O primeiro canto

O primeiro canto

quarta-feira, 14 de março de 2018

Uma lição de feminismo dada por Stephen Hawking

Em março de 2017 - uma boa lembrança de alguém que pensava e faz pensar. 



Qual é a pior coisa que se pode fazer a um adulto armado em bully? Fazer-lhe frente e ridicularizá-lo em público, sem margem para ripostar, está certamente no topo da lista pedagógica (chamemos-lhe assim). Esta semana, o Professor Stephen Hawking deu uma bela lição sobre igualdade de género a Piers Morgan, o apresentador do programa Good Morning Britain que tem sido alvo de duras críticas pelos seus consecutivos comentários sexistas. Desta vez, o tiro saiu-lhe pela culatra.
Ridicularizar as mulheres – ou melhor, as pessoas - que se assumem como feministas recorrendo a insultos como as expressões “feminazis” ou “mulheres raivosas” tem sido a posição de Piers, que ainda no início deste ano considerou a Marcha das Mulheres “um evento totalmente absurdo”. Para vincar a sua opinião, decidiu gozar com aquela gigante manifestação mundial pela igualdade de género, com mais de 100 tweets jocosos partilhados ao longo do dia 21 de janeiro. Na recente conversa com Hawking, Morgan decidiu puxar o tema alegando que, se olharmos para a ascensão política feminina no Reino Unido (com Theresa May como primeira ministra do Reino Unido e Nicola Sturgeon como primeira ministra da Escócia, por exemplo), finalmente “estamos a ter provas científicas” relacionadas com a igualdade de capacidades entre homens e mulheres. A resposta dada por Hawking a este comentário é tudo de bom.
“Não é uma prova científica sobre a igualdade de género que é necessária, mas sim a aceitação geral de que as mulheres são pelo menos iguais aos homens, ou melhores que eles”. Clara, curta e concisa, esta mensagem disse tudo. Contudo, o Professor foi ainda mais longe nesta verdadeira lição de civismo dada a Morgan e a todos os que seguem a sua redutora linha de pensamento. "Se considerarmos as mulheres de alta potência, como Angela Merkel, parece que estamos a assistir a uma mudança sísmica para as mulheres acederem a posições de alto nível na política e na sociedade", explicou Stephen Hawking, aproveitando para reforçar o que muita gente continua a não querer ver. “Mas ainda há um fosso grande entre aquelas mulheres que alcançam um alto status público e aquelas no setor privado. Congratulo-me com estes sinais de libertação das mulheres.”
“O Professor é feminista?”. Resposta: “Sim”.
Particularmente quando entrevista mulheres, Piers Morgan tem uma tendência clara para interrompê-las nas suas respostas quando o tema é igualdade de direitos e de oportunidades entre géneros (espreitem por exemplo os vídeos do programa feitos sobre a sessão fotográfica de Emma Waston para a Vanity Fair ou a entrevista a Sophie Walker, líder do Women's Equality Party). Mas com Stephen Hawking à frente, parece que lhe faltou o habitual à vontade para interromper entrevistados ou ridicularizar o tema do feminismo. Em tom de fim de tópico, ficou outra questão chave: “O Professor é feminista?”. E a resposta: “Sim. Sempre apoiei os direitos das mulheres. Fui eu que mudei o sistema de admissão de mulheres na minha faculdade, Gonville & Caius College, Cambridge. Os resultados foram totalmente positivos.”
Em poucos segundos, Stephen Hawking deu uma lição a todos os que não percebem a importância do feminismo ou que, por preguiça ou ignorância, não entendem sequer o significado da palavra e o que ela defende. Ser feminista não é querer a supremacia feminina sobre os homens. Não é uma competição, nem tampouco uma apologia à redução de direitos do universo masculino. É, sim, perceber que no mundo existe uma disparidade clara entre homens e mulheres no que toca a direitos universais, a poder de decisão e a acesso a oportunidades, por exemplo. É, como diria Stephen Hawking, aceitar de uma vez por todas que não é o género com que nascemos que nos define enquanto pessoas, seja nas nossas capacidades, seja nos nossos papéis em sociedade. E que é urgente que esse fosso de igualdade entre homens e mulheres seja reduzido. Porque uma sociedade mais par é uma sociedade mais justa, mais livre, mais digna, mais equilibrada e, é claro, também mais competitiva. E todos – todos! – temos a ganhar com isso.
Se tiverem um bocadinho espreitem a entrevista completa. Desde a igualdade de género à presidência Trump, vale sempre a pena ouvir o que Stephen Hawking tem para dizer sobre o estado do mundo.

Disponível em:

sábado, 3 de março de 2018

Leveza


Leve é o pássaro:
e a sua sombra voante,
mais leve.

E a cascata aérea
de sua garaganta,
mais leve.

E o que se lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto,
mais leve.

E o desejo rápido
desse mais antigo instante,
mais leve.

E a fuga invisível
do amargo passante,
mais leve.

Cecília Meireles
 

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Política e esporte



 Por Walter Casagrande


Vivemos tempos estranhos. Comemora-se a intervenção das Forças Armadas no Rio como se fosse uma solução eficaz e esquece-se de todas as últimas vezes (e não foram poucas nesta década) que blindados andaram pelas ruas e vielas da cidade e em nada resolveram a questão da criminalidade. Um extrato privilegiado da população bate no peito sem constrangimento algum para apoiar um defensor da ditadura (sem falar nas posições do mesmo sobre mulheres e homossexuais) que figura entre os favoritos na corrida presidencial. Pior, banqueiros o aplaudem de pé. O que fazer?
Lamentar é a solução mais óbvia. Prefiro enfrentar com diálogo. Afinal, esta é a grande conquista da democracia. Foi por isso, para ter liberdade de pensar, falar, vestir-se como quiser, de ter o partido político que preferir e defender as bandeiras em que acreditar que lutamos durante 21 anos. Todas essas manifestações, desde que feitas dentro da lei, com respeito e valores, fazem parte de uma democracia madura.
Daí a importância do esporte como palco, sim, de discussões políticas. Por que os atletas deveriam se abster? A democracia dá o direito a donas de casa, cabeleireiros, taxistas, apresentadores de televisão e também a atletas profissionais de se manifestarem politicamente. Faz parte do jogo.
Recentemente, recebi críticas e elogios por uma coluna publicada aqui na GQ sobre o apoio de jogadores de clubes paulistas ao mesmo candidato que cito no início deste texto. Os críticos me acusaram de tentar censurá-los. Não era isso. A minha posição foi apenas de cobrar responsabilidade dos atletas, para que fossem claros na defesa de seus ideais políticos. Assim como, na maioria das vezes, o são quando o assunto é religião.
É preciso valorizar o palco que o esporte oferece. Foi isso que Tommie Smith e John Carlos, ao repetir o gesto consagrado pelos Panteras Negras, fizeram durante os Jogos Olímpicos do México, em 1968, ao mostrar o quão urgente era a discussão sobre o racismo. Muhammad Ali, o maior boxeador de todos os tempos, negou-se a combater no Vietnã justamente por saber o valor que a decisão de um ídolo do esporte teria em torno do debate da guerra. Mais recentemente, atletas da NBA demostraram grande insatisfação com o governo de Donald Trump. Jogadores de futebol americano foram na mesma linha e muitos passaram a se ajoelhar durante a execução do hino nacional.
Por aqui, lembro sempre da Democracia Corinthiana. Sim, porque junto com Sócrates, meu grande parceiro, participei dela, e isso me enche de orgulho, mas mais ainda por acreditar que fomos peça importante para aumentar o coro que exigia o retorno da democracia. Eu tenho orgulho de ter participado, em 1979, de um show a favor da anistia dos presos políticos. Também me orgulho de, em 1982, ter feito um show para pedir a redemocratização do país. Eu tenho orgulho de ter participado do movimento das Diretas Já. E tudo isso enquanto era atleta profissional, jogador do Corinthians. Por que hoje eu não poderia fazer isso? Quem proíbe o jogador de participar disso está, indiretamente, apoiando ideias reacionárias.
E o caminho é inverso. Em um momento tão polarizado, extravasar isso é essencial. Só com o diálogo chegaremos a algum lugar. Espero que o esporte em geral continue exercendo sua função de servir de palco para ampliar as grandes discussões de um país, do mundo, para além da diversão.
Viva a democracia!

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Não confunda amor e abuso


The fish and I - Babak Habibifar

De uma simplicidade emocionante. Incrível como esse curta nos silencia. 

 

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Inundação - Mia Couto

Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito, sim, por educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança.

A casa, aquela casa nossa, era morada mais da noite que do dia. Estranho, dirão. Noite e dia não são metades, folha e verso? Como podiam o claro e o escuro repartir-se em desigual? Explico. Bastava que a voz de minha mãe em canto se escutasse para que, no mais lúcido meio-dia, se fechasse a noite. Lá fora, a chuva sonhava, tamborileira. E nós éramos meninos para sempre.

Certa vez, porém, de nossa mãe escutamos o pranto. Era um choro delgadinho, um fio de água, um chilrear de morcego. Mão em mão, ficamos à porta do quarto dela. Nossos olhos boquiabertos. Ela só suspirou:

– Vosso pai jã não é meu.

Apontou o armário e pediu que o abríssemos. A nossos olhos, bem para além do espanto, se revelaram os vestidos envelhecidos que meu pai há muito lhe ofertara. Bastou, porém, a brisa da porta se abrindo para que os vestidos se desfizessem em pó e, como cinzas, se enevoassem pelo chão. Apenas os cabides balançavam, esqueletos sem corpo.

– E agora – disse a mãe -, olhem para estas cartas.

Eram apaixonados bilhetes, antigos, que minha mãe conservava numa caixa. Mas agora os papéis estavam brancos, toda a tinta se desbotara.

– Ele foi. Tudo foi.

Desde então, a mãe se recusou a deitar no leito. Dormia no chão. A ver se o rio do tempo a levava, numa dessas invisíveis enxurradas. 

Assim dizia, queixosa. Em poucos dias, se aparentou às sombras, desleixando todo seu volume.

– Quero perder todas as forças. Assim não tenho mais esperas.

– Durma na cama, mãe.

– Não quero. Que a cama é engolidora de saudade.

E ela queria guardar aquela saudade. Como se aquela ausência fosse o único troféu de sua vida.

Não tinham passado nem semanas desde que meu pai se volatilizara quando, numa certa noite, não me desceu o sono. Eu estava pressentimental, incapaz de me guardar no leito. Fui ao quarto dos meus pais. Minha mãe lá estava, envolta no lençol até à cabeça. Acordei-a. O seu rosto assomou à penumbra doce que pairava. Estava sorridente.

– Não faça barulho, meu filho. Não acorde seu pai.

– Meu pai?

– Seu pai esta aqui, muito comigo.

Levantou-se com cuidado de não desalinhar o lençol. Como se ocultasse algo debaixo do pano. Foi à cozinha e serviu-se de água. Sentei-me com ela, na mesa onde se acumulavam as panelas do jantar.

– Como eu o chamei, quer saber?

Tinha sido o seu cantar. Que eu não tinha notado, porque o fizera em surdina. Mas ela cantara, sem parar, desde que ele saíra. E agora, olhando o chão da cozinha, ela dizia:

– Talvez uma minha voz seja um pano; sim, um pano que limpa o tempo.

No dia seguinte, a mãe cumpria a vontade de domingo, comparecida na igreja, seu magro joelho cumprimentando a terra. Sabendo que ela iria demorar eu voltei ao seu quarto e ali me deixei por um instante. A porta do armário escancarada deixava entrever as entranhas da sombra. Me aproximei. A surpresa me abalou: de novo se enfunavam os vestidos, cheios de formas e cores. De imediato, me virei a espreitar a caixa onde se guardavam as lembranças de namoro de meus pais. A tinta regressara ao papel, as cartas de meu velho pai se haviam recomposto? Mas não abri. Tive medo. Porque eu, secretamente, sabia a resposta.

Saí no bico do pé, quando senti minha mãe entrando. E me esgueirei pelo quintal, deitando passo na estrada de areia. Ali me retive a contemplar a casa como que irrealizada em pintura. Entendi que por muita que fosse a estrada eu nunca ficaria longe daquele lugar. Nesse instante, escutei o canto doce de minha mãe. Foi quando eu vi a casa esmorecer, engolida por um rio que tudo inundava.

Mia Couto em  O Fio das Missangas

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Super-Heróis e Axiologia



Super-Heróis e Axiologia
Nildo Viana

O sucesso das histórias em quadrinhos no século 20 é espetacular. Elas começaram a ocupar um espaço cada vez maior a partir do início deste século. Um conjunto de pesquisadores começaram a se debruçar sobre elas e fornecer sua explicação, tais como sociólogos, semiólogos, etc. Uma das constatações que se pode retirar do estudo das histórias em quadrinhos é a de que ela pode ser dividida em diversos gêneros. Podemos citar os quadrinhos humorísticos, eróticos, de aventuras, entre outros. Iremos, aqui, tratar de um desses gêneros, a saber: o gênero da super-aventura. Neste gênero os personagens principais são os super-heróis. O presente texto discute justamente o gênero da super-aventura e sua relação com os valores dominantes em nossa sociedade. O presente texto é uma versão parcial de um outro artigo no qual abordamos não apenas esta relação mas também discutimos a relação existente entre super-heróis e inconsciente coletivo [1] , tema que aqui será deixado de lado e retomado em outra oportunidade.
Antes de iniciarmos nossa análise da relação entre o mundo dos super-heróis e a axiologia, devemos definir o gênero super-aventura. Alguns poderiam falar em gênero dos super-heróis, mas a definição de super-herói que forneceremos a seguir irá esclarecer a escolha da denominação de super-aventura. Em primeiro lugar, é necessário distinguir o herói do super-herói. Em sentido amplo, o herói é um indivíduo que possui qualidades consideradas especiais, tais como habilidades físicas, mentais ou morais. A coragem é o atributo mais característico do herói. A qualificação de herói, no entanto, não é reservado apenas ao mundo da fantasia, pois ele é aplicável a indivíduos concretos que se destacam em nossa sociedade. O herói, portanto, possui uma existência real. Ele pode ser transportado para a literatura, as histórias em quadrinhos, o cinema, a televisão, etc. [2] . Nas histórias em quadrinhos existem muitos heróis, tais como Tarzan, Akim, Targo, Tex Willer, Tintin, Asterix, etc.; nos seriados de TV se pode ver Zorro (os dois “zorros”, o capa e espada e o cowboy), James Bond, O Aranha-Negra, Daniel Boone, Paladino, A Justiceira, etc.
O que distingue um super-herói de um herói? A primeira resposta, e a mais simples, é a de que o herói possui habilidades excepcionais mas humanamente possíveis enquanto que o super-herói possui habilidades sobre-humanas. Os super-heróis são sobre-humanos e o modelo que encarna este ser extraordinário é o Super-Homem. A palavra inglesa “super” tem como correspondente em português a palavra “sobre”, e isto quer dizer que Super-Homem significa sobre-homem. Mas isto é insuficiente para definir um super-herói. Um super-herói só é um super-herói quando tem que colocar em prática seus poderes e isto só pode ocorrer havendo uma população de seres poderosos num mundo em que ele vive e combate, ou seja, o super-herói só pode existir, ao contrário do herói, em constante relação com super-vilões e com outros super-heróis. Em poucas palavras, o super-herói só pode existir havendo um mundo habitado por seres super-poderosos.
O Super-Homem, o primeiro super-herói criado (em 1938), vive num mundo habitado por Lex Luthor, Batman, Aquaman, Arqueiro Verde, Coringa, etc. O Homem-Aranha convive com o Dr. Octopus, o Homem-Areia, o Duende Verde, o Hulk, o Homem de Ferro, etc. Por conseguinte, podemos dizer que um super-herói é: 1) um ser que possui poderes sobre-humanos, extraordinários; 2) um ser que existe numa convivência com outros seres extraordinários e poderosos como ele. Só pode existir um super-herói no interior de uma Super-Aventura, ou seja, no interior de uma aventura extraordinária envolvendo outros seres extraordinários.
Mas como surge um super-herói? De onde vem os seus poderes sobre-humanos? Alguns já nascem com estes super-poderes, tal como é o caso de super-heróis (e super-vilões) que são de outros planetas ou mundos, como é o caso do Super-Homem (que veio do planeta Clipton) e de Thor, o deus do trovão, que já nasce com super-poderes por ser um deus. Os super-heróis que nascem humanos adquirem seus super-poderes por três vias diferentes: a) através de suas habilidades físicas e mentais excepcionais criam roupas e instrumentos que multiplicam suas capacidades. Este é o caso de Batman, Homem de Ferro, Gavião Arqueiro, etc. Estes, na verdade, poderiam ser considerados apenas heróis, mas por estarem inseridos numa super-aventura (o mundo de Batman é o mesmo do Super-Homem, Mulher-Maravilha, Aquaman, etc.; e o mundo do Homem de Ferro e do Gavião é o mesmo do Homem-Aranha, Thor, Surfista Prateado, Namor, X-Men, etc.); b) através do contato com radioatividade, energia nuclear ou cósmica, etc., eles realizam um mutação e adquirem super-poderes. O Homem-Aranha ganha seus poderes graças a uma picada de uma aranha contaminada com radioatividade; o Quarteto Fantástico (Sr. Fantástico, o Coisa, Tocha Humana e Mulher-Invisível) adquire seus poderes após pousar numa ilha infectada de radioatividade cósmica; Hulk através da exposição do cientista Bruce Banner (no seriado da televisão, David Banner) aos raios gama; o Surfista Prateado através dos poderes cósmicos doados a ele por Galactus; c) através da iniciação no mundo da magia, onde se adquire poderes mágicos, tal como é o caso do Dr. Estranho.
A partir disto podemos distinguir três tipos de super-poderes: o poder tecnológico, o poder mágico e o poder energético (ou “cósmico”). O poder tecnológico é uma extensão do corpo humano, é um instrumento (roupa, arma, etc.) que permite ao seu portador ultrapassar os limites humanos (voar, lançar raios, etc.); o poder mágico se inspira no pensamento religioso e é daí que vem o seu caráter misterioso, inclusive de sua origem; o poder energético é um poder que se extrai da natureza, ou seja, o ser humano (ou qualquer outro ser) se apossa da energia (cósmica ou qualquer outra) e ela se torna uma parte dele. A diferença entre o poder tecnológico e o poder energético ou mágico se encontra no fato de que o portador do primeiro depende do seu aparato tecnológico (Batman depende de sua roupa, cinto, carro, etc.; o Homem de Ferro depende de sua armadura) enquanto que o portador do poder energético ou mágico contém o poder em sua própria estrutura orgânica. No mundo dos super-heróis a magia (o sobrenatural) e a ciência (o tecnológico) se misturam e mantêm suas especificidades.
Os super-heróis não são apenas aquilo que se vê nas revistas em quadrinhos. Existe algo mais que não está escrito ou desenhado. Trata-se da emergência dos super-heróis. Por qual motivo surgem os super-heróis? Para respondermos esta questão teremos que, brevemente, tratar da relação entre super-heróis e sociedade. Os super-heróis surgem na sociedade capitalista contemporânea, sendo que esta proporciona suas condições de possibilidade. Para existir histórias em quadrinhos é necessário existir meios de produção (tecnologia de reprodução em massa, por exemplo) e distribuição de histórias em quadrinhos, bem como um mercado consumidor. Mas estas determinações estão presentes não só no gênero super-aventura mas em qualquer outro gênero de histórias em quadrinhos. O que possibilita este gênero específico, além das determinações gerais das histórias em quadrinhos, é o surgimento de um mercado consumidor específico, a juventude, que começa a ser explorado com o gênero da aventura na década de 30 (1931-37), com as histórias fantásticas de Flash Gordon, Mandrake, Dick Tracy, Príncipe Valente, Buck Rogers, Tarzan, Brick Bradford, Jim das Selvas, Fantasma, Garth, etc.). Além disso, o enclausuramento dos indivíduos em instituições burocráticas e o domínio do mercado na vida social da sociedade capitalista propiciaram uma necessidade de se sentir algo no imaginário que não se podia sentir na realidade. O processo de burocratização e mercantilização das relações sociais no capitalismo cria a necessidade, através da fantasia, de superar a prisão que se tornou a vida social e conquistar uma liberdade imaginária para compensar a falta de liberdade real.
No presente texto deixaremos de lado o problema das determinações sociais do gênero da super-aventura e desenvolvermos uma análise de apenas como elas se manifestam concretamente nas histórias, ou seja, em sua estrutura narrativa própria. Iremos destacar, neste sentido, a relação entre super-heróis e axiologia (“ideologia”), deixando de lado outra característica fundamental e complementar deste gênero de quadrinhos, que é o fato dele ser uma manifestação do inconsciente coletivo, o que será apresentado em um outro texto complementar a este.

Super-Heróis e Axiologia

A partir da definição acima de super-herói, podemos, agora, relacionar super-herói e “ideologia” (axiologia) [3] . Muitos já denunciaram o caráter “ideológico” dos super-heróis. Os nazistas, por exemplo, afirmaram que “o Super-Homem é judeu”. Sem dúvida, a era da super-aventura surge no período que antecede a Segunda Guerra Mundial. A necessidade de heróis de carne e osso para sacrificar sua vida na guerra criou a necessidade da fantasia dos super-heróis. O Super-Homem surgiu neste contexto e a afirmação dos nazistas é correta em um certo sentido: o Super-Homem não é judeu no sentido correto do termo, já que ele não possui religião (e nem no sentido nazista e ideológico do termo, já que o Super-Homem não é um ser humano, não poderia ser da “raça” dos judeus) mas é “judeu” no sentido de que realmente ele é inimigo dos nazistas e defensor dos Estados Unidos, devido ao fato dele simbolizar o “homem livre” norte-americano. Desta forma, ele assume a característica comum de todos os “inimigos imaginários” criados pelos nazistas, assumindo a forma de mais um “conspirador judeu”.
O caso do Capitão América é ainda mais esclarecedor. A sua origem, na ficção, ocorre durante a Segunda Guerra Mundial. Steve Rogers era um soldado que foi exposto a uma experiência científica que pretendia criar super-soldados norte-americanos para combater os seus inimigos na Segunda Guerra Mundial. Um soro foi criado para fornecer uma força sobre-humana aos soldados e a experiência com Steve Rogers apresentou os resultados esperados. O super-herói foi reforçado por um uniforme – que é inspirado na bandeira dos Estados Unidos – e um escudo poderoso. Ele foi responsável por inúmeras vitórias do exército norte-americano. Por fim, ele caiu numa geleira e ficou congelado por décadas, até que, por acaso, Namor, O Príncipe Submarino, em um momento de irritação com os seres humanos, joga para longe uma imensa geleira e esta derrete libertando o Capitão América, que passa a atuar em nossa época.
O Homem de Ferro também surgiu num contexto de guerra – a guerra do Vietnã – e foi no contexto desta guerra que Tony Stark foi obrigado a criar a armadura do super-herói, mais tarde alterada para uma cor e forma diferente. O seu caráter axiológico se encontra também na atividade enquanto indivíduo comum: “Tony passa a ser proprietário de um poderoso complexo industrial onde aperfeiçoa e constrói armas e materiais para guerra, em defesa do mundo capitalista” [4] .
Mas, sem dúvida, a origem, o nome, a finalidade, a ação, as ligações com o poder oficial e o uniforme do Capitão América fazem dele o mais axiológico dos super-heróis existentes. A própria personalidade do Capitão América, marcada pelo “espírito de liderança” e “bom senso”, é expressão da axiologia norte-americana segundo a qual os Estados Unidos tem o papel de “líder mundial”. As histórias antigas do Capitão América durante a Segunda Guerra Mundial são extremamente axiológicas, e contam não só com a figura de Hitler e vilões poderosos (Caveira, Barão Zemo, etc.) como aliados de confiança (Buck, O Patriota, Tocha Humana Original, Namor, etc.) como também aliados “duvidosos” na luta contra o nazismo, tal como o super-herói russo Guardião Vermelho, que até aparece conversando com outro ditador famoso da época, Stálin. Foi nesta mesma época que surgiu o herói Tio Sam, desenhado pela primeira vez pelo renomado Will Eisner e que fornece uma idéia do clima da época, pois o seu uniforme e nome, assim como os do Capitão América, já diz tudo.
Muitos heróis e super-heróis foram acusados de serem axiológicos (“ideológicos”) devido ao racismo que se vê em alguns deles e isto reflete, em alguns casos, a verdade. Estes e outros aspectos axiológicos podem ser encontrados em inúmeros super-heróis.
O gênero da super-aventura é acusado de ser “ideológico” (axiológico) por outros motivos, tais como o “anonimato social” (identidade secreta), o “exemplo social” do super-herói, a imagem da sociedade como não sendo dividida em classes sociais, “mistificação do arsenal nuclear”, caráter atemporal das histórias [5] .
Entretanto, consideramos que reside aí alguns exageros. O anonimato social ou identidade secreta (que, aliás, ao contrário do que pensa este autor, acompanha a maioria mas não todos os super-heróis), segundo o antropólogo Luís Fernando Baêta Neves, serve para demonstrar “a possibilidade de uma continuidade entre a vida quotidiana de qualquer indivíduo (de qualquer leitor, portanto) e a vida maravilhosa e plena de realização, de poder e de notoriedade de um herói sacralizado” [6] . Desta forma, há um ocultamento da personalidade civil que se expressa no exercício de uma “profissão corriqueira”. Os super-heróis trabalham como qualquer cidadão (Baêta Neves cita Batman como uma exceção e se esquece do Homem de Ferro, que também é um milionário), mas não usam seus super-poderes para se manterem financeiramente. Por qual razão? Por dois motivos, segundo este antropólogo: a) se fizesse isso estaria rompendo com a axiologia que apresenta o trabalho como “dignificante e enaltecedor”, que é aquele que é realizado dentro da ordem social e das normas legais; b) a grande ação heróica aparece como “gratuita” e como “obrigação” de todos, servindo como “exemplo social”. Desta forma, tal aspecto da vida do super-herói se apresenta como axiológica e conservadora, pois apresenta uma falsa consciência da realidade e faz apologia da sociedade e dos valores existentes.
Esta visão apresenta alguns problemas. O “anonimato social” (identidade secreta) tem sua razão de ser na própria estrutura do gênero da super-aventura (e também dos heróis comuns) que é uma extensão da sociedade capitalista. Qual é a razão da identidade secreta? Em primeiro lugar, para proteger pessoas próximas do super-herói, que podem ser vítimas de seus inimigos. Os inimigos existem devido a luta pelo poder, a criminalidade, que são geradas pela desigualdade (social). Tendo-se em vista a existência dos super-vilões (quase que totalmente ausentes na análise de Baêta Neves) e a possibilidade de vingança, seqüestro, etc., nada é mais natural e necessário – numa sociedade caracterizada pela desigualdade e que por isso necessita de super-heróis – do que a identidade secreta. Em segundo lugar, existem super-heróis que estão bastante próximos do poder (Batman e Robin, Capitão América, etc.) mas a maioria possui uma relação ambígua com o poder. Basta citar os exemplos do Homem-Aranha e do Hulk para ver isto. De onde vem esta ambigüidade? Vem do fato de que a idéia de justiça e a ação do super-herói nem sempre está de acordo com a justiça oficial. Esta contradição entre a justiça oficial e a justiça do super-herói aponta para um questionamento da ordem jurídica-institucional e isto vai contra a argumentação de Baêta Neves.
O fato do super-herói trabalhar como qualquer cidadão não é tão genérico assim, pois, além dos capitalistas (Batman, Homem de Ferro) existem aqueles que simplesmente não trabalham (Namor, Hulk, Visão, Surfista Prateado, etc.). Além disso, a profissão exercida geralmente não é de tempo integral, pois isto dificultaria a ação do super-herói, tal como a de jornalista (Super-Homem, Homem-Aranha), advogado (Demolidor), médico (Thor), etc., ou seja, são free-lance ou profissionais liberais. Há também casos onde os super-heróis usam seus poderes para ganhar dinheiro: o jornalista Peter Parker (Homem-Aranha) sempre usa suas habilidades para tirar fotografias para vender para o jornal O Clarim; a principal habilidade natural de Tony Stark (Homem de Ferro) é a intelectual, que ele utiliza como empresário, mas, mais importante que isso, o Homem de Ferro se apresenta socialmente como guarda-costas de Tony Stark (ou seja, de si mesmo em sua identidade de homem comum) e de suas empresas, o que significa que é um super-herói “por profissão”. Por fim, o fato da ação heróica ser “gratuita” e ser vista como “obrigação” não é, em si mesma, conservadora ou axiológica, pois num mundo onde tudo foi mercantilizado e o trabalho deve ser retribuído com dinheiro, este tipo de atividade “desinteressada” (no sentido de interesse pessoal egoísta) apresenta, na verdade, uma visão alternativa do trabalho. Daí seu “exemplo social” não ser problemático nem axiológico.
A afirmação de que a super-aventura transmite uma visão da sociedade como se ela não fosse dividida em classes sociais é questionável. Sem dúvida, a super-aventura não focaliza a questão social e nem os conflitos sociais mas nem por isso se pode dizer que ela apresenta uma visão da sociedade como destituída de divisão social. A própria existência de criminosos, de super-vilões, as causas das origens de alguns super-heróis e super-vilões apontam para a existência de conflitos sociais. O Homem-Aranha, por exemplo, após adquirir seus poderes os utiliza para ganhar dinheiro e é somente quando um familiar seu é assassinado por um criminoso é que ele resolve combater a criminalidade. Aí está presente a manifestação aparente de um conflito social mas o desenvolvimento das histórias acaba apresentando outros elementos para se observar as origens sociais da criminalidade e, por conseguinte, a visão das injustiças sociais.
Mas aqui aparece realmente uma visão axiológica da sociedade não tanto pelo fato de que a divisão social não é enfatizada e sim pela própria característica do heroísmo: o individualismo. As histórias dos super-heróis são histórias de indivíduos extraordinários e nunca de grupos sociais, tal como se vê na historiografia tradicional, que se caracteriza por retratar a história dos “grandes homens” e não a dos grupos sociais. Além do individualismo se revela aí um “desenraizamento social” do super-herói. Quando este desenraizamento se rompe, tal como no caso do Capitão América, o super-herói se vê forçado a assumir uma posição e, portanto, ficar ao lado de um dos grupos sociais existentes, que geralmente são os grupos dominantes e isto reforça o seu caráter axiológico. Jacques Marny colocou que a evolução interior dos heróis (e dos super-heróis, diríamos nós) no decorrer dos anos apresenta a tendência para se adaptar às normas sociais. Segundo ele:
“A tendência que se verifica na maior parte dos casos é para um alinhamento segundo as normas sociais. No princípio duma série, o herói é o homem marginal, o franco-atirador da ordem e da justiça. Mas há um dado momento em que colabora com as forças da ordem organizadas, tais como o exército e a polícia do seu país. Foi o que aconteceu com Tarzan, Flash Gordon, Superman, Terry, o Fantasma e muitos outros. Contudo, temos de ter em conta que esta colaboração episódica foi devida, na maior parte das vezes, as circunstâncias históricas, concretamente a última guerra mundial: o herói mobilizou-se espontaneamente, visto que a luta contra as forças do mal requeria a união sagrada” [7] .
Embora existam exceções (tal como Batman, que está sempre do lado da polícia, ou seja, do poder), é o momento histórico que faz com que o super-herói reencontre suas raízes sociais. Isto, no caso dos heróis (e aqui distinguimos herói de super-herói), é diferente, pois as suas características humanas extraordinárias mas não sobre-humanas fazem dele um ser enraizado socialmente e é por isso que se pode encontrar um herói de “esquerda” (tal como Robin Hood e Zorro, um lutando contra o despotismo feudal e outro contra a colonização espanhola) [8] muito mais facilmente que um super-herói de “esquerda”.
A “mistificação do arsenal nuclear” é apontada por Baêta Neves como mais um aspecto axiológico da super-aventura:

“Quando se dá a atribuição de super-poderes por acidente e/ou experiência com arma altamente desenvolvida, ocorre, também, a mistificação e fetichização do arsenal nuclear. Isto se dá porque este é valorado de modo absoluto quanto a seu poder e quanto à irreversibilidade dos efeito que produz. Do lado do caráter de fetiche do instrumento nuclear pode-se ler, também, uma crítica liberal à atuação deste sobre o ser humano, que se deforma ao se expor a ele. Assim, dentro de uma posição tecnocrática dominante, aparece uma palavra de crítica que visa aplacar e não destruir a vigência da ideologia tecnocrática, mitificadora da técnica e da ciência” [9] .

Existe na super-aventura, sem dúvida, uma visão ambígua da ciência (no que se refere às ciências naturais). Basta ver os casos de Hulk, X-Men, o Quarteto Fantástico, etc., para se compreender isto. O Hulk e o Coisa (membro do Quarteto Fantástico) são exemplos de uma crítica dos efeitos da ciência: a deformação do corpo humano. Neste caso se vê a contradição entre um efeito estético indesejável (ambos se transformam em figuras monstruosas do tipo Frankstein, que pode ser considerado o modelo seguido e o tema clássico da simbolização artística dos monstros que a ciência pode criar) e a potência adquirida. Estes dois super-heróis simbolizam a ambigüidade do desenvolvimento científico e que o “avanço” provocado por ela (domínio sobre a natureza e a sociedade) traz em si aspectos indesejáveis (a feiúra, mas que no caso pode ser considerado um símbolo da desumanização e do sentimento de culpa que acompanha a ciência, o que leva o indivíduo a se sentir “feio”). Mas, a nosso ver, o que a super-aventura faz não é uma crítica liberal à ciência e sim uma reprodução do caráter contraditório da ciência, que, ao mesmo tempo, realiza progresso e retrocesso, desenvolve o controle e o descontrole sobre o meio ambiente onde vive a humanidade (transformando-o e destruindo-o), melhora e piora a qualidade de vida e assim por diante.
A última questão colocada por Baêta Neves é o caráter atemporal da super-aventura. Os super-heróis estão fora da história, pois não vivem eventos em sua vida que se desenvolvem cronologicamente. Geralmente não se formam, não se casam, não tem filhos, etc. O mesmo ocorre com a sociedade onde eles vivem. Em primeiro lugar, é preciso colocar que existem muitas exceções e que recentemente isto começou a mudar, basta citar o casamento do Homem-Aranha como exemplo. Em segundo lugar, a estrutura própria da super-aventura dificulta o desenvolvimento de certos acontecimentos, pois casamento, filhos, etc., criam obstáculos para a ação do super-herói (tal como o trabalho em tempo integral). Em terceiro lugar, se o super-herói se desenvolvesse normalmente como um indivíduo comum ele seria muito mais axiológico do que já é [10] . Em quarto lugar, se a sociedade se transformasse radicalmente, acabando com as desigualdades sociais e por conseguinte com a razão de ser da criminalidade e dos super-vilões, então acabaria a razão de ser do super-herói. A super-aventura possui uma temporalidade que é marcada pela seqüência sucessiva de aventuras, onde o passado não pode mais voltar mas explica o motivo de muitas ações presentes. Isto é axiológico? Ora, se imaginarmos um super-herói revolucionário que interfere nas relações sociais buscando a transformação social, a mesma coisa ocorreria. Se a desigualdade acabasse, o super-herói também acabaria. Isto é próprio da estrutura da super-aventura.
Mas uma análise do mundo dos super-heróis deve também distinguir entre os “mundos” povoados por diferentes super-heróis, tal como o mundo Marvel – da Marvel Comics, criadora do Homem-Aranha, Os Inumanos, Hércules, Magneto, Demolidor, Hulk, etc. –, o mundo Detective Comics (conhecida pela sigla DC) – criadora do Super-Homem, Flash, Lanterna Verde, Homem-Borracha, Batman e outros. Estas são as duas mais poderosas fábricas de super-heróis. A DC Comics produz super-heróis e histórias não só mais simples como também mais axiológicas. A recém-criada Image (fundada por ex-desenhistas e roteiristas da Marvel) vem ganhando espaço e competindo com ambas com sua safra de super-heróis, cujo mais famoso é Spawn, que se transportou recentemente para as telas do cinema (Spawn, O Soldado do Inferno), mas também apresenta outros como Dragon, Witchblade, Angela, etc. Esta nova fábrica de super-heróis se caracteriza pela alta qualidade do desenho e pela pobreza dos roteiros, além de possuir um caráter muito mais axiológico que as outras duas (para se ter uma idéia, a maioria dos seus super-heróis trabalham para a polícia e suas histórias são recheadas de anticomunismo grosseiro – o que não deixa de ser estranho, tendo em vista que ela surgiu nos anos 90 e se comporta como se o marcartismo ainda estivesse em moda e a URSS existisse e fosse ameaça — e pela expressão fascista “comuna” para se referir aos “comunistas”). Também poderíamos citar os fracassados super-heróis brasileiros, tais como Fantastic Man, Raio Negro, Mylar, Fantasma Negro, Capitão Atlas, Capitão Estrela, Mistyko, Hydroman, etc.
A sua estrutura, então, é que é conservadora? Julgamos que não, pois a estrutura da super-aventura reproduz a sociedade capitalista contemporânea e somente surgiu devido as condições sociais originadas dela. Mas a permanência da estrutura da super-aventura (e da própria super-aventura, o que é a mesma coisa) é resultado das contradições da própria sociedade contemporânea e o conservadorismo seria a ilusão de que não há mais contradições sociais e que, por isso, não há mais necessidade de super-heróis e super-aventuras.
Consideramos que a raiz dos equívocos de Baêta Neves se encontra no fato dele não ser um leitor de histórias em quadrinhos. Ele mesmo reconhece que sua análise foi baseada no Pequeno Dicionário dos Super-Heróis, artigo publicado na Revista Vozes, de Moacir Cirne, um especialista em semiologia dos quadrinhos. Fundamentar-se em um texto desta natureza sem ir à fonte é questionável, pois uma análise não pode se basear só em descrições estáticas retiradas de um dicionário, pois deve também ter acesso ao movimento vivo da super-aventura. Neste caso, uma tal análise só poderia provocar equívocos.
Por último, podemos dizer que a preocupação com o caráter axiológico da super-aventura e das histórias em quadrinhos em geral é legítima quando nos dedicamos a pesquisar tal fenômeno social; porém, todas as formas de manifestações culturais que são de ampla circulação (e que são transmitidas através de empresas oligopolistas de meios de comunicação de massas) são axiológicas e por isso a análise da super-aventura deve ir além da constatação óbvia do seu caráter axiológico. Deve desvendar seu processo de formação, suas características e o que mais existe no seu interior. Assim, a presente análise é incompleta. Aqui parece fundamental compreender a relação entre o mundo dos super-heróis e o inconsciente coletivo, tal como o definimos em outro lugar [11] , de forma diferenciada de Jung. Iremos apresentar tal relação em outro texto, complementar a este. Aqui fica apenas a análise do caráter axiológico do mundo dos super-heróis, um mundo imaginário que manifesta os valores dos seus criadores, que são os valores dominantes em nossa sociedade.
 
Notas:
 
[1] Cf. VIANA, N. Super-Heróis, Axiologia e Inconsciente Coletivo. In: Quinet, A. e outros. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano. Goiânia, Edições Germinal, 2002. Este texto passou, posteriormente, a integrar o livro "Heróis e Super-Heróis no Mundo dos Quadrinhos" (Rio de Janeiro, Achiamé, 2005).
[2] Sobre o herói na ficção: cf. KOTHE, Flávio. O Herói. São Paulo, Ática, s/d.
[3] Utilizaremos as expressões ideologia e ideológico em dois sentidos. Um é o utilizado por alguns dos “críticos” das histórias em quadrinhos e tem o significado de uma concepção valorativa. Porém, numa perspectiva dialética, toda forma de consciência é valorativa. Desta forma, não há sentido em acusar algo de ser valorativo, pois tudo é valorativo. Quando se acusam as histórias em quadrinhos de serem valorativas o que se quer dizer na verdade é que elas possuem outros valores, que não os mesmos dos seus críticos. O que alguns querem dizer, neste caso, é, na verdade, “axiologia” e “axiológico”. Entendemos por axiologia o padrão dominante de valores em nossa sociedade, os valores burgueses (cf. VIANA, Nildo. A Questão dos Valores. Revista Cultura & Liberdade. ano 2, n. 2, abril de 2002). Quando utilizarmos os termos ideológico e ideologia neste sentido usaremos aspas para demarcar a diferença desta concepção com a nossa, mas na maioria dos casos substituiremos estas expressões por axiologia e axiológico. Para nós, ideologia é uma falsa consciência da realidade elaborada de forma sistemática (que, sem dúvida, carrega valores, que são correspondentes aos interesses da classe dominante). Sobre ideologia, cf. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 8a edição, São Paulo, Hucitec, 1990.
[4] CAVALCANTI, Ionaldo. Esses Incríveis Heróis de Papel. São Paulo, Mater, p. 68.
[5] Cf. BAÊTA NEVES, Luís Fernando. O Paradoxo do Coringa. Rio de Janeiro, Achiamé, 1979.
[6] Cf. BAÊTA NEVES, Luís Fernando. Ob. cit., p. 92.
[7] MARNY, Jacques. Sociologia das Histórias aos Quadradinhos. Porto, Civilização, 1970, p. 128.
[8] Sobre o herói de “esquerda”: KOTHE, Flávio. Ob. cit. Aqui se trata do Zorro de capa e espada e não do cowboy (que no Brasil recebeu o mesmo nome mas que se trata de uma alteração totalmente sem sentido, pois no original norte-americano ele é Lone Ranger, “Cavaleiro Solitário”), este sendo considerado extremamente “ideológico” (cf. DORFMAN, Ariel & JOFRÉ, Manuel. Super-Homem e seus Amigos do Peito. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978).
[9] BAÊTA NEVES, Luís Fernando. Ob. cit., p. 95.
[10] Este é o caso do Homem-Aranha que, “recentemente” (...) se casou e passou a ter preocupações corriqueiras (ciúmes, vontade de chegar em casa mais cedo, etc.), além de um monótono “amor perfeito”, sem conflitos internos (como se isso fosse possível em nossa sociedade...). Isto sim é axiológico...
[11] Cf. VIANA, Nildo. Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico. Goiânia, Edições Germinal, 2002.
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Esta versão do texto foi publicada originalmente na Revista Espaço Acadêmico, Ano II, num. 22, Março de 2003.