O primeiro canto

O primeiro canto

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Meus queridos analfabetos


"A figura que há tempo domina a cena social é a do 'analfabeto secundário'. Pode ser um ministro, um gestor, uma empregada de caixa de supermercado."


 Por José Fanha



Sorrio sempre que alguém diz: "Não gosto de ler."
Todo o homem é um leitor. Lê imagens, sinais, signos e palavras. Lê a linguagem das nuvens e sabe que vai chover. Lê a linguagem dos pássaros, a das cabras, a das águas, lê todas as linguagens da natureza. Lê as linguagens que se lêem com a vista, com o olfacto, com o sabor, com o ouvido, com a pele. Para sobreviver na selva ou na tundra, os nossos antepassados dos tempos pré-históricos tinham que ser muito bons leitores.
A esta capacidade original de ler veio juntar-se a capacidade de nomear através da palavra. Esse foi um primeiríssimo acto mágico e maravilhoso, fundador da história da humanidade.
O próprio mundo na tradição judaico-cristã é criado pela palavra. Segundo o Génesis: "No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra era informe e vazia. As trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-Se sobre a superfície das águas.Deus disse: 'Faça-se luz'. E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. Deus chamou dia à luz e noite às trevas."
O criador do Homem e do Mundo disse: "Faça-se luz". Isto é, a palavra gerou a coisa. Mais do que isso, a palavra e a coisa ficaram indissoluvelmente ligadas. A coisa contém a palavra. Melhor, contém o nome. E o nome convoca a coisa.
Aos olhos de cada ser humano, aquela extraordinária descoberta que era a palavra dita continha uma forma de poder sobre o objecto nomeado. Pelo menos cada palavra era uma forma de um homem se aproximar da verdade nuclear daquilo que era nomeado, da inteireza fragmentada entre céus e terra, água, fogo e ar. Nomear seria uma forma de aproximação ao próprio acto primeiro dos deuses na criação do mundo e das coisas.
Esse era e é o poder dos analfabetos primários que são definidos desta forma pelo poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Henzensberger: o analfabeto clássico não sabe ler nem escrever, precisa da memória, e tem de exercer a capacidade de narrar.
Foram analfabetos que pegaram na palavra e inventaram a literatura nas suas formas elementares, o mito, o conto, a canção, as rimas infantis. E é com esses instrumentos que os analfabetos se relacionam consigo próprios, com os outros, com o mundo, com o correr do tempo.
Sem querer idealizá-los ou embarcar na ilusão do bom selvagem, há que lembrar que sem tradição oral não haveria poesia, não haveria livros. A escrita levou tempo a fazer a sua entrada em cena. No entanto, inventada a escrita, durante muito tempo foi considerado preguiçoso aquele que tivesse o hábito de recorrer ao livro, já que, segundo Platão, a sabedoria na sua dialéctica tinha de ser oral.
O escrito debilitava o pensamento e destruía a memória. Ao contrário do orador, o texto escrito não era capaz de dar respostas nem se poderia defender quando questionado.
A verdade é que a escrita foi uma tecnologia que levou tempo a desenvolver-se e a ser utilizada integral e proficuamente pelo pensamento filosófico e científico, e bastante mais tempo ainda a entrar no quotidiano como um instrumento generalizado de relação individual e, digamos, poética com o mundo, para além da sua função de relatar o real.
No seu excepcional romance Vinte anos e um dia, o escritor Jorge Semprún afirma de uma forma simultaneamente definitiva e carregada de ironia que: “As histórias completamente verídicas só interessam à polícia.”
De facto, todos nós somos feitos do que vivemos, do que lemos, do que imaginamos e do que escrevemos. Como leitores, preservamos pedaços do pensamento, da emoção vivida ou escrita por outra pessoa para nos tornarmos nós próprios em participantes de um acto de criação, uma forma de diálogo que desenvolvemos connosco próprios, com o mundo e com o tempo.
É a leitura e a escrita que nos permitem habitar o tempo para trás e para a frente, no sentido da memória, ou da esperança.
Vivemos um tempo dominado por uma economia que mata, como diz o Papa Francisco, uma economia que reduz o entendimento da complexidade do mundo, que vê a cultura como mercadoria e a ciência como estrito instrumento prático. Esta economia reduz a vida dos homens a uma coisa sórdida e limitada em que o desejo é estereotipado e a vida é uma prisão chamada tempo presente.
A figura que há tempo domina a cena social é a do “analfabeto secundário”. Pode ser um ministro, um gestor, uma empregada de caixa de supermercado. Sabe ler e escrever mas diz com frequência que não tem tempo para ler, tem coisas mais importantes para fazer. É activo, adaptável, tem boa capacidade para abrir caminho, safa-se na vida. Está muito bem informado sobre os importantíssimos assuntos do dia que amanhã esquecerão. Sabe ler as informações de uso dos objectos que compra. Sabe usar os cartões de crédito e sabe passar cheques. Vive dentro de um mundo que o afasta hermeticamente de tudo quanto possa inquietar a sua consciência. A atrofia da memória não o preocupa. Aprecia a sua própria capacidade para se concentrar em nada. Vê a cultura como espectáculo ou mercadoria. Não tem a menor ideia de que é um analfabeto, analfabeto secundário, mas analfabeto. 
A sua escrita está reduzida ao mínimo. O seu meio ideal é a televisão, as redes sociais, o SMS. Habita o território do lugar-comum e alimenta-se de doses fartas das “reflexões” de comentadores, políticos, económicos, desportivos e outros produtores do pensamento único.

Disponível em: https://www.publico.pt/2015/01/20/sociedade/noticia/meus-queridos-analfabetos-1682684

terça-feira, 12 de novembro de 2024

domingo, 10 de novembro de 2024

Caminhais em direção da solidão. Eu, não, eu tenho os livros! - Marguerite Duras


Como escreveu Jorge Luis Borges: “Creio que uma forma de felicidade é a leitura.”  Posto isto, que possamos viver uma vida, quiçá, mais feliz. 

  


sábado, 2 de novembro de 2024

Reverdecer

 

"Mi voz sea la herramienta
Cuando el trabajo sea reverdecer"

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Sobre a importância do ensino da filosofia




A filosofia, enquanto busca pela verdade, é um conhecimento que promove a autonomia do sujeito. Uma possibilidade de entendimento capaz de nos fazer enxergar e interpretar o mundo para além das verdades imediatas, fazendo-nos questionar o que nos é apresentado e, deste modo, romper com uma visão dogmatizada, passiva - sendo, também, diante de questões complexas, uma rejeição às respostas simplistas.
Segundo Sílvio Gallo [1], a filosofia tem uma caracterização triádica. A saber: “trata-se de um pensamento conceitual, apresenta um caráter dialógico e possibilita uma postura de crítica radical”. Portanto, de acordo com essa tríade, primeiramente a filosofia forma conceitos. Esse aspecto peculiar também nos é apresentado por Deleuze e Guattari [2]: “Filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos”. Com isto, podemos afirmar que faz parte da atividade filosófica expor as interpretações do mundo a partir de uma conceituação daquilo que se quer explicar. Em segundo lugar, a dialogicidade. Ou seja, a permanente atividade dialética, que tem por consequência o debate das ideias, que afasta o dogmatismo.  Por último, é próprio da praxe filosófica, a crítica radical, fundamentada no questionamento - podemos entender radical, como uma forma sistemática de investigação, que leva em conta a importância de procurar as razões substanciais daquilo que se pretende demonstrar. Sendo assim, a indagação é uma ação inseparável da postura filosófica - sem perguntas, não há possibilidade de um pensamento autenticamente filosófico.
De acordo com Antônio Joaquim Severino [3], a reflexão filosófica é uma insistente busca de significado para a existência. Além disso, ao estudarmos o pensamento filosófico dos mais diversos pensadores e pensadoras, de épocas e lugares distintos, somos levados a ampliar a nossa visão de mundo e, ainda, tornamo-nos mais habilidosos para enfrentar os dilemas vividos em nosso próprio tempo histórico. Seja do ponto de vista individual, ou numa perspectiva coletiva. Afinal, a vida na pólis não faz parte de uma escolha, do ponto de vista do postulado aristotélico, é intrínseca por natureza. À vista disso, a filosofia nos habilita a viver em sociedade e a contribuir para que esta experiência comunitária seja o mais benéfica para todos - importante considerar que a compreensão do que aqui se apresenta como filosofia é, apesar de controvertível, um conhecimento de fundamento ético, preceptora de cidadania. Porém, reconhecemos que a filosofia não é, sozinha, responsável pela formação cidadã. E sim, despretensiosamente, apenas um contributo.
Por consequência, é obrigação do Estado oferecer uma educação formal que tem como base um conhecimento que pode promover a formação de cidadãos capazes de intervir de modo competente para a resolução de problemas. Destarte, pensar a educação, de modo amplo e comprometido, atende a uma visão platônica da formação filosófica. Em que o filósofo, no livro A República, é descrito enquanto o prisioneiro que não aceita o que lhe é cotidianamente exposto. Portanto, o filósofo é aquele que desconfia da realidade imediata e busca a verdade – que nem sempre é de fácil acesso. Para isso, é preciso que tenhamos uma educação capaz de viabilizar a busca autônoma e criteriosa de conhecimentos que possam, de fato, condizer com legitimidade e eficiência.  Num panorama conjuntural, de descrédito tanto da filosofia quanto do seu ensino, é necessário pensarmos sobre este assunto. Inclusive, como forma de apresentar a importância do debate numa época de supervalorização do tecnicismo, em que se faz uso de um discurso com viés pragmático para o enfrentamento dos problemas sociais. 
Isto posto, é preciso admitir a necessidade de um ensino sistemático e criterioso, vinculado a valores políticos e democráticos, com uma postura crítica e livre de pensamentos predeterminados. Deste modo, o ensino da filosofia tem um papel fundamental na formação crítica, seja em que idade for. Ainda mais no momento histórico em que vivemos, com a desvalorização do posicionamento intelectual, sistematizado e metódico de interpretação dos acontecimentos. Algo que deveria, em variados aspectos, servir para apresentação de resolução de problemas. 

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[1] Cf. GALLO, Sílvio. Metodologia do ensino de filosofia: uma didática para o ensino médio. Campinas: Papirus, 2012. (p.54). 
[2] Cf. DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O que é filosofia? 3 ed. Trad. Bento Prado Jr. São Paulo: Editora 34, 2010. (p. 08).
[3] Cf SEVERINO, Antônio Joaquim. Educação, sujeito e história. 3 ed. São Paulo: Olho d’água, 2012. (p. 41).

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

As redes sociais e o show da intimidade


“Tanto a ternura mais desarmada quanto os mais sangrentos 
poderes têm necessidades de confissão.” 
Michel Foucault



Quando Glauber Rocha, figura polêmica do Cinema Novo, apresentou a ideia de que para fazer filmes bastava criatividade e uma câmera na mão, não imaginou que isso poderia ser uma espécie de princípio comum do comportamento social de massa, baseado nas  redes sociais [1]. Sim, vivemos na era das interações online, onde, parafraseando o vanguardista, basta um smartphone na mão e alguma coisa na cabeça. O processo criativo, neste sentido, é revertido para a busca de likes, seguidores, “amigos”, apoiadores – no geral, alguém que concorde e curta as postagens. O importante mesmo, parece, é manter o contato - mesmo que seja com pessoas desconhecidas. Sendo assim, as redes sociais passaram a ser o “lugar” de “convivência”, de informação, de divulgação do que se pensa, sente, da publicização das intimidades, das manifestações políticas; um modo de ser [2]. Ou seja, um tipo de alargamento da convivência social e que, para tanto, é indiferente o lugar e a hora – pode ser de madrugada, na solidão de um quarto fechado.
A conexão é a regra - e quanto mais, melhor (?!). Essa conexão duradoura e pluralizada confere uma naturalização desse modo de convivência - um espaço de permanentes revelações, consideradas, muitas das vezes, triviais. Em decorrência dessa naturalização, aquilo que antes seria protegido, por fazer parte da intimidade, agora é exposto sem maiores considerações. Segundo Paula Sibilia, no livro O show do Eu: a intimidade como espetáculo [3]:

Em tempos mais respeitosos das fronteiras, o espaço público era tudo aquilo que ficava do lado de fora quando a porta de casa se fechava – e que, sem dúvida, merecia ficar lá fora. Já o espaço privado era aquele universo infindável que remanescia do lado de dentro, onde era permitido ser "vivo e patético" à vontade, pois somente entre essas acolhedoras paredes era possível deixar fluir livremente os próprios medos, as angústias, os desejos e outras emoções e patetismos considerados estritamente íntimos – e, portanto, realmente secretos ou inconfessáveis. (p.96)

Neste sentido, na atualidade, não é mais nítida a fronteira entre vida pública e privada. As redes sociais atuam como uma espécie de portfólio da vida privada - que passa a ser pública, fazendo com que a intimidade perca o seu valor devido a essa espetacularização. Por conseguinte, tornam-se um show das intimidades. E aquilo que deveria ser tratado com formalidade e de modo discreto, vira performance para quem tiver acesso.
Esse espetáculo passa por várias esferas e variados atores sociais, dos mais invisíveis aos mais destacadamente notórios. Ademais, o caráter autobiográfico e ficcional das redes sociais, que permite a construção idealizada da exposição aos olhares alheios, possibilita cada vez mais o aumento e fidelização dos usuários. [4]
Entender essas questões é imprescindível para a compreensão das relações sociais na atualidade. Destacadamente na era dos prints, em que se cria uma imagem mostrando o que se vê na tela naquele momento, é forçoso a atenção ao que é pronunciado e, sobretudo, para quem.
Numa lógica de narcisismo sempre latente, é importante considerarmos o modo de nos relacionarmos, a apresentação de quem somos e do que nos move a agir como agimos no espaço público/privado. Além disso, é preciso desnaturalizar os comportamentos que, permeados pelo suposto distanciamento físico, pressupõe uma interação (seja com um único indivíduo, seja com centenas de pessoas), nem sempre saudável e propulsora de bom convívio. Por fim, não à toa, cada vez mais há quem faça do acesso a determinadas redes, uma espécie de "quintal de casa". Divulga-se o que bem se entende. Aceita-se muito ou quase tudo, como se o mundo online não tivesse repercussão no mais corriqueiro dos nossos dias e, ilusório que seja, carregasse em si alguma proteção às consequências das nossas ações. Neste sentido, continua válida a reflexão de Guy Debord: “No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso.”
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[1] Para que fique claro, é preciso compreender uma definição muitíssimo básica das ditas redes sociais. De modo geral, significa uma relação de interação virtual, via troca de mensagens, conteúdos e outros, por pessoas ou grupos de pessoas. Sendo que há pessoas que fazem contas para animais interagirem também. Enfim... sabemos que a vida é complexa! 
[2] Algo que parece não causar nenhum estranhamento é a divulgação de detalhes da vida doméstica. Podemos saber como é a decoração da sala, do quarto, da cozinha, até do banheiro, sem precisar sequer conhecer o morador da casa. Também podemos facilmente saber por onde as pessoas andam, com quem estão. O que comem... E na era do "antes e depois", podemos comparar decoração, aparência pessoal e quase tudo. Ah... e ainda  temos o famoso 'TBT', uma forma de manter o passado presente, algo que faz o maior sucesso nas redes. Ao que parece, não há limites para o que pode ser postado (confessado) - e tudo isso de forma voluntária e comprometida com a divulgação de momentos tidos como importantes para o mundo, ou uma parte das pessoas do mundo. Afinal, são momentos únicos de uma vida única, especialmente singular. 
[3] Cf. SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016.  
[4] Não é pequeno o número de pessoas que se deixam levar pelo canto das sereias. A apresentação editada e planejada de como se mostrar aos outros, é uma manipulação amplamente sistêmica e, comumente, aceita de maneira não crítica.  

terça-feira, 13 de abril de 2021

Memórias do calabouço

 


"Aqui não há ódio. O ódio não nos motiva. Nosso testemunho integra-se ao espírito da dignidade. Um antigo provérbio diz: 'Qem se lembrar do passado tem que perder um olho. Quem o esquecer, os dois'. Move-nos, a todos, o sentimento desesperado de que as bestas permaneçam em suas tocas, para que no Uruguai de Todos (também deles, em seus respectivos lugares) seja hasteada a seguinte bandeira: NUNCA MAIS."

***
O testemunho desses homens, sem o ódio que seria compreensível, é validado pela vida que viveram depois da libertação dos calabouços. Compromisso com os ideais que orientaram e guiam suas vidas. Tiveram que resistir aos sofrimentos do corpo e da alma. Tiveram que enfrentar fantasmas... Suportaram anos de tortura, isolamento e situações que muitos não conseguiram suportar. E nem por isso são melhores. O olhar de solidariedade aos que sucumbiram é uma marca da capacidade que temos de compreender a humanidade que há em nós. No caso deles, a capacidade de analisar inclusive o contexto social, psicológico, de seus algozes.

"Uma noite de 12 anos" foi baseado nesse livro. O filme em si é capaz de mostrar o horror que esses homens viveram. O amargo tempo de quase desesperança. Ainda assim, o livro nos revela que o inferno foi mais profundo. Não obstante, 
através de suas vidas, aprendemos que é possível experimentar humilhações brutais e, apesar disso, podemos (precisamos!) recrutar internamente a força necessária para que isso não nos destrua.
Por fim, outra grande lição, a maior inspiração que esses testemunhos carregam, é de que:

"Quando tudo, tudo é hostil e mesmo quando querem entrar em sua consciência, com as unhas sujas, o refugio dentro de si mesmo é uma conquista. Dia a dia é necessário lutar."

"Porque um dos princípios que tínhamos era resistir, mas resistir com dignidade."