cultura, a pretexto de resguardarem a “integridade” e a “pureza” do espírito de qualquer contaminação de “caráter político”. Isto insistia Mann, resultava efetivamente em servir de um modo ou de outro ao “partido do interesse”, ou seja, os interesses de uma ordem política decadente, reacionária e por isso mesmo temerosa da cultura e do espírito. “Em nosso tempo, a torre de marfim é apenas uma tolice, e é quase impossível alguém furtar-se a compreendê-lo.”
“A democracia se realiza efetivamente em cada um de nós, visto que a política se tornou um negócio de todas as gentes. Ninguém pode afastar-se dela; a pressão imediata que ela exerce sobre cada um é demasiado forte. O fato é que aquele que nos declara “eu não me importo com a política”, parece-nos um homem superado, caduco. Tal ponto de vista revela não somente egoísmo e irrealidade, mas ainda embuste e estupidez. Mais que ignorância do espírito, o que há nisso é indiferença moral.”
A ordem política e social faz parte da totalidade, um aspecto da problemática humana, não se podendo menosprezá-la sem com isso se pecar contra a própria humanidade. Portanto como poderia o poeta ou o intelectual esquivar-se, omitir-se, quando sabemos que a sua natureza e o seu destino o colocaram na posição mais exposta da “polis”? “O poeta que se omite em face do problema humano, porque esse aparece sob a forma política, não é somente um traidor da causa do espírito em proveito do partido do interesse, mas é também um homem perdido, que perderá a força criadora, o talento e nada fará que apresente condições de durabilidade.”
O espiritual, para Mann, considerado sob o ângulo político e social, é a aspiração dos povos a uma vida em melhores condições, mais justas e mais felizes, adequadas à dignidade humana. Expressando a essência do pensamento democrático ele diz “o bom e o nobre é o que qualificamos de humano”. Aquilo por cuja causa os homens tem lutado e têm tomado Bastilhas de assalto, os acólitos do autoritarismo proclamam jubilosamente “aquilo não deve existir, que seja revogado, revogue-se até mesmo a ‘Nona Sinfonia’, de Beethoven!”
Uma das mais importantes obras primas do grande mestre foi, sem dúvida, o romance “Dr. Fausto”. Escrito em 1956 espelha uma visão amadurecida de todo o processo em que as liberdades foram destroçadas pelas forças nazifascistas. As peripécias do grande livro se desenvolvem num período histórico de aproximadamente 25 anos, entre 1920 e 1945, quando ocorre o esmagamento da Alemanha nazista.
O personagem-narrador nos diz: “Certa gente não deveria falar em liberdade, razão e humanidade, melhor que se abstivesse disso por motivos de decência. O dogmatismo também é uma forma intelectual do farisaísmo. Onde quer que haja Teologia, o Diabo também deve entrar no quadro, preservando sua autenticidade complementar à de Deus. O Inferno é tão simbólico quanto o Céu”.
Para Mann, “o adepto das luzes, o termo e o conceito ‘povo’ sempre conserva qualquer traço de arcaico, inspirador de apreensões e ele sabe que basta apostrofar a multidão de povo para induzi-la à maldade reacionária”. “Falo do povo, porém daqueles impulsos populares de natureza arcaica, que existem em todos nós, e para dizê-lo bem claramente, assim como penso, não considero a religião o meio mais adequado para reprimi-los com segurança. Isso se consegue, a meu ver, unicamente por meio da literatura, da ciência humanística, do ideal do homem livre e belo.”
Pessoas como o escritor alemão têm, afinal de contas, suas dúvidas a respeito do acerto dos “pensamentos do rebanho”, como ele mesmo os denomina. Sabe, entretanto, perfeitamente diferenciar o povo trabalhador da escória social, que com aquele não se confunde. “A supremacia das classes ditas inferiores se afigura a mim, como cidadão alemão, um estado ideal, quando a comparo com o domínio da escória. Ao contrário que eu saiba jamais o bolchevismo destruiu obras de arte. A revolução russa emocionou-me profundamente e a superioridade histórica de seus princípios em confronto com os das potências que dobravam nossa nuca aos seus pés, era evidente. Verdade é que certas camadas da democracia burguesa parecem merecer o que acabo de denominar de domínio da escória a fim de conservarem por mais tempo seus privilégios.”
No nazismo a violência opunha-se à verdade! Pregava-se um abismo entre a verdade e a força, a verdade e a vida, a verdade e a coletividade. Um grito de horror surge em “Dr. Fausto” sob a forma de uma composição musical do maestro dodecafônico Leverkun: “Nesse momento só uma única música pode servir-nos, somente ela corresponderá a nossas almas: a lamentação do filho do Inferno, a lamentação humana e divina, que, partindo do indivíduo, mas ampliando-se cada vez mais, e, em certo sentido, apoderando-se do Cosmo, há de ser a mais horrenda que jamais tenha sido entoada na Terra. Uma lamentação, um ‘De produndis’!”
O mundo criado pelo nazifascismo era ao mesmo tempo antigo e novo, “revolucionário” e retrógrado. Nele os valores ligados à ideia do indivíduo, verdade, liberdade, direito, razão, ficariam inteiramente debilitados e rejeitados, assumindo um significado totalmente diferente do que tiveram nos séculos precedentes. “Desarraigados da pálida teoria, seriam relativizados, abastecidos de sangue e em seguida submetidos a uma instância muito superior, à da força, da autoridade, da ditadura da fé, de uma forma que igualaria uma regressão muito inovadora da Humanidade em direção a estados e condições teocráticos- medievais.”
A imparcialidade da pesquisa, o pensamento livre, longe de representarem o progresso, o antigo e o novo, o passado e o futuro tornar-se-iam a mesma coisa. Isso ocorreria ao mesmo tempo em que se concedia ao pensamento a licença de legitimar a força, “assim como uns seiscentos anos antes, a razão tivera liberdade para discutir a fé e demonstrar o dogma”, numa referência à Reforma Luterana.
O pedagogo, por exemplo, sabia que, sob o nazifascismo já existia a tendência para distanciar-se do sistema de aprender letras e soletrar. Em vez disso preferia-se o método de ensinar palavras inteiras e de ligar a escrita à visão concreta das coisas. Isso representava, em certo sentido, a abolição da escrita abstrata, universal, não associada a nenhuma língua e, de alguma forma, a volta à ideografia dos povos primitivos. A disposição era de sacrificar sem mais as assim chamadas conquistas culturais em pró de uma simplificação reputada indispensável, assim como os tempos o exigiam, e que eventualmente pudesse ser qualificada de volta intencional à barbárie.
O narrador de “Dr. Fausto”, Serenus, prevê no início da ação dos nazistas no poder que “chegaria o dia em que se legitimasse, por razão de higiene nacional e racial, a não conservação dos elementos mórbidos, a eliminação em grande escala dos ineptos para a vida e dos débeis mentais”. “Enfatizava-se a intenção da rejeição de qualquer efeminação humana, produto da era burguesa, um esforço intensivo por tornar a humanidade capaz de enfrentar tempos sombrios, desdenhosa de sentimentos humanitários, mais próximos daquela fase obscura que precede a origem da Idade Média.”
Mann, pela boca de Serenus expressará seu ódio ao nazismo nas últimas páginas do portentoso livro: “Malditos, malditos os corruptores, que mandaram à escola do Diabo uma parcela do gênero humano, originalmente honrada, bem-intencionada, apenas excessivamente dócil e demasiado propensa a organizar sua vida à base de teorias! Mas um patriotismo que ousasse afirmar que o Estado sanguinário, cuja agonia atualmente presenciamos, que para citar uma expressão de Lutero, ‘pendurou em seu pescoço’ o peso de crimes incomensuráveis, e que, com seus apelos berrados, com suas proclamações aniquiladoras dos direitos do Homem, provocou nas multidões arroubos de imensa felicidade, esse Estado sob cujas bandeiras vistosas marchava nossa juventude, de olhos chispantes, altiva, radiante, firme na fé, um patriotismo, repito, que ousasse afirmar que esse regime tinha sido algo totalmente alheio à natureza de nosso povo, imposto a ela, desprovido de raízes em seu íntimo, ia se afigurar-me mais magnânimo que consciencioso. Não foi esse despotismo, em suas palavras e em seus atos, apenas a realização distorcida, oclocrática, aviltada de mentalidades e filosofias cujo caráter autêntico cumpre reconhecer e que o cristão, o humanista constatam, não sem certo susto, nos traços dos grandes homens, nas encarnações mais imponentes da humanidade?”
O professor Serenus, que se abstivera de combater o nazismo quando ele surgira, ao final do romance “Dr. Fausto” realizará um “mea culpa” de sua omissão, retroagindo à advertência de 1937: “Será que voltarei a inculcar nos cérebros dos alunos a ideia de uma cultura na qual a reverência às divindades das profundezas se une ao culto ético de olímpica razão e lucidez, formando uma só piedade? Mas ai de mim, receio que nessa década selvagem se haja criado uma geração que entenda a minha linguagem tão pouco como eu a sua; a mocidade de meu país se me tornou por demais estranha para que eu possa novamente ser seu mestre. A própria Alemanha, esse país desventurado, tornou-se-me estranha, justamente em virtude do fato de eu ter-me abstido de seus crimes, e, seguro do fim pavoroso, haver-me abrigado na solidão”.



Sobre Jane Austen

Uma escritora perspicaz, ímpar na arte de escrever romances "açucarados" (e não vejam nesse comentário qualquer coisa que se aproxime de pejorativo!), conhecida por escrever "Razão e Sentimento" (é assim o título da edição que tenho), "Orgulho e Preconceito", "Emma", entre outros. Os dois últimos, muito bem adaptados para o cinema. Abaixo, segue um texto a respeito do talento dessa inglesa que escreve bem. Vale a pena ler. 



Por NELSON SHUCHMACHER ENDEBO


Jane Austen é possivelmente a mais amada das escritoras inglesas. Inúmeras são as adaptações de seus romances para o teatro, televisão e cinema; ainda mais numerosas são as edições de suas obras, revisitadas e entusiasticamente glosadas geração após geração. Assim como William Shakespeare, uma de suas leituras preferidas, a autora de Orgulho e preconceito, Razão e sensibilidade, Emma e Persuasão é uma verdadeira indústria em 2014. Podemos descrever algumas de suas qualidades para compreender a persistência do fenômeno Austen: a mão leve para escrever personagens amplamente realizáveis na mente do leitor; a delicadeza com que apresenta os dilemas emergentes na tensão entre as normas sociais e a ética do indivíduo; a maestria no emprego da ironia, que faz rir e faz pensar; a técnica “teatral”, que concentra e agiliza os fios das narrativas nos diálogos — tamanha é a realização da arte de Austen que nem mesmo suas preocupações perenes, como a busca de uma conduta harmônica mediante a autodisciplina e o autoconhecimento e, como julgaríamos hoje, a supervalorização do papel moral e social do casamento, foram suficientes para diminuir o fascínio do público contemporâneo, certamente menos disposto aos ditames e receituários do agir decoroso.
Isso porque, em Austen, o que não passaria de moralismo em autores ineptos resulta de sustentada meditação sobre o tema da boa natureza diante da grande vertigem do tempo, e aí está uma razão para a dificuldade em estimá-la: se raramente lida com acontecimentos históricos, é por deliberadamente alhear-se deles, e não por desinteresse; se propõe valores dir-se-ia cristãos, não propõe necessariamente o cristianismo; se compreende que o novo século abre uma maior independência às mulheres, dando-lhes voz para protestarem o casamento arranjado segundo os interesses de classe, também não ignora que esse alvedrio possa dissimular como aparênciavalores que considera genuinamente bons; se defende sem alarde a liberdade da mulher de casarpor amor, contestando um certo patriarcalismo instituído, não despreza que a mulher também possa enganar-se na estimativa de seus próprios sentimentos. É preciso relativizar a modernidade de Austen.
Na juventude, firmaram-lhe o gosto literário autores imersos no que poderíamos vagamente chamar de mundo da experiência, como Henry Fielding, o já citado Shakespeare e o singular Samuel Johnson, o qual diagnosticara, em 1750, uma literatura contemporânea formada pelos acidentes e eventualidades da vida moderna, registrados em periódicos e folhetins. Não é por acaso que Fanny Price, a heroína de Mansfield Park, sobre o qual terei mais a dizer em seguida, descobre uma das principais guinadas do enredo em uma notícia de jornal. A influência de Fielding, grande escritor cômico que compreendera que é na experiência, e não no receituário, que aprendemos o bem, se faz sentir sobretudo no volume Juvenília, reunindo textos de uma Jane Austen mal saída da adolescência (1787-1793), que a Penguin corajosamente lança no Brasil, em edição e tradução em tudo recomendáveis. Nas primeiras tentativas de ficção, compreensivelmente incoerentes, Austen mostra não apenas um talento cômico, como também um domínio superficial das convenções burlescas, que certamente aprendera com Fielding. Sobravam-lhe as intervenções do narrador no relato, as observações e as críticas; faltavam-lhe entretanto as intuições psicológicas que conferem ao burlesco o seu potencial ético, ao levar certos tipos humanos ao paroxismo justamente para desarmá-los e expô-los como fraude ou engodo. Essas intuições, é provável, Austen aprenderia a desenvolver com as filigranas técnicas dos romances epistolares de Samuel Richardson, como o popularíssimo Pamela, um verdadeiro best-seller europeu, adorado por figuras como Diderot, e o sofisticado Clarissa, que representa com enorme habilidade, em uma multiplicidade de vozes e registros, os jogos emocionais e conflitos de interesse na Inglaterra do século 18, na trágica história de uma moça que rejeita o noivado com um tipo detestável.
Sentimental
Nesses escritos de juventude percebe-se ainda uma franca predileção pelo sentimental, como era o caso da obra de Richardson e de outras figuras menores, mas populares à época, como Henry Mackenzie. Eventualmente Austen aprenderá a zombar do culto ao bom gosto, tão em voga no século 18, que tinha a função de educar a sensibilidade. A sua obra madura, parcialmente publicada na última década de sua breve vida — Austen morreria aos 42 anos —, substitui o sentimentalismo reativo típico de uma era emancipada, sob certos aspectos, pela valorização da razão, mas incapaz de realisticamente lidar com as mudanças em curso, por um estilo sóbrio, comedido, psicologicamente elegante e sagaz, que acusa também a leitura ponderada de um poeta austero como George Crabbe: econômico nas descrições de paisagens, ambiências e vestimentas; magnânimo, mas concentrado, na caracterização de estados emocionais; sutil ao resumir as impressões sobre as personagens, sem entretanto “entregar” o uso da ironia nos diálogos, dos quais Austen é um dos grandes mestres na língua.
Na grande tradição britânica, poucos autores conseguem representar uma consciência tão convincentemente quanto Jane Austen: suas personagens estão o tempo inteiro cientes de que são vistas e ouvidas pelos outros. Por isso, o cálculo se apresenta como antecipação natural, e tem lá seus efeitos cômicos. A desmesura parece não somente uma aviltação, uma falta de bons modos e sensibilidade, mas, acima de tudo, denota uma ausência de autoconsciência, falta grave. É, enfim, um estilo clássico, que toma os conselhos morais sobre continência e aplica-os à forma do texto. É curioso notar que um dos autores que Austen mais gostava fosse logo Laurence Sterne, autor deTristram Shandy, um romance deveras cultuado quando redescoberto pelo modernismo mas que, no que diz respeito às experimentações formais, não parece tê-la influenciado significativamente. O teor de sua prosa é reflexivo, não digressivo; os trechos narrados são distribuídos em proporção junto aos diálogos, ainda que Austen faça, como na terceira parte deMansfield Park, uma eventual concessão ao gênero epistolar, que interpola a condução da narrativa.
Charlotte Brontë, a autora romântica de Jane Eyre, e que divide com Austen esse intrigante volume de Juvenília, acusava-a incapaz de escrever diálogos em que os participantes não falassem como ladies e gentlemen. Muito já foi dito pela crítica a esse respeito, e há alguma verdade nessa contenção: Austen não escreve sobre tudo e todos. No fundo, ela escreve sobre o mundo queconhece, algo inteiramente condizente com o senso de proporção e sensatez que propõe em seus romances. Mas o que diria Brontë sobre o grosseirão Tenente Price, o pai biológico da protagonista de Mansfield Park, perfeitamente caracterizado em sua ignóbil incivilidade? E sobre o mordomo em Mansfield Park, que inesperadamente confirma-nos, em apenas uma breve intervenção, que a tia Norris é de fato tão desagradável quanto a imaginamos?
Senso da confusão
Brontë, espírito menos recolhido que Austen, congenitamente não se adequaria às restrições auto-impostas por esta, nas quais sua arte novelística se circunscreve tanto geográfica quanto demográfica e historicamente. Austen, contemporânea de Edmund Burke, William Blake, William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge, adentraria a vida adulta nos anos seguintes à Revolução Francesa, que tanto marcará as reflexões daqueles autores, mas ela não trata do evento diretamente. Tal atitude ela manterá mesmo quando, posteriormente, o temor de que Napoleão invadisse a Inglaterra torna-se um tópico caloroso de debate. Austen trata esses assuntos de maneira oblíqua. Não vejo aí demérito. Ora, se um dos impactos óbvios da Revolução fora a intensificação das inquietações e discussões sobre bem-estar social, privilégios e o papel do clero, podemos localizar, na pedagogia instalada no centro de seus romances, reações e respostas àquelas ansiedades. Em Mansfield Park, alguns dos melhores diálogos se dão entre o ponderado e calmo Edmund Bertram, prestes a ser recebido na ordem eclesiástica, e a moderníssima e assanhada Mary Crawford, de Londres, que desdenha, duvidosa, dos méritos de uma carreira no clero, cuja função social ela já não reconhece. Fica claro que, para Austen, a vida no clero é, de certo modo, um modelo para a vida em geral; não um modelo institucional, mas existencial, pois demanda de nós um esforço irrevogável para cultivar o bem, o senso de comprometimento, de sacrifício e de recompensa. Na casa em Mansfield, o patriarca Sir Thomas, autoritário e interesseiro, embora não desprovido de notáveis qualidades, aos poucos aprende a temperança: o bom governo já começa em casa, mas sofre a influência de seus membros; não é, portanto, unilateral, embora a hierarquia seja indispensável. Ao mesmo tempo, Edmund reconhece que o próprio clero comporta membros que parecem ter há muito abandonado tal missão, enquanto Crawford é forçada a admitir que sua experiência com clérigos advém mais do disse-me-disse do que da prática imediata. Há em Austen um senso da confusão; daí sua constância.
Fica claro aí que, se Austen apresenta os diálogos de maneira fluida e realisticamente convincente, ela também busca no leitor uma resposta ética enviesada, mas de maneira plurivalente. Seu virtuosismo com o diálogo é utilizado não para forçar ou incitar o leitor, mas para provocá-lo. Desde o início estamos dispostos a simpatizar com o arrazoado Edmund, que, entretanto, é apaixonado pela materialista e — do ponto de vista da caracterização — irresistível Mary Crawford. Esperamos logo que Mary mude de conduta, algo que Austen resolveria não por meio de um argumento pontuado, mas de um evento vivido; ou que Edmund perceba a sua tolice. Essa tensão permanece em aberto porque Edmund, afinal, é o amor secreto de sua prima, a heroína Fanny, que em tudo difere de Mary Crawford. A trama do livro é um affaire de família: o orgulhoso e impulsivo galanteador Henry Crawford, irmão de Mary, resolve se apaixonar por Fanny. Outra tensão se abrirá: embora prontamente rejeitado por Fanny, será que Henry se tornará uma pessoa melhor, merecendo assim o coração da protagonista? Um mérito do livro é dar espaço o suficiente para o leitor querer que os irmãos Crawford se tornem mais discernentes e menos egoístas, não por fazê-lo adotar piamente os valores representados por Fanny e Edmund, e sim porque estabelece com êxito uma relação de empatia entre os irmãos e o leitor. Se o leitor mais puritano compreensivelmente “torcerá” para Fanny e Edmund constituírem um casal ao final da história, os demais leitores, sobretudo os contemporâneos, desejarão acompanhar a transformação dos irmãos humanos, demasiadamente humanos, tendo razão Lionel Trilling, ao sugerir que nenhum leitor moderno admiraria Fanny Price, a despeito de suas qualidades eminentemente admiráveis: há um aspecto de constância que a experiência moderna, sob certo aspecto profundamente hostil ao idealismo, não consegue tanger. A metamorfose, cremos, afirma o tempo e, portanto, a vida; ao contrário da estagnação do eterno, essa dita nêmese do vivo. Fanny parece-nos desumanamente piedosa e caridosa. Mary Crawford tem mais em comum com as outras heroínas de Austen do que Fanny Price, que é a verdadeira protagonista de Mansfield Park.
Aqui podemos vislumbrar o veio utópico da visão de Jane Austen. De todas as suas obras acabadas,Mansfield Park talvez seja a menos popular. Nos últimos 50 anos, entretanto, esse romance de 1814 mereceu a atenção considerada de grandes críticos literários, como Q. D. Leavis e o próprio Trilling; desde a década de 90, de forças dos estudos culturais, como Edward Said e Geoffrey Hartman. Hoje o estudam com renovado interesse os scholars do pós-colonialismo e da narratologia. O livro é eminentemente legível e entretém tanto quanto os demais trabalhos de Austen, mas oferece alguns desafios técnicos ao intérprete da autora. Uma delas é a cena do teatro improvisado pelos moradores de Mansfield, que se desdobra no primeiro interstício do livro e que lembra, na maneira como revela as predisposições e inclinações das personagens, da famosa cena da ópera em Guerra e paz, de Tolstói. Com perícia Austen lida com os conflitos locais gerados pela montagem da peça “vulgar” Juras de amor, adaptação inglesa de uma obra de August von Kotzebue, o dramaturgo alemão favorito de Nietzsche, e cujo enredo prenuncia a própria ação do romance. Sir Thomas está em Antígua, cuidando dos negócios; Edmund, sabendo que o pai desaprovaria com veemência a representação de tanto despautério no próprio lar, luta para impedi-la. Fanny não tem objeções à peça em si, mas teme falhar no palco por “não saber representar”. Para os demais, trata-se apenas de um divertimento inconsequente.
Pedagogia cristalizada
As ressalvas contra a representação têm uma dupla face, e aqueles que pensarem em Platão não estarão delirando: em Edmund e Sir Thomas, há uma relação perigosa entre o conteúdo moral da representação e aquele que representa; em Fanny, a falta de talento para representar surge como grande qualidade normativa. Ela é sincera demais para representar, e é justamente por sê-lo que, em meio aos fingimentos, dissimulações e mentiras da trama, ela termina feliz e honrada pela família, pela sociedade e também pela autora. Por isso, o que era uma dialética da experiência nas obras anteriores de Austen, uma dança de pontos de vista, de oscilações entre resignação e fortidão, humilhação e coragem, aqui se assemelha mais a uma pedagogia cristalizada pelo método previamente empregado. Mansfield, idílica e isolada de Londres, por fim dá a impressão de uma sociedade ideal, onde reina a paz exterior e interior por meio da disciplina, da constância e do autoconhecimento. Em Mansfield, Fanny é uma boa sobrinha, mas em Portsmouth não é uma filha especialmente carinhosa e diligente; e é uma amiga sincera até sentir-se ameaçada. Não é tola, apesar da simplicidade, nem demasiado humilde, pois excessivamente consciente das próprias virtudes. Em última análise, um racionalismo contemplativo e psicologicamente arguto disputa com uma utopia conservadora a primazia na visão de Austen.
Mansfield Park é um trabalho clássico que merece ser lido e discutido. No caso de Charlotte Brontë, a publicação de sua Juvenília pede uma leitura à luz de suas obras da maturidade, sobretudo do soberbo Jane Eyre, que não encontra ocasião aqui. Mas cabe um comentário pertinente. Brontë, outro clássico inglês que goza de grande popularidade ainda hoje, compartilha com Austen a busca pela boa conduta, pela retidão em um mundo declaradamente estranho, mas o faz sem reprimir as lições do coração; seu idealismo é, portanto, de outra estirpe. Brontë já tinha o espírito do romantismo, ao contrário de Austen, que somente o adumbraria: a leitura de Byron e de clássicos orientais como As mil e uma noites, traduzidos e avidamente apreciados em inglês já no século 18, inspiraram-lhe o espírito aventureiro. Frances Beer, em sua excelente introdução àJuvenília, observa perspicazmente que a criatividade da jovem Brontë se manifestara na imaginação expansiva, mas profundamente solitária, ansiosa por encontrar mundos distantes, enquanto a de Austen se concentrara na ridicularização de tipos hipócritas, entediantes e desagradáveis. Mas seus gênios foram dificilmente compatíveis. A justeza dos arranjos humanos requer um compromisso que Brontë, à parte do pessimismo social e escapismo que nunca deixou de externar, só aceita com uma resignação filtrada por uma imaginação feroz, que distorce a proporção do real com uma abundância de sentimento. Para ela, o amor em Austen era um amor desapaixonado, estereotípico dos ingleses. Buscara representar o amor “com coração”. Por isso não pudera aceitar que Austen fosse chamada, como fora, de uma escritora realista, pois faltava nela justamente o coração, essa realidade inalienável. Em cada uma há, à sua maneira, na feliz formulação de Beer, a busca por uma “transgressão que não transgride”. São escritoras eminentemente inglesas nesse sentido.
A Juvenília deverá encontrar um público menor do que Mansfield Park e demais obras das duas autoras. Mas é uma publicação corajosa, que possibilita ao leitor zeloso uma visão privilegiada do desenvolvimento criativo de duas das maiores romancistas do século 19. A editora merece todos os lauréis por ter apostado nesse título, editado com rigor e critério. Cursos universitários de Letras e estudantes da língua inglesa terão incentivo para encomendar e estudar a edição de luxo da Landmark, em capa dura e bilíngue, oferecendo o texto em páginas espelhadas. Naturalmente, dada a extensão do romance, que soma quase 600 páginas na edição da Penguin, a versão bilíngue usa uma fonte consideravelmente menor, com espaçamento mínimo entre as linhas, e um formato de livro maior, o que dificulta o manuseio e a leitura, embora esse não seja um pormenor incontornável. Quanto à tradução nessa edição, embora ela de fato siga o texto original corretamente, peca ocasionalmente por fazê-lo de maneira rigorosamente fiel: a sintaxe às vezes parece artificial e, sobretudo nos diálogos, prejudica a fluidez do texto. Ademais, a revisão técnica poderia ter impedido certos erros de digitação, facilmente justificáveis e, portanto, perdoáveis no processo de tradução, mas incompreensíveis em uma edição de luxo. Nesse sentido, a edição da Penguin é preferível, apresentando uma tradução fluente e idiomática, e um texto limpo com notas elucidativas e bom aparato crítico. A publicação bilíngue é parte de uma louvável iniciativa da Landmark de disponibilizar clássicos da literatura nesse formato, um projeto de grande valor educacional, e torcemos para que seja executado com o esmero que demanda e que o leitor, carente de publicações acessíveis desse tipo, merece.



Jane Austen nasceu em 1775, em Steventon. É uma das escritoras inglesas mais conceituadas da história. Autora de Razão e sensibilidade (1811), Orgulho e preconceito (1813) e Emma (1816), entre outros. Modesta em relação ao seu talento, só teve a identidade como autora revelada postumamente. Morreu em 1817, em Winchester. Charlotte Brontë nasceu em 1816. Passou a maior parte da vida em Haworth, nos pântanos de Yorkshire. É autora de quatro romances: Jane Eyre (1847), Shirley (1849), Villette (1853) e The professor (o primeiro deles, publicado postumamente em 1857). Emma, um fragmento, foi publicado em 1860. Morreu em 1855.

Disponível em: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/a-boa-natureza/

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

O Encontro de Prometeu e Sísifo - Algumas Considerações sobre a Loucura

Por Moacyr Alexandro Rosa*
 

“Louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão”
G. K. Chesterton

Sem a loucura que é o homem 
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
F. Pessoa

O profundo mistério que caracteriza o ser humano provoca uma "inquietante inquietação" em todas as pessoas e, de forma especial, em nós que nos dedicamos a estudar o homem e encontrar algo da sua verdade. Tentamos iluminar um pouco este mistério mas, a cada vez que o fazemos, damo-nos conta de que ele é mais profundo do que supúnhamos em nossa ingenuidade. Cada descoberta científica remete a inúmeros novos questionamentos. Cada certeza é derrubada por uma nova, sucumbindo implacavelmente ao crivo do tempo.
Os filósofos e os poetas, quando são bons filósofos e bons poetas, são os mais capacitados para esta tarefa, pois vêem as coisas de forma mais global e sabem que estão pisando em terreno sagrado ao tentar visitar a alma humana. Tiram o calçado, por assim dizer.
A loucura sempre foi assunto de grande interesse ao longo dos séculos. Sempre houve "loucos". Poderíamos arriscar dizer que é "normal" que haja loucos.
Não acho que haja respostas definitivas para o tema da loucura. Apenas traçarei algumas considerações a partir de um seminário do curso de Filosofia do Programa Master em Jornalismo do qual participei a convite do Professor Lauand. O seminário constou de depoimentos de pessoas que participam de grupos de auto-ajuda. (Também tive a oportunidade de participar - como observador - da primeira sessão dos Psicóticos Anônimos no Brasil).
A grande questão é esta: o que é a loucura?
Quando o primeiro expositor (L. F. Barros, fundador dos Psicóticos Anônimos no Brasil) fez seu depoimento dirigindo-se a uma platéia de jornalistas, comparou a profissão deles com o trabalho do mítico Sísifo, que, como se sabe, havia sido condenado para sempre a erguer uma pedra até o cimo de um monte. Quando chegava ao cimo, a pedra rolava novamente até o chão.
Assim, os jornalistas erguem suas pedras diariamente. Estas chegam ao cimo quando a matéria é publicada, mas caem no dia seguinte, quando o que escreveram torna-se "jornal velho". É necessário elevar a pedra novamente.
Essa feliz comparação foi feita por alguém que se declara "doente mental". "É um louco inteligente!", dirão alguns, pouco dotados para enxergar o que está em questão. É mais do que isso. É alguém que esteve no mais profundo abismo e que voltou de lá para nos contar, brilhantemente, algo do mistério.
Barros comentou, quase de passagem, que não conseguia entender como a loucura podia fascinar tanto as pessoas, sendo, como é, algo tão terrível, "uma das piores coisas que pode acontecer com uma pessoa". Louco inteligente? Não. É um sábio que conhece o ser humano a partir de dentro de si mesmo, que enfrentou todo tipo de internações (curiosamente não é contrário a elas...), todo tipo de dificuldades, estigmas, incompreensões, destruição da própria família...
A comparação com o mito de Sísifo trouxe-me a mente outra que talvez ajude a entender um pouco o que é uma doença mental. Comparo Barros a Prometeu que, segundo a lenda, deu-nos o fogo e foi condenado a ser acorrentado a uma rocha no Cáucaso. Um abutre vinha comer-lhe o fígado que se refazia sempre, reiniciando-se o tormento. O fogo que nos deu foi sua experiência, mostrando que ser "louco" é pouco fascinante quando se é o protagonista da loucura. Ensinou-nos isto, estando ele próprio acorrentado à doença que o destino lhe impôs.
A corrente que o prende, durante seus surtos, à rocha da irrealidade, é a doença mental.
Poderia forçar um pouco a comparação, dizendo que o abutre são os medicamentos que podem ter efeitos hepatotóxicos (lesar o fígado), mas seria uma comparação injusta. Por piores que sejam os efeitos colaterais, os remédios abrem uma janela, por pequena que seja, pela qual os doentes podem voltar a ter acesso à luz da realidade, ao mundo dos "normais".
O termo "loucura" é confuso. É usado de forma análoga (ou seja, com semelhanças em alguns aspectos e diferenças em outros) para realidades bastante díspares.
Todos concordam em que a paixão "deixa louco". "Loucos são os sábios, loucos são os gênios, loucos são os santos", como dizia Fernando Pessoa. Sim, são loucos por fugirem à "normalidade", ao que é "comum", ao que a maioria faz, à mediocridade. Mas a loucura da sabedoria, da genialidade e da santidade é uma loucura que liberta, uma loucura escolhida, enquanto que a loucura da doença mental escraviza, aprisiona, destrói a capacidade de escolha. O descuido no uso do mesmo termo para realidades tão diferentes, quase opostas, é perigoso e, por vezes altamente deletério, quando feito de forma leviana (a poesia, esta sim, só tem vantagens, com imprecisão do termo).
Algumas correntes de pensamento dentro da Psicologia, da Filosofia e da Psiquiatria caem nesta confusão. Com a boa intenção de desestigmatizar a doença mental, acabam obscurecendo o caminho para sua melhor compreensão e bloqueando o acesso ao tratamento a que essas pessoas têm direito.
Pode-se dizer que Barros é alguém portador de duas loucuras (é um "louco em dobro", se me permitem a expressão). Tem a loucura da doença (da qual vem se tratando e ajudando outros a se tratarem) e a loucura da sabedoria, com a qual nos ajuda a desvendar o mistério de sua própria existência. Sentimo-nos muito gratos por compartilhar esta loucura conosco, tornando-nos mais humanos.
A Psiquiatria (e a medicina como um todo) necessita rehumanizar-se. Mas não me parece que o caminho seja o de negar a doença, ou até considerá-la algo bom.
Alguns psicóticos fizeram seu depoimento. Um rapaz que não conseguiu concluir o curso de Administração pois a doença eclodiu quando se encontrava no segundo ano. Comoveu-nos sua simplicidade ao contar como sua vida foi acorrentada à rocha. Impressionou-nos seu desejo de conhecer a Deus (está estudando teologia) e sua vontade de "ir para o céu".
Uma senhora, que participa de um grupo de auto-ajuda para familiares de doentes deu seu depoimento. Choramos com ela, quando nos contou sobre seu filho doente mental, que também tinha estado na faculdade até que a doença se manifestasse. Ela comentava que, sendo psicóloga, achava que sabia algo sobre a mente humana e a doença mental. Contudo, dizia, só tendo alguém dentro de casa é que se descobre the real thing. Há quatro anos seu filho suicidou-se. Vem-me de novo à mente a frase de Barros: "Como pode algo tão terrível causar tanto fascínio?"
Os doentes são acorrentados pelo destino e nós tentamos achar o caminho para que se libertem. Esta mãe de um Prometeu acorrentou-se voluntariamente à rocha onde, ajudando outras pessoas, pode reencontrar neles o filho que lhe foi arrebatado.
Não sei a que mito comparar os médicos psiquiatras. Talvez a Dédalo que, tentando dar a liberdade a seu filho construindo-lhe asas, não atingiu seu objetivo. Sentimo-nos assim: proporcionando um pequeno voo aos pacientes, mas logo sobrevém a queda ao solo.
O essencial é a humildade (necessária a todos: médicos, jornalistas, filósofos...) perante o mistério humano, condição para procurar asas que não se derretam ao se aproximarem do sol da liberdade.

*Psiquiatra Assistente do Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP e Médico Assist. do Dep de Saúde Mental da Santa Casa de São Paulo.

"Dying Slowly" - Tindersticks




segunda-feira, 16 de outubro de 2017

"Minhas Leis não são suas Leis. As minhas são, foram e sempre serão"


A Lei Divina (Thémis) e a Lei dos Homens (Diké) em Antígona
Por Luciene Félix 

Foi-nos legado pelo tragediógrafo grego Sófocles (496 a.C.), em sua obra "Antígona" (441 a.C.) uma abordagem mítica e lógica, mitológica, de um terrível dilema humano que sempre tomará de assalto nossa Alma, colocando-nos diante de questões insolucionáveis. O fato do mito ser atemporal não nos surpreende pois a sua principal característica é a inestoriabilidade, ou seja, um processo contínuo, um incessante vir-a-ser.
A sophrosyne (nada em excesso) que nos foi tão cara no artigo anterior sobre a polêmica das charges, a justa medida, o métron grego não dá conta de evitar o embate entre Thémis e Diké quando estas duas concepções de justiça se opõem no interior da psiquê e coagem o homem obrigando-o a tomar uma posição inexoravelmente excludente.
Este drama eterno será vivido com toda intensidade e paixão pela marcada filha de Édipo, neta do amaldiçoado transgressor Laio, filho de Lábdaco: a nobre Antígona.
Retomemos a tragédia Sofocliana de Édipo Rei que, ao ser apresentada em 430 a.C. desbancou o veterano Ésquilo. Marcado, pois portador da hamartía - marca da maldição familiar - dos Labdácias, Édipo é um inocente herói trágico. Sobre ele paira o justificável e legítimo argumento de ignorar a verdade sobre suas origens e nada poder fazer para fugir de seu inescapável destino já profetizado pelo oráculo de Apollo em Delfos: matar o pai e desposar a mãe, incorrendo numa irreversível transgressão a ordem (kosmós) da natureza (physis). Trata-se de uma aberração pois uma vez marido da própria mãe, tornou-se assim irmão e pai de seus filhos. No desenrolar de toda tragédia, Édipo não suporta a revelação de tamanha desgraça a seu espírito, diante da imensidão de seu infortúnio, fura os próprios olhos e retira-se da cidade. Filha zelosa e solidária, Antígona o acompanha. Pobre Antígona. Singular Antígona. Possui ainda mais uma irmã, a ponderada e razoável Ismene e dois irmãos: Polinices e Eteócles.
Amaldiçoados pelo próprio pai Édipo, a quem rejeitaram, a morrer um pelas mãos do outro, Etéocles e Polinices, irmãos de Antígona, rivalizam-se: Etéocles à favor do tio, Creonte e Polinices, pleiteando reaver o trono que fora de seu pai, coloca-se contra Tebas. Num sangrento fratricídio, extingem-se reciprocamente.
Creonte, agora Rei de Tebas, personifica a tirania quando das leis escritas se apropria em benefício próprio que é o de manter-se no poder. Justifica e legitima seus atos quando prende-se ferreamente a "manipulável" lei dos homens (Diké): a um desertor, traidor (Polinices), não se permite sepultamento. Isso significa ter seu cadáver jogado aos cães, dilacerado por feras carniceiras e aves de rapina.
Por Zeus, muito mais preocupante que a morte em si, pois esta é certa, é a honra da sepultura, o justo merecimento de, tendo sido bem-quisto neste mundo, obter a glória de ser bem recebido no outro. Certeza de poder ter um funeral condigno, pagar a moeda ao barqueiro Caronte, fazer a travessia pelo Léthe, o rio do esquecimento, chegar ao insondável reino dos mortos, onde Plutão e Perséfone imperam no misterioso Hades.
Onde faz morada o embate entre Thémis e Diké? O conflito jaz em olvidar o telos (propósito, finalidade) da lei em prol da letra que beneficia a quem a aplica, mas "a letra não está acima do espírito da lei dos homens". Quando se confrontam a Lei dos Deuses e a Lei dos Homens? Quando não se atinge sua consonância, quando esta última impõe-se desconsiderando a primeira. Dito de outra forma, dá-se assim, quando na terra não é como no céu.
Sobre a conseqüência desta deflagrada polêmica muitos filósofos do direito se debruçaram (e debruçarão!). Na verdade todo e qualquer mortal. Estas são questões fundamentais para o espírito humano: como estabelecer qual é o limite da autoridade do Estado, do direito positivo, sobre as ditas leis do direito natural, as leis não escritas? Com quem está a razão? Polinices em lutar por reaver o trono deixado por seu pai, algo que julga ser seu por direito divino (Thémis) ou Creonte que agora Rei deve aplicar a Lei dos homens (Diké) a qualquer inimigo de Tebas? Quando a razão não dá conta de tudo, mais necessário se faz que sejamos razoáveis. Ponderemos esta instância divina, de Thémis.
O que se enfrenta quando se opta por seguir Thémis ao invés de sujeitar-se ao cumprimento das normas e dos deveres impostos pelos reis Creontes? Qualquer que seja a opção há um preço a se pagar.
Antígona sabe que, pela sagrada consanguinidade, deve enterrar Polinices, evitando que abutres disputem-lhe as carnes. Sobre a Lei de Zeus, observa: "... não é de hoje, não é de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram".
O drama de Antígona não consiste na dúvida sobre qual lei seguir. Ela possui envergadura demais para não fugir às consequências, pois como nos diz Sófocles "evidencia-se a linhagem da donzela, indômita, de pai indômito: não cede nem no momento de enfrentar a adversidade".
Todo corajoso herói domina phobos (medo) - considerado pelos gregos um temido "ente", quase real, que acomete e faz debandar aterrorizados guerreiros, outrora bravos e valentes, diante da batalha. Antígona, destemida, ousada e indomável, atreve-se a desafiar a tirania de seu tio Creonte e mesmo ciente da pena de morte que seu ato implicaria, como observa a sua temerosa irmã Ismene: "ferve diante do que faz gelar". Explicitando a recusa em obedecer as Leis civis.
O que se enfrenta quando se opta por seguir irrefletidamente a letra da lei ao invés de ponderar se a mesma é fiel ao seu espírito, ou se é mesmo compatível com os harmoniosos desígnios da justiça divina?
Creonte mantém-se irredutível quanto a pena de Polinices. E mais, com o enfrentamento de Antígona, torna-a baluarte de sua intransigência. Sem sucesso, o velho sacerdote, o mântico cego Tirésias alerta para o custo da teimosia em Creonte: "... os homens todos erram mas quem comete um erro não é insensato, nem sofre pelo mal que fez, se o remedia em vez de preferir mostrar-se inabalável: de fato, a intransigência leva à estupidez".
Característica da tragédia é que, a partir de determinados atos consumados, todas as possibilidades que se apresentem trarão consequências terríveis. Uma vez que Antígona foi condenada a morrer encerrada viva numa gruta, seu apaixonado pretendente, Hêmon, filho de Creonte, desconsolado com a morte da amada e furioso com o crime de seu pai, suicida-se. Eurídice, sua mãe, dilacerada pela morte do filho, apunhalando-se no fígado, também dá fim à própria vida.
Creonte cai em si diante da irreflexão na aplicação da lei. Diz o coro: "Destaca-se a prudência, sobremodo como a primeira condição para a felicidade. Não se deve ofender aos deuses em nada. A desmedida empáfia nas palavras reverte em desmedidos golpes contra os soberbos que, já na velhice, aprendem afinal prudência".
Se pela insolência, nossa heroína pagou com sua própria vida, a dor de Creonte, já profundamente perturbado, acometido pela perseguição das implacáveis Fúrias, as Erínias (a vingança) é também consternadora: "Ai de mim! O autor destas desgraças sou eu... não sou mais nada! Venha, aconteça a última das mortes - a minha! - e traga o meu dia final, o mais feliz de todos! Venha, pois não quero viver nem mais um dia!... Levem para bem longe este demente que sem querer te assassinou, meu filho, e a ti também, mulher! Ai de mim! Não sei qual dos dois mortos devo olhar nem para onde devo encaminhar-me!".
O desfecho de todo este drama é concluído com a redenção final da maldição familiar dos Labdácias por Antígona. Assim proclama o coro:

"Tu te lançaste aos últimos extremos
de atrevimento e te precipitaste
de encontro ao trono onde a justiça excelsa
tem sede, minha filha; pode ser
que na presente provação expies
pecados cometidos por teu pai."

Ainda que proferidos na longínqua aurora dos tempos, até hoje ouvimos o altivo e desafiador brado da heroína e este alicerça nossas convicções interiores contra as ordens de um poder arbitrário, desmedido, mesmo que revestido de todas as formas de legalidade. No âmago de nossas almas ecoa o que Zeus sussurrou no coração de Antígona: "Minhas Leis não são suas Leis. As minhas são, foram e sempre serão".


Ausência, Carlos Drummond de Andrade


Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta. 
E lastimava, ignorante, a falta. 
Hoje não a lastimo. 
Não há falta na ausência. 
A ausência é um estar em mim. 
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus 
                                                                            [braços, 
que rio e danço e invento exclamações alegres, 
porque a ausência, essa ausência assimilada, 
ninguém a rouba mais de mim. 


Carlos Drummond de Andrade, in 'O Corpo'



quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Funes, o Memorioso - J. L. Borges


Funes, o Memorioso
 Jorge Luis Borges
Recordo-o (não tenho o direito de pronunciar esse verbo sagrado, apenas um homem na terra teve o direito e tal homem está morto) com uma obscura passiflórea na mão, vendo-a como ninguém jamais a vira, ainda que a contemplasse do crepúsculo do dia até o da noite, uma vida inteira. Recordo-o, o rosto taciturno e indianizado e singularmente remoto, por trás do cigarro. Recordo (creio) suas mãos delicadas de trançador. Recordo próximo dessas mãos um mate, com as armas da Banda Oriental, recordo na janela da casa uma esteira amarela, com uma vaga paisagem lacustre. Recordo claramente a sua voz; a voz pausada, ressentida e nasal de orillero antigo, sem os assobios italianos de agora. Mais de três vezes não o vi; a última, em 1887... Parece-me muito feliz o projeto de que todos aqueles que o conheceram escrevam sobre ele; meu testemunho será por certo o mais breve e sem dúvida o mais pobre, porém não o menos imparcial do volume que vós editareis. A minha deplorável condição de argentino impedir-me-á de incorrer no ditirambo - gênero obrigatório no Uruguai; quando o tema é um uruguaio. Literato, cajetilla, porteño. Funes não disse essas palavras injuriosas, mas de um modo suficiente me consta que eu representava para ele tais desventuras. Pedro Leandro Ipuche escreveu que Funes era um precursor dos super-homens; "Um Zaratustra cimarrón e vernáculo"; não o discuto, mas não se deve esquecer que era também natural de Fray Bentos, com certas limitações incuráveis.
A minha primeira lembrança de Funes é muito clara. Vejo-o em um entardecer de Março ou Fevereiro do ano de 1884. Meu pai, nesse ano, levara-me a veranear em Fray Bentos. Voltava com meu primo Bernardo Haedo da estância de San Francisco. Voltávamos cantando, a cavalo, e essa não era a única circunstância da minha felicidade. Após um dia abafado, uma enorme tempestade cor cinza escura havia escondido o céu. Alentava-me o vento Sul, já enlouqueciam-se as árvores; eu tinha o temor (a esperança) de que nos surpreenderia em um descampado a água elemental. Apostamos uma espécie de corrida com a tempestade. Entramos em um desfiladeiro que se aprofundava entre duas veredas altíssimas de tijolo. Escurecera repentinamente; ouvi passos rápidos e quase secretos no alto; levantei os olhos e vi um rapaz que corria pela vereda estreita e esburacada como que por uma parede estreita e esburacada. Recordo a bombacha, as alpargatas, recordo o cigarro no rosto duro, contra a densa nuvem já sem limites. Bernardo gritou-lhe imprevisivelmente: Que horas são, Ireneo? Sem consultar o céu, sem deter-se, o outro respondeu: Faltam quatro minutos para as oito, jovem Bernardo Juan Francisco. A voz era aguda, zombeteira.
Sou tão distraído que o diálogo a que acabo de me referir não teria chamado a minha atenção se não o tivesse enfatizado o meu primo, a quem estimulavam (creio) certo orgulho local, e o desejo de mostrar-se indiferente à réplica tripartite do outro.
Disse-me que o rapaz do desfiladeiro era um tal Ireneo Funes, conhecido por algumas peculiaridades como a de não se dar com ninguém e a de saber sempre a hora, como um relógio. Complementou dizendo que era filho de uma passadeira do povo, Maria Clementina Funes, e que alguns diziam que seu pai era um médico de saladeiro, um inglês O’Connor, e outros um domador ou rastreador do departamento de Salto. Vivia com a sua mãe, na curva da quinta dos Laureles.
Nos anos de 1885 e 1886 veraneamos na cidade de Montevideo. Em 1887 voltei a Fray Bentos. Perguntei, como é natural, por todos os conhecidos e, finalmente, pelo "cronométrico Funes". Responderam-me que um redomão o havia derrubado na estância de San Francisco, e que havia se tornado paralítico, sem esperança. Recordo a sensação de incômoda magia que a notícia despertou-me: a única vez que eu o vi, vínhamos a cavalo de San Francisco e ele andava em um lugar alto; o fato, na boca do meu primo Bernardo, tinha muito de sonho elaborado com elementos anteriores. Disseram-me que não se movia da cama, os olhos repousados na figueira do fundo ou em uma teia de aranha. Ao entardecer, permitia que o levassem para perto da janela. Levava a arrogância ao ponto de simular que era benéfico o golpe que o havia fulminado... Duas vezes o vi atrás da relha, que toscamente enfatizava a sua condição de eterno prisioneiro; uma, imóvel, com os olhos cerrados; outra, imóvel também, absorto na contemplação de um aromático galho de santonina.
Não sem um certo orgulho havia iniciado naquele tempo o estudo metódico do latim. A minha mala incluía o De viris illustribus de Lhamond, o Thesaurus de Quicherat, os comentários de Júlio César e um volume ímpar da Naturalis historia de Plínio, que excedia (e continua excedendo) as minhas modestas virtudes de latinista. Tudo se propaga em um povoado; Ireneo, em seu rancho das orillas, não tardou em enteirar-se da chegada desses livros anômalos. Dirigiu-me uma carta florida e cerimoniosa, na qual recordava no encontro, desditosamente fugaz, "do dia 7 de Fevereiro de 1884", ponderava os gloriosos serviços que Don Gregorio Haedo, meu tio, falecido nesse mesmo ano, "havia prestado às duas pátrias na valorosa jornada deItuzaingó", e me solicitava o empréstimo de qualquer dos volumes, acompanhado de um dicionário "para a boa intelecção do texto original, pois todavia ignoro o latim". Prometia devolvê-los em bom estado, quase imediatamente. A letra era perfeita, muito perfilada; a ortografia, do tipo que Andrés Bello preconizou: i por y, j por g. A princípio, suspeitei naturalmente tratar-se de uma zombaria. Meus primos asseguraram que não, que eram coisas de Ireneo. Não sabia se atribuía ao atrevimento, à ignorância ou à estupidez a idéia de que o árduo latim não requeresse mais instrumento do que um dicionário; para desencorajá-lo completamente enviei-lhe o Gradus ad parnassum de Quicherat e a obra de Plínio.
No dia 14 de Fevereiro telegrafaram-me de Buenos Aires que voltasse imediatamente, pois meu pai não estava "nada bem". Deus me perdôe; o prestígio de ser o destinatário de um telegrama urgente, o desejo de comunicar a toda Fray Bentos a contradição entre a forma negativa da notícia e o peremptório advérbio, a tentação de dramatizar a minha dor, fingindo um estoicismo viril, talvez distraíram-me de toda a possibilidade de dor. Ao fazer a mala, notei que me faltavam o Gradus e o primeiro tomo da Naturalis historia. O "Saturno" sarpava no dia seguinte, pela manhã; essa noite, depois da janta, dirigi-me à casa de Funes. Assombrou-me que a noite fora não menos pesada que o dia.
No humilde rancho, a mãe de Funes recebeu-me.
Disse-me que Ireneo estava no quarto dos fundos e que não me estranhasse encontrá-lo às escuras, pois Ireneo preferia passar as horas mortas sem acender a vela. Atrevessei o pátio de lajota, o pequeno corredor; cheguei ao segundo pátio. Havia uma parreira; a escuridão pareceu-me total. Ouvi prontamente a voz alta e zombeteira de Ireneo. Essa voz falava em latim; essa voz (que vinha das trevas) articulava com moroso deleite um discurso, ou prece, ou encantamento. Ressoavam as sílabas romanas no pátio de terra; o meu temor as tomava por indecifráveis, intermináveis; depois, no enorme diálogo dessa noite, soube que formavam o primeiro parágrafo do 24o capítulo do 7o livro da Naturalis historia. O tema desse capítulo é a memória: as últimas palavras foram ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum.
Sem a menor mudança de voz, Ireneo disse-me o que se passara. Estava na cama, funmando. Parece-me que não vi o seu rosto até a aurora; creio lembrar-me da brasa momentânea do cigarro. O quarto exalava um vago odor de umidade. Sentei-me, repeti a estória do telegrama e da enfermidade de meu pai.
Chego, agora, ao ponto mais difícil do meu relato. Este (é bem verdade que já o sabe o leitor) não tem outro argumento senão esse diálogo de há já meio século. Não tratarei de reproduzir as suas palavras, irrecuperáveis agora. Prefiro resumir com veracidade as muitas coisas que me disse Ireneo. O estilo indireto é remoto e débil; eu sei que sacrifico a eficácia do meu relato; que os meus leitores imaginem os períodos entrecortados que me abrumaram essa noite.
Ireneo começou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de memória prodigiosa registrados pela Naturalis historia: Ciro, rei dos persas, que sabia chamar pelo nome todos os soldados de seus exércitos; Metríadates e Eupator, que administrava a justiça dos 22 idiomas de seu império; Simónides, inventor da mnemotecnia; Metrodoro, que professava a arte de repetir com fidelidade o escutado de uma só vez. Com evidente boa fé maravilhou-se de que tais casos maravilharam. Disse-me que antes daquela tarde chuvosa em que o azulego o derrubou, ele havia sido o que são todos os cristãos; um cego, um surdo, um tolo, um desmemoriado. (Tratei de recordar-lhe a percepção exata do tempo, a sua memória de nomes próprios; não me fez caso.) Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando or ecobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois averiguou que estava paralítico. Fato pouco o interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora a sua percepção e sua memória eram infalíveis.
Num rápido olhar, nós percebemos três taças em uma mesa; Funes, todos os brotos e cachos e frutas que se encontravam em uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer de trinta de abril de 1882 e podia compará-los na lembrança às dobras de um livro em pasta espanhola que só havia olhado uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no Rio Negro na véspera da ação de Quebrado. Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada a sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entresonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro, não havia jamais duvidado, mas cada reconstrução havia requerido um dia inteiro. Disse-me: Mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo. E também: Meus sonhos são como a vossa vigília. E também, até a aurora; Minha memória, senhor, é como depósito de lixo. Uma circunferência em um quadro-negro, um triângulo retângulo; um losango, são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo se passava a Ireneo com as tempestuosas crinas de um potro, com uma ponta de gado em um coxilha, com o fogo mutante e com a cinza inumerável, com as muitas faces de um morto em um grande velório. Não sei quantas estrelas via no céu.
Essas coisas me disse; nem então nem depois coloquei-as em dúvida. Naquele tempo não havia cinematógrafos nem fonógrafos; é, no entanto, verossímil e até incrível que ninguém fizera um experimento com Funes. O cérto é que vivemos postergando todo o postergável; talvez todos saibamos pronfundamente que somos imortais e que mais cedo ou mais tarde, todo homem fará todas as coisas e saberá tudo.
A voz de Funes, vinda da escuridão, seguia falando.
Disse-me que em 1886 havia elaborado um sistema original de numeração e que em muito poucos dias havia ultrapassado vinte e quatro mil. Não o havia escrito, porque o pensado uma só vez já não podia desvanecer-lhe. Seu primeiro estímulo, creio, foi o descontentamento de que os trinta e três uruguaios requeressem dois signos e três palavras, em lugar de uma só palavra e um só signo. Aplicou logo esse desparatado princípio aos outros números. Em lugar de sete mil e treze, dizia (por exemplo)Máximo Pérez; em lugar de sete mil e catorze, A Ferrovia; outros números eram Luis Melián Lafinur, Olivar, enxofre, os rústicos, a baleia, o gás, a caldeira, Napoleão, Agustín de Vedia. Em lugar de quinhentos, dizia nove. Cada palavra tinha um signo particular, uma espécie de marca; as últimas eram muito complicadas... Eu tratei de explicar-lhe que essa rapsódia de vozes desconexas era precisamente o contrário de um sistema de numeração. Eu lhe observei que dizer 365 era dizer três centenas, seis dezenas, cinco unidades; análise que não existe nos "números". O Negro Timoteo a manta de carne. Funes não me entendeu ou não quis me entender.
Locke, no século XVII, postulou (ou reprovou) um idioma impossível no qual cada coisa individual, cada pedra, cada pássaro e cada ramo tivesse um nome próprio; Funes projetou alguma vez um idioma análogo, mas o desejou por parecer-lhe demasiado geral, demasiado ambígüo. De fato, Funes não apenas recordava cada folha de cada árvore de cada monte, mas também cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças, que definiria logo por cifras. Dissuadiram-no duas considerações: a consciência de que a tarefa era interminável, a consciência de que era inútil. Pensou que na hora da morte não havia acabo ainda de classificar todas as lembranças da infância.
Os dois projetos que foi indicado (um vocabulário infinito para a série natural dos números, um inútil catálogo mental de todas as imagens da lembrança) são insensatos, mas revelam certa balbuciante grandeza. Nos deixam vislumbrar ou inferir o vertiginoso mundo de Funes. Este, não o esqueçamos, era quase incapaz de idéias gerais, platônicas. Não apenas lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abarcava tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; perturbava-lhe que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quatro (visto de frente). Sua própria face no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no cada vez. Comenta Swift que o imperador de Lilliputdiscernia o movimento do ponteiro dos minutos; Funes discernia continuamente os avanços tranqüilos da corrupção, das cáries, da fatiga. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intolerantemente preciso. Babilônia, Londres e Nova York têm preenchido com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém, em suas torres populosas ou em suas avenidas urgentes, sentira o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Ireneo, em seu pobre subúrbio sulamericano. Era-llhe muito difícil dormir. Dormir é distrair-se do mundo; Funes, de costas na cama, na sombra, figurava a si mesmo cada rachadura e cada moldura das casas distintas que o redoavam. (Repito que o menos importante das suas lembranças era mais minucioso e mais vivo que nossa percepção de um gozo físico ou de um tormento físico). Em direção ao leste, em um trecho nãopavimentado, havia casas novas, desconhecidas. Funes as imaginava negras, compactas, feitas de treva homogênea; nessa direção virava o rosto para dormir. Também era seu costume imaginar-se no fundo do rio, mexido e anulado pela corrente.
Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.
A receosa claridade da madrugada entrou pelo pátio de terra.
Então vi a face da voz que toda a noite havia falado. Ireneo tinha dezenove anos; havia nascido em 1868; pareceu-me tão monumental como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior às profecias e às pirâmides. Pensei que cada uma das minhas palavras (que cada um dos meus gestos) perduraria em sua implacável memória; entorpeceu-me o temor de multiplicar trejeitos inúteis.
Ireneo Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar.

Tradução de Marco Antonio Franciotti
(in Jorge Luis Borges: Prosa Completa, Barcelona: Ed. Bruguera, 1979, vol. 1., pgs. 477-484).