Super-Heróis e Axiologia
Nildo Viana
O sucesso das histórias em
quadrinhos no século 20 é espetacular. Elas começaram a ocupar um espaço cada
vez maior a partir do início deste século. Um conjunto de pesquisadores
começaram a se debruçar sobre elas e fornecer sua explicação, tais como
sociólogos, semiólogos, etc. Uma das constatações que se pode retirar do estudo
das histórias em quadrinhos é a de que ela pode ser dividida em diversos
gêneros. Podemos citar os quadrinhos humorísticos, eróticos, de aventuras,
entre outros. Iremos, aqui, tratar de um desses gêneros, a saber: o gênero da
super-aventura. Neste gênero os personagens principais são os super-heróis. O
presente texto discute justamente o gênero da super-aventura e sua relação com
os valores dominantes em nossa sociedade. O presente texto é uma versão parcial
de um outro artigo no qual abordamos não apenas esta relação mas também
discutimos a relação existente entre super-heróis e inconsciente coletivo [1] ,
tema que aqui será deixado de lado e retomado em outra oportunidade.
Antes de iniciarmos nossa análise
da relação entre o mundo dos super-heróis e a axiologia, devemos definir o
gênero super-aventura. Alguns poderiam falar em gênero dos super-heróis, mas a
definição de super-herói que forneceremos a seguir irá esclarecer a escolha da
denominação de super-aventura. Em primeiro lugar, é necessário distinguir o
herói do super-herói. Em sentido amplo, o herói é um indivíduo que possui
qualidades consideradas especiais, tais como habilidades físicas, mentais ou
morais. A coragem é o atributo mais característico do herói. A qualificação de
herói, no entanto, não é reservado apenas ao mundo da fantasia, pois ele é
aplicável a indivíduos concretos que se destacam em nossa sociedade. O herói,
portanto, possui uma existência real. Ele pode ser transportado para a
literatura, as histórias em quadrinhos, o cinema, a televisão, etc. [2] . Nas
histórias em quadrinhos existem muitos heróis, tais como Tarzan, Akim, Targo,
Tex Willer, Tintin, Asterix, etc.; nos seriados de TV se pode ver Zorro (os
dois “zorros”, o capa e espada e o cowboy), James Bond, O Aranha-Negra, Daniel
Boone, Paladino, A Justiceira, etc.
O que distingue um super-herói de
um herói? A primeira resposta, e a mais simples, é a de que o herói possui
habilidades excepcionais mas humanamente possíveis enquanto que o super-herói
possui habilidades sobre-humanas. Os super-heróis são sobre-humanos e o modelo
que encarna este ser extraordinário é o Super-Homem. A palavra inglesa “super”
tem como correspondente em português a palavra “sobre”, e isto quer dizer que
Super-Homem significa sobre-homem. Mas isto é insuficiente para definir um
super-herói. Um super-herói só é um super-herói quando tem que colocar em
prática seus poderes e isto só pode ocorrer havendo uma população de seres
poderosos num mundo em que ele vive e combate, ou seja, o super-herói só pode
existir, ao contrário do herói, em constante relação com super-vilões e com
outros super-heróis. Em poucas palavras, o super-herói só pode existir havendo
um mundo habitado por seres super-poderosos.
O Super-Homem, o primeiro
super-herói criado (em 1938), vive num mundo habitado por Lex Luthor, Batman,
Aquaman, Arqueiro Verde, Coringa, etc. O Homem-Aranha convive com o Dr.
Octopus, o Homem-Areia, o Duende Verde, o Hulk, o Homem de Ferro, etc. Por
conseguinte, podemos dizer que um super-herói é: 1) um ser que possui poderes
sobre-humanos, extraordinários; 2) um ser que existe numa convivência com
outros seres extraordinários e poderosos como ele. Só pode existir um
super-herói no interior de uma Super-Aventura, ou seja, no interior de uma
aventura extraordinária envolvendo outros seres extraordinários.
Mas como surge um super-herói? De
onde vem os seus poderes sobre-humanos? Alguns já nascem com estes
super-poderes, tal como é o caso de super-heróis (e super-vilões) que são de
outros planetas ou mundos, como é o caso do Super-Homem (que veio do planeta
Clipton) e de Thor, o deus do trovão, que já nasce com super-poderes por ser um
deus. Os super-heróis que nascem humanos adquirem seus super-poderes por três
vias diferentes: a) através de suas habilidades físicas e mentais excepcionais
criam roupas e instrumentos que multiplicam suas capacidades. Este é o caso de
Batman, Homem de Ferro, Gavião Arqueiro, etc. Estes, na verdade, poderiam ser
considerados apenas heróis, mas por estarem inseridos numa super-aventura (o
mundo de Batman é o mesmo do Super-Homem, Mulher-Maravilha, Aquaman, etc.; e o
mundo do Homem de Ferro e do Gavião é o mesmo do Homem-Aranha, Thor, Surfista
Prateado, Namor, X-Men, etc.); b) através do contato com radioatividade,
energia nuclear ou cósmica, etc., eles realizam um mutação e adquirem
super-poderes. O Homem-Aranha ganha seus poderes graças a uma picada de uma aranha
contaminada com radioatividade; o Quarteto Fantástico (Sr. Fantástico, o Coisa,
Tocha Humana e Mulher-Invisível) adquire seus poderes após pousar numa ilha
infectada de radioatividade cósmica; Hulk através da exposição do cientista
Bruce Banner (no seriado da televisão, David Banner) aos raios gama; o Surfista
Prateado através dos poderes cósmicos doados a ele por Galactus; c) através da
iniciação no mundo da magia, onde se adquire poderes mágicos, tal como é o caso
do Dr. Estranho.
A partir disto podemos distinguir
três tipos de super-poderes: o poder tecnológico, o poder mágico e o poder
energético (ou “cósmico”). O poder tecnológico é uma extensão do corpo humano,
é um instrumento (roupa, arma, etc.) que permite ao seu portador ultrapassar os
limites humanos (voar, lançar raios, etc.); o poder mágico se inspira no
pensamento religioso e é daí que vem o seu caráter misterioso, inclusive de sua
origem; o poder energético é um poder que se extrai da natureza, ou seja, o ser
humano (ou qualquer outro ser) se apossa da energia (cósmica ou qualquer outra)
e ela se torna uma parte dele. A diferença entre o poder tecnológico e o poder
energético ou mágico se encontra no fato de que o portador do primeiro depende
do seu aparato tecnológico (Batman depende de sua roupa, cinto, carro, etc.; o
Homem de Ferro depende de sua armadura) enquanto que o portador do poder
energético ou mágico contém o poder em sua própria estrutura orgânica. No mundo
dos super-heróis a magia (o sobrenatural) e a ciência (o tecnológico) se
misturam e mantêm suas especificidades.
Os super-heróis não são apenas
aquilo que se vê nas revistas em quadrinhos. Existe algo mais que não está
escrito ou desenhado. Trata-se da emergência dos super-heróis. Por qual motivo
surgem os super-heróis? Para respondermos esta questão teremos que, brevemente,
tratar da relação entre super-heróis e sociedade. Os super-heróis surgem na
sociedade capitalista contemporânea, sendo que esta proporciona suas condições
de possibilidade. Para existir histórias em quadrinhos é necessário existir
meios de produção (tecnologia de reprodução em massa, por exemplo) e
distribuição de histórias em quadrinhos, bem como um mercado consumidor. Mas
estas determinações estão presentes não só no gênero super-aventura mas em
qualquer outro gênero de histórias em quadrinhos. O que possibilita este gênero
específico, além das determinações gerais das histórias em quadrinhos, é o
surgimento de um mercado consumidor específico, a juventude, que começa a ser
explorado com o gênero da aventura na década de 30 (1931-37), com as histórias
fantásticas de Flash Gordon, Mandrake, Dick Tracy, Príncipe Valente, Buck
Rogers, Tarzan, Brick Bradford, Jim das Selvas, Fantasma, Garth, etc.). Além
disso, o enclausuramento dos indivíduos em instituições burocráticas e o
domínio do mercado na vida social da sociedade capitalista propiciaram uma
necessidade de se sentir algo no imaginário que não se podia sentir na
realidade. O processo de burocratização e mercantilização das relações sociais
no capitalismo cria a necessidade, através da fantasia, de superar a prisão que
se tornou a vida social e conquistar uma liberdade imaginária para compensar a
falta de liberdade real.
No presente texto deixaremos de
lado o problema das determinações sociais do gênero da super-aventura e
desenvolvermos uma análise de apenas como elas se manifestam concretamente nas
histórias, ou seja, em sua estrutura narrativa própria. Iremos destacar, neste
sentido, a relação entre super-heróis e axiologia (“ideologia”), deixando de
lado outra característica fundamental e complementar deste gênero de
quadrinhos, que é o fato dele ser uma manifestação do inconsciente coletivo, o
que será apresentado em um outro texto complementar a este.
Super-Heróis e Axiologia
A partir da definição acima de
super-herói, podemos, agora, relacionar super-herói e “ideologia” (axiologia)
[3] . Muitos já denunciaram o caráter “ideológico” dos super-heróis. Os
nazistas, por exemplo, afirmaram que “o Super-Homem é judeu”. Sem dúvida, a era
da super-aventura surge no período que antecede a Segunda Guerra Mundial. A
necessidade de heróis de carne e osso para sacrificar sua vida na guerra criou
a necessidade da fantasia dos super-heróis. O Super-Homem surgiu neste contexto
e a afirmação dos nazistas é correta em um certo sentido: o Super-Homem não é
judeu no sentido correto do termo, já que ele não possui religião (e nem no
sentido nazista e ideológico do termo, já que o Super-Homem não é um ser
humano, não poderia ser da “raça” dos judeus) mas é “judeu” no sentido de que
realmente ele é inimigo dos nazistas e defensor dos Estados Unidos, devido ao
fato dele simbolizar o “homem livre” norte-americano. Desta forma, ele assume a
característica comum de todos os “inimigos imaginários” criados pelos nazistas,
assumindo a forma de mais um “conspirador judeu”.
O caso do Capitão América é ainda
mais esclarecedor. A sua origem, na ficção, ocorre durante a Segunda Guerra
Mundial. Steve Rogers era um soldado que foi exposto a uma experiência
científica que pretendia criar super-soldados norte-americanos para combater os
seus inimigos na Segunda Guerra Mundial. Um soro foi criado para fornecer uma
força sobre-humana aos soldados e a experiência com Steve Rogers apresentou os
resultados esperados. O super-herói foi reforçado por um uniforme – que é
inspirado na bandeira dos Estados Unidos – e um escudo poderoso. Ele foi
responsável por inúmeras vitórias do exército norte-americano. Por fim, ele
caiu numa geleira e ficou congelado por décadas, até que, por acaso, Namor, O
Príncipe Submarino, em um momento de irritação com os seres humanos, joga para
longe uma imensa geleira e esta derrete libertando o Capitão América, que passa
a atuar em nossa época.
O Homem de Ferro também surgiu
num contexto de guerra – a guerra do Vietnã – e foi no contexto desta guerra
que Tony Stark foi obrigado a criar a armadura do super-herói, mais tarde
alterada para uma cor e forma diferente. O seu caráter axiológico se encontra
também na atividade enquanto indivíduo comum: “Tony passa a ser proprietário de
um poderoso complexo industrial onde aperfeiçoa e constrói armas e materiais
para guerra, em defesa do mundo capitalista” [4] .
Mas, sem dúvida, a origem, o
nome, a finalidade, a ação, as ligações com o poder oficial e o uniforme do
Capitão América fazem dele o mais axiológico dos super-heróis existentes. A
própria personalidade do Capitão América, marcada pelo “espírito de liderança”
e “bom senso”, é expressão da axiologia norte-americana segundo a qual os
Estados Unidos tem o papel de “líder mundial”. As histórias antigas do Capitão
América durante a Segunda Guerra Mundial são extremamente axiológicas, e contam
não só com a figura de Hitler e vilões poderosos (Caveira, Barão Zemo, etc.)
como aliados de confiança (Buck, O Patriota, Tocha Humana Original, Namor,
etc.) como também aliados “duvidosos” na luta contra o nazismo, tal como o
super-herói russo Guardião Vermelho, que até aparece conversando com outro
ditador famoso da época, Stálin. Foi nesta mesma época que surgiu o herói Tio
Sam, desenhado pela primeira vez pelo renomado Will Eisner e que fornece uma
idéia do clima da época, pois o seu uniforme e nome, assim como os do Capitão
América, já diz tudo.
Muitos heróis e super-heróis
foram acusados de serem axiológicos (“ideológicos”) devido ao racismo que se vê
em alguns deles e isto reflete, em alguns casos, a verdade. Estes e outros
aspectos axiológicos podem ser encontrados em inúmeros super-heróis.
O gênero da super-aventura é
acusado de ser “ideológico” (axiológico) por outros motivos, tais como o
“anonimato social” (identidade secreta), o “exemplo social” do super-herói, a
imagem da sociedade como não sendo dividida em classes sociais, “mistificação
do arsenal nuclear”, caráter atemporal das histórias [5] .
Entretanto, consideramos que
reside aí alguns exageros. O anonimato social ou identidade secreta (que,
aliás, ao contrário do que pensa este autor, acompanha a maioria mas não todos
os super-heróis), segundo o antropólogo Luís Fernando Baêta Neves, serve para
demonstrar “a possibilidade de uma continuidade entre a vida quotidiana de
qualquer indivíduo (de qualquer leitor, portanto) e a vida maravilhosa e plena
de realização, de poder e de notoriedade de um herói sacralizado” [6] . Desta
forma, há um ocultamento da personalidade civil que se expressa no exercício de
uma “profissão corriqueira”. Os super-heróis trabalham como qualquer cidadão
(Baêta Neves cita Batman como uma exceção e se esquece do Homem de Ferro, que
também é um milionário), mas não usam seus super-poderes para se manterem
financeiramente. Por qual razão? Por dois motivos, segundo este antropólogo: a)
se fizesse isso estaria rompendo com a axiologia que apresenta o trabalho como
“dignificante e enaltecedor”, que é aquele que é realizado dentro da ordem
social e das normas legais; b) a grande ação heróica aparece como “gratuita” e
como “obrigação” de todos, servindo como “exemplo social”. Desta forma, tal
aspecto da vida do super-herói se apresenta como axiológica e conservadora,
pois apresenta uma falsa consciência da realidade e faz apologia da sociedade e
dos valores existentes.
Esta visão apresenta alguns
problemas. O “anonimato social” (identidade secreta) tem sua razão de ser na
própria estrutura do gênero da super-aventura (e também dos heróis comuns) que
é uma extensão da sociedade capitalista. Qual é a razão da identidade secreta?
Em primeiro lugar, para proteger pessoas próximas do super-herói, que podem ser
vítimas de seus inimigos. Os inimigos existem devido a luta pelo poder, a
criminalidade, que são geradas pela desigualdade (social). Tendo-se em vista a
existência dos super-vilões (quase que totalmente ausentes na análise de Baêta
Neves) e a possibilidade de vingança, seqüestro, etc., nada é mais natural e
necessário – numa sociedade caracterizada pela desigualdade e que por isso
necessita de super-heróis – do que a identidade secreta. Em segundo lugar,
existem super-heróis que estão bastante próximos do poder (Batman e Robin,
Capitão América, etc.) mas a maioria possui uma relação ambígua com o poder.
Basta citar os exemplos do Homem-Aranha e do Hulk para ver isto. De onde vem
esta ambigüidade? Vem do fato de que a idéia de justiça e a ação do super-herói
nem sempre está de acordo com a justiça oficial. Esta contradição entre a
justiça oficial e a justiça do super-herói aponta para um questionamento da
ordem jurídica-institucional e isto vai contra a argumentação de Baêta Neves.
O fato do super-herói trabalhar
como qualquer cidadão não é tão genérico assim, pois, além dos capitalistas
(Batman, Homem de Ferro) existem aqueles que simplesmente não trabalham (Namor,
Hulk, Visão, Surfista Prateado, etc.). Além disso, a profissão exercida
geralmente não é de tempo integral, pois isto dificultaria a ação do
super-herói, tal como a de jornalista (Super-Homem, Homem-Aranha), advogado
(Demolidor), médico (Thor), etc., ou seja, são free-lance ou profissionais
liberais. Há também casos onde os super-heróis usam seus poderes para ganhar
dinheiro: o jornalista Peter Parker (Homem-Aranha) sempre usa suas habilidades
para tirar fotografias para vender para o jornal O Clarim; a principal
habilidade natural de Tony Stark (Homem de Ferro) é a intelectual, que ele
utiliza como empresário, mas, mais importante que isso, o Homem de Ferro se
apresenta socialmente como guarda-costas de Tony Stark (ou seja, de si mesmo em
sua identidade de homem comum) e de suas empresas, o que significa que é um
super-herói “por profissão”. Por fim, o fato da ação heróica ser “gratuita” e
ser vista como “obrigação” não é, em si mesma, conservadora ou axiológica, pois
num mundo onde tudo foi mercantilizado e o trabalho deve ser retribuído com
dinheiro, este tipo de atividade “desinteressada” (no sentido de interesse
pessoal egoísta) apresenta, na verdade, uma visão alternativa do trabalho. Daí
seu “exemplo social” não ser problemático nem axiológico.
A afirmação de que a
super-aventura transmite uma visão da sociedade como se ela não fosse dividida
em classes sociais é questionável. Sem dúvida, a super-aventura não focaliza a
questão social e nem os conflitos sociais mas nem por isso se pode dizer que
ela apresenta uma visão da sociedade como destituída de divisão social. A
própria existência de criminosos, de super-vilões, as causas das origens de
alguns super-heróis e super-vilões apontam para a existência de conflitos
sociais. O Homem-Aranha, por exemplo, após adquirir seus poderes os utiliza
para ganhar dinheiro e é somente quando um familiar seu é assassinado por um
criminoso é que ele resolve combater a criminalidade. Aí está presente a
manifestação aparente de um conflito social mas o desenvolvimento das histórias
acaba apresentando outros elementos para se observar as origens sociais da criminalidade
e, por conseguinte, a visão das injustiças sociais.
Mas aqui aparece realmente uma
visão axiológica da sociedade não tanto pelo fato de que a divisão social não é
enfatizada e sim pela própria característica do heroísmo: o individualismo. As
histórias dos super-heróis são histórias de indivíduos extraordinários e nunca
de grupos sociais, tal como se vê na historiografia tradicional, que se
caracteriza por retratar a história dos “grandes homens” e não a dos grupos
sociais. Além do individualismo se revela aí um “desenraizamento social” do
super-herói. Quando este desenraizamento se rompe, tal como no caso do Capitão
América, o super-herói se vê forçado a assumir uma posição e, portanto, ficar
ao lado de um dos grupos sociais existentes, que geralmente são os grupos
dominantes e isto reforça o seu caráter axiológico. Jacques Marny colocou que a
evolução interior dos heróis (e dos super-heróis, diríamos nós) no decorrer dos
anos apresenta a tendência para se adaptar às normas sociais. Segundo ele:
“A tendência que se verifica na
maior parte dos casos é para um alinhamento segundo as normas sociais. No
princípio duma série, o herói é o homem marginal, o franco-atirador da ordem e
da justiça. Mas há um dado momento em que colabora com as forças da ordem
organizadas, tais como o exército e a polícia do seu país. Foi o que aconteceu
com Tarzan, Flash Gordon, Superman, Terry, o Fantasma e muitos outros. Contudo,
temos de ter em conta que esta colaboração episódica foi devida, na maior parte
das vezes, as circunstâncias históricas, concretamente a última guerra mundial:
o herói mobilizou-se espontaneamente, visto que a luta contra as forças do mal
requeria a união sagrada” [7] .
Embora existam exceções (tal como
Batman, que está sempre do lado da polícia, ou seja, do poder), é o momento
histórico que faz com que o super-herói reencontre suas raízes sociais. Isto,
no caso dos heróis (e aqui distinguimos herói de super-herói), é diferente,
pois as suas características humanas extraordinárias mas não sobre-humanas
fazem dele um ser enraizado socialmente e é por isso que se pode encontrar um
herói de “esquerda” (tal como Robin Hood e Zorro, um lutando contra o
despotismo feudal e outro contra a colonização espanhola) [8] muito mais
facilmente que um super-herói de “esquerda”.
A “mistificação do arsenal
nuclear” é apontada por Baêta Neves como mais um aspecto axiológico da
super-aventura:
“Quando
se dá a atribuição de super-poderes por acidente e/ou experiência com arma
altamente desenvolvida, ocorre, também, a mistificação e fetichização do
arsenal nuclear. Isto se dá porque este é valorado de modo absoluto quanto a
seu poder e quanto à irreversibilidade dos efeito que produz. Do lado do
caráter de fetiche do instrumento nuclear pode-se ler, também, uma crítica
liberal à atuação deste sobre o ser humano, que se deforma ao se expor a ele.
Assim, dentro de uma posição tecnocrática dominante, aparece uma palavra de
crítica que visa aplacar e não destruir a vigência da ideologia tecnocrática,
mitificadora da técnica e da ciência” [9] .
Existe na super-aventura, sem
dúvida, uma visão ambígua da ciência (no que se refere às ciências naturais).
Basta ver os casos de Hulk, X-Men, o Quarteto Fantástico, etc., para se
compreender isto. O Hulk e o Coisa (membro do Quarteto Fantástico) são exemplos
de uma crítica dos efeitos da ciência: a deformação do corpo humano. Neste caso
se vê a contradição entre um efeito estético indesejável (ambos se transformam
em figuras monstruosas do tipo Frankstein, que pode ser considerado o modelo
seguido e o tema clássico da simbolização artística dos monstros que a ciência
pode criar) e a potência adquirida. Estes dois super-heróis simbolizam a ambigüidade
do desenvolvimento científico e que o “avanço” provocado por ela (domínio sobre
a natureza e a sociedade) traz em si aspectos indesejáveis (a feiúra, mas que
no caso pode ser considerado um símbolo da desumanização e do sentimento de
culpa que acompanha a ciência, o que leva o indivíduo a se sentir “feio”). Mas,
a nosso ver, o que a super-aventura faz não é uma crítica liberal à ciência e
sim uma reprodução do caráter contraditório da ciência, que, ao mesmo tempo,
realiza progresso e retrocesso, desenvolve o controle e o descontrole sobre o
meio ambiente onde vive a humanidade (transformando-o e destruindo-o), melhora
e piora a qualidade de vida e assim por diante.
A última questão colocada por
Baêta Neves é o caráter atemporal da super-aventura. Os super-heróis estão fora
da história, pois não vivem eventos em sua vida que se desenvolvem
cronologicamente. Geralmente não se formam, não se casam, não tem filhos, etc.
O mesmo ocorre com a sociedade onde eles vivem. Em primeiro lugar, é preciso
colocar que existem muitas exceções e que recentemente isto começou a mudar,
basta citar o casamento do Homem-Aranha como exemplo. Em segundo lugar, a
estrutura própria da super-aventura dificulta o desenvolvimento de certos
acontecimentos, pois casamento, filhos, etc., criam obstáculos para a ação do
super-herói (tal como o trabalho em tempo integral). Em terceiro lugar, se o
super-herói se desenvolvesse normalmente como um indivíduo comum ele seria
muito mais axiológico do que já é [10] . Em quarto lugar, se a sociedade se
transformasse radicalmente, acabando com as desigualdades sociais e por
conseguinte com a razão de ser da criminalidade e dos super-vilões, então
acabaria a razão de ser do super-herói. A super-aventura possui uma
temporalidade que é marcada pela seqüência sucessiva de aventuras, onde o
passado não pode mais voltar mas explica o motivo de muitas ações presentes.
Isto é axiológico? Ora, se imaginarmos um super-herói revolucionário que
interfere nas relações sociais buscando a transformação social, a mesma coisa
ocorreria. Se a desigualdade acabasse, o super-herói também acabaria. Isto é
próprio da estrutura da super-aventura.
Mas uma análise do mundo dos
super-heróis deve também distinguir entre os “mundos” povoados por diferentes
super-heróis, tal como o mundo Marvel – da Marvel Comics, criadora do
Homem-Aranha, Os Inumanos, Hércules, Magneto, Demolidor, Hulk, etc. –, o mundo
Detective Comics (conhecida pela sigla DC) – criadora do Super-Homem, Flash,
Lanterna Verde, Homem-Borracha, Batman e outros. Estas são as duas mais
poderosas fábricas de super-heróis. A DC Comics produz super-heróis e histórias
não só mais simples como também mais axiológicas. A recém-criada Image (fundada
por ex-desenhistas e roteiristas da Marvel) vem ganhando espaço e competindo
com ambas com sua safra de super-heróis, cujo mais famoso é Spawn, que se
transportou recentemente para as telas do cinema (Spawn, O Soldado do Inferno),
mas também apresenta outros como Dragon, Witchblade, Angela, etc. Esta nova
fábrica de super-heróis se caracteriza pela alta qualidade do desenho e pela
pobreza dos roteiros, além de possuir um caráter muito mais axiológico que as
outras duas (para se ter uma idéia, a maioria dos seus super-heróis trabalham
para a polícia e suas histórias são recheadas de anticomunismo grosseiro – o
que não deixa de ser estranho, tendo em vista que ela surgiu nos anos 90 e se
comporta como se o marcartismo ainda estivesse em moda e a URSS existisse e
fosse ameaça — e pela expressão fascista “comuna” para se referir aos
“comunistas”). Também poderíamos citar os fracassados super-heróis brasileiros,
tais como Fantastic Man, Raio Negro, Mylar, Fantasma Negro, Capitão Atlas,
Capitão Estrela, Mistyko, Hydroman, etc.
A sua estrutura, então, é que é
conservadora? Julgamos que não, pois a estrutura da super-aventura reproduz a
sociedade capitalista contemporânea e somente surgiu devido as condições
sociais originadas dela. Mas a permanência da estrutura da super-aventura (e da
própria super-aventura, o que é a mesma coisa) é resultado das contradições da
própria sociedade contemporânea e o conservadorismo seria a ilusão de que não
há mais contradições sociais e que, por isso, não há mais necessidade de
super-heróis e super-aventuras.
Consideramos que a raiz dos
equívocos de Baêta Neves se encontra no fato dele não ser um leitor de
histórias em quadrinhos. Ele mesmo reconhece que sua análise foi baseada no
Pequeno Dicionário dos Super-Heróis, artigo publicado na Revista Vozes, de
Moacir Cirne, um especialista em semiologia dos quadrinhos. Fundamentar-se em
um texto desta natureza sem ir à fonte é questionável, pois uma análise não
pode se basear só em descrições estáticas retiradas de um dicionário, pois deve
também ter acesso ao movimento vivo da super-aventura. Neste caso, uma tal
análise só poderia provocar equívocos.
Por último, podemos dizer que a
preocupação com o caráter axiológico da super-aventura e das histórias em
quadrinhos em geral é legítima quando nos dedicamos a pesquisar tal fenômeno
social; porém, todas as formas de manifestações culturais que são de ampla
circulação (e que são transmitidas através de empresas oligopolistas de meios
de comunicação de massas) são axiológicas e por isso a análise da
super-aventura deve ir além da constatação óbvia do seu caráter axiológico.
Deve desvendar seu processo de formação, suas características e o que mais
existe no seu interior. Assim, a presente análise é incompleta. Aqui parece
fundamental compreender a relação entre o mundo dos super-heróis e o
inconsciente coletivo, tal como o definimos em outro lugar [11] , de forma
diferenciada de Jung. Iremos apresentar tal relação em outro texto,
complementar a este. Aqui fica apenas a análise do caráter axiológico do mundo
dos super-heróis, um mundo imaginário que manifesta os valores dos seus
criadores, que são os valores dominantes em nossa sociedade.
Notas:
[1] Cf. VIANA, N. Super-Heróis,
Axiologia e Inconsciente Coletivo. In: Quinet, A. e outros. Psicanálise,
Capitalismo e Cotidiano. Goiânia, Edições Germinal, 2002. Este texto
passou, posteriormente, a integrar o livro "Heróis e Super-Heróis no
Mundo dos Quadrinhos" (Rio de Janeiro, Achiamé, 2005).
[2] Sobre o herói na ficção: cf.
KOTHE, Flávio. O Herói. São Paulo, Ática, s/d.
[3] Utilizaremos as expressões
ideologia e ideológico em dois sentidos. Um é o utilizado por alguns dos
“críticos” das histórias em quadrinhos e tem o significado de uma concepção
valorativa. Porém, numa perspectiva dialética, toda forma de consciência é
valorativa. Desta forma, não há sentido em acusar algo de ser valorativo, pois
tudo é valorativo. Quando se acusam as histórias em quadrinhos de serem
valorativas o que se quer dizer na verdade é que elas possuem outros valores,
que não os mesmos dos seus críticos. O que alguns querem dizer, neste caso, é,
na verdade, “axiologia” e “axiológico”. Entendemos por axiologia o padrão
dominante de valores em nossa sociedade, os valores burgueses (cf. VIANA,
Nildo. A Questão dos Valores. Revista Cultura & Liberdade. ano 2, n.
2, abril de 2002). Quando utilizarmos os termos ideológico e ideologia neste
sentido usaremos aspas para demarcar a diferença desta concepção com a nossa,
mas na maioria dos casos substituiremos estas expressões por axiologia e
axiológico. Para nós, ideologia é uma falsa consciência da realidade elaborada
de forma sistemática (que, sem dúvida, carrega valores, que são correspondentes
aos interesses da classe dominante). Sobre ideologia, cf. MARX, Karl &
ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 8a edição, São Paulo,
Hucitec, 1990.
[4] CAVALCANTI, Ionaldo. Esses
Incríveis Heróis de Papel. São Paulo, Mater, p. 68.
[5] Cf. BAÊTA NEVES, Luís
Fernando. O Paradoxo do Coringa. Rio de Janeiro, Achiamé, 1979.
[6] Cf. BAÊTA NEVES, Luís
Fernando. Ob. cit., p. 92.
[7] MARNY, Jacques. Sociologia
das Histórias aos Quadradinhos. Porto, Civilização, 1970, p. 128.
[8] Sobre o herói de “esquerda”:
KOTHE, Flávio. Ob. cit. Aqui se trata do Zorro de capa e espada e não do cowboy
(que no Brasil recebeu o mesmo nome mas que se trata de uma alteração
totalmente sem sentido, pois no original norte-americano ele é Lone Ranger,
“Cavaleiro Solitário”), este sendo considerado extremamente “ideológico” (cf.
DORFMAN, Ariel & JOFRÉ, Manuel. Super-Homem e seus Amigos do Peito.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978).
[9] BAÊTA NEVES, Luís Fernando.
Ob. cit., p. 95.
[10] Este é o caso do
Homem-Aranha que, “recentemente” (...) se casou e passou a ter preocupações
corriqueiras (ciúmes, vontade de chegar em casa mais cedo, etc.), além de um
monótono “amor perfeito”, sem conflitos internos (como se isso fosse possível
em nossa sociedade...). Isto sim é axiológico...
[11] Cf. VIANA, Nildo. Inconsciente
Coletivo e Materialismo Histórico. Goiânia, Edições Germinal, 2002.
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