O primeiro canto

O primeiro canto

domingo, 14 de fevereiro de 2021

“Observava diariamente a vida evoluir para a morte...”

 

 

Enterre seus mortos é um livro incômodo. Entretanto, diga-se de passagem, necessário. Faz-nos refletir sobre como tratamos os nossos mortos. Não falo dos mortos queridos, os que nos são caros. Refiro-me aos "esquecidos", os que não têm alguém que reclame seus corpos - neste sentido, a reflexão abarca a dimensão do papel do Estado, a falta de recursos humanos e materiais para lidar com essa questão. Ou, como diz um personagem, o Sargento Américo: “Estamos falidos. Não damos conta nem dos mortos”.

O protagonista, Edgar Wilson, presente em outros livros da escritora, é um homem simples, cercado pela morte (ele se sente à vontade em meio ao pútrido), introspectivo, do tipo de pessoa que escuta mais e fala menos. De certo modo, alguém que poderíamos comparar aos abutres - pois, assim como essas aves, ele sobrevive graças aos que morrem. Contudo, sobre os mortos, pessoas ou animais, Edgar Wilson considera a importância de enterrá-los. Para ele, “não existe sentimento de desprezo maior do que abandonar um morto, deixá-lo ao relento, às aves carniceiras, à vista alheia”. Inclusive, talvez esse seja o seu maior medo. Ainda sobre os abutres, ave representada na capa do livro, chama a atenção uma observação que concordo muitíssimo: “É bonito o voo dos abutres”. De fato, é muito bonito - embora sejam, reconhecidamente, aves que indicam a morte, admirá-las é prazeroso, acalma. Neste sentido, “a morte e o sagrado estão sempre juntos”.

Outro ponto de destaque é o modo como é tratada a questão religiosa. O sarcasmo faz muita diferença - ainda que seja apavorante. É perspicaz o olhar que nos é apresentado sobre este assunto. Numa situação de esquecimento do Estado, de pobreza e alienação, muitas vezes o que sobra é a “dependência da força divina”. Uma teologia antiga, baseada na culpa, no medo e na ganância. Alguns diriam: “tão medieval”. Mas, como diria o velho barbudo, a história se repete... Primeiro como tragédia, depois como farsa.

Por fim, um livro que precisa ser lido com atenção. Do contrário, corre-se o risco de sentir apenas repulsa, certo embrulho no estômago, e isso pode comprometer a possibilidade de uma boa reflexão e de percebermos que a literatura é, também, uma forma de entendermos o mundo e, a partir desse entendimento, tentarmos modificá-lo.


sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Michael Löwy: A crítica romântica de Charles Dickens ao capitalismo


Quando o assunto é Charles Dickens, Tempos Difíceis Grandes Esperanças foram as leituras mais significativas que fiz na mocidade. Vale muito a pena! A partir da leitura de Löwy, destacadamente, Tempos Difíceis se torna uma obrigação para quem cultiva o bom gosto pela literatura em companhia de uma boa crítica social. Afora a capacidade de nos por a pensar sobre muitas questões pretéritas, assim como a conjuntura presente. Sinceramente, um clássico que deve ser lido.  


Embora fosse completamente alheio às ideias socialistas, Charles Dickens era um dos autores favoritos de Marx. Seu romance Tempos difíceis, publicado em 1854, contém uma expressão excepcionalmente articulada da crítica romântica à sociedade industrial. Não faz uma homenagem tão explícita às formas pré-capitalistas, geralmente medievais, quanto a maioria dos românticos ingleses – como Burke, Coleridge, Cobbett, Walter Scott, Carlyle (a quem Tempos difíceis é dedicado), Ruskin e William Morris –, mas a referência aos valores morais do passado é um componente essencial da atmosfera criada por ele. Por um paradoxo que é apenas aparente, o refúgio desses valores aparece na forma de um circo, uma comunidade um tanto arcaica, mas autenticamente humana – na qual as pessoas ainda têm um “bom coração” e uma “atitude muito natural” – que se situa fora, e em franca oposição, à sociedade burguesa “normal”.

Em Tempos difíceis, o espírito frio e quantificador da era industrial é magnificamente personificado por um ideólogo utilitarista e membro do Parlamento, Mister Thomas Gradgrind (senhor “Triturador-sob-medida” é a tradução aproximada do nome…). Trata-se de um homem que tem “uma régua e uma balança, e a tabuada sempre no bolso” e está sempre “pronto para pesar e medir qualquer parcela da natureza humana, e dizer o resultado exato”. Para Gradgrind, tudo no universo é “mera questão de números, um caso de simples aritmética”, e ele administra com mão de ferro a educação das crianças, segundo o princípio salutar de que “aquilo que não se podia expressar em números, ou demonstrar que era comprável no mercado mais barato e vendável no mais caro, não existia, e não deveria existir”. A filosofia de Gradgrind – a amarga e dura doutrina da economia política, do utilitarismo estrito e do laisser-faire clássico – era que:

tudo devesse ser pago. Não se podia, em hipótese alguma, dar nada a ninguém, ou oferecer ajuda gratuita. A gratidão deveria ser abolida, e as virtudes que dela brotavam deveriam deixar de existir. Cada minuto da existência humana, do nascimento até a morte, deveria ser uma barganha diante de um guichê.1

A esse retrato poderoso e evocador – quase um tipo ideal weberiano – do éthos capitalista, cujo triste triunfo se concretizará quando “o romance for expulso” da alma humana, Dickens contrapõe sua fé na vitalidade das “sensibilidades, afeições e fraquezas” da alma humana, “desafiando todos os cálculos do homem, e tão desconhecida da sua aritmética como é o seu Criador”. Ele acredita, e toda a trama de Tempos difíceis é um arrazoado apaixonado em favor dessa crença, que existem no coração dos indivíduos “essências sutis da humanidade que escaparão até da maior habilidade algébrica, até o dia em que o som da última trombeta fizer em pedaços até mesmo a álgebra”. Recusando-se a ceder à máquina-de-triturar-sob-medida, ele abraça valores irredutíveis aos números2.

Here Was Louisa, On The Night Of The Same  Day, Watching The Fire As In Days Of Yore.“Louisa estava observando o fogo como nos velhos tempos.” Esta ilustração de Harry French incluída na edição brasileira de Tempos difíceis capta como o distanciamento sentido pela filha de Thomas Gradgrind em relação aos valores frios e calculistas transmitidos pelo pai se traduz em uma condição de solidão e alienação que remete melancolicamente ao passado.

Mas Tempos difíceis não tratam apenas da trituração da alma: o romance ilustra também como a modernidade expulsou da vida material dos indivíduos qualidades como beleza, cor e imaginação, reduzindo-a a uma rotina fastidiosa, cansativa e uniforme. A cidade industrial moderna, “Coketown”, é descrita por Dickens como “uma cidade de máquinas e chaminés altas, pelas quais se arrastavam perenes e intermináveis serpentes de fumaça que nunca se desenrolavam de todo”. Suas ruas eram semelhantes umas às outras, “onde moravam pessoas também semelhantes umas às outras, que saíam e entravam nos mesmos horários, produzindo os mesmos sons nas mesmas calçadas, para fazer o mesmo trabalho, e para quem cada dia era o mesmo de ontem e de amanhã, e cada ano o equivalente do próximo e do anterior”3. O espaço e o tempo parecem ter perdido toda diversidade qualitativa e toda variedade cultural, tornando-se uma estrutura única, contínua, moldada pela atividade ininterrupta das máquinas.

Para a civilização industrial, as qualidades da natureza não existem: ela só leva em conta as quantidades de matéria-prima que pode extrair dela. Coketown é, em consequência, uma “feia cidadela, onde a Natureza era mantida firmemente do lado de fora pelas mesmas paredes de tijolos que mantinham os ares e os gases letais do lado de dentro”; suas altas chaminés, lançando “suas baforadas venenosas”, escondiam o céu e o sol, e este estava “eternamente em eclipse, através de uma barreira de vidro enfumaçado”. Os que ansiavam “tomar ar fresco” ou queriam ver uma paisagem verdejante, árvores, pássaros, um pouco de céu azul, tinham de percorrer alguns quilômetros pela ferrovia e caminhar pelos campos. Mas ainda assim não estavam em paz: poços abandonados, depois que todo o ferro ou todo o carvão haviam sido extraídos da terra, escondiam-se no mato, como armadilhas mortais.4

Dickens era um moderado favorável às reformas sociais, mas a crítica romântica da quantificação também pode assumir formas conservadoras e reacionárias: por exemplo, na defesa de Adam Müller e outras figuras do romantismo político da propriedade feudal tradicional, que supostamente representaria uma forma qualitativa de vida, contra a monetarização e a alienação mercantil da terra. Ou então no ódio antissemita contra o judeu identificado com o dinheiro, a usura e as finanças, e visto como considerado um fator de corrupção e subversão do Antigo Regime. O panfleto de Edmund Burke contra a Revolução Francesa é um exemplo clássico da utilização contrarrevolucionária do argumento romântico a respeito da quantificação moderna: denunciando a humilhação que os revolucionários de 1789 impuseram à rainha da França, ele exclama: “A idade do cavalheirismo passou – sucedeu-lhe a dos sofistas, dos economistas e dos calculadores; e a glória da Europa está extinta para sempre”5.

* Este artigo é um trecho do livro Revolta e melancolia: o romantismo na contracorrente da modernidade, de Michael Löwy e Robert Sayre, que integra a coleção “Marxismo e literatura” coordenada por Michael Löwy na Boitempo.



Tempos difíceis, de Charles Dickens é o próximo livro a ser discutido no Clube de Leitura da Boitempo e da Cia. das Letras na Livraria da Vila da Fradique em São Paulo. A roda de conversa é aberta e informal, e acontece no próximo de 13 de julho às 20h. Dá tempo de ler o livro antes de participar!


NOTAS

1. Charles Dickens, Tempos difíceis (trad. José Baltazar Pereira Júnior, São Paulo, Boitempo, 2014), p. 15, 38 e 322-3. Mais tarde, eleito para o Parlamento, Thomas Gradgrind torna-se “um dos respeitados membros dos pesos e medidas, um dos representantes da tabuada, um dos honoráveis cavalheiros surdos, um dos honoráveis cavalheiros mudos, um dos honoráveis cavalheiros cegos, um dos honoráveis cavalheiros mancos, um dos honoráveis cavalheiros mortos, a qualquer outra consideração” (ibidem, p. 111).
2. Ibidem, p. 187, 244 e 119, respectivamente.
3. Ibidem, p. 37.
4. Ibidem, p. 81, 188 e 299. O herói do romance, o operário Stephen Blackpool, cai em um desses poços – o “velho Poço do Inferno” e morre.
5. Edmund Burke, Reflexões sobre a Revolução em França (trad. Renato de Assumpção Farias, Denis Fontes de Souza Pinto e Carmen Lídia Richter Ribeiro Moura, Brasília, UnB, 1997), p. 100.

***

Michael Löwy, sociólogo, é nascido no Brasil, formado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, e vive em Paris desde 1969. Diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Homenageado, em 1994, com a medalha de prata do CNRS em Ciências Sociais, é autor de Revolta e melancolia: o romantismo na contracorrente da modernidade, Walter Benjamin: aviso de incêndio (2005), Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade (2009), A teoria da revolução no jovem Marx (2012), A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano (2014) e organizador de Revoluções (2009) e Capitalismo como religião (2013), de Walter Benjamin, além de coordenar, junto com Leandro Konder, a coleção Marxismo e literatura da Boitempo. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

"A verdade, a dura verdade."

 

“Sejamos felizes durante os poucos dias desta breve vida.”

“Quanto à emoção, não posso responder; este calabouço tão feio, tão úmido, me dá momentos de febre em que não me reconheço; mas não vão me ver empalidecer de medo.”

O Vermelho e o Negro – Stendhal

 

Sócrates dizia que uma vida não examinada não vale a pena ser vivida. Eu digo que sem literatura, a vida não vale a pena. Nos momentos mais difíceis, foi a leitura de um bom livro que me fez conseguir enxergar a beleza e todo encantamento que existe em viver. Prestar atenção aos detalhes, refletir, sentir compaixão... Mas também foi com a leitura de alguns livros que senti tanta indignação e revolta, a ponto de não conseguir dormir bem. Ou vergonha de alguns comportamentos e perceber que deveria mudar. A leitura me afeta. E quanto mais afetada, mais humana. Talvez esse seja o valor supremo da literatura, humanizar.

É trágico saber que a leitura é uma espécie de privilégio. É lamentavelmente difícil saber que uma boa parte das pessoas não pode desfrutar do ócio para ler, ou usufruir o bem estar que a leitura nos proporciona. É muito triste!

Por causa dos livros, conheci pessoas singulares. Algumas seguirão comigo pelas estações, na certeza de uma lembrança perene - mesmo com toda distância possível. E mesmo que no meio do caminho exista desencontro, palavras que não deveriam ser ditas, ou silêncios ensurdecedores, é muito bom ter a amizade de alguém que aprecia  literatura.

Sinto-me grata pela possibilidade de conhecer pessoas assim, que fazem da leitura uma forma de estar no mundo. Que encontram sentido e fundamentam suas vidas e nos ajudam em nossa própria jornada. Para todas as pessoas que conheço e que nos tornamos mais próximas por causa dos livros, obrigada! Obrigada por me ajudarem a ser quem sou. Obrigada pela partilha e pela amizade. Pela paciência, generosidade. Agradeço a vida por ter tido a oportunidade de ter conhecido algumas pessoas tão importantes. Em especial, agradeço a um amigo que se foi no dia de hoje. A ele, sou grata por algo que é tão precioso e aprendi a valorizar ainda mais: “A verdade, a dura verdade.” Uma frase atribuída a Danton, que li em O vermelho e o negro. A análise que escutei dessa frase me fez enxergar a pessoa que fez a reflexão com muita admiração e respeito. Respeito ao seu modo de falar, às observações - ainda que cortantes, justas. Como ele dizia, "tem coisa que só falamos quando somos próximos, em especial as críticas". E é com todo respeito, admiração, tristeza (muita tristeza), que lamento muito não poder tê-lo conhecido mais. Não poder continuar escutando suas críticas, o riso (que às vezes corria solto).  Ainda assim, gratidão pelo efêmero de nossa amizade. "Começa um novo tempo de eterno não ser". 

Mesmo sendo limitada em termos de religiosidade, há uma espiritualidade e uma dor que me faz desejar paz, muita paz. Ou, como me ensinou um amigo: Shanti, shanti, shantihi.




sexta-feira, 25 de setembro de 2020

"Uma única pessoa está ausente, mas o mundo inteiro parece vazio"



Phillipe Ariès (autor da frase que intitula esta postagem) foi um historiador que, entre muitos trabalhos, teve destaque ao falar sobre a morte - uma ausência dominante, que esvazia o mundo. Em O ano do pensamento mágico, a escritora Joan Didion nos faz sentir, a partir de um plural de lembranças e reflexões, esse vazio, essa ausência. O livro é um registro das memórias do primeiro ano sem o seu companheiro de décadas, o também escritor, John Gregory Dunne - que morreu devido a um ataque cardíaco fulminante, em 30 de dezembro de 2003.  

 "Somos seres mortais imperfeitos, conscientes dessa mortalidade mesmo quando a negamos, traídos por nossa própria complexidade, tão incorporada que quando choramos a perda de seres amados também estamos chorando, para o bem ou para o mal, por nós mesmos. Pela perda daquilo que éramos. Do que não somos mais. Do que um dia não seremos de todo" (p. 207).


Didion nos faz pensar na vida, na morte. Na saudade... no luto. Em termos de perder alguém muito especial, talvez o primeiro ano de ausência seja um dos mais difíceis - comumente esperamos que de modo mágico, a realidade seja distinta da que somos obrigados a viver. Somos afetados por um vórtice de lembranças, desejos frustrados, culpas. Uma vida nova, ordinariamente cheia de dor. Como diz a escritora: "A vida muda rapidamente. A vida muda em um instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia termina."  No entanto, ainda assim precisamos aprender a enterrar os mortos; deixá-los morrer - embora reconheçamos o imenso desafio que isso representa. 

"Sei por que tentamos manter vivos os mortos: tentamos mantê-los vivos para que permaneçam conosco.
Também sei que, se quisermos viver, chega um momento em que temos que nos libertar dos mortos, deixá-los ir, deixá-los mortos" (p. 235).

De modo particular, O ano do pensamento mágico é um livro marcante - ainda mais para quem já viveu a inesquecível experiência de perder quem ama - difícil não se enxergar, pelo menos um pouco, na história. Depois desse livro Didion escreveu Noites azuis, que fala sobre a morte da única filha, Quintana Roo (o mesmo nome da cidade mexicana), que morreu em 2005 - vinte meses depois da morte do pai.  

Por fim, vale a pena a leitura! 

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A formação de uma sociedade do medo através da influência da mídia




Por Raquel do Rosário e Diego Bayer*

A Mídia tem um papel importante no campo político, social e econômico de toda sociedade. Através desse mecanismo essa instituição incute na população uma consciência, uma cultura, uma forma de agir e de pensar.
O crime desperta curiosidade na população por apresentar uma ameaça. A mídia atua explorando essa fragilidade humana estimulando a sensação de insegurança. A televisão tornou-se um fenômeno em massa, assim como, a alta taxa de criminalidade e, com isto, também cresce a sensação de medo e insegurança em toda população.
Por nos encontrarmos em uma crise de credibilidade política, os telejornais procuram outras categorias informativas para traduzir o interesse da sociedade — geralmente notícias violentas. Assim, a curiosidade pela narração do crime e suas possíveis consequências acabam por ser uma das causas de uma nova cultura de violência, em que essa aparece como um fato normal, corriqueiro, que faz parte do cotidiano.
Não há com um grau de certeza a confirmação de que os meios de comunicação influenciem na opinião pública, o fato é que existe uma influência mútua entre o discurso sobre o crime — atos violentos — e o imaginário que a sociedade tem dele e entre as notícias e o medo do delito. Com isso, pode-se sustentar que existe uma relação sólida entre as ondas de informação e a sensação de insegurança.
A televisão se tornou um eletrodoméstico indispensável em qualquer lar e, hoje, informar é fazer assistir. Quando a transmissão é ao vivo, as imagens passam uma veracidade ainda maior aos telespectadores que deixam de lado as possíveis consequências do fato noticiado.
Em uma sociedade como o Brasil, com altos índices de criminalidade, acabam por encontrar um mecanismo de escape na tela da televisão. Conforme relatam Cristiano Luis Moraes e Marlene Inês Spaniol, os medos passam a ser dramatizados em histórias de vingança e de criminosos que são levados aos tribunais e posteriormente à prisão. Isso leva a sociedade a reagir contra o crime como se ele fosse um drama humano, levando-nos a crer que os delinquentes são em maior número e praticam mais delitos do que realmente o são.

A origem do Medo

Desde muito pequeninos aprendemos a temer o medo e a confiar em celestiais criaturas e muitos passam a serem nossos monstros, concepções imaginárias que nos assombram em um quarto escuro, em um sonho, em uma visita ao médico ou dentista, em situações que estamos longe de nossos genitores e nos sentimos ameaçados. No início de nossa existência tudo é seguro, puro e invisível aos olhos. À medida que nos tornamos maiores – criança, adolescentes, jovens, adultos e idosos – o medo passa a ser um de nossos principais inimigos e será ele que, em muitos momentos, nos impedirá de seguir nossos sonhos, de arriscar uma tentativa ou de fazer uma mudança radical. O medo passa a ser parte de nossa vida e em tudo que fazemos sempre estará presente de alguma forma e por algum motivo. Assim, aprendemos a temer o medo.
Segundo Bauman (2008, p. 8), medo é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito. Vivemos numa era onde o medo é sentimento conhecido de toda criatura viva.
Boldt (2013, p.96) assinala
Tema central do século XXI, o medo se tornou base de aceitação popular de medidas repressivas penais inconstitucionais, uma vez que a sensação do medo possibilita a justificação de práticas contrárias aos direitos e liberdades individuais, desde que mitiguem as causas do próprio medo.
O medo pode surgir das mais variadas maneiras e nascer de qualquer canto de onde vivemos, inclusive, em nossos próprios lares. Temos medo de comida envenenada, de perder o emprego, de utilizar transporte público, de pessoas desconhecidas que encontramos na rua, de pessoas conhecidas também, de inundações, de terremotos, de furacões, de deslizamento de terras, da seca. Temos medo de atrocidades terroristas, de crimes violentos, de agressões sexuais, de água ou ar poluído, de entrar na própria casa e de sair dela, de parar no semáforo. Temos medo da velhice e de ficarmos doentes, de sermos ameaçados, furtados ou roubados. Temos medo da bolsa de valores e da crise econômica. Temos medo de voar de avião. São tantos os nossos medos que não caberia aqui relatarmos todos.
Para Bauman (2008, p.18), riscos são perigos calculáveis. Uma vez definidos dessa maneira, são o que há de mais próximo da certeza. Ou seja, o futuro é nebuloso e as pessoas não deveriam se preocupar em vencer ou não qualquer situação de risco porque, talvez, nunca se chegue a enfrentá-la. Mas, deve prever e tentar evitar oferecendo a si mesmo um grau de confiança e segurança, ainda que sem garantia de sucesso.
A mídia pode ser considerada aqui uma causadora da proliferação do medo na sociedade, pois o medo deixou de relacionar-se a estórias de contos e mitos, da imaginação durante reuniões de família, para ser um aglomerado de imagens e informações que a televisão transmite todos os dias dentro de cada lar e para todas as famílias. A sociedade deixou de imaginar os contos para viver na realidade concreta as situações que são transmitidas através dos telejornais e programas de entretenimento.
O mundo líquido mostrado por Bauman é uma espécie de irrealidade dentro da qual estamos mergulhados, um mundo de aparência absoluta, de ameaças que quase nunca se configuram reais, mas que nos são mostradas cotidianamente, principalmente pela mídia. Diante disso, ele expõe o medo como uma forma inconstante. Podemos ter medo de perder o emprego, medo do terrorismo, da exclusão. O homem vive numa ansiedade constante, num cemitério de esperanças frustradas, numa era de temores.
E, assim, passamos a construir inimigos e fantasmas, nos deixando levar por todo tipo de informação que nos é imposta sem nem ao menos questionar a real veracidade dos fatos. É inegável que vivemos em uma sociedade violenta, com altos índices de barbáries, mas o problema não está na prevenção de possíveis ameaças, mas em considerar que tudo e todos possam ser ameaçadores. Ou seja, viver em alerta constante, excluindo pessoas e julgando indivíduos sem nem ao menos conhecer por medo do perigo que esse indivíduo possa lhe trazer.
O sentimento de insegurança não deriva tanto da carência de proteção, mas, sobretudo, da falta de clareza dos fatos. Nessa situação difunde-se uma ignorância de que a ameaça paira sobre as pessoas comuns e do que deve ser feito diante da incerteza ou do medo. A consequência mais importante é uma crise de confiança na vida, uma vez que, o mal pode estar em qualquer lugar e que todos podem estar, de alguma forma, a seu serviço, gerando uma desconfiança de uns com os outros.

A influência da mídia e sua relação com o medo

A mídia tem por objetivo atender as expectativas imediatas dos indivíduos. Ela pode ser definida como o conjunto de meios ou ferramentas utilizados para a transmissão de informações ao público assumindo um papel muito importante na formação de uma sociedade menos conflituosa. Porém, em uma realidade complexa como a nossa, a mídia desempenha um papel garantidor da manutenção do sistema capitalista, fomentando o consumo, ditando regras e modas e agindo sobre interesses comerciais.
A mídia notoriamente tem papel importante na conjuntura social atual, pois exerce influência em todos os campos, seja na família, na política e na economia, incutindo na população uma forma de agir e pensar importante para a manutenção da ordem.
A mídia, quando tomou corpo de mercadoria, era disponibilizada somente para as famílias mais abastadas. Aos poucos esse público foi sendo ampliado e o acesso a esse tipo de informação chegou também à população menos favorecida ocasionando o que temos hoje, um público em massa dos meios de informação através, principalmente, da televisão.
Schecaira (apud BAYER, 2013) entende que a mídia é uma fábrica ideológica condicionadora, pois não hesitam em alterar a realidade dos fatos criando um processo permanente de indução criminalizante. Assim, os meios de comunicação desvirtuam o senso comum através da dominação e manipulação popular, através de informações que, nem sempre, são totalmente verdadeiras.
Com isso, propagando o medo do criminoso (identificado como pobre), os meios de comunicação aprofundam as desigualdades e exclusão dessa parcela da sociedade, aumentando as intolerâncias e os preconceitos. Utiliza-se do medo como estratégia de controle, criminalização e brutalização dos pobres, de forma que seja legitimo as demandas de pedidos por segurança, tudo em virtude do espetáculo penal criado pela imprensa.
Criam-se normas penais para a solução do problema, porém, o Direito Penal passa a ser apenas um confronto aos medos sociais, ao invés de atuar como instrumento garantidor dos bens juridicamente protegidos.
Hoje, vivemos em constante situação de emergência e deixamos de perguntar pelo simples fato de estar provada a barbaridade dos outros. A partir daí, muros são construídos para separar a sociedade. Há muros que separam nações entre pobres e ricos, mas não há muros que separam os que têm medo dos que não têm (COUTO, 2011).
A manipulação das notícias através dos meios de comunicação aumentam os medos e induzem ao pânico, reforçando uma falsidade à política criminal e promovendo a criminalização e repressão, ofertando ao sistema penal uma legitimação para uma intervenção cada vez mais repressiva, criando um verdadeiro Estado Penal.
A mídia exerce influência sobre a representação do crime e também do delinquente em razão do constante destaque que se dá aos crimes violentos. Assim, a mídia vai colaborando o processo de construção de “imagem do inimigo” – no Brasil quase sempre como dos setores de baixa renda – mas também auxilia na tarefa de eliminá-los, desconsiderando da ética e justificando a opressão punitiva.
Através de uma seleção de conteúdos a mídia tem o poder da construção da realidade, que é um poder simbólico. Esse poder simbólico procura reproduzir uma ordem homogeneizada do tempo e do pensamento, com um único objetivo, a dominação de uns sobre os outros. Com isto, criam sujeitos incapazes de contestar o que se lhes é apresentado de forma a garantir a ordem, a torná-los submissos e dominados.
A mídia incute na sociedade uma política de higienização e rotulação dos desiguais que devem ser banidos da convivência social. Diante da propagação dessa política, cada vez mais os cidadãos são colocados diante de questões criminais que parecem nunca se resolver provocando uma sensação de intranquilidade e medo. Esse último, por sua vez, é agravado pela sensação de vulnerabilidade e de impossibilidade de defesa.

A realidade entre medo e verdade

A frequente exposição da crescente criminalidade através da mídia cria um sentimento de insegurança irreal, sem qualquer fundamento racional.
Na realidade, o principal objetivo da mídia é chamar a atenção do público e obter lucro. Assim, a mídia passa a utilizar expedientes sensacionalistas com fatos negativos como crimes e catástrofes, disseminando um sentimento de insegurança no seio social, ocasionando o surgimento da cultura do medo e formando uma “Sociedade do Medo”. Ou seja, nem tudo que vimos nos telejornais são de extrema veracidade, grande parte desta informação tem uma intenção do porque ser transmitida e, essa intenção, estará sempre relacionada a um fim lucrativo e dominador social.
De acordo com Silveira (2013), para dar sustentação ao ciclo que por diversas formas fomenta o consumo e acarreta o lucro, a mídia, seguindo os ditames da indústria cultural, interage com o público receptador das informações de uma forma muito particular, visto que consegue se adaptar perfeitamente às mais diversas classes, idades e tipos de pessoas, buscando uma relação com o público médio.
Há mais medo do que medo propriamente dito. A televisão tenta retratar os fatos de forma a tornar a informação o mais real possível aproximando os acontecimentos do cotidiano das pessoas e fazendo-as crer que aquela situação de risco poderá acontecer a qualquer momento dentro de suas próprias casas, nos seus grupos sociais. Assim, os telejornais propagam informações sensacionalistas através da exploração da dor alheia, do constrangimento de vítimas desoladas e da violação da privacidade de algumas pessoas. Para chamar a atenção do público, ainda lançam mão de outros recursos semelhantes, como a incitação de brigas entre vizinhos nos bairros populares e os crimes de violências sexuais cometidos por membros de uma mesma família.
Desta forma, mesmo que estejamos mais seguros do que em toda história da humanidade, mesmo assim, as pessoas continuam a se sentir ameaçadas, inseguras e apaixonadas por tudo aquilo que se refira à segurança e à proteção. Isso se dá através do que Silveira (2013) chama de “cultura do medo”, ou seja, o que tem levado as pessoas a intensificarem suas próprias medidas visando uma suposta diminuição de vulnerabilidade, como a construção de muros e barreiras, assim como a se isolarem dentro de suas próprias casas, evitando sair a eventos e espaços públicos por medo da violência, o que configura uma mudança radical de comportamento, algo que beira a paranoia.
Esta forma de isolamento dos conflitos ocasiona uma espécie de divisão social, onde as pessoas economicamente privilegiadas passam a ocupar bairros considerados “nobres” e condomínios vigiados continuamente, restando para a camada mais pobre da população, territórios completamente negligenciados pelo Estado, locais em que a “elite” busca o distanciamento, diz Silveira (2013). E complementa ainda Silveira (2013, p. 300) que “O homem enfrenta grandes dificuldades em conseguir ver o outro como um semelhante e não como um concorrente a ser eliminado”.
Toda essa realidade que se forma na “cultura do medo” acaba por contribuir para o reforço dos preconceitos na esteira da ignorância e da insegurança. Com isso, cria-se a “Sociedade do Medo” aqui abordada que, além de cruel e preconceituosa, passa a ser ignorante e submissa a tudo que lhe é apresentado como verdade absoluta.
César Vinícius Kogut e Wânia Rezende Silva expõe que o medo é fenômeno de paralisação do senso normal da vida, altera relações de formas e espaços, traz à tona uma imagem duvidosa, reflete insegurança, tristeza e dá noção de fragilidade. Por isso, uma das missões fundamentais do Estado deveria ser realizar ações para minimizar problemas e reduzir o medo proporcionando à população uma melhor qualidade de vida, libertando os indivíduos desse sentimento para que vivam em segurança.
Saber que este mundo é assustador não significa viver com medo. Nossa vida está longe de ser livre do medo, assim como, livre de ser livre de perigos e ameaças, porém, não podemos permitir que o que vimos na TV influencie nossa vida a ponto de pararmos de viver, a ponto de guardarmos sonhos que gostaríamos de realizar ou de nos impedir de promover uma mudança. Não devemos nos preocupar com o que ainda não aconteceu, mas procurar sim evitar situações que possam nos colocar em risco e, até mesmo, nos proteger do perigo. Tudo, porém, sem permitir que o medo e a insegurança tome conta de nosso ser e do que somos.
Julga-se importante estabelecer os limites éticos da atuação da mídia, de forma que, respeitem a ordem legal, discipline as atividades e defina suas responsabilidades em relação às pessoas atingidas pela informação que se divulga, sem, é claro, que se perca o direito de informar e de ser informado. É preciso que a mídia banalize menos e instrua mais, sem decidir por si o que as pessoas devem pensar e a forma como elas devem agir em relação ao que foi noticiado.
Por vivermos em uma sociedade complexa, onde o Estado já não mais é capaz de cumprir com seu papel de proporcionar segurança à população, facilita ainda mais a instalação do medo inconsciente das pessoas.
Assim, resta à sociedade acreditar naquilo que é transmitido pela mídia e esperar por um futuro melhor, com menos violência e crimes hediondos. Até lá, a vida segue com uma completa divisão social, na medida em que a elite escolhe seus inimigos nas camadas mais pobres da população e continuam condenando aqueles que menos recursos têm: os já predestinados ao fracasso no sistema.
Como expõe Loïc Wacquant: “tranque-os e jogue fora a chave’ torna-se o leitmotiv dos políticos de última moda, dos criminólogos da corte e das mídias prontas a explorar o medo do crime violento (e a maldição do criminoso) a fim de alargar seus mercados”. Afinal, é esta política que ultimamente tem ganho voto e feito os políticos se elegerem.
Agora, quando os seus direitos e suas garantias fundamentais forem tiradas, só lhe restará sentar no meio fio e chorar, afinal, você pode ter legitimado tudo isso. Cuidado, muito cuidado.

*Raquel do Rosário é Formada em Letras pela Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE); Especialista em Inglês como segunda língua pela Central Piedmont Community College (CPCC) – Carolina do Norte / USA; Mestre em Ciências da Educação pela Universidade Católica Portuguesa (UCP) – Lisboa / Portugal; Graduanda do Curso de Direito pelo Centro Universitário – Católica de Santa Catarina / Brasil. Email:raquelteacher@hotmail.com
Diego Bayer é Advogado criminalista, Doutorando em Direito Penal, Professor de Penal e Processo Penal da Católica de Santa Catarina e autor de obras jurídicas.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAYER, Diego Augusto. A Mídia, a reprodução do medo e a influência da política criminal. In. Controvérsias Criminais: Estudos de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia. Jaraguá do Sul. Letras e Conceitos. 2013.
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Tradução, Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Ed. 2008.
BOLDT, Raphael. Criminologia midiática: Do discurso punitivo à corrosão simbólica do Garantismo. Curitiba: Juruá, 2013.
KOGUT, César Vinícius & SILVA, Wânia Rezende. A Mídia e seus Efeitos sobre o Medo Social. SESP– UEM.
MORAES, Cristiano Luis de Oliveira & SPANIO, Marlene Inês. Punição e mídia: análise de alguns aspectos que influenciam na violência e na criminalidade.
PELUZO, Vinicius de Toledo Pisa. Sociedade, mass media e Direito Penal: uma reflexão. Revista da Escola Paulista da Magistratura, 2003.
SILVEIRA, Felipe Lazzari da. A cultura do medo e sua contribuição para a proliferação da criminalidade. 2º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade. Santa Maria / RS UFSM – Universidade Federal de Santa Maria, 2013.
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Trad. Nilo Batista. Rio de Janeiro: Revan, 2001.