O primeiro canto

O primeiro canto

quinta-feira, 3 de maio de 2018

A independência do jornalismo, por Noam Chomsky



Mark Twain disse que “é pela bondade de Deus que, no nosso país, temos estas três coisas indescritíveis e preciosas: liberdade de expressão, liberdade de consciência e a prudência de nunca pôr em prática nenhuma delas".

Na sua introdução inédita ao “Triunfo dos Portos”, dedicado à "censura literária" na Inglaterra livre, George Orwell acrescentou uma razão para esta prudência: há, escreveu, um "acordo tácito de que ‘não cairia bem’ mencionar este facto em particular". O acordo tácito impõe uma "censura velada" baseada "numa ortodoxia, um conjunto de ideias supostamente aceites sem serem questionadas por todas as pessoas razoáveis", e "quem desafiar a ortodoxia predominante será silenciado de forma surpreendentemente eficaz" mesmo sem "qualquer veto oficial".

Assistimos constantemente ao exercício desta prudência nas sociedades livres. Veja-se a invasão anglo-americana do Iraque, um caso didático de agressão sem pretexto cabível, o "supremo crime internacional” definido no julgamento de Nuremberga. É legítimo dizer que foi uma "guerra burra", um "erro estratégico", até "o maior erro estratégico na história recente da política externa americana" nas palavras do presidente Obama, imensamente admirado pela opinião pública liberal. Mas "não cairia bem" dizer o que foi, o crime do século, embora tal hesitação não existisse se algum inimigo oficial tivesse cometido até mesmo um crime bem menor.

A ortodoxia predominante não acomoda facilmente figuras como o general e presidente Ulysses S. Grant, que achava nunca ter havido "guerra mais perversa do que a travada pelos Estados Unidos contra o México", apropriando-se do que é hoje o sudoeste dos EUA e a Califórnia, e expressou a sua vergonha por não ter "a coragem moral de renunciar" em vez de participar do crime.

A subordinação à ortodoxia predominante tem consequências. A mensagem nem-tão-tácita é que só devemos lutar nas guerras inteligentes, que não forrem erros, guerras que alcancem os seus objetivos – justos e corretos por definição, de acordo com a ortodoxia predominante, mesmo sendo na realidade "guerras perversas", crimes graves. Há mais exemplos do que é possível enumerar aqui. Em alguns casos, como no crime do século, a prática é quase unânime nos círculos respeitáveis.

Outro aspeto familiar da subordinação à ortodoxia predominante é a apropriação casual da demonização ortodoxa dos inimigos oficiais. Para tomar um exemplo quase aleatório, extraído do exemplar do New York Times que, por acaso, está na minha frente agora, um jornalista económico muito competente adverte sobre o populismo do demónio oficial Hugo Chávez, que, uma vez eleito no fim da década de 1990, “combatia qualquer instituição democrática que aparecesse no seu caminho".

Voltando ao mundo real, foi o governo dos EUA, com o apoio entusiasmado do New York Times, que (no mínimo) apoiou amplamente o golpe militar que derrubou o governo de Chávez – brevemente, até ser revertido por uma revolta popular. Quanto a Chávez, independentemente do que se pense dele, ele ganhou repetidas eleições atestadas como livres e justas por observadores internacionais, incluindo a Fundação Carter, cujo fundador, o ex-presidente Jimmy Carter, disse que "das 92 eleições que monitorizamos, diria que o processo eleitoral na Venezuela é o melhor do mundo". E a Venezuela sob Chávez frequentemente obteve boas colocações nas sondagens internacionais sobre o apoio popular ao governo e à democracia (Latinobarómetro, com sede no Chile).

Existiram, sem dúvida, deficits democráticos durante os anos Chávez, como a repressão ao canal RCTV, que provocou enorme condenação – da qual participei, concordando que isso não poderia acontecer numa sociedade livre. Se um canal de TV proeminente dos EUA tivesse apoiado um golpe militar, como fez o RCTV, não seria reprimido alguns anos depois, porque simplesmente não existiria: os seus executivos, se ainda estivessem vivos, estariam presos.

Mas a ortodoxia ganha dos factos com facilidade.

A incapacidade de fornecer informações pertinentes também tem consequências. Talvez os americanos devam saber que sondagens realizadas pela principal agência de opinião dos EUA revelaram que, uma década após o crime do século, a opinião pública mundial considerava os Estados Unidos como a maior ameaça à paz mundial, muito à frente dos outros concorrentes; e não o Irão, que carrega esse título apenas entre os analistas americanos. Talvez, em vez de esconder esse facto, a imprensa pudesse ter cumprido o seu dever de divulgá-lo, além de provocar algum debate sobre os seus significados e que lições o resultado pode trazer para a política externa do país. Negligência que tem consequências.

Sobram exemplos suficientemente graves como esses, mas existem outros ainda mais importantes. Tomemos a campanha eleitoral de 2016 no país mais poderoso da história mundial. A cobertura era gigantesca e instrutiva. Os grandes problemas foram quase inteiramente evitados pelos candidatos e praticamente ignorados pelos comentadores políticos, de acordo com o princípio jornalístico em que "objetividade" significa relatar com precisão o que os poderosos fazem e dizem, não o que eles ignoram. O princípio vale mesmo quando o destino da espécie está em jogo – tanto pelo perigo crescente de uma guerra nuclear quanto pela iminência de uma catástrofe ambiental.

A negligência atingiu um pico dramático no dia 8 de novembro, um dia realmente histórico. Naquele dia, Donald Trump obteve duas vitórias. A menos importante delas recebeu cobertura extraordinária da comunicação social: a sua vitória eleitoral, com quase três milhões de votos a menos do que a sua oponente, graças a características regressivas do sistema eleitoral dos EUA. A vitória muito mais importante passou em silêncio quase total: a vitória de Trump em Marraquexe, em Marrocos, onde cerca 200 nações se reuniram para colocar um conteúdo sério no Acordo de Paris sobre mudanças climáticas, do ano anterior. No dia 8 de novembro, o processo parou. O restante da conferência foi dedicado em grande parte a tentar manter viva alguma esperança, com os EUA não apenas a retirem-se do acordo, mas decidido a sabotá-lo aumentando brutalmente o uso de combustíveis fósseis, desmantelando a regulação existente e rejeitando o compromisso de investir em energia renovável nos países em desenvolvimento.

Na vitória mais importante de Trump, estavam em jogo as perspetivas para a vida humana organizada da forma como conhecemos. A cobertura foi praticamente zero, seguindo o mesmo conceito de "objetividade" determinado pelas práticas e doutrinas do poder.

Uma imprensa verdadeiramente independente rejeita o papel de subordinação ao poder e à autoridade. Manda a ortodoxia às favas, questiona o que "as pessoas bem pensantes aceitam sem questionar", rasga o véu da censura tácita, disponibiliza ao público a informação e um leque de opiniões e ideias que são o pré-requisito para uma participação significativa na vida social e política, e além disso, oferece aos cidadãos uma plataforma para o debate e a discussão das questões que lhes dizem respeito. Serve, assim, de base para uma sociedade verdadeiramente livre e democrática.

Artigo publicado em Chomsky.info. Tradução de Clarisse Meireles, Carta Maior.

domingo, 29 de abril de 2018

Os perigos de uma história única


Chimamanda Adichie, escritora nigeriana, fala-nos sobre os perigos de uma história única. Vale passar a vista! E vale, sobretudo, ampliarmos a nossa "lente de ver o mundo". 
Se Chimamanda traz tanta atenção aos perigos da história única, ela ressalta o poder das histórias. “Histórias têm sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar”, pondera. “Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida.”



O valor da Filosofia


A rigor, o conhecimento filosófico provoca uma inquietação que serve como via para a autodeterminação. Portanto, como um exame crítico do fundamento das nossas convicções, crenças e preconceitos. Por conseguinte, é este tipo de ‘pedagogia filosófica’, que viabiliza a formação de sujeitos independentes, com atitude interrogativa e investigativa. Poderíamos dizer, de forma genérica, que este é o contributo da filosofia para a formação de cidadãos críticos, capazes de contribuir efetivamente com a sociedade a fim de enfrentar os desafios práticos do cotidiano.

Le Penseur- Rodin 


Quem não tem umas tintas de filosofia é homem que caminha pela vida fora sempre agrilhoado a preconceitos que se derivam do senso-comum, das crenças habituais do seu tempo e do seu país, das convicções que cresceram no seu espírito sem a cooperação ou o consentimento de uma razão deliberada. O mundo tende, para tal homem, a tornar-se finito, definido, óbvio; para ele, os objectos habituais não erguem problemas, e as possibilidades infamiliares são desdenhosamente rejeitadas. Quando começamos a filosofar, pelo contrário, imediatamente caímos na conta de que até os objectos mais ordinários conduzem o espírito a certas perguntas a que incompletissimamente se dá resposta. A filosofia, se bem que incapaz de nos dizer ao certo qual venha a ser a verdadeira resposta às variadas dúvidas que ela própria evoca, sugere numerosas possibilidades que nos conferem amplidão aos pensamentos, descativando-nos da tirania do hábito. Embora diminua, por consequência, o nosso sentimento de certeza no que diz respeito ao que as coisas são, aumenta muitíssimo o conhecimento a respeito do que as coisas podem ser; varre o dogmatismo, um tudo-nada arrogante, dos que nunca chegaram a empreender viagens nas regiões da dúvida libertadora; e vivifica o sentimento de admiração, porque mostra as coisas que nos são costumadas num determinado aspecto que o não é.

RUSSELL, B. Os problemas da filosofia. Tradução António Sérgio. Coimbra: Almedina, 2001. p. 148.



quinta-feira, 26 de abril de 2018

"Comptine d`un autre ete - l`apres-midi" - Yann Tiersen




Fantastic! 


Direitos Humanos na Grécia de Aristóteles?

O tema desta dissertação dar-se-á em torno da antropologia de Aristóteles, sua visão organicista da cidade, e a aplicação de sua teoria ético-política na atualidade, através da análise da possibilidade de haver Direitos Humanos na Grécia Antiga - é preciso levar em consideração que se trata de um conjunto de ideias ainda muito imaturas. Apenas considerações gerais sobre o assunto, a título de preparação de aula.

Segundo Aristóteles, o homem é dotado de três características essenciais, a saber: é um ser político; dotado de razão e linguagem; bem como, um ser ético.
O homem é um ser político porque ele apenas pode realizar-se plenamente na “pólis”. Ao nascer, o ser humano é carente de tudo, enquanto a cidade é autossuficiente, bastando a si mesma. Neste sentido, fora da pólis só há lugar para deuses e brutos. Fato que, por consequência, implica que o ser humano apenas pode alcançar sua natureza racional dentro da pólis.
Por outro lado, o homem é um ser dotado de razão e linguagem, porque possui o logos e a capacidade de conferir o certo e o errado. Desse modo, o homem dispõe da capacidade de comunicar-se - o que, diferentemente dos outros animais, atribui a ele sua natureza ética, tendo em vista que, sem ela, ele seria o mais selvagem e pavoroso dos seres. Portanto, se o logos lhe dá a capacidade de razão e linguagem, esses artifícios devem ser usados de maneira essencialmente ética.
No âmbito social, segundo Aristóteles, haveriam duas esferas: o “oikos” e a “pólis”. O oikos representa o domínio privado das relações humanas, enquanto a pólis representa o domínio público. Entre o oikos e a pólis, existem diferenças de espécie, quantidade e qualidade. Sendo assim, a pólis ocupa um lugar de “superioridade”, tendo em vista que ela abrange o indivíduo, de modo que este é apenas uma parte em relação ao todo, e ocupa uma posição determinada dentro da sociedade.
Portanto, é necessário evidenciar o caráter organicista da “pólis aristotélica”. Na pólis, cada indivíduo ocupava um lugar e possuía uma função. Essa estrutura social seguia a ordem natural do cosmo e, nesse sentido, pode-se dizer que Aristóteles institucionalizou uma hierarquia natural, em que alguns serviam de instrumento para a realização plena de outros. É de se notar, entretanto, que essa explicação naturalista era adequada para a época, tendo em vista que legitimava a diferenciação entre os cidadãos livres, as mulheres e os escravos.
Portanto, de maneira sucinta, pode-se afirmar que, de fato, o homem é um ser político, razoável e ético. Contudo, há de se restringir a concepção de “homem” àqueles seres humanos do sexo masculino, nascidos de pai e mãe gregos e que, de qualquer modo, encontravam-se desimpedidos de qualquer ofício, além da dedicação política à cidade. Esses “homens” adquiriam a qualidade de cidadãos gregos, qualidade esta que lhes atribuíam diversas honrarias, bem como o direito ao acesso à justiça, à liberdade e à igualdade (entre si).
De acordo com esse panorama, é pertinente questionar a existência de Direitos Humanos na Grécia. Aqui entende-se Direitos Humanos não em um sentido restrito do termo, tendo em vista que é de criação moderna, mas em um sentido amplo, que implique em valores intrínsecos da própria natureza humana.
Desde logo, afastam-se, da questão, os direitos sociais. Não há como se pensar em direito a moradia, saúde e educação para todos em uma sociedade cuja desigualdade é estrutural. Os direitos de igualdade possuem aplicação imediata para uma totalidade, o que não ocorria na Grécia nem nunca poderia ocorrer, já que a hierarquia natural dava a cada um o que se merecia, seguindo a ordem do cosmo.
Afastada a existência dos direitos sociais, cabe agora analisar a possibilidade dos direitos de liberdade, ou direitos fundamentais de primeira geração. Pode-se, nesse momento, afirmar que havia uma certa noção de liberdade e igualdade na Grécia Antiga. Entretanto, essas noções eram aplicadas a uma sociedade elitista, para uma pequena minoria. Isso significa que elas assumiam um caráter muito mais discriminatório:; eram verdadeiras regalias, e não direitos.
A impossibilidade de existência de Direitos Humanos na Grécia Antiga é manifesta, principalmente, pelo fato de que, se havia algo de natural na “pólis”, esse algo seria a desigualdade, a hierarquia, e não os direitos e os valores éticos implícitos.
Portanto, conclui-se que a sociedade política prevista por Aristóteles não pode servir de fundamento ético para os Direitos Humanos (com algumas exceções, como a releitura do significado de “endoxa” ). Ainda que se tente reproduzir a ideia de que o ser humano apenas se realiza na pólis (comunitaristas), de modo algum essa plenitude trará consigo a instrumentalização estrutural de outros seres humanos, como se dava em Aristóteles. 

E então, por que a política?


A política
                                                                                             André Comte-Sponville

É preciso pensar na política; se não pensarmos o bastante, seremos cruelmente punidos. (Alain)

 O homem é um animal sociável: só pode viver e se desenvolver entre seus semelhantes.
Mas também é um animal egoísta. Sua “insociável sociabilidade”, como diz Kant, faz que ele não possa prescindir dos outros nem renunciar, por eles, à satisfação dos seus próprios desejos.
É por isso que necessitamos da política. Para que os conflitos de interesses se resolvam sem recurso à violência. Para que nossas forças se somem em vez de se oporem. Para escapar da guerra, do medo, da barbárie.
É por isso que precisamos de um Estado. Não porque os homens são bons ou justos, mas porque não são. Não porque são solidários, mas para que tenham uma oportunidade de, talvez, vir a sê-lo. Não “por natureza”, não obstante o que diz Aristóteles, mas por cultura, por história, e é isso a própria política: a história em via de se fazer, de se desfazer, de se refazer, de continuar, a história no presente, e é nossa história, e é a única história. Como não se interessar pela política? Seria não se interessar por nada, pois que tudo depende dela.
O que é a política? É a gestão não guerreira dos conflitos, das alianças e das relações de força - não entre indivíduos apenas (como podemos ver na família ou num grupo qualquer) mas na escala de toda uma sociedade. É portanto a arte de viver juntos, num mesmo Estado ou numa mesma Cidade (pólis, em grego), com pessoas que não escolhemos, pelas quais não temos nenhum sentimento particular e que são, sob muitos aspectos, nossas rivais, tanto quanto ou mais até que aliadas. Isso supõe um poder comum e uma luta pelo poder. Isso supõe um governo, e mudanças de governo. Isso supõe choques, mas sujeitos a regras, compromissos, mas provisórios, um acordo enfim sobre a maneira de solucionar os desacordos. Fora disso, só haveria a violência, e é isso que a política, para existir, deve impedir antes de mais nada. Ela começa onde a guerra acaba.
Trata-se de saber quem manda e quem obedece, quem faz a lei, como se diz, e é isso que se chama de soberano. Pode ser um rei ou um déspota (numa monarquia absoluta), pode ser o povo (numa democracia), pode ser um grupo de indivíduos (uma classe social, um partido, uma elite de verdade ou que assim se pretende: uma aristocracia)... Pode ser, e é o que acontece com freqüência, uma mistura singular desses três tipos de regime ou de governo. O caso é que não haveria política sem esse poder, que é o maior de todos, pelo menos nesta terra, e a garantia de todos os outros. Porque “o poder está em toda parte”, como diz Foucault, ou antes, os poderes são incontáveis; mas só podem coexistir sob a autoridade reconhecida ou imposta do mais poderoso dentre eles. Multiplicidade de poderes, unicidade do soberano ou do Estado: toda a política se joga aí, e é por isso que ela é necessária. Vamos nos submeter ao primeiro bruto que aparecer? Ao primeiro liderzinho que se apresentar? Claro que não! Sabemos perfeitamente que é necessário um poder, ou vários, sabemos que é preciso obedecer. Mas não a qualquer um, mas não a qualquer preço. Queremos obedecer livremente: queremos que o poder a que nos submetemos, em vez de abolir o nosso, o fortaleça ou o garanta. Nunca conseguimos isso plenamente. Nunca renunciamos inteiramente a isso. E é por isso que fazemos política. É por isso que continuaremos a fazer. Para sermos mais livres. Para sermos mais felizes. Para sermos mais fortes. Não separadamente ou uns contra os outros, mas “todos juntos”, como diziam os manifestantes do outono de 1995, ou antes, ao mesmo tempo juntos e opostos, já que é preciso, já que, não fosse assim, não precisaríamos de política.
A política supõe a discordância, o conflito, a contradição. Quando todo o mundo está de acordo (por exemplo, para dizer que é melhor a saúde que a doença, ou que a felicidade é preferível à infelicidade...), não é política. E, quando cada um fica no seu canto ou só trata dos seus assuntos pessoais, também não é política. A política nos reúne nos opondo: ela nos opõe sobre a melhor maneira de nos reunir! Isso não tem fim. Engana-se quem anuncia o fim da política: seria o fim da humanidade, o fim da liberdade, o fim da história, que, ao contrário, só podem - e devem - continuar no conflito aceito e superado. A política, como o mar não pára de recomeçar. Porque ela é um combate, e a única paz possível. É o contrário da guerra, repitamos, o que fala o bastante da sua grandeza. É o contrário do estado natural, e isso fala o bastante da sua necessidade. Quem gostaria de viver inteiramente só? Quem gostaria de viver contra todos os outros? O estado natural, mostra Hobbes, é “a guerra de todos contra todos”: a vida dos homens é, então, “solitária, necessitosa, penosa, quase animal, e breve”. Melhor um poder comum, melhor uma lei comum, melhor um Estado comum - melhor a política!
Como viver juntos e para quê? São esses os dois problemas que é preciso resolver, e logo depois tornar a levantar (pois temos o direito de mudar de opinião, de lado, de maioria...). Cabe a cada um refletir sobre eles; cabe a todos debatê-los.
O que é a política? É a vida comum e conflituosa, sob o domínio do Estado e por seu controle; é a arte de tomar, de conservar e de utilizar o poder. É também a arte de compartilhá-lo, mas porque, na verdade, não há outra maneira de tomá-lo.
Seria um erro considerar a política uma atividade unicamente subalterna ou desprezível. O contrário é que é verdade, claro: ocupar-se da vida comum, do destino comum, dos confrontos comuns é uma tarefa essencial, para todo ser humano, e ninguém poderia esquivar-se dela. Você vai deixar o caminho livre para os racistas, os fascistas, os demagogos? Vai deixar uns burocratas decidirem por você? Vai deixar uns tecnocratas ou uns carreiristas imporem a você uma sociedade que seja a cara deles? Com que direito, então, você poderia se queixar de que as coisas vão mal? Como não ser cúmplice do medíocre ou do pior, se você nada faz para impedi-los? A inação não é uma desculpa. A incompetência não é uma desculpa. Não fazer política é renunciar a uma parte do seu poder, o que é sempre perigoso, mas também a uma parte das suas responsabilidades, o que é sempre condenável. O apoliticismo é ao mesmo tempo um erro e uma culpa: é ir contra seus interesses e seus deveres.
Mas também seria um equívoco querer reduzir a política à moral como se ela só se ocupasse do bem, da virtude, do desinteresse. Mais uma vez, o contrário é que é verdade. Se a moral reinasse, não precisaríamos de polícia, de leis, de tribunais, de forças armadas: não precisaríamos de Estado, nem portanto de política! Contar com a moral para vencer a miséria ou a exclusão é, evidentemente, conversa fiada. Contar com o humanitarismo para fazer as vezes de política externa, com a caridade para fazer as vezes de política social e até mesmo com o anti-racismo para fazer as vezes de política de imigração, é evidentemente conversa fiada. Não, claro, que o humanitarismo, a caridade ou o anti-racismo não sejam moralmente necessários; mas porque não poderiam bastar politicamente (se bastassem, não precisaríamos mais de política) nem resolver sozinhos um problema social qualquer.
A moral não tem fronteiras; a política tem. A moral não tem pátria; a política tem. Nem uma nem outra, é claro, poderiam dar à noção de raça qualquer pertinência: a cor da pele não faz nem a humanidade nem a cidadania. Mas a moral não tem nada a ver tampouco com os interesses da França ou dos franceses, da Europa ou dos europeus... Para a moral só existem indivíduos: para a moral só existe a humanidade. Ao passo que qualquer política francesa ou européia, de direita ou de esquerda, só existe, ao contrário, para defender um povo, ou povos, em particular - não, é claro, contra a humanidade, o que seria imoral e suicida, mas prioritariamente, o que a moral não poderia nem impor nem proibir em absoluto.
Você poderia preferir que a moral bastasse, que a humanidade bastasse: você poderia preferir que a política não fosse necessária. Mas estaria se enganando sobre a história e se mentindo sobre nós mesmos.
A política não é o contrário do egoísmo (o que a moral é), mas sua expressão coletiva e conflituosa: trata-se de sermos egoístas juntos, já que essa é a nossa sina, e da maneira mais eficaz possível. Como? Organizando convergências de interesses, e é isso que se chama solidariedade (diferenciando-se da generosidade, que supõe, ao contrário, o desinteresse).
É comum desconhecer essa diferença, razão a mais para insistirmos nela. Ser solidário é defender os interesses do outro, sem dúvida, mas porque eles também são - direta ou indiretamente - os meus. Agindo por ele, também ajo por mim: porque temos os mesmos inimigos ou os mesmos interesses, porque estamos expostos aos mesmos perigos ou aos mesmos ataques. É o caso do sindicalismo, da Seguridade Social ou dos impostos. Quem se consideraria generoso por contribuir para a Seguridade Social, sindicalizar-se ou pagar seus impostos? A generosidade é outra coisa: é defender os interesses do outro, mas não por também serem os meus é defendê-los mesmo que não compartilhe deles - não porque eu ganhe alguma coisa com isso, mas porque ele, o outro, ganha. Agindo por ele, não ajo por mim - pode ser que eu até perca alguma coisa, aliás é o que costuma acontecer. Como conservar o que se dá? Como dar o que se conserva? Não seria mais doação, e sim troca; não seria mais generosidade, e sim solidariedade.
A solidariedade é uma maneira de se defender coletivamente; a generosidade, no limite, é uma maneira de se sacrificar pelos outros. É por isso que a generosidade, moralmente falando, é superior; e é por isso que a solidariedade, social e politicamente, é mais urgente, mais realista, mais eficaz. Ninguém paga a Seguridade Social por generosidade. Ninguém paga seus impostos por generosidade. E que estranho sindicalista o que se associaria a um sindicato unicamente por generosidade! No entanto a Seguridade Social, o sistema tributário e os sindicatos fizeram mais pela justiça - muito mais! - do que o pouco de generosidade de que este ou aquele soube, vez ou outra, dar prova. A mesma coisa vale para a política. Ninguém respeita a lei por generosidade. Ninguém é cidadão por generosidade. Mas o direito e o Estado fizeram muito mais, para a justiça ou para a liberdade, do que os bons sentimentos.
Solidariedade e generosidade nem por isso são incompatíveis: ser generoso não impede de ser solidário; ser solidário não impede de ser generoso. Mas tampouco são equivalentes, e é por isso que nenhuma das duas poderia bastar ou fazer as vezes da outra. Ou melhor, a generosidade talvez bastasse, se fôssemos suficientemente generosos. Mas o somos tão pouco, tão raramente, tão pequenamente... Só precisamos de solidariedade porque carecemos de generosidade, e é por isso que precisamos tanto de solidariedade!
Generosidade: virtude moral. Solidariedade: virtude política. O grande problema do Estado é a regulação e a socialização dos egoísmos. É por isso que ele é necessário. É por isso que é insubstituível. A política não é o reino da moral, do dever, do amor... É o reino das relações de forças e de opiniões, dos interesses e dos conflitos de interesses. Vejam Maquiavel ou Marx. Vejam Hobhes ou Spinoza. A política não é uma forma do altruísmo: é um egoísmo inteligente e socializado. Isso não apenas não a condena mas a justifica: já que todos nós somos uns egoístas, vamos sê-los juntos e inteligentemente! Quem não percebe que a busca paciente e organizada do interesse comum, ou do que se imagina ser tal, é melhor, para quase todos, do que o confronto ou a desordem generalizados? Quem não percebe que a justiça é melhor, para quase todos, que a injustiça? Que isso também é moralmente justificado, é mais que evidente, o que mostra que moral e política, em seu objetivo, não se opõem. Mas que a moral não basta para alcançá-lo, é igualmente evidente, e mostra que moral e política também não poderiam se confundir.
A moral, em seu princípio, é desinteressada; nenhuma política o é.
A moral é universal, ou assim se pretende; toda política é particular.
A moral é solitária (ela só vale na primeira pessoa); toda política é coletiva.
É por isso que a moral não poderia fazer as vezes de política, do mesmo modo que a política não poderia fazer as vezes de moral: precisamos das duas, e da diferença entre as duas!
Uma eleição, salvo excepcionalmente, não opõe bons e maus, mas opõe campos, grupos sociais ou ideológicos, partidos, alianças, interesses, opiniões, prioridades, opções, programas... Que a moral também tenha urna palavra a dizer, é bom lembrar (há votos moralmente condenáveis). Mas isso não nos poderia fazer esquecer que ela não faz as vezes nem de projeto nem de estratégia. O que a moral propõe contra o desemprego, contra a guerra, contra a barbárie? Ela nos diz que é preciso combatê-los, claro, mas não como temos maiores oportunidades de derrotá-los. Ora, politicamente, é o como que importa. Você é a favor da justiça e da liberdade? Moralmente falando, é o mínimo que se espera de você. Mas politicamente, isso não lhe diz nem como defendê-las nem como conciliá-las. Você deseja que israelenses e palestinos tenham uma pátria segura e reconhecida, que todos os habitantes de Kosovo possam viver em paz, que a globalização econômica não se produza em detrimento dos povos e dos indivíduos, que todos os idosos possam ter uma aposentadoria decente, todos os jovens uma educação digna desse nome? A moral aplaude, mas não lhe diz como aumentar nossas possibilidades de, juntos, alcançar esses objetivos. E quem pode acreditar que a economia e o livre jogo do mercado bastam para tanto? O mercado só vale para as mercadorias.
Ora, o mundo não é uma. Ora, a justiça não é uma. Ora, a liberdade não é uma. Que loucura seria confiar ao mercado o que não é para se comercializar! Quanto às empresas, elas tendem antes de mais nada ao lucro. Não as critico por isso: é a função delas, e desse lucro todos nós necessitamos. Mas quem pode acreditar que o lucro baste para fazer que uma sociedade seja humana? A economia produz riquezas, e riquezas são necessárias, e nunca serão demais. Mas também precisamos de justiça, de liberdade, de segurança, de paz, de fraternidade, de projetos, de ideais... Não há mercado que os forneça. É por isso que é preciso fazer política: porque a moral não basta, porque a economia não basta e, portanto, porque seria moralmente condenável e economicamente desastroso pretender contentar-se com uma e outra.
Por que a política? Porque não somos nem santos nem apenas consumidores, porque somos cidadãos, porque devemos ser cidadãos e para que possamos permanecer cidadãos.
Quanto aos que fazem da política sua profissão, temos de lhes ser gratos pelos esforços que consagram ao bem comum, sem no entanto nos iludirmos muito sobre a sua competência nem sobre a sua virtude: a vigilância faz parte dos direitos humanos e dos deveres do cidadão.
Não se deve confundir essa vigilância republicana com a ridicularização, que torna tudo ridículo, nem com o desprezo, que torna tudo desprezível. Ser vigilante é não crer cegamente nas palavras dos políticos, mas não é condená-los ou denegri-los por princípio. Não conseguiremos reabilitar a política, como é urgente hoje em dia, cuspindo perpetuamente em quem faz política. No Estado democrático, temos os homens políticos que merecemos. Razão a mais para preferir esse regime a todos os outros: só tem moralmente direito de se queixar dele - e, é claro, motivos é que não faltam! - quem age, com outros, para transformá-lo.
Não basta esperar a justiça, a paz, a liberdade, a prosperidade... É preciso agir para defendê-las, para aprimorá-las, o que só se pode fazer eficazmente de forma coletiva e que, por isso, passa necessariamente pela política. Que esta não se reduza nem à moral nem à economia, já insisti o bastante. O que não significa, lembremos para terminar, que ela seja moralmente indiferente ou economicamente sem alcance. Para todo indivíduo apegado aos direitos humanos e ao seu próprio bem-estar, interessar-se pela política não é apenas seu direito, é também seu dever e seu interesse - é a única maneira, sem dúvida, de conciliá-los mais ou menos. Entre a lei da selva e a lei do amor, há a lei pura e simples. Entre o angelismo e a barbárie, há a política. Anjos poderiam prescindir dela. Animais poderiam prescindir dela. Homens, não. É por isso que Aristóteles tinha razão, pelo menos nesse sentido, quando escrevia que “o homem é um animal político”: porque, sem a política, ele não poderia assumir inteiramente sua humanidade.
“Fazer bem o homem” (a moral) não basta. É necessário também fazer uma sociedade que seja humana (já que é a sociedade, sob muitos aspectos, que faz o homem), e por isso é necessário refazê-la sempre, pelo menos em parte. O mundo não pára de mudar; uma sociedade que não mudasse estaria fadada à ruína. Portanto é preciso agir, lutar, resistir, inventar, salvaguardar, transformar... É para isso que serve a política. Há tarefas mais interessantes? Pode ser. Mas não há, na escala da sociedade, tarefas mais urgentes. A história não espera; não fique bobamente esperando-a!

A história não é um destino, nem somente o que nos faz: ela é o que fazemos, juntos, do que nos faz, e isso é a própria política. In: Comte-Sponville, André. Apresentação da filosofia. São Paulo. Martins Fontes,2002. pg.27-36.

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Löhstana David - Cerise


J'aime beaucoup...