O primeiro canto

O primeiro canto

sábado, 5 de maio de 2018

The Boatman's Call - Nick Cave




O Direito à Literatura



[...] a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade.


CÂNDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: Vários Escritos. Duas cidades: Ouro sobre azul. São Paulo; Rio de Janeiro. 4. ed. 2004. p.186 


quinta-feira, 3 de maio de 2018

A independência do jornalismo, por Noam Chomsky



Mark Twain disse que “é pela bondade de Deus que, no nosso país, temos estas três coisas indescritíveis e preciosas: liberdade de expressão, liberdade de consciência e a prudência de nunca pôr em prática nenhuma delas".

Na sua introdução inédita ao “Triunfo dos Portos”, dedicado à "censura literária" na Inglaterra livre, George Orwell acrescentou uma razão para esta prudência: há, escreveu, um "acordo tácito de que ‘não cairia bem’ mencionar este facto em particular". O acordo tácito impõe uma "censura velada" baseada "numa ortodoxia, um conjunto de ideias supostamente aceites sem serem questionadas por todas as pessoas razoáveis", e "quem desafiar a ortodoxia predominante será silenciado de forma surpreendentemente eficaz" mesmo sem "qualquer veto oficial".

Assistimos constantemente ao exercício desta prudência nas sociedades livres. Veja-se a invasão anglo-americana do Iraque, um caso didático de agressão sem pretexto cabível, o "supremo crime internacional” definido no julgamento de Nuremberga. É legítimo dizer que foi uma "guerra burra", um "erro estratégico", até "o maior erro estratégico na história recente da política externa americana" nas palavras do presidente Obama, imensamente admirado pela opinião pública liberal. Mas "não cairia bem" dizer o que foi, o crime do século, embora tal hesitação não existisse se algum inimigo oficial tivesse cometido até mesmo um crime bem menor.

A ortodoxia predominante não acomoda facilmente figuras como o general e presidente Ulysses S. Grant, que achava nunca ter havido "guerra mais perversa do que a travada pelos Estados Unidos contra o México", apropriando-se do que é hoje o sudoeste dos EUA e a Califórnia, e expressou a sua vergonha por não ter "a coragem moral de renunciar" em vez de participar do crime.

A subordinação à ortodoxia predominante tem consequências. A mensagem nem-tão-tácita é que só devemos lutar nas guerras inteligentes, que não forrem erros, guerras que alcancem os seus objetivos – justos e corretos por definição, de acordo com a ortodoxia predominante, mesmo sendo na realidade "guerras perversas", crimes graves. Há mais exemplos do que é possível enumerar aqui. Em alguns casos, como no crime do século, a prática é quase unânime nos círculos respeitáveis.

Outro aspeto familiar da subordinação à ortodoxia predominante é a apropriação casual da demonização ortodoxa dos inimigos oficiais. Para tomar um exemplo quase aleatório, extraído do exemplar do New York Times que, por acaso, está na minha frente agora, um jornalista económico muito competente adverte sobre o populismo do demónio oficial Hugo Chávez, que, uma vez eleito no fim da década de 1990, “combatia qualquer instituição democrática que aparecesse no seu caminho".

Voltando ao mundo real, foi o governo dos EUA, com o apoio entusiasmado do New York Times, que (no mínimo) apoiou amplamente o golpe militar que derrubou o governo de Chávez – brevemente, até ser revertido por uma revolta popular. Quanto a Chávez, independentemente do que se pense dele, ele ganhou repetidas eleições atestadas como livres e justas por observadores internacionais, incluindo a Fundação Carter, cujo fundador, o ex-presidente Jimmy Carter, disse que "das 92 eleições que monitorizamos, diria que o processo eleitoral na Venezuela é o melhor do mundo". E a Venezuela sob Chávez frequentemente obteve boas colocações nas sondagens internacionais sobre o apoio popular ao governo e à democracia (Latinobarómetro, com sede no Chile).

Existiram, sem dúvida, deficits democráticos durante os anos Chávez, como a repressão ao canal RCTV, que provocou enorme condenação – da qual participei, concordando que isso não poderia acontecer numa sociedade livre. Se um canal de TV proeminente dos EUA tivesse apoiado um golpe militar, como fez o RCTV, não seria reprimido alguns anos depois, porque simplesmente não existiria: os seus executivos, se ainda estivessem vivos, estariam presos.

Mas a ortodoxia ganha dos factos com facilidade.

A incapacidade de fornecer informações pertinentes também tem consequências. Talvez os americanos devam saber que sondagens realizadas pela principal agência de opinião dos EUA revelaram que, uma década após o crime do século, a opinião pública mundial considerava os Estados Unidos como a maior ameaça à paz mundial, muito à frente dos outros concorrentes; e não o Irão, que carrega esse título apenas entre os analistas americanos. Talvez, em vez de esconder esse facto, a imprensa pudesse ter cumprido o seu dever de divulgá-lo, além de provocar algum debate sobre os seus significados e que lições o resultado pode trazer para a política externa do país. Negligência que tem consequências.

Sobram exemplos suficientemente graves como esses, mas existem outros ainda mais importantes. Tomemos a campanha eleitoral de 2016 no país mais poderoso da história mundial. A cobertura era gigantesca e instrutiva. Os grandes problemas foram quase inteiramente evitados pelos candidatos e praticamente ignorados pelos comentadores políticos, de acordo com o princípio jornalístico em que "objetividade" significa relatar com precisão o que os poderosos fazem e dizem, não o que eles ignoram. O princípio vale mesmo quando o destino da espécie está em jogo – tanto pelo perigo crescente de uma guerra nuclear quanto pela iminência de uma catástrofe ambiental.

A negligência atingiu um pico dramático no dia 8 de novembro, um dia realmente histórico. Naquele dia, Donald Trump obteve duas vitórias. A menos importante delas recebeu cobertura extraordinária da comunicação social: a sua vitória eleitoral, com quase três milhões de votos a menos do que a sua oponente, graças a características regressivas do sistema eleitoral dos EUA. A vitória muito mais importante passou em silêncio quase total: a vitória de Trump em Marraquexe, em Marrocos, onde cerca 200 nações se reuniram para colocar um conteúdo sério no Acordo de Paris sobre mudanças climáticas, do ano anterior. No dia 8 de novembro, o processo parou. O restante da conferência foi dedicado em grande parte a tentar manter viva alguma esperança, com os EUA não apenas a retirem-se do acordo, mas decidido a sabotá-lo aumentando brutalmente o uso de combustíveis fósseis, desmantelando a regulação existente e rejeitando o compromisso de investir em energia renovável nos países em desenvolvimento.

Na vitória mais importante de Trump, estavam em jogo as perspetivas para a vida humana organizada da forma como conhecemos. A cobertura foi praticamente zero, seguindo o mesmo conceito de "objetividade" determinado pelas práticas e doutrinas do poder.

Uma imprensa verdadeiramente independente rejeita o papel de subordinação ao poder e à autoridade. Manda a ortodoxia às favas, questiona o que "as pessoas bem pensantes aceitam sem questionar", rasga o véu da censura tácita, disponibiliza ao público a informação e um leque de opiniões e ideias que são o pré-requisito para uma participação significativa na vida social e política, e além disso, oferece aos cidadãos uma plataforma para o debate e a discussão das questões que lhes dizem respeito. Serve, assim, de base para uma sociedade verdadeiramente livre e democrática.

Artigo publicado em Chomsky.info. Tradução de Clarisse Meireles, Carta Maior.

domingo, 29 de abril de 2018

Os perigos de uma história única


Chimamanda Adichie, escritora nigeriana, fala-nos sobre os perigos de uma história única. Vale passar a vista! E vale, sobretudo, ampliarmos a nossa "lente de ver o mundo". 
Se Chimamanda traz tanta atenção aos perigos da história única, ela ressalta o poder das histórias. “Histórias têm sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar”, pondera. “Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida.”



O valor da Filosofia


A rigor, o conhecimento filosófico provoca uma inquietação que serve como via para a autodeterminação. Portanto, como um exame crítico do fundamento das nossas convicções, crenças e preconceitos. Por conseguinte, é este tipo de ‘pedagogia filosófica’, que viabiliza a formação de sujeitos independentes, com atitude interrogativa e investigativa. Poderíamos dizer, de forma genérica, que este é o contributo da filosofia para a formação de cidadãos críticos, capazes de contribuir efetivamente com a sociedade a fim de enfrentar os desafios práticos do cotidiano.

Le Penseur- Rodin 


Quem não tem umas tintas de filosofia é homem que caminha pela vida fora sempre agrilhoado a preconceitos que se derivam do senso-comum, das crenças habituais do seu tempo e do seu país, das convicções que cresceram no seu espírito sem a cooperação ou o consentimento de uma razão deliberada. O mundo tende, para tal homem, a tornar-se finito, definido, óbvio; para ele, os objectos habituais não erguem problemas, e as possibilidades infamiliares são desdenhosamente rejeitadas. Quando começamos a filosofar, pelo contrário, imediatamente caímos na conta de que até os objectos mais ordinários conduzem o espírito a certas perguntas a que incompletissimamente se dá resposta. A filosofia, se bem que incapaz de nos dizer ao certo qual venha a ser a verdadeira resposta às variadas dúvidas que ela própria evoca, sugere numerosas possibilidades que nos conferem amplidão aos pensamentos, descativando-nos da tirania do hábito. Embora diminua, por consequência, o nosso sentimento de certeza no que diz respeito ao que as coisas são, aumenta muitíssimo o conhecimento a respeito do que as coisas podem ser; varre o dogmatismo, um tudo-nada arrogante, dos que nunca chegaram a empreender viagens nas regiões da dúvida libertadora; e vivifica o sentimento de admiração, porque mostra as coisas que nos são costumadas num determinado aspecto que o não é.

RUSSELL, B. Os problemas da filosofia. Tradução António Sérgio. Coimbra: Almedina, 2001. p. 148.



quinta-feira, 26 de abril de 2018

"Comptine d`un autre ete - l`apres-midi" - Yann Tiersen




Fantastic! 


Direitos Humanos na Grécia de Aristóteles?

O tema desta dissertação dar-se-á em torno da antropologia de Aristóteles, sua visão organicista da cidade, e a aplicação de sua teoria ético-política na atualidade, através da análise da possibilidade de haver Direitos Humanos na Grécia Antiga - é preciso levar em consideração que se trata de um conjunto de ideias ainda muito imaturas. Apenas considerações gerais sobre o assunto, a título de preparação de aula.

Segundo Aristóteles, o homem é dotado de três características essenciais, a saber: é um ser político; dotado de razão e linguagem; bem como, um ser ético.
O homem é um ser político porque ele apenas pode realizar-se plenamente na “pólis”. Ao nascer, o ser humano é carente de tudo, enquanto a cidade é autossuficiente, bastando a si mesma. Neste sentido, fora da pólis só há lugar para deuses e brutos. Fato que, por consequência, implica que o ser humano apenas pode alcançar sua natureza racional dentro da pólis.
Por outro lado, o homem é um ser dotado de razão e linguagem, porque possui o logos e a capacidade de conferir o certo e o errado. Desse modo, o homem dispõe da capacidade de comunicar-se - o que, diferentemente dos outros animais, atribui a ele sua natureza ética, tendo em vista que, sem ela, ele seria o mais selvagem e pavoroso dos seres. Portanto, se o logos lhe dá a capacidade de razão e linguagem, esses artifícios devem ser usados de maneira essencialmente ética.
No âmbito social, segundo Aristóteles, haveriam duas esferas: o “oikos” e a “pólis”. O oikos representa o domínio privado das relações humanas, enquanto a pólis representa o domínio público. Entre o oikos e a pólis, existem diferenças de espécie, quantidade e qualidade. Sendo assim, a pólis ocupa um lugar de “superioridade”, tendo em vista que ela abrange o indivíduo, de modo que este é apenas uma parte em relação ao todo, e ocupa uma posição determinada dentro da sociedade.
Portanto, é necessário evidenciar o caráter organicista da “pólis aristotélica”. Na pólis, cada indivíduo ocupava um lugar e possuía uma função. Essa estrutura social seguia a ordem natural do cosmo e, nesse sentido, pode-se dizer que Aristóteles institucionalizou uma hierarquia natural, em que alguns serviam de instrumento para a realização plena de outros. É de se notar, entretanto, que essa explicação naturalista era adequada para a época, tendo em vista que legitimava a diferenciação entre os cidadãos livres, as mulheres e os escravos.
Portanto, de maneira sucinta, pode-se afirmar que, de fato, o homem é um ser político, razoável e ético. Contudo, há de se restringir a concepção de “homem” àqueles seres humanos do sexo masculino, nascidos de pai e mãe gregos e que, de qualquer modo, encontravam-se desimpedidos de qualquer ofício, além da dedicação política à cidade. Esses “homens” adquiriam a qualidade de cidadãos gregos, qualidade esta que lhes atribuíam diversas honrarias, bem como o direito ao acesso à justiça, à liberdade e à igualdade (entre si).
De acordo com esse panorama, é pertinente questionar a existência de Direitos Humanos na Grécia. Aqui entende-se Direitos Humanos não em um sentido restrito do termo, tendo em vista que é de criação moderna, mas em um sentido amplo, que implique em valores intrínsecos da própria natureza humana.
Desde logo, afastam-se, da questão, os direitos sociais. Não há como se pensar em direito a moradia, saúde e educação para todos em uma sociedade cuja desigualdade é estrutural. Os direitos de igualdade possuem aplicação imediata para uma totalidade, o que não ocorria na Grécia nem nunca poderia ocorrer, já que a hierarquia natural dava a cada um o que se merecia, seguindo a ordem do cosmo.
Afastada a existência dos direitos sociais, cabe agora analisar a possibilidade dos direitos de liberdade, ou direitos fundamentais de primeira geração. Pode-se, nesse momento, afirmar que havia uma certa noção de liberdade e igualdade na Grécia Antiga. Entretanto, essas noções eram aplicadas a uma sociedade elitista, para uma pequena minoria. Isso significa que elas assumiam um caráter muito mais discriminatório:; eram verdadeiras regalias, e não direitos.
A impossibilidade de existência de Direitos Humanos na Grécia Antiga é manifesta, principalmente, pelo fato de que, se havia algo de natural na “pólis”, esse algo seria a desigualdade, a hierarquia, e não os direitos e os valores éticos implícitos.
Portanto, conclui-se que a sociedade política prevista por Aristóteles não pode servir de fundamento ético para os Direitos Humanos (com algumas exceções, como a releitura do significado de “endoxa” ). Ainda que se tente reproduzir a ideia de que o ser humano apenas se realiza na pólis (comunitaristas), de modo algum essa plenitude trará consigo a instrumentalização estrutural de outros seres humanos, como se dava em Aristóteles.