O primeiro canto

O primeiro canto

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

"Uma única pessoa está ausente, mas o mundo inteiro parece vazio"



Phillipe Ariès (autor da frase que intitula esta postagem) foi um historiador que, entre muitos trabalhos, teve destaque ao falar sobre a morte - uma ausência dominante, que esvazia o mundo. Em O ano do pensamento mágico, a escritora Joan Didion nos faz sentir, a partir de um plural de lembranças e reflexões, esse vazio, essa ausência. O livro é um registro das memórias do primeiro ano sem o seu companheiro de décadas, o também escritor, John Gregory Dunne - que morreu devido a um ataque cardíaco fulminante, em 30 de dezembro de 2003.  

 "Somos seres mortais imperfeitos, conscientes dessa mortalidade mesmo quando a negamos, traídos por nossa própria complexidade, tão incorporada que quando choramos a perda de seres amados também estamos chorando, para o bem ou para o mal, por nós mesmos. Pela perda daquilo que éramos. Do que não somos mais. Do que um dia não seremos de todo" (p. 207).


Didion nos faz pensar na vida, na morte. Na saudade... no luto. Em termos de perder alguém muito especial, talvez o primeiro ano de ausência seja um dos mais difíceis - comumente esperamos que de modo mágico, a realidade seja distinta da que somos obrigados a viver. Somos afetados por um vórtice de lembranças, desejos frustrados, culpas. Uma vida nova, ordinariamente cheia de dor. Como diz a escritora: "A vida muda rapidamente. A vida muda em um instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia termina."  No entanto, ainda assim precisamos aprender a enterrar os mortos; deixá-los morrer - embora reconheçamos o imenso desafio que isso representa. 

"Sei por que tentamos manter vivos os mortos: tentamos mantê-los vivos para que permaneçam conosco.
Também sei que, se quisermos viver, chega um momento em que temos que nos libertar dos mortos, deixá-los ir, deixá-los mortos" (p. 235).

De modo particular, O ano do pensamento mágico é um livro marcante - ainda mais para quem já viveu a inesquecível experiência de perder quem ama - difícil não se enxergar, pelo menos um pouco, na história. Depois desse livro Didion escreveu Noites azuis, que fala sobre a morte da única filha, Quintana Roo (o mesmo nome da cidade mexicana), que morreu em 2005 - vinte meses depois da morte do pai.  

Por fim, vale a pena a leitura! 

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A formação de uma sociedade do medo através da influência da mídia




Por Raquel do Rosário e Diego Bayer*

A Mídia tem um papel importante no campo político, social e econômico de toda sociedade. Através desse mecanismo essa instituição incute na população uma consciência, uma cultura, uma forma de agir e de pensar.
O crime desperta curiosidade na população por apresentar uma ameaça. A mídia atua explorando essa fragilidade humana estimulando a sensação de insegurança. A televisão tornou-se um fenômeno em massa, assim como, a alta taxa de criminalidade e, com isto, também cresce a sensação de medo e insegurança em toda população.
Por nos encontrarmos em uma crise de credibilidade política, os telejornais procuram outras categorias informativas para traduzir o interesse da sociedade — geralmente notícias violentas. Assim, a curiosidade pela narração do crime e suas possíveis consequências acabam por ser uma das causas de uma nova cultura de violência, em que essa aparece como um fato normal, corriqueiro, que faz parte do cotidiano.
Não há com um grau de certeza a confirmação de que os meios de comunicação influenciem na opinião pública, o fato é que existe uma influência mútua entre o discurso sobre o crime — atos violentos — e o imaginário que a sociedade tem dele e entre as notícias e o medo do delito. Com isso, pode-se sustentar que existe uma relação sólida entre as ondas de informação e a sensação de insegurança.
A televisão se tornou um eletrodoméstico indispensável em qualquer lar e, hoje, informar é fazer assistir. Quando a transmissão é ao vivo, as imagens passam uma veracidade ainda maior aos telespectadores que deixam de lado as possíveis consequências do fato noticiado.
Em uma sociedade como o Brasil, com altos índices de criminalidade, acabam por encontrar um mecanismo de escape na tela da televisão. Conforme relatam Cristiano Luis Moraes e Marlene Inês Spaniol, os medos passam a ser dramatizados em histórias de vingança e de criminosos que são levados aos tribunais e posteriormente à prisão. Isso leva a sociedade a reagir contra o crime como se ele fosse um drama humano, levando-nos a crer que os delinquentes são em maior número e praticam mais delitos do que realmente o são.

A origem do Medo

Desde muito pequeninos aprendemos a temer o medo e a confiar em celestiais criaturas e muitos passam a serem nossos monstros, concepções imaginárias que nos assombram em um quarto escuro, em um sonho, em uma visita ao médico ou dentista, em situações que estamos longe de nossos genitores e nos sentimos ameaçados. No início de nossa existência tudo é seguro, puro e invisível aos olhos. À medida que nos tornamos maiores – criança, adolescentes, jovens, adultos e idosos – o medo passa a ser um de nossos principais inimigos e será ele que, em muitos momentos, nos impedirá de seguir nossos sonhos, de arriscar uma tentativa ou de fazer uma mudança radical. O medo passa a ser parte de nossa vida e em tudo que fazemos sempre estará presente de alguma forma e por algum motivo. Assim, aprendemos a temer o medo.
Segundo Bauman (2008, p. 8), medo é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito. Vivemos numa era onde o medo é sentimento conhecido de toda criatura viva.
Boldt (2013, p.96) assinala
Tema central do século XXI, o medo se tornou base de aceitação popular de medidas repressivas penais inconstitucionais, uma vez que a sensação do medo possibilita a justificação de práticas contrárias aos direitos e liberdades individuais, desde que mitiguem as causas do próprio medo.
O medo pode surgir das mais variadas maneiras e nascer de qualquer canto de onde vivemos, inclusive, em nossos próprios lares. Temos medo de comida envenenada, de perder o emprego, de utilizar transporte público, de pessoas desconhecidas que encontramos na rua, de pessoas conhecidas também, de inundações, de terremotos, de furacões, de deslizamento de terras, da seca. Temos medo de atrocidades terroristas, de crimes violentos, de agressões sexuais, de água ou ar poluído, de entrar na própria casa e de sair dela, de parar no semáforo. Temos medo da velhice e de ficarmos doentes, de sermos ameaçados, furtados ou roubados. Temos medo da bolsa de valores e da crise econômica. Temos medo de voar de avião. São tantos os nossos medos que não caberia aqui relatarmos todos.
Para Bauman (2008, p.18), riscos são perigos calculáveis. Uma vez definidos dessa maneira, são o que há de mais próximo da certeza. Ou seja, o futuro é nebuloso e as pessoas não deveriam se preocupar em vencer ou não qualquer situação de risco porque, talvez, nunca se chegue a enfrentá-la. Mas, deve prever e tentar evitar oferecendo a si mesmo um grau de confiança e segurança, ainda que sem garantia de sucesso.
A mídia pode ser considerada aqui uma causadora da proliferação do medo na sociedade, pois o medo deixou de relacionar-se a estórias de contos e mitos, da imaginação durante reuniões de família, para ser um aglomerado de imagens e informações que a televisão transmite todos os dias dentro de cada lar e para todas as famílias. A sociedade deixou de imaginar os contos para viver na realidade concreta as situações que são transmitidas através dos telejornais e programas de entretenimento.
O mundo líquido mostrado por Bauman é uma espécie de irrealidade dentro da qual estamos mergulhados, um mundo de aparência absoluta, de ameaças que quase nunca se configuram reais, mas que nos são mostradas cotidianamente, principalmente pela mídia. Diante disso, ele expõe o medo como uma forma inconstante. Podemos ter medo de perder o emprego, medo do terrorismo, da exclusão. O homem vive numa ansiedade constante, num cemitério de esperanças frustradas, numa era de temores.
E, assim, passamos a construir inimigos e fantasmas, nos deixando levar por todo tipo de informação que nos é imposta sem nem ao menos questionar a real veracidade dos fatos. É inegável que vivemos em uma sociedade violenta, com altos índices de barbáries, mas o problema não está na prevenção de possíveis ameaças, mas em considerar que tudo e todos possam ser ameaçadores. Ou seja, viver em alerta constante, excluindo pessoas e julgando indivíduos sem nem ao menos conhecer por medo do perigo que esse indivíduo possa lhe trazer.
O sentimento de insegurança não deriva tanto da carência de proteção, mas, sobretudo, da falta de clareza dos fatos. Nessa situação difunde-se uma ignorância de que a ameaça paira sobre as pessoas comuns e do que deve ser feito diante da incerteza ou do medo. A consequência mais importante é uma crise de confiança na vida, uma vez que, o mal pode estar em qualquer lugar e que todos podem estar, de alguma forma, a seu serviço, gerando uma desconfiança de uns com os outros.

A influência da mídia e sua relação com o medo

A mídia tem por objetivo atender as expectativas imediatas dos indivíduos. Ela pode ser definida como o conjunto de meios ou ferramentas utilizados para a transmissão de informações ao público assumindo um papel muito importante na formação de uma sociedade menos conflituosa. Porém, em uma realidade complexa como a nossa, a mídia desempenha um papel garantidor da manutenção do sistema capitalista, fomentando o consumo, ditando regras e modas e agindo sobre interesses comerciais.
A mídia notoriamente tem papel importante na conjuntura social atual, pois exerce influência em todos os campos, seja na família, na política e na economia, incutindo na população uma forma de agir e pensar importante para a manutenção da ordem.
A mídia, quando tomou corpo de mercadoria, era disponibilizada somente para as famílias mais abastadas. Aos poucos esse público foi sendo ampliado e o acesso a esse tipo de informação chegou também à população menos favorecida ocasionando o que temos hoje, um público em massa dos meios de informação através, principalmente, da televisão.
Schecaira (apud BAYER, 2013) entende que a mídia é uma fábrica ideológica condicionadora, pois não hesitam em alterar a realidade dos fatos criando um processo permanente de indução criminalizante. Assim, os meios de comunicação desvirtuam o senso comum através da dominação e manipulação popular, através de informações que, nem sempre, são totalmente verdadeiras.
Com isso, propagando o medo do criminoso (identificado como pobre), os meios de comunicação aprofundam as desigualdades e exclusão dessa parcela da sociedade, aumentando as intolerâncias e os preconceitos. Utiliza-se do medo como estratégia de controle, criminalização e brutalização dos pobres, de forma que seja legitimo as demandas de pedidos por segurança, tudo em virtude do espetáculo penal criado pela imprensa.
Criam-se normas penais para a solução do problema, porém, o Direito Penal passa a ser apenas um confronto aos medos sociais, ao invés de atuar como instrumento garantidor dos bens juridicamente protegidos.
Hoje, vivemos em constante situação de emergência e deixamos de perguntar pelo simples fato de estar provada a barbaridade dos outros. A partir daí, muros são construídos para separar a sociedade. Há muros que separam nações entre pobres e ricos, mas não há muros que separam os que têm medo dos que não têm (COUTO, 2011).
A manipulação das notícias através dos meios de comunicação aumentam os medos e induzem ao pânico, reforçando uma falsidade à política criminal e promovendo a criminalização e repressão, ofertando ao sistema penal uma legitimação para uma intervenção cada vez mais repressiva, criando um verdadeiro Estado Penal.
A mídia exerce influência sobre a representação do crime e também do delinquente em razão do constante destaque que se dá aos crimes violentos. Assim, a mídia vai colaborando o processo de construção de “imagem do inimigo” – no Brasil quase sempre como dos setores de baixa renda – mas também auxilia na tarefa de eliminá-los, desconsiderando da ética e justificando a opressão punitiva.
Através de uma seleção de conteúdos a mídia tem o poder da construção da realidade, que é um poder simbólico. Esse poder simbólico procura reproduzir uma ordem homogeneizada do tempo e do pensamento, com um único objetivo, a dominação de uns sobre os outros. Com isto, criam sujeitos incapazes de contestar o que se lhes é apresentado de forma a garantir a ordem, a torná-los submissos e dominados.
A mídia incute na sociedade uma política de higienização e rotulação dos desiguais que devem ser banidos da convivência social. Diante da propagação dessa política, cada vez mais os cidadãos são colocados diante de questões criminais que parecem nunca se resolver provocando uma sensação de intranquilidade e medo. Esse último, por sua vez, é agravado pela sensação de vulnerabilidade e de impossibilidade de defesa.

A realidade entre medo e verdade

A frequente exposição da crescente criminalidade através da mídia cria um sentimento de insegurança irreal, sem qualquer fundamento racional.
Na realidade, o principal objetivo da mídia é chamar a atenção do público e obter lucro. Assim, a mídia passa a utilizar expedientes sensacionalistas com fatos negativos como crimes e catástrofes, disseminando um sentimento de insegurança no seio social, ocasionando o surgimento da cultura do medo e formando uma “Sociedade do Medo”. Ou seja, nem tudo que vimos nos telejornais são de extrema veracidade, grande parte desta informação tem uma intenção do porque ser transmitida e, essa intenção, estará sempre relacionada a um fim lucrativo e dominador social.
De acordo com Silveira (2013), para dar sustentação ao ciclo que por diversas formas fomenta o consumo e acarreta o lucro, a mídia, seguindo os ditames da indústria cultural, interage com o público receptador das informações de uma forma muito particular, visto que consegue se adaptar perfeitamente às mais diversas classes, idades e tipos de pessoas, buscando uma relação com o público médio.
Há mais medo do que medo propriamente dito. A televisão tenta retratar os fatos de forma a tornar a informação o mais real possível aproximando os acontecimentos do cotidiano das pessoas e fazendo-as crer que aquela situação de risco poderá acontecer a qualquer momento dentro de suas próprias casas, nos seus grupos sociais. Assim, os telejornais propagam informações sensacionalistas através da exploração da dor alheia, do constrangimento de vítimas desoladas e da violação da privacidade de algumas pessoas. Para chamar a atenção do público, ainda lançam mão de outros recursos semelhantes, como a incitação de brigas entre vizinhos nos bairros populares e os crimes de violências sexuais cometidos por membros de uma mesma família.
Desta forma, mesmo que estejamos mais seguros do que em toda história da humanidade, mesmo assim, as pessoas continuam a se sentir ameaçadas, inseguras e apaixonadas por tudo aquilo que se refira à segurança e à proteção. Isso se dá através do que Silveira (2013) chama de “cultura do medo”, ou seja, o que tem levado as pessoas a intensificarem suas próprias medidas visando uma suposta diminuição de vulnerabilidade, como a construção de muros e barreiras, assim como a se isolarem dentro de suas próprias casas, evitando sair a eventos e espaços públicos por medo da violência, o que configura uma mudança radical de comportamento, algo que beira a paranoia.
Esta forma de isolamento dos conflitos ocasiona uma espécie de divisão social, onde as pessoas economicamente privilegiadas passam a ocupar bairros considerados “nobres” e condomínios vigiados continuamente, restando para a camada mais pobre da população, territórios completamente negligenciados pelo Estado, locais em que a “elite” busca o distanciamento, diz Silveira (2013). E complementa ainda Silveira (2013, p. 300) que “O homem enfrenta grandes dificuldades em conseguir ver o outro como um semelhante e não como um concorrente a ser eliminado”.
Toda essa realidade que se forma na “cultura do medo” acaba por contribuir para o reforço dos preconceitos na esteira da ignorância e da insegurança. Com isso, cria-se a “Sociedade do Medo” aqui abordada que, além de cruel e preconceituosa, passa a ser ignorante e submissa a tudo que lhe é apresentado como verdade absoluta.
César Vinícius Kogut e Wânia Rezende Silva expõe que o medo é fenômeno de paralisação do senso normal da vida, altera relações de formas e espaços, traz à tona uma imagem duvidosa, reflete insegurança, tristeza e dá noção de fragilidade. Por isso, uma das missões fundamentais do Estado deveria ser realizar ações para minimizar problemas e reduzir o medo proporcionando à população uma melhor qualidade de vida, libertando os indivíduos desse sentimento para que vivam em segurança.
Saber que este mundo é assustador não significa viver com medo. Nossa vida está longe de ser livre do medo, assim como, livre de ser livre de perigos e ameaças, porém, não podemos permitir que o que vimos na TV influencie nossa vida a ponto de pararmos de viver, a ponto de guardarmos sonhos que gostaríamos de realizar ou de nos impedir de promover uma mudança. Não devemos nos preocupar com o que ainda não aconteceu, mas procurar sim evitar situações que possam nos colocar em risco e, até mesmo, nos proteger do perigo. Tudo, porém, sem permitir que o medo e a insegurança tome conta de nosso ser e do que somos.
Julga-se importante estabelecer os limites éticos da atuação da mídia, de forma que, respeitem a ordem legal, discipline as atividades e defina suas responsabilidades em relação às pessoas atingidas pela informação que se divulga, sem, é claro, que se perca o direito de informar e de ser informado. É preciso que a mídia banalize menos e instrua mais, sem decidir por si o que as pessoas devem pensar e a forma como elas devem agir em relação ao que foi noticiado.
Por vivermos em uma sociedade complexa, onde o Estado já não mais é capaz de cumprir com seu papel de proporcionar segurança à população, facilita ainda mais a instalação do medo inconsciente das pessoas.
Assim, resta à sociedade acreditar naquilo que é transmitido pela mídia e esperar por um futuro melhor, com menos violência e crimes hediondos. Até lá, a vida segue com uma completa divisão social, na medida em que a elite escolhe seus inimigos nas camadas mais pobres da população e continuam condenando aqueles que menos recursos têm: os já predestinados ao fracasso no sistema.
Como expõe Loïc Wacquant: “tranque-os e jogue fora a chave’ torna-se o leitmotiv dos políticos de última moda, dos criminólogos da corte e das mídias prontas a explorar o medo do crime violento (e a maldição do criminoso) a fim de alargar seus mercados”. Afinal, é esta política que ultimamente tem ganho voto e feito os políticos se elegerem.
Agora, quando os seus direitos e suas garantias fundamentais forem tiradas, só lhe restará sentar no meio fio e chorar, afinal, você pode ter legitimado tudo isso. Cuidado, muito cuidado.

*Raquel do Rosário é Formada em Letras pela Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE); Especialista em Inglês como segunda língua pela Central Piedmont Community College (CPCC) – Carolina do Norte / USA; Mestre em Ciências da Educação pela Universidade Católica Portuguesa (UCP) – Lisboa / Portugal; Graduanda do Curso de Direito pelo Centro Universitário – Católica de Santa Catarina / Brasil. Email:raquelteacher@hotmail.com
Diego Bayer é Advogado criminalista, Doutorando em Direito Penal, Professor de Penal e Processo Penal da Católica de Santa Catarina e autor de obras jurídicas.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAYER, Diego Augusto. A Mídia, a reprodução do medo e a influência da política criminal. In. Controvérsias Criminais: Estudos de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia. Jaraguá do Sul. Letras e Conceitos. 2013.
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Tradução, Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Ed. 2008.
BOLDT, Raphael. Criminologia midiática: Do discurso punitivo à corrosão simbólica do Garantismo. Curitiba: Juruá, 2013.
KOGUT, César Vinícius & SILVA, Wânia Rezende. A Mídia e seus Efeitos sobre o Medo Social. SESP– UEM.
MORAES, Cristiano Luis de Oliveira & SPANIO, Marlene Inês. Punição e mídia: análise de alguns aspectos que influenciam na violência e na criminalidade.
PELUZO, Vinicius de Toledo Pisa. Sociedade, mass media e Direito Penal: uma reflexão. Revista da Escola Paulista da Magistratura, 2003.
SILVEIRA, Felipe Lazzari da. A cultura do medo e sua contribuição para a proliferação da criminalidade. 2º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade. Santa Maria / RS UFSM – Universidade Federal de Santa Maria, 2013.
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Trad. Nilo Batista. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

"Allende"- Mario Benedetti

Para matar al hombre de la paz 
para golpear su frente limpia de pesadillas
tuvieron que convertirse en pesadilla,
para vencer al hombre de la paz
tuvieron que congregar todos los odios
y además los aviones y los tanques,
para batir al hombre de la paz
tuvieron que bombardearlo, hacerlo llama,
porque el hombre de la paz era una fortaleza

Para matar al hombre de la paz
tuvieron que desatar la guerra turbia,
para vencer al hombre de la paz
y acallar su voz modesta y taladrante
tuvieron que empujar el terror hasta el abismo
y matar mas para seguir matando,
para batir al hombre de la paz
tuvieron que asesinarlo muchas veces
porque el hombre de la paz era una fortaleza

Para matar al hombre de la paz
tuvieron que imaginar que era una tropa,
una armada, una hueste, una brigada,
tuvieron que creer que era otro ejercito,
pero el hombre de la paz era tan solo un pueblo
y tenia en sus manos un fusil y un mandato
y eran necesarios mas tanques mas rencores
mas bombas mas aviones mas oprobios
porque el hombre de la paz era una fortaleza

Para matar al hombre de la paz
para golpear su frente limpia de pesadillas
tuvieron que convertirse en pesadilla,
para vencer al hombre de la paz
tuvieron que afiliarse para siempre a la muerte
matar y matar mas para seguir matando
y condenarse a la blindada soledad,
para matar al hombre que era un pueblo
tuvieron que quedarse sin el pueblo

MARIO BENEDETTI, “Allende”

Allende e Neruda

E hoje, 11 de setembro, quarenta e sete  anos sem Allende. E já no próximo dia 23, também a mesma estação sem Neruda. E o Chile tem muito para homenagear... A bem da verdade, não só os chilenos. Todos que admiram e foram contagiados por esses dois homens. 


Pablo Neruda, em Confesso que vivi:

"Escrevo essas rápidas linhas para minhas memórias a apenas três dias dos fatos inqualificáveis que levaram à morte meu grande companheiro, o presidente Allende. Seu assassinato foi mantido em silêncio, foi enterrado secretamente, permitiram apenas à viúva acompanhar o imortal cadáver. A versão dos agressores é que acharam o seu corpo inerte, com mostras visíveis de suicídio. A versão que foi publicada no exterior é diferente. Após o bombardeio aéreo vieram os tanques, muitos tanques, para lutar intrepidamente contra um só homem: o presidente da República do Chile, Salvador Allende, que os esperava em seu gabinete, sem outra companhia a não ser seu grande coração envolto em fumaça e chamas.
Não podiam perder uma ocasião tão boa. Era preciso metralhá-lo porque jamais renunciaria a seu cargo. Aquele cadáver que foi para a sepultura acompanhado por uma única mulher, que levava em si mesma toda a dor do mundo, aquela gloriosa figura morta ia crivada e despedaçada pelas balas das metralhadoras dos soldados do Chile, que outra vez tinham atraiçoado o Chile."


terça-feira, 8 de setembro de 2020

A solidão da América Latina (discurso de García Márquez no Nobel de Literatura)



Antônio Pigafetta, um navegante florentino que acompanhou Magalhães na primeira viagem ao redor do mundo, ao passar pela nossa América meridional escreveu uma crônica rigorosa, que, no entanto, parece uma aventura da imaginação. Contou que havia visto porcos com o umbigo no lombo, e uns pássaros sem patas cujas fêmeas usavam as costas dos machos para chocar, e outros como alcatrazes sem língua cujos bicos pareciam uma colher. Contou que havia visto um engendro animal com cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo, patas de cervo, relincho de cavalo. Que puseram um espelho na frente do primeiro nativo que encontraram na Patagônia, e que aquele gigante ensandecido perdeu o uso da razão pelo pavor de sua própria imagem.
Este livro breve e fascinante, no qual já se vislumbram os germes de nossos romances de hoje, está longe de ser o testemunho mais assombroso da nossa realidade daqueles tempos. Os cronistas das índias nos legaram outros, incontáveis. O El Dourado, nosso país ilusório tão cobiçado, apareceu em inúmeros mapas durante longos anos, mudando de lugar e de forma de acordo com a fantasia dos cartógrafos. Na procura da fonte da Eterna Juventude, o mítico Alvar Núñez Cabeza de Vaca explorou durante oito anos o norte do México, numa expedição lunática cujos membros se comeram uns aos outros, e dos 600 que começaram só restaram cinco. Um dos tantos mistérios que nunca foram decifrados é o das onze mil mulas carregadas com cem libras de ouro cada uma, que um dia saíram de Cuzco para pagar o resgate de Atahualpa e nunca chegaram ao seu destino. Mais tarde, durante a colônia, em Cartagena das Índias eram vendidas umas galinhas criadas em terras de aluvião, em cujas moelas apareciam pedrinhas de ouro. Este delírio ao áureo de nossos fundadores nos perseguiu até há pouco tempo. No século passado, a missão alemã encarregada de estudar a construção de uma estrada de ferro interoceânica no istmo do Panamá concluiu que o projeto era viável, desde que os trilhos não fossem feitos de ferro, que era um metal escasso na região, e sim de ouro.
A independência do domínio espanhol não nos pôs a salvo da demência. O general Antonio López de Santana, que foi três vezes ditador do México, mandou enterrar com funerais magníficos a perna direita que perdeu na chamada Guerra dos Bolos. O general García Moreno governou o Equador durante dezesseis anos como um monarca absoluto, e seu cadáver foi velado com seu uniforme de gala e sua couraça de condecorações sentado na poltrona presidencial. O general Maximiliano Hernández Martínez, o déspota teósofo de El Salvador que fez exterminar numa matança bárbara 30 mil camponeses, tinha inventado um pêndulo para averiguar se os alimentos estavam envenenados, e mandou cobrir de papel vermelho a iluminação pública para combater uma epidemia de escarlatina. O monumento do general Francisco Morazán, erguido na praça principal de Tegucigalpa, na realidade é uma estátua do marechal Ney, comprada em Paris num depósito de esculturas usadas.
Há onze anos, um dos poetas insignes do nosso tempo, o chileno Pablo Neruda, iluminou este espaço com a sua palavra. Nas boas consciências da Europa, e às vezes também nas más, irromperam desde então com mais ímpeto que nunca as notícias fantasmagóricas da América Latina, essa pátria imensa de homens alucinados e mulheres históricas, cuja tenacidade sem fim se confunde com a lenda. Não tivemos, desde então, um só instante de sossego. Um presidente prometeico, entrincheirado em seu palácio em chamas, morreu lutando sozinho contra um exército inteiro, e dois desastres aéreos suspeitos e nunca esclarecidos ceifaram a vida de outro de coração generoso, e de um militar democrata que havia restaurado a dignidade de seu povo.
Neste lapso houve cinco guerras e dezessete golpes de Estado, e surgiu um ditador luciferino que em nome de Deus leva adiante o primeiro etnocídio da América Latina em nosso tempo. Enquanto isso, 20 milhões de crianças latino-americanas morreram antes de fazer dois anos, mais do que todas as crianças que nasceram na Europa Ocidental desde 1970. Os desaparecidos pela repressão somam quase 120 mil: é como se hoje ninguém soubesse onde estão os habitantes da cidade de Upsala. Numerosas mulheres presas grávidas deram à luz em cárceres argentinos, mas ainda se ignora o paradeiro de seus filhos, que foram dados em adoção clandestina ou internados em orfanatos pelas autoridades militares. Por não querer que as coisas continuem assim, morreram cerca de duzentas mil mulheres e homens em todo o continente, e mais de cem mil pereceram em três pequenos e voluntários países da América Central – Nicarágua, El Salvador e Guatemala. Se fosse nos Estados Unidos, a cifra proporcional seria de um milhão e 600 mil mortes violentas em quatro anos.
Do Chile, país de tradições hospitaleiras, fugiram um milhão de pessoas: dez por cento de sua população. O Uruguai, uma nação minúscula de dois milhões e meio de habitantes e que era considerado o país mais civilizado do continente, perdeu no desterro um a cada cinco cidadãos. A guerra civil em El Salvador produziu, desde 1979, quase um refugiado a cada 20 minutos. O país que poderia ser feito com todos os exilados e emigrados forçados da América Latina teria uma população mais numerosa que a da Noruega.
Eu me atrevo a pensar esta realidade descomunal, e não só a sua expressão literária, que este ano mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras. Uma realidade que não é a do papel, mas que vive conosco e determina cada instante de nossas incontáveis mortes cotidianas, e que sustenta um manancial de criação insaciável, pleno de desdita e de beleza, e do qual este colombiano errante e nostálgico não passa de uma cifra assinalada pela sorte. Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e malandros, todos nós, criaturas daquela realidade desaforada, tivemos que pedir muito pouco à imaginação, porque para nós o maior desafio foi a insuficiência dos recursos convencionais para tornar nossa vida acreditável. Este é, amigos, o nó da nossa solidão.
Pois se estas dificuldades nos deixam – nós, que somos da sua essência – atordoados, não é difícil entender que os talentos racionais deste lado do mundo, extasiados na contemplação de suas próprias culturas, tenham ficado sem um método válido para nos interpretar. É compreensível que insistam em nos medir com a mesma vara com que se medem, sem recordar que os estragos da vida não são iguais para todos, e que a busca da identidade própria é tão árdua e sangrenta para nós como foi para eles. A interpretação da nossa realidade a partir de esquemas alheios só contribuiu para tornar-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres, cada vez mais solitários. Talvez a Europa venerável fosse mais compreensiva se tratasse de nos ver em seu próprio passado. Se recordasse que Londres precisou de trezentos anos para construir a sua primeira muralha e de outros trezentos para ter um bispo, que Roma se debateu nas trevas da incerteza durante vinte séculos até que um rei etrusco a implantasse na história, e que em pleno século XVI os pacíficos suíços de hoje, que nos deleitam com seus queijos mansos e seus relógios impávidos, ensanguentaram a Europa com seus mercenários. Ainda no apogeu do Renascimento, ainda doze mil lansquenetes a soldo dos exércitos imperiais saquearam e devastaram Roma, e passaram na faca oito mil de seus habitantes.
Não pretendo encarnar as ilusões de Tonio Kröger, cujos sonhos de união entre um norte gasto e um sul apaixonado Thomas Mann exaltava há 53 anos neste mesmo lugar. Mas creio que os europeus de espírito esclarecedor, os que também aqui lutam por uma pátria grande mais humana e mais justa, poderiam ajudar-nos melhor se revisassem a fundo a sua maneira de nos ver. A solidariedade com os nossos sonhos não nos fará sentir menos solitários enquanto não se concretize com atos de respaldo legítimo aos povos que assumem a ilusão de ter uma vida própria na divisão do mundo.
A América Latina não quer e nem tem porque ser um peão sem rumo ou decisão, nem tem nada de quimérico para que seus desígnios de independência e originalidade se convertam em uma aspiração ocidental.
Não obstante, os progressos da navegação que reduziram tanto as distâncias entre nossas Américas e a Europa parecem haver aumentado nossa distância cultural. Por que a originalidade que é admitida sem reservas em nossa literatura nos é negada com todo tipo de desconfiança em nossas tentativas difíceis de mudança social? Por que pensar que a justiça social que os europeus desenvolvidos tratam de impor em seus países não pode ser também um objetivo latino-americano, com métodos distintos e em condições diferentes? Não: a violência e a dor desmedida da nossa história são o resultado de injustiças seculares e amarguras sem conta, e não uma confabulação urdida a três mil léguas da nossa casa. Mas muitos dirigentes e pensadores europeus acreditaram nisso, com o infantilismo dos avós que esqueceram as loucuras frutíferas de sua juventude, como se não fosse possível outro destino além de viver à mercê dos dois grandes donos do mundo. Este é, amigos, o tamanho da nossa solidão.
E ainda assim, diante da opressão, do saqueio e do abandono, nossa resposta é a vida. Nem os dilúvios, nem as pestes, nem a fome, nem os cataclismos, nem mesmo as guerras eternas através dos séculos e séculos conseguiram reduzir a vantagem tenaz da vida sobre a morte. Uma vantagem que aumenta e se acelera: a cada ano há 74 milhões de nascimentos a mais que mortes, uma quantidade de novos vivos suficiente para aumentar sete vezes, anualmente, a população de Nova York. A maioria deles nasce nos países com menos recursos, e entre eles, é claro, os da América Latina. Enquanto isso, os países mais prósperos conseguiram acumular um poder de destruição suficiente para aniquilar cem vezes não apenas todos os seres humanos que existiram até hoje, mas a totalidade de seres vivos que passaram por esse planeta de infortúnios.
Num dia como o de hoje, meu mestre William Faulkner disse neste mesmo lugar: “Eu me nego a admitir o fim do homem”. Não me sentiria digno de ocupar este lugar que foi dele se não tivesse a consciência plena de que pela primeira vez desde as origens da humanidade, o desastre colossal que ele se negava a admitir há 32 anos é, hoje, nada mais que uma simples possibilidade científica. Diante desta realidade assombrosa, que através de todo o tempo humano deve ter parecido uma utopia, nós, os inventores de fábulas que acreditamos em tudo, nós sentimos no direito de acreditar que ainda não é demasiado tarde para nos lançarmos na criação da utopia contrária. Uma nova arrasadora utopia da vida, onde ninguém possa decidir pelos outros até mesmo a forma de morrer, onde de verdade seja certo o amor e seja possível a felicidade, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham, enfim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra.
Agradeço à Academia de Letras da Suécia por haver me distinguido com um prêmio que me coloca junto a muitos dos que orientaram e enriqueceram meus anos de leitor e de celebrante cotidiano deste delírio sem remédio e que é o ofício de escrever. Seus nomes e suas obras se apresentam hoje para mim como sombras tutelares, mas também com o compromisso, frequentemente sufocante, que se adquire com esta honra. Uma dura honra que neles sempre me pareceu de simples justiça, mas que em mim entendo como mais uma dessas lições com as quais o destino costuma nos surpreender, o que fazem mais evidente nossa condição de joguetes de um fato indecifrável, cuja única e desoladora recompensa costuma ser, na maioria das vezes, a incompreensão e o esquecimento.
Por isso é natural que eu me interrogasse, lá naquele bastidor secreto onde costumamos enfrentar-nos às verdades mais essenciais que conformam nossa identidade, a qual terá sido o sustento constante da minha obra, o que pode ter chamado atenção de forma tão comprometedora, desse tribunal de árbitros tão severos. Confesso sem falsas modéstias que não foi fácil encontrar a razão, mas quero crer que tenha sido a que eu gostaria. Quero crer, amigos, que esta é, uma vez mais, uma homenagem que é rendida à poesia. À poesia, por cuja virtude o inventário assustador das náuseas que o velho Homero enumerou em sua Ilíada está visitado por um vento que as empurra a navegar com sua tristeza intemporal e alucinada. À poesia, que retém, no delgado andaime dos tercetos de Dante, toda a fábrica densa e colossal da Idade Média. À poesia, que tão milagrosa totalidade resgata a nossa América nas Alturas de Macchu Picchu, de Pablo Neruda, o grande, o maior, e onde destilam sua tristeza milenar nossos melhores sonhos sem saída. À poesia, enfim, a essa energia secreta da vida cotidiana, que cozinha seus grãos e contagia o amor e repete as imagens nos espelhos.
Em cada linha que escrevo trato sempre, com maior ou menor fortuna, de invocar os espíritos esquivos da poesia, e trato de deixar em cada palavra o testemunho de minha devoção pelas suas virtudes de adivinhação e pela sua permanente vitória contra os surdos poderes da morte. Entendo que o prêmio que acabo de receber, com toda humildade, é a consoladora revelação de que meu intento não foi em vão. É por isso que convido todos a brindar por aquilo que um grande poeta das nossas Américas, Luis Cardoza y Aragón, definiu como a única prova concreta da existência do homem: a poesia.
Muito obrigado.


domingo, 6 de setembro de 2020

"Minha história flui em mais de uma direção"


Delta

Se você pegou este entulho para o meu passado
revolvendo-o em busca de fragmentos para vender
saiba que eu há muito segui em frente
para dentro, para o coração da matéria


Se você pensa que pode me agarrar, pense melhor:
minha história flui em mais de uma direção
um delta do leito do rio se abrindo
com seus cinco dedos abertos

Adrienne Rich

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

"Murar o medo" - Mia Couto



O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já eram para me guardarem, servindo como agentes da segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos.
Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.
O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.
No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.
O preço dessa construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no Poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história. A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.
A Guerra-Fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a Ocidente. E porque se trata de novas entidades demoníacas não bastam os seculares meios de governação. Precisamos de intervenção com legitimidade divina. O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder.
Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentar as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho começaria pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e do outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.
Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente situação de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.
Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas como, por exemplo, estas: por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento? Por que motivo se gastou, apenas o ano passado, um trilhão e meio de dólares com armamento militar? Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadaffi? Por que motivos se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?
Se queremos resolver e não apenas discutir a segurança mundial teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que sejam precisos pretextos de guerra. Essa arma chama-se fome.  Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.
Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. A verdade é que pesa uma condenação antecipada pelo simples fato de serem mulheres. A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome, e como militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência nem de ética nem de legalidade.
É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A chamada Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente, morreram mais chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar.
Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje no mundo muro que separe os que têm medo dos que não têm medo.  Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente. Citarei Eduardo Galeano acerca disso que é o medo global: “Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quando não têm medo da fome, têm medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.” E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.