O primeiro canto

O primeiro canto

domingo, 10 de novembro de 2024

Caminhais em direção da solidão. Eu, não, eu tenho os livros! - Marguerite Duras


Como escreveu Jorge Luis Borges: “Creio que uma forma de felicidade é a leitura.”  Posto isto, que possamos viver uma vida, quiçá, mais feliz. 

  


sábado, 2 de novembro de 2024

Reverdecer

 

"Mi voz sea la herramienta
Cuando el trabajo sea reverdecer"

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Sobre a importância do ensino da filosofia




A filosofia, enquanto busca pela verdade, é um conhecimento que promove a autonomia do sujeito. Uma possibilidade de entendimento capaz de nos fazer enxergar e interpretar o mundo para além das verdades imediatas, fazendo-nos questionar o que nos é apresentado e, deste modo, romper com uma visão dogmatizada, passiva - sendo, também, diante de questões complexas, uma rejeição às respostas simplistas.
Segundo Sílvio Gallo [1], a filosofia tem uma caracterização triádica. A saber: “trata-se de um pensamento conceitual, apresenta um caráter dialógico e possibilita uma postura de crítica radical”. Portanto, de acordo com essa tríade, primeiramente a filosofia forma conceitos. Esse aspecto peculiar também nos é apresentado por Deleuze e Guattari [2]: “Filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos”. Com isto, podemos afirmar que faz parte da atividade filosófica expor as interpretações do mundo a partir de uma conceituação daquilo que se quer explicar. Em segundo lugar, a dialogicidade. Ou seja, a permanente atividade dialética, que tem por consequência o debate das ideias, que afasta o dogmatismo.  Por último, é próprio da praxe filosófica, a crítica radical, fundamentada no questionamento - podemos entender radical, como uma forma sistemática de investigação, que leva em conta a importância de procurar as razões substanciais daquilo que se pretende demonstrar. Sendo assim, a indagação é uma ação inseparável da postura filosófica - sem perguntas, não há possibilidade de um pensamento autenticamente filosófico.
De acordo com Antônio Joaquim Severino [3], a reflexão filosófica é uma insistente busca de significado para a existência. Além disso, ao estudarmos o pensamento filosófico dos mais diversos pensadores e pensadoras, de épocas e lugares distintos, somos levados a ampliar a nossa visão de mundo e, ainda, tornamo-nos mais habilidosos para enfrentar os dilemas vividos em nosso próprio tempo histórico. Seja do ponto de vista individual, ou numa perspectiva coletiva. Afinal, a vida na pólis não faz parte de uma escolha, do ponto de vista do postulado aristotélico, é intrínseca por natureza. À vista disso, a filosofia nos habilita a viver em sociedade e a contribuir para que esta experiência comunitária seja o mais benéfica para todos - importante considerar que a compreensão do que aqui se apresenta como filosofia é, apesar de controvertível, um conhecimento de fundamento ético, preceptora de cidadania. Porém, reconhecemos que a filosofia não é, sozinha, responsável pela formação cidadã. E sim, despretensiosamente, apenas um contributo.
Por consequência, é obrigação do Estado oferecer uma educação formal que tem como base um conhecimento que pode promover a formação de cidadãos capazes de intervir de modo competente para a resolução de problemas. Destarte, pensar a educação, de modo amplo e comprometido, atende a uma visão platônica da formação filosófica. Em que o filósofo, no livro A República, é descrito enquanto o prisioneiro que não aceita o que lhe é cotidianamente exposto. Portanto, o filósofo é aquele que desconfia da realidade imediata e busca a verdade – que nem sempre é de fácil acesso. Para isso, é preciso que tenhamos uma educação capaz de viabilizar a busca autônoma e criteriosa de conhecimentos que possam, de fato, condizer com legitimidade e eficiência.  Num panorama conjuntural, de descrédito tanto da filosofia quanto do seu ensino, é necessário pensarmos sobre este assunto. Inclusive, como forma de apresentar a importância do debate numa época de supervalorização do tecnicismo, em que se faz uso de um discurso com viés pragmático para o enfrentamento dos problemas sociais. 
Isto posto, é preciso admitir a necessidade de um ensino sistemático e criterioso, vinculado a valores políticos e democráticos, com uma postura crítica e livre de pensamentos predeterminados. Deste modo, o ensino da filosofia tem um papel fundamental na formação crítica, seja em que idade for. Ainda mais no momento histórico em que vivemos, com a desvalorização do posicionamento intelectual, sistematizado e metódico de interpretação dos acontecimentos. Algo que deveria, em variados aspectos, servir para apresentação de resolução de problemas. 

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[1] Cf. GALLO, Sílvio. Metodologia do ensino de filosofia: uma didática para o ensino médio. Campinas: Papirus, 2012. (p.54). 
[2] Cf. DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O que é filosofia? 3 ed. Trad. Bento Prado Jr. São Paulo: Editora 34, 2010. (p. 08).
[3] Cf SEVERINO, Antônio Joaquim. Educação, sujeito e história. 3 ed. São Paulo: Olho d’água, 2012. (p. 41).

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

As redes sociais e o show da intimidade


“Tanto a ternura mais desarmada quanto os mais sangrentos 
poderes têm necessidades de confissão.” 
Michel Foucault



Quando Glauber Rocha, figura polêmica do Cinema Novo, apresentou a ideia de que para fazer filmes bastava criatividade e uma câmera na mão, não imaginou que isso poderia ser uma espécie de princípio comum do comportamento social de massa, baseado nas  redes sociais [1]. Sim, vivemos na era das interações online, onde, parafraseando o vanguardista, basta um smartphone na mão e alguma coisa na cabeça. O processo criativo, neste sentido, é revertido para a busca de likes, seguidores, “amigos”, apoiadores – no geral, alguém que concorde e curta as postagens. O importante mesmo, parece, é manter o contato - mesmo que seja com pessoas desconhecidas. Sendo assim, as redes sociais passaram a ser o “lugar” de “convivência”, de informação, de divulgação do que se pensa, sente, da publicização das intimidades, das manifestações políticas; um modo de ser [2]. Ou seja, um tipo de alargamento da convivência social e que, para tanto, é indiferente o lugar e a hora – pode ser de madrugada, na solidão de um quarto fechado.
A conexão é a regra - e quanto mais, melhor (?!). Essa conexão duradoura e pluralizada confere uma naturalização desse modo de convivência - um espaço de permanentes revelações, consideradas, muitas das vezes, triviais. Em decorrência dessa naturalização, aquilo que antes seria protegido, por fazer parte da intimidade, agora é exposto sem maiores considerações. Segundo Paula Sibilia, no livro O show do Eu: a intimidade como espetáculo [3]:

Em tempos mais respeitosos das fronteiras, o espaço público era tudo aquilo que ficava do lado de fora quando a porta de casa se fechava – e que, sem dúvida, merecia ficar lá fora. Já o espaço privado era aquele universo infindável que remanescia do lado de dentro, onde era permitido ser "vivo e patético" à vontade, pois somente entre essas acolhedoras paredes era possível deixar fluir livremente os próprios medos, as angústias, os desejos e outras emoções e patetismos considerados estritamente íntimos – e, portanto, realmente secretos ou inconfessáveis. (p.96)

Neste sentido, na atualidade, não é mais nítida a fronteira entre vida pública e privada. As redes sociais atuam como uma espécie de portfólio da vida privada - que passa a ser pública, fazendo com que a intimidade perca o seu valor devido a essa espetacularização. Por conseguinte, tornam-se um show das intimidades. E aquilo que deveria ser tratado com formalidade e de modo discreto, vira performance para quem tiver acesso.
Esse espetáculo passa por várias esferas e variados atores sociais, dos mais invisíveis aos mais destacadamente notórios. Ademais, o caráter autobiográfico e ficcional das redes sociais, que permite a construção idealizada da exposição aos olhares alheios, possibilita cada vez mais o aumento e fidelização dos usuários. [4]
Entender essas questões é imprescindível para a compreensão das relações sociais na atualidade. Destacadamente na era dos prints, em que se cria uma imagem mostrando o que se vê na tela naquele momento, é forçoso a atenção ao que é pronunciado e, sobretudo, para quem.
Numa lógica de narcisismo sempre latente, é importante considerarmos o modo de nos relacionarmos, a apresentação de quem somos e do que nos move a agir como agimos no espaço público/privado. Além disso, é preciso desnaturalizar os comportamentos que, permeados pelo suposto distanciamento físico, pressupõe uma interação (seja com um único indivíduo, seja com centenas de pessoas), nem sempre saudável e propulsora de bom convívio. Por fim, não à toa, cada vez mais há quem faça do acesso a determinadas redes, uma espécie de "quintal de casa". Divulga-se o que bem se entende. Aceita-se muito ou quase tudo, como se o mundo online não tivesse repercussão no mais corriqueiro dos nossos dias e, ilusório que seja, carregasse em si alguma proteção às consequências das nossas ações. Neste sentido, continua válida a reflexão de Guy Debord: “No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso.”
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[1] Para que fique claro, é preciso compreender uma definição muitíssimo básica das ditas redes sociais. De modo geral, significa uma relação de interação virtual, via troca de mensagens, conteúdos e outros, por pessoas ou grupos de pessoas. Sendo que há pessoas que fazem contas para animais interagirem também. Enfim... sabemos que a vida é complexa! 
[2] Algo que parece não causar nenhum estranhamento é a divulgação de detalhes da vida doméstica. Podemos saber como é a decoração da sala, do quarto, da cozinha, até do banheiro, sem precisar sequer conhecer o morador da casa. Também podemos facilmente saber por onde as pessoas andam, com quem estão. O que comem... E na era do "antes e depois", podemos comparar decoração, aparência pessoal e quase tudo. Ah... e ainda  temos o famoso 'TBT', uma forma de manter o passado presente, algo que faz o maior sucesso nas redes. Ao que parece, não há limites para o que pode ser postado (confessado) - e tudo isso de forma voluntária e comprometida com a divulgação de momentos tidos como importantes para o mundo, ou uma parte das pessoas do mundo. Afinal, são momentos únicos de uma vida única, especialmente singular. 
[3] Cf. SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016.  
[4] Não é pequeno o número de pessoas que se deixam levar pelo canto das sereias. A apresentação editada e planejada de como se mostrar aos outros, é uma manipulação amplamente sistêmica e, comumente, aceita de maneira não crítica.  

terça-feira, 13 de abril de 2021

Memórias do calabouço

 


"Aqui não há ódio. O ódio não nos motiva. Nosso testemunho integra-se ao espírito da dignidade. Um antigo provérbio diz: 'Qem se lembrar do passado tem que perder um olho. Quem o esquecer, os dois'. Move-nos, a todos, o sentimento desesperado de que as bestas permaneçam em suas tocas, para que no Uruguai de Todos (também deles, em seus respectivos lugares) seja hasteada a seguinte bandeira: NUNCA MAIS."

***
O testemunho desses homens, sem o ódio que seria compreensível, é validado pela vida que viveram depois da libertação dos calabouços. Compromisso com os ideais que orientaram e guiam suas vidas. Tiveram que resistir aos sofrimentos do corpo e da alma. Tiveram que enfrentar fantasmas... Suportaram anos de tortura, isolamento e situações que muitos não conseguiram suportar. E nem por isso são melhores. O olhar de solidariedade aos que sucumbiram é uma marca da capacidade que temos de compreender a humanidade que há em nós. No caso deles, a capacidade de analisar inclusive o contexto social, psicológico, de seus algozes.

"Uma noite de 12 anos" foi baseado nesse livro. O filme em si é capaz de mostrar o horror que esses homens viveram. O amargo tempo de quase desesperança. Ainda assim, o livro nos revela que o inferno foi mais profundo. Não obstante, 
através de suas vidas, aprendemos que é possível experimentar humilhações brutais e, apesar disso, podemos (precisamos!) recrutar internamente a força necessária para que isso não nos destrua.
Por fim, outra grande lição, a maior inspiração que esses testemunhos carregam, é de que:

"Quando tudo, tudo é hostil e mesmo quando querem entrar em sua consciência, com as unhas sujas, o refugio dentro de si mesmo é uma conquista. Dia a dia é necessário lutar."

"Porque um dos princípios que tínhamos era resistir, mas resistir com dignidade."


sexta-feira, 9 de abril de 2021

Para o meu Outono de todas as estações

 

De todas as estações, o Outono é o tempo em que a minha alma se sente em casa. É também a estação do teu nascimento. Um tempo de profundas mudanças. 

Muitas dessas palavras já estão embotadas pelo tempo, ainda assim preciso te dizer cada uma delas. 

O mundo não é um lugar fácil. A vida não é fácil, mas compartilhá-la contigo deixa mais leve todo o peso que existe. É tão bom te conhecer e conviver com esse teu sorriso. Esse teu jeito forte e suave. Um contraste encantador!

Contigo me sinto bem para ser quem sou - vulnerável, caótica, limitada. Aprendiz!

A nossa relação não tem espaço para a perfeição. Tem espaço para carinho, abraços e beijos. Para exigências; desculpas; por favor; obrigada! Tem espaço para as fronteiras, assim como para muita reflexão e novas tentativas. Preocupo-me com as palavras e o meu jeito de lidar com a vida. Preciso levar a sério as palavras, pois é meu desejo que possas utilizá-las de modo adequado. Fale o que te incomodar, exponha o pensamento. No entanto, lembre-se: o som do silêncio acalma a alma. 

Desejo tantas coisas pra ti. E prometo que enquanto estiver ao teu lado, vou fazer o possível para realizar esses desejos.  

Dos muitos anseios, o mais forte é que possas ter certeza de que dentro de ti existe uma força capaz de te fazer superar as dificuldades. No entanto, é necessário ter paciência,  respirar, manter a calma e contar com pessoas de confiança. Na dúvida, leia e releia o poema de Maya Angelou: “Ainda assim eu me levanto” – sinta (absorva!) o poder desse grito de força e resistência. 

Viva muito! E compreenda que os livros podem contribuir para o autoconhecimento, assim como conhecer mais das pessoas e do mundo. LEIA! LEIA! Leia o máximo possível. Apaixone-se por bons livros. Pois com a leitura, nunca estamos verdadeiramente sozinhas. Nunca esqueça: literatura salva! Trabalhe, seja independente. Tenha uma vida simples e cheia de pequenos contentamentos. Observe o céu! Lá, os pássaros voam. Também é o lugar das nuvens, do sol, da lua. Contemple a lua - o ciclo lunar é um sopro de vida; seus mistérios e simbologias dão um toque de encantamento para tudo o que existe. Não esqueças, somos mulheres enluaradas. Olhe sempre para o céu noturno, o mar de estrelas.

Estude, escute boas músicas. Dance. Cante. Toque a terra. Regue as plantas. Perceba quando é tempo de morrer e de viver. Compreenda esse mistério.

Seja responsável por ti. Não responsabilize ninguém por tuas escolhas. Se não faz bem, tenha coragem de mudar. Transforme-se! 

Tenha boas amizades - enxergue o quanto isso é valioso e benéfico. Os amigos ajudam a suportar o peso e a leveza da vida. 

Olhe nos olhos. Aprecie a beleza de ouvir uma voz que fala com honestidade.

Respeite as pessoas. Discorde quando for necessário. E quando errar, reconheça. Peça desculpas - contudo, só faça isso se for sin.ce.ro. Afaste-se se isso for importante. 

Perdoe a si e tente perdoar aos demais. Seja boa com você. Conheça seus limites e respeite quem você é.

Compreenda que toda relação saudável é uma soma. Reciprocidade.

Seja verdadeira consigo e com as pessoas.  Ame a si mesma! E não esqueça: o alimento do amor é a liberdade. Deixe ir quem não quer ficar. Vá você também, se for da tua vontade. 

Lembre-se do quanto és amada e respeitada.

Sinta-se bem com o teu corpo. Aceite as mudanças que o tempo provoca. Goste da tua feição, da pele que habita. Cuide da saúde, porém, leve em consideração que saúde não é ausência de doença. Alimente-se com comidas saudáveis. Beba chá! Beba muita água.

Não faças da tua vida um espetáculo. Seja discreta. Não te preocupes com as folhas, cuide bem das raízes. Não é qualquer vento que derruba uma árvore de raiz profunda. Pense nisso - é uma analogia que faz bem.

Viva e deixe viver!

Mesmo reconhecendo que a vida não é fácil (e que haverá muito sofrimento, pois todos nós sofremos), MANTENHA A ESPERANÇA! Por favor, meu Outono, cultive-a! Sem esperança, não conseguimos continuar. Como diz Raymond Williams: “Ser verdadeiramente radical é tornar a esperança possível e não o desespero convincente.” Entretanto, a esperança não poder ser cega. Falo em esperança no sentido de comunidade – de fé em si, mas nunca esquecendo o seu lugar no mundo e da coletividade desse mundo. Ninguém é uma ilha! Lute ao lado das mulheres e homens que lutam por justiça - junte-se aos que resistem e ousam forjar um mundo diferente.

Não te esqueças, todos nós estamos a caminho do poente de nossas vidas. E enquanto a morte não existir: VIVA!

Ame a natureza. Cultive plantas! Aprecie o calor que o sol nos faz sentir. Perceba a chuva como uma dádiva. Sinta o vento bater no teu rosto. Escute as ondas do mar. Veja, sinta, ENXERGUE a vida com admiração. Inspire, respire e expire. E não te esqueças do ensinamento do romantismo alemão: O caminho do mistério aponta para dentro.

É MUITO saudável escutar a tua voz, sentir o teu abraço. Isso me faz sentir muita gratidão. Obrigada sempre, sempre! Obrigada por fazer parte de quem sou. 

O nosso amor persistirá!

Por fim, se algum dia o desespero for muito grande, respira e repita: Isso também vai passar! E nunca esqueça: Ainda assim eu me levanto!

Meu amor, meu Outono de todas as estações.

 


domingo, 21 de fevereiro de 2021

Um amor - Dino Buzzati

 


“A Idade Madura”, de Camille Claudel, é uma escultura marcada pela imagem de uma mulher que suplica, de joelhos, nua, que o amado fique com ela. O homem representa Rodin, que é afastado pelos braços de outra mulher. Uma escultura autobiográfica, que escancara os tormentos que a artista padecia. Uma história que dilacerou sua vida, levando-a a perder o controle, transformando uma mulher talentosa num fantasma de si. Essa imagem foi marcante enquanto lia esse livro. No lugar de Claudel, Antonio Dorigo. Um homem alucinado, desgraçadamente apaixonado. Alguém que implora, que se sujeita e que aceita situações ultrajantes. Tudo isso em nome de algo que ele chama de amor.

O livro nos faz refletir sobre muitas coisas, e é preciso não ter testemunhado situações similares (ainda que apenas sutil), para considerarmos essas pessoas, que parecem acometidas de grave doença, como meramente estúpidas. A paixão pode ter um efeito desorientador. Em alguns casos, devasta a pessoa apaixonada. Algo representado em várias mitologias e, para infortúnio de quem ama, em grande medida, comum.  

Segundo Platão, só amamos o que desejamos e só desejamos aquilo que nos falta. Em outras palavras, a falta desperta o desejo... e, segundo o filósofo, amamos o que nos interessa, o que desejamos. E por causa da falta, idealizamos aquilo que não temos. Em resumo, a isto chamamos de amor platônico.

Talvez essa seja uma forma de entender o amor que Antonio Dorigo sente por Laide, jovem prostituta que despertou nele muita paixão. A grandiosidade do livro é acompanhar como isso acontece. Além disso, também devemos levar em consideração a capacidade imaginativa que Dorigo tem. Os conflitos internos são grandiosos. Um exemplo de quem experimenta a tormenta da paixão e se questiona. Como disse o apaixonado: “O amor é uma doença, horrível”. Neste caso, muitos filósofos do período helenístico iriam concordar. Inclusive a palavra paixão vem de pathos (doença, sofrimento) donde deriva patologia. Incontestável que esse olhar filosófico é apenas um, entre tantos. De todo modo, parece uma forma de entendermos Antonio Dorigo, homem maduro, com complexo de inferioridade, que não consegue se relacionar bem com as mulheres - o que o faz capitalizar as relações, evitando os desgastes e possíveis rejeições.

Dino Buzzati consegue nos apresentar, através de uma estória de amor frustrado, circunstâncias árduas, em que solidão, ansiedade, obsessão, são alguns dos dilemas enfrentados pelo protagonista. Isso tudo atravessado por reflexões existenciais. Num intenso fluxo de pensamentos e numa linguagem cheia de teor poético. Além disso, um livro intrigante, uma estória cheia de histórias. Em algumas partes, serve como uma espécie de espelho. Até que ponto é possível suportar situações inaceitáveis em nome de um interesse dominado pela paixão? Dorigo aceita muita coisa... Contudo, o livro não é maniqueísta. Há espaço para questionarmos as nuances do comportamento do apaixonado. Neste sentido, Jung dizia que existe em nós algo que não aceitamos, que não reconhecemos, que tentamos esquecer. A isso, ele chamou de “Sombra”. Se não enxergamos a nossa própria sombra, tendemos a nos perceber pessoas melhores e mais coerentes do que de fato somos.